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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.1 Belo Horizonte jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Versões do Pai na psicanálise lacaniana: o percurso do ensinamento de Lacan sobre a questão do pai*

 

Versions of the Father in Lacanian psychoanalysis: the course of Lacan’s teachings on the issue of the father

 

 

Alfredo Zenoni**

Universidade Paris III

 

 


RESUMO

Trabalharemos as diferentes modificações que a noção de Pai ganhou no ensinamento de Jacques Lacan. Partiremos do pai no singular como Nome-do-Pai, sustentação da ordem simbólica e portador da interdição, até chegarmos à sua função de “sinthoma”. Do pai inicial, fundamento do laço social reduzido a um símbolo, portanto na condição de morto, chegaremos a um pai vivo; da unicidade a uma multiplicidade de “exceções” à lei; da universalidade à particularidade do objeto a que um homem extrai do corpo de uma mulher. O Nome-do-Pai multiplica-se em tantos nomes quantos forem os suportes à sua função. Em sua última apresentação, comparece como maneira de ligar os três registros – real, simbólico, imaginário –, que cada pai realiza como homem em relação a uma mulher e que decorre da maneira particular pela qual um pai pode suprir uma não relação sexual.

Palavras-chave: Nome-do-Pai, Pai-versão, Sinthoma, Gozo, Significante.


ABSTRACT

This is a study of the various modifications that the notion of the Father has undergone through Jacques Lacan’s teachings. It starts from the father in the singular as the Name-of-the-Father, a pillar of the symbolic order and a carrier of interdiction, until it fulfills the function of “sinthoma”. From the initial father, a fundamental of the social bond reduced to a symbol, therefore dead, it goes on to a living father; from unicity to a multiplicity of ‘exceptions’ to the law; from universality to the particularity of object a that a man extracts from a woman’s body. The Name-of-the-Father multiplies in as many names as the support to its function. In its last presentation, it works as a way to connect the three registers – real, symbolic and imaginary – that each father fulfills as a man in relation to a woman and that result from the particular way in which a father can supply a non-sexual-relation.

Keywords: The-Name-of-the-Father, Version-father, Sinthoma, Jouissance, Signifier.


 

 

O imperativo ao qual nossa sociedade se encontra sujeita questiona todas as hierarquias e desigualdades: cada indivíduo tem o mesmo valor que outro, nenhum indivíduo é superior a outro. Ele também diz respeito à relação entre os sexos, aos papéis dos pais e, afinal, à própria relação entre pais e filhos. Ele se liga a todo um processo de “desinstitucionalização” do qual decorre a dissolução progressiva dos papéis tradicionais da autoridade. Além disso, a reprodução, na espécie humana, parece agora poder se emancipar de suas bases sexuais, que garantiam o formato-padrão da família, levando a uma dissolução dos papéis dos pais a ele inerentes. Nesste contexto, a abordagem da questão do pai parece responder a uma preocupação um pouco ultrapassada, quase que fora de moda, principalmente se for percebida como uma tentativa de validar ou de restaurar uma concepção de poder, que surgiu antes da exigência contemporânea de igualdade.

Será que, por um lado, a contribuição da psicanálise sobre a noção e a função do pai pode ainda ser pertinente, nesse contexto de questionamento de tudo que evoque as noções de hierarquia e de diferença? Por outro lado, será que essa contribuição nada mais é, afinal de contas, que um puro e simples equacionamento da paternidade e da lei? Acreditamos que as respostas a essas questões serão deduzidas da exposição, em grandes linhas, das modificações que sempre ocuparam o ensino de Lacan, a respeito da questão do pai.

 

Do pai freudiano ao lacaniano

Nas várias tentativas de vulgarização do ensino de Lacan, na maioria das vezes, só se releva um único aspecto da problemática do pai, que, a partir do Seminário, Livro III e à luz da clínica das psicoses, conduz à noção do Nomedo- Pai como significante da Lei. Contenta-se, normalmente, em dar ênfase à transcrição do “complexo de Édipo” freudiano, em termos de “metáfora” paterna, ou seja, a operação que substitui a dimensão do desejo (materno) pela dimensão da lei (paterna), de maneira a introduzir uma nova significação no mundo simbólico do sujeito. A noção dessta substituição já está implícita na perspectiva de Freud, quando ele considera que a promoção do laço paterno, fundado na fé e na lei, no lugar do laço materno “fundado numa carnalidade manifesta”, é um progresso na via da civilização (Lacan, 2005a, p. 38). Enquanto o laço materno decorre de uma dimensão natural, baseada na percepção e na presença, o laço paterno introduz a dimensão do que não se vê, a dimensão da ausência. Ele supõe a crença na palavra.

A essência e a função do pai como Nome, como pivô do discurso, estão precisamente no seguinte ponto: afinal de contas, jamais se pode saber quem é o pai. Pode ir procurar, é uma questão de fé (…) Aliás, é certo que a introdução da pesquisa biológica da paternidade não pode deixar de ter incidência sobre a função do Nome-do-Pai. (Lacan, 2006, p. 152)

O registro paterno é, ao mesmo tempo, o do “recalque”, recalque do gozo da mãe – no duplo sentido do genitivo –, bem como da “sublimação”, ou seja, do que constitui própria e especificamente a experiência humana, com relação à simples vida animal (Lacan, 2006, p. 152).

A retomada lacaniana do “complexo de Édipo” acentua este aspecto de substituição de uma dimensão por outra, presente nos textos de Freud sobre a religião, lhe retirando qualquer conotação mitológica ou de anedota. A “metáfora paterna” traduz o complexo de Édipo nos termos dessa subordinação do imaginário, campo da relação erótico-agressiva, ao simbólico, campo da relação de palavra, que caracteriza a experiência humana, no primeiro momento do ensino de Lacan. Para o homem, a dimensão simbólica negativa ultrapassa a dimensão do imaginário e transforma radicalmente todo o registro da satisfação. É por isso que a significantização do imaginário, operada pela paternidade, diz respeito, em primeiro lugar, a seu próprio operador, ou seja, ao próprio pai. Para fazer o papel da normatização das relações imaginárias que a estrutura lhe atribui, o próprio pai, na condição de normatizante, deve ser anulado no plano da presença e da imagem. Ele só atinge o status simbólico de sua função por meio da anulação de sua própria condição de ser vivo. Sua operatividade é a de um ausente, o que os mitos freudianos expõem sob a forma do pai morto ou do pai assassinado. Sua operatividade fica reduzida à operatividade de um Nome.

 

O que, de fato, está em jogo na função do pai

A formalização do complexo de Édipo, nos termos da “metáfora paterna”, não é, portanto, a última palavra de Lacan sobre a questão. Ela também não corresponde ao que é propriamente lacaniano, no tratamento da questão do pai. Lacan desenvolve então uma outra via de pesquisa, que é paralela e passa, às vezes, pelos desenvolvimentos sobre o Nome-do-Pai, mas que desloca radicalmente o eixo da questão.

Muitas vezes, como foi dito, a exposição da doutrina lacaniana se detém a sua primeira formulação, em que ele retoma essencialmente o texto de Freud, enfatizando os termos da oposição entre significante da lei e significante do desejo, o que também se traduz por uma oposição entre o morto e o vivo. Atribuindo ao pai apenas a realidade do significante,1 essa consideração do pai limita-se à noção do “pai morto” como fundamento da ordem simbólica, criando dificuldades na leitura de Lacan, quando a noção de pai real é abordada.2

Ora, a partir dos dois seminários A relação de objeto e As formações do inconsciente, o que será decisivo na abordagem propriamente lacaniana da questão, incide principalmente sobre a relação à instância simbólica do Nomedo- Pai. Esta incidência advém do pai real, precisamente do modo como ele se manifesta em sua relação efetiva com a mãe, enquanto mulher. Lacan acentua menos a noção de um pai que proíbe o desejo do filho, ou que o priva de sua mãe,3 em favor da noção de um pai que permite e dá (Lacan, 1998, p. 205). A intervenção do pai real como aquele que tem o falo, ao passo que a mãe é privada aos olhos do sujeito, o pai é aquele que o dá ao invés de, por assim dizer, guardá-lo para si. Isto será decisivo para a saída normatizante do “complexo de Édipo”, ou seja, para a identificação do sujeito criança à sua posição sexuada. Lacan parece dizer que o essencial da intervenção do pai não consiste tanto na proibição relativa “às primeiras manifestações do instinto sexual” (Lacan, 1998, p. 187) no pequeno sujeito, mas como presença que causa impacto sobre o desejo da mãe, enquanto mulher. E é nestsa intervenção, que não é a da interdição, que “se manifestam suas faltas de intervenção (manques à intervenir)”. “A mãe basta para mostrar ao filho o quão insuficiente é o que ele lhe oferece, e basta também para proferir a proibição do uso do novo instrumento” (Lacan, 1998, p. 187). Quanto à proibição do incesto, diz ainda Lacan,

Ninguém jamais pensou em colocar no primeiro plano do complexo de castração o fato de que o pai efetivamente promulga a lei da proibição do incesto. As pessoas às vezes até o dizem, mas o pai nunca o articula, por assim dizer, na condição de legislador ex cathedra. Ele faz obstáculo entre a mãe e o filho, ele é o portador da lei, mas em direito, uma vez que, no fato, ele intervém de outro modo. (Lacan, 1998, p. 187)

Há, pois, uma disjunção entre o pai que porta a lei, o pai que intervém simbolicamente ou o pai de direito, e aquele que, de fato, intervém como pai real na relação.

[…] o pai, na medida em que é investido pelo significante do pai, intervém no complexo de Édipo de modo mais concreto, mais escalonado por assim dizer […]. É neste nível que a compreensão das coisas fica mais difícil, no entanto, dizem que é nele que se encontra a chave do Édipo, ou seja, sua saída. (Lacan, 1998, p. 188)

Ora, essa abordagem do pai, sob o ângulo do real de sua presença, é justamente a chave da clínica das “diversas configurações concretas” em que a relação com o significante pai pode revelar-se “carente” ou até mesmo forcluída. O importante aqui é desprender-se de uma idéia do pai que o identifica à função do interdito, que o limita ao puro significante, que o mede sob os parâmetros de uma perfeição simbólica, para permitir a abertura de uma perspectiva sobre a função do pai na qual a dimensão da lei seja menos oposta e mais articulada à do desejo: “A verdadeira função do Pai […] é, fundamentalmente, unir (e não opor) um desejo à Lei” (Lacan, 1966a, p. 824).4

O que se evidencia como lacaniano na abordagem da questão do pai, toma a forma de um nó, ligando dimensões habitualmente separadas, deixando de ter a forma de oposição. A ênfase se desloca de uma figura do pai, como puro fundamento da ordem, pai perfeito enquanto morto, para uma figura do pai marcada pela imperfeição, incluindo sempre um lado “sem a lei”, na própria relação com a lei. Na verdade, a imagem do Pai ideal é uma fantasia do neurótico, como diz Lacan (1966a) nesse mesmo texto dos Escritos, assimilando ali, para todos os efeitos, a figura do Pai morto.

A partir daí, a conciliação e a mediação entre a lei e o desejo, que definem a verdadeira função do pai, definem também o verdadeiro sentido da função de limite, que geralmente lhe é atribuída. É por esse motivo que, como instância ou como indivíduo, o pai realiza, de uma forma ou de outra, o entrelaçamento entre o interdito e o desejo. Isso faz com que ele tenha uma função de limite – função de limite ao pior. Por um lado, esse entrelaçamento limita o ilimitado da lei, que gostaria que tudo fosse codificado, que uma norma regesse todos os aspectos de nosso comportamento, que, em última análise, tudo se explicasse. Na verdade, tal exclusão da exceção e da singularidade poderia significar “retornos ao real” ainda mais avassaladores e destruidores do que os fenômenos “desviantes” que se quer suprimir. Por outro lado, essse mesmo entrelaçamento limita também o “tudo é permitido”, “tudo é possível”, “tudo é teatro”, que não deixa mais lugar nenhum para a noção de loucura e de responsabilidade. Aqui também a ausência de limites pode custar retornos violentos, destsa vez da lei e das tradições, levando à exacerbação de um discurso cientificista, na terapêutica das “doenças mentais”.

 

Dois desdobramentos clínicos

Na relação com o Nome-do-Pai, como universal da lei, e com o desejo, como momento da singularidade do sujeito, a “verdadeira função do pai” será então exercida entre os dois lados opostos de sua possível clínica. Por um lado, a noção de “carência” do pai, evocada por Lacan nos primeiros seminários, não diz respeito propriamente a uma falha do simbólico, a um enfraquecimento da lei (no sentido do relaxamento ou até mesmo do desaparecimento da autoridade exercida sobre o filho), mas a uma demissão do pai real com relação ao desejo da mãe, ou seja, junto a uma mulher que ele não ousa encontrar ou confrontar como mulher, tal como Lacan o explicita a partir caso do pai do pequeno Hans. Quando a mãe não está privada do objeto de seu desejo ou, em outras palavras, quando ela parece tê-lo, sem necessidade de se dirigir ao homem, quando seu desejo não está dividido entre o filho e o homem (Miller, 2003, p. 7), o filho corre sério risco de ficar preso no desejo de “ser” esse objeto do desejo, no lugar de uma preferência-identificação por “aquele que tem”, na condição de “Ideal do eu”. Daí decorre, em modalidades diversas, uma dissociação entre a dimensão da lei e a dimensão do desejo, o efeito mortificante da primeira estando na medida do aspecto “fora da lei” da segunda, em que a identificação ao falo cria uma dificuldade no encontro, especificamente com o outro sexo.

Do lado oposto, a derrota da verdadeira função do pai acontece, paradoxalmente, na própria medida em que se realiza a identificação do sujeito genitor ao Nome-do-Pai como universal do pai, como vetor do absoluto e do abstrato da ordem simbólica (Miller, 2003, p. 10). Confundir-se com o universal, identificar-se à lei, com a exclusão de qualquer manifestação da particularidade do desejo, é o risco da falsa paternidade, risco tão iminente que a função ou missão simbólica a cargo do pai ou da qual ele se encarrega na sociedade, tende a ser transposta para a vida familiar (Lacan, 1966b, p. 579). Sua conduta será invariavelmente percebida como mentirosa, “até a destruição”, ainda mais considerando-se o fato de ele ter-se identificado a um ideal. A partir daí, tanto a confiança na palavra quanto o reconhecimento da própria noção de lei ficarão fortemente comprometidos, uma vez que o sujeito preso a uma atitude de desconfiança passará a ler, em tudo o que disser respeito ao Outro, os sinais da traição ou da impostura.

 

Do significante último ao semblante múltiplo

O percurso do ensino de Lacan sobre a questão do pai pode ser apreendido como um progressivo deslocamento de suas coordenadas, do simbólico para o real e o gozo. Apesar de ainda ser mencionada até seus últimos seminários, a noção de Nome-do-Pai tende a diferenciar-se, cada vez mais, do pai, passando a designar então uma função de nó, que múltiplos substantivos – inclusive o próprio pai – podem desempenhar. No lugar onde antes um significante último ou primeiro deveria garantir o conjunto do significante, além de fundar uma ordem necessária, ocorre agora a noção de uma “fundação” contingente, encarnada na diversidade dos significantes-mestres, relativos, históricos. Não se trata mais de uma fundação do simbólico pelo simbólico, impossível de ser feita, mas de uma “fundação”, por assim dizer, sem fundamento, já que ela pertence preferencialmente à ordem da declaração, da inauguração e da escolha, e não à ordem da demonstração. O pai se desloca de seu valor universal, de sua confusão com a lei, daquilo que, no universal, excetua-se do universal, daquilo que, na lei, não é ditado pela lei.

Esse deslocamento já é sensível a partir do Seminário, Livro V, em que a referência ao pai real – já evocada – vem acompanhada de um desenvolvimento sobre a lei que inclui a questão do que funda a lei. Toda a primeira parte desste seminário é feita para mostrar que falar não quer dizer simplesmente exprimir as significações atribuídas às palavras pelo código, mas quer dizer também produzir um novo sentido, do mesmo modo que desejar não quer dizer ser condenado pelas necessidades da necessidade, mas aspirar a “outra coisa”.

O lugar do Outro não se apresenta mais então como sendo simplesmente a sede do código, mas como um lugar onde coisas novas, não codificadas, originais, podem ser admitidas, modificando, ao mesmo tempo, o próprio código. O Outro parece assim não ser mais simplesmente sinônimo de lei, pois comporta igualmente o lugar de uma iniciativa que, por sua vez, também não é dedutível da lei, pois dela escapa. Porque o que alarga, interpreta, adapta e, no final das contas, diz a lei, não é, em si, um termo de lei. A enunciação da lei tem como único fundamento ela própria, já que a existência da lei não pode, por definição, ser precedida pela lei, assim como uma palavra não pode ser garantida senão pela própria palavra, ou seja, na verdade, não tem garantia. “Qualquer enunciado de autoridade tem como única garantia a sua própria enunciação, pois vã será sua busca em outro significante, o qual, de qualquer maneira, não apareceria fora deste lugar” (Lacan, 1966a, p. 813). O fato de lhe dar crédito, de acreditar nela, mostra precisamente que a suposição da boa-fé do Outro faz as vezes da garantia, suprindo a prova ausente.

Sob o Outro que não muda as regras, porque ele é a regra imutável e silente de tudo e de si mesmo, aparece assim uma estrutura do Outro que carece de seu próprio fundamento, um Outro que não tem como incluir a si próprio. Trata-se de uma estrutura do Outro em que o Outro do Outro falta.

Assim, no lugar do fundamento, no lugar do princípio, desenha-se no significante o lugar de uma ausência de significante, que indica, ao mesmo tempo, o lugar do ato. Onde não há garantia, onde há uma lacuna no código, há lugar para a iniciativa, há lugar para a decisão, há lugar para a causa do desejo.

O status do Nome-do-Pai muda, então, a partir do momento em que a função de fundamento do Outro, a função de auto-demonstração do Outro, que ele deveria garantir, evidencia-se como impossível. Ao mesmo tempo em que se enfatiza o pai real, o Nome-do-Pai deixa de aparecer como idêntico ao Outro, interno ao Outro, como se fosse sua consistência, para somente aparecer como uma máscara, um semblante que vela sua inconsistência. Ele não é um buraco, mas ele tampa o buraco, fazendo crer que não há buraco. Ao fazer isso, ele perde sua unicidade, já que termos variados podem cumprir essa função de tapa-buraco, e nenhum deles é, por definição, o significante primeiro que está ausente. Se há vários Nomes-do-Pai, é porque nenhum deles é o Nome-do- Pai: nada corresponde a um nome próprio, todos não passam de semblantes.

Mas o pai tem tantos e tantos que ele não tem Um que seja conveniente, se não o Nome de Nome de Nome. Não há um Nome que seja seu Nome-Próprio se não o Nome como exsistência. Ou seja, o semelhante por excelência. (Lacan, 2001a, p. 561)

De Lei para todos, fundamento universal, o Nome-do-Pai se desloca assim para uma multiplicidade de suplentes, ou seja, para a multiplicidade das “exceções” à lei que têm o papel de fundamento da lei. A partir de então, se um Nome-do-Pai marca um começo, se ele faz ofício de fundamento – enquanto o Outro não o comporta, por ser inconsistente – é porque acredita-se nele, porque aceita-se que ele seja colocado neste lugar.

Sob o Nome-do-Pai, que designa o Outro que parece existir como Ordem do mundo, Leis da natureza, Equações da física, Inteligência universal, finalmente, o “Deus dos filósofos” (Lacan, 2001b, p. 337; Miller, 2004) – que é logicamente impossível, desde Gödel – aparece assim um outro Nome-do- Pai, o da tradição, que é o nome de um Outro ausente e que, por conseguinte, quer alguma coisa. Trata-se aqui de um Nome-do-Pai que existe, mas cuja existência equivale, em última análise, à da causa de desejo que se remete a ele. Trata-se do Outro do qual “finge-se que ele pede alguma coisa, vítimas, por exemplo” (Lacan, 2005b, p. 53), para se provar que ele existe. É aquele que se chama justamente de Pai, ou Senhor, Rei, Mestre. Acreditando nele, algo de nós lhe é atribuído, transferindo-lhe o que das razões de viver vai além do simples viver. Sob a máscara do “pai morto”, pai que não vale nada, puro símbolo, há o pai ausente, o “pai castrado” (Lacan, 1991, p. 115), aquele cuja existência é permitida pelo sacrifício do que há de mais precioso em nós, aquele que o amor faz existir.

Este segundo Nome-do-Pai, que na verdade é o primeiro na história, é uma roupagem do objeto a (Miller, 2004), “transferência daquilo que não tem nome ao lugar do Outro” (Lacan, 2005c, p. 103). Por estse motivo ele não é único, um nome universal, mas vários nomes, como tantas localizações do “a” particular que o fazem existir. Nada o impede de ser o efeito da transferência de uma multidão de indivíduos e, nestsa condição, de ser o fundamento de uma unidade coletiva. Resta, no entanto, que o que o transfere e lhe dá consistência é um modo de gozar particular.

Jogando com o equívoco, Lacan chama esse modo de se dirigir ao pai, cujo protótipo é a imaginação de ser redentor, de “pai-versão” [père-version, em francês, homônimo de perversion], como relação do filho com o pai, em que o filho se priva do gozo por amor ao pai (Lacan, 2005c, p. 150), e em que se manifesta o sadismo do pai e o masoquismo do filho (Lacan, 2005c, p. 85). Enfim, essa foi a última palavra de Freud sobre o pai. Na crença de ter percorrido toda a religião, ao interpretar Deus como uma projeção antropomórfica, mítica, do Pai primordial, aquele que proíbe o gozo, Freud, ao fazê-lo, não interpreta o pai, e não aborda a equivalência entre o Pai morto e o gozo. Ele mantém a lei como desejável, como nota J.-A. Miller na aula de 11 de junho de 2003 do Curso de Orientação Lacaniana. A partir de então, o passo de Lacan consistirá em mostrar que a instância do interdito – o pai que diz não ao gozo do filho – é, ela própria, uma ficção. Ela leva a crer na possibilidade do gozo do Outro, uma vez que o proíbe, quando, na verdade, está cobrindo uma impossibilidade. Ela é o véu jogado sobre uma lacuna interna, aquela que a inexistência da relação sexual cava no próprio gozo.

 

Pais, no plural

Por contraste com a noção do pai, do momento inicial de seu ensino, a noção de pai que Lacan acaba enfatizando, notadamente nos últimos seminários, é completamente disjunta da noção de sustentação da ordem simbólica e do portador da interdição. Há um deslocamento duplo, de algum modo. Por um lado, o Nome-do-Pai multiplica-se em tantos nomes quantos forem os suportes à sua função, tornando-se ao mesmo tempo, por causa de sua própria multiplicidade, um artifício, algo que ninguém pode usar sem tomá-lo por aquilo que ele não é, sem tomá-lo por um elemento de coesão da ordem simbólica que não existe. Por outro lado, no prolongamento do que foi exposto no seminário As formações do inconsciente, a respeito do pai real, a noção de pai será, a partir de então, e definitivamente, abordada não sob o ângulo do parentesco, mas sob o da aliança homem-mulher, sob o ângulo, portanto, do efeito “colateral” da posição de desejo do pai sobre a constituição subjetiva da criança. Não se enfatiza a dissimetria ou a hierarquia entre os papéis dos pais, mas sim a diferença sexual, homem-mulher, no casal de pais.

Com efeito, várias versões do gozo são possíveis. O ideal, a regra, o comando podem também constituir gozo, como percebeu Freud, com sua noção de supereu. Já Lacan aposta em uma definição do pai que “tem direito ao respeito, senão ao amor”, não a partir da lei, do poder, da patria potestas, mas a partir do desejo do pai, cuja causa é uma mulher (Lacan, 1975, p. 107-108). A escolha de um gozo e não de outro, daquele que é a causa do desejo por uma mulher e não do que está ligado, por exemplo, à imposição da disciplina ou à aplicação da lei, é o que é decisivo. Não se trata mais do universal da lei, mas do “um por um” dos sujeitos que se dizem pais, ou seja, da exceção que qualquer um pode fazer para que a “função da exceção se torne modelo” (Lacan, 1975, p. 107). A versão da causa do desejo que é transmitida, o exemplo que ela constitui, é disso que um pai é considerado responsável, um pai que agora está tomado na particularidade de seu desejo e não na universalidade do significante.5 E é tendo essa responsabilidade como pano de fundo que ele garante uma transmissão que “comporta até mesmo algo que anula o falo do pai, antes que o filho tenha o direito de portá-lo” (Lacan, 2005c, p. 85).

Do pai inicial, fundamento do laço social reduzido a um símbolo, portanto na condição de morto, passamos agora a um pai vivo; da unicidade a uma multiplicidade de “exceções” à lei; da universalidade à particularidade do objeto (a) que um homem extrai do corpo de uma mulher. A questão trata menos do poder do pai sobre o filho do que do sintoma do pai: seu objeto pulsional encontra-se em uma mulher ou em outra coisa? É o que Lacan também chama, mas em outro sentido, desta vez a partir do desejo do pai, de versão “pai” do gozo, da “pai-versão” [père-version] do gozo: “pai-versão, única garantia de sua função de pai, a qual é função de sintoma, tal como eu a escrevi” (Lacan, 1975, p. 108).

 

Uma questão de sintoma, o pai

Para terminar, da pluralização do Nome-do-Pai, de seu deslocamento por meio de um por um dos pais reais, decorre a maneira de ligar os três registros separados – real, simbólico, imaginário – que cada pai realiza como homem, em relação a uma mulher. Em outras palavras, do percurso de Lacan, relativo à questão do pai, decorre a maneira particular pela qual um pai pode suprir uma não-relação sexual. Ou, para dizê-lo ainda de outra maneira, dele decorre a maneira pela qual o pai liga o simbólico e o real entre si, que é a maneira de dar nome às coisas da vida, pela qual o Nome-do-Pai inverte-se em “pai do nome”, segundo outra formulação da mesma época (Lacan, 2005c, p. 22).

Ora, desste ponto de vista, na qualidade de suplente da não-relação sexual, ou da ausência de nó entre R. S. I., a “pai-versão” parece ser somente um caso, ainda que seja o mais freqüente, de uma função mais geral. Com efeito, a clínica mostra que modos de amarração [nouage] do gozo e do semblante podem se produzir sem que se tenha que lançar mão da versão “pai-versão” do laço. Ela mostra que determinados sintomas podem garantir uma função análoga à do pai, sem ter que recorrer a ele, enquanto a incidência do pai comporta sempre algum resíduo sintomático. Com efeito, é na ponta do gozo não absorvido pelo significante (que não se esgota na identificação, no ideal, na lei) que reside o que faz para cada um sua irredutível diferença.

Uma vez reduzido o sintoma ao que não depende mais do texto inconsciente, uma vez destacado do registro metafórico e atingido o nível de opacidade em que nada mais resta senão fazer algo dele, o pai passa a ser dispensável, após ter sido usado, na maioria dos casos, ou sem ter sido usado, em alguns outros casos. Afinal de contas, os diversos Nomes-do-Pai que marcaram a história da humanidade, tanto quanto a do indivíduo, demonstraram não ser nada mais do que formas provisórias, ainda que mais difundidas, de uma função “sintomática” de base. Com efeito, na ausência de articulação, de junção, de relação entre as três dimensões das quais o ser humano se compõe, resta, in fine, a maneira que cada um tem de se virar, para além do laço paterno, para estabelecê-lo, por assim dizer, pessoalmente, para manufaturar o grampo sintomático que os mantém juntos.6 Se servir do Nome-do-Pai em uma análise (Lacan, 2005c, p. 136) nada mais é do que um meio de desvelar sua natureza de artifício necessário à própria operação analítica, aquela que reduz o sintoma à solidão de um modo de gozar.

 

Referências

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Texto recebido em fevereiro/2007.
Aprovado para publicação em março/2007.

O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

 

 

*Tradução de Nina de Melo Franco (Bacharel em Direito, professora e tradutora de francês).
**Doutor em Psicologia, psicanalista em Bruxelas, membro da École de la Cause Freudienne e da Associação Mundial de Psicanálise, professor da «Seção Clínica» de Bruxelas, ligada ao Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII. De 1975 a 2004, ele foi o responsável terapêutico da comunidade terapêutica «Foyer de l’Equipe», em Bruxelas (Anderlecht). E-mail: alfredo.zenoni@newreal.be
1Ver, entre outros, M. Safouan, La parole ou la mort (Paris: Seuil, 1993).
2Assim, J. Dor, em sua obra Le père et sa fonction en psychanalyse (Paris: Point Hors Ligne, 1989), vai até confundir o pai simbólico com o pai “que tem o falo”, ao mesmo tempo em que atribui ao pai real uma versão imaginária, como pai proibidor e privador, em relação ao sujeito (p. 58-60).
3Contrariamente ao que sugere J. Dor (1989), a privação não é dirigida ao filho, mas à mãe.
4A função do pai, como diz Lacan na mesma época, “constitui, com efeito, uma reviravolta entre a preservação do desejo, sua onipotência – e não, como se escreve inconvenientemente em tal tradição analítica, a onipotência do pensamento – e o princípio correlativo de um interdito, que impõe um certo distanciamento. Os dois princípios crescem e decrescem juntos, seus efeitos são diferentes – a onipotência do desejo gera o temor da defesa que se apodera do sujeito, o interdito tira do sujeito o enunciado do desejo para passá-lo para Outro, a esse inconsciente que não sabe nada daquilo que seu próprio enunciado suporta “(Lacan, 2005a, p. 35).
5Ver, sobre este ponto, o artigo de Éric Laurent, “Le modèle et l’exception”, Ornicar?, n. 49, 1998, p. 121-128.
6Ver nosso artigo, “Bouts de réel”, (Quarto, n. 85, p. 63).

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