Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.1 Belo Horizonte jun. 2007
ARTIGOS
Convivendo no intervalo: relacionamento interpessoal de crianças em comerciais de televisão voltados para o público infantil
Living together in the break: childrens personal relationships in TV commercials addressed to children
Luciana Teles Moura*; Agnaldo Garcia**
RESUMO
Este trabalho teve por objetivo analisar a natureza dos relacionamentos interpessoais entre crianças, retratados em comerciais de televisão veiculados por uma emissora de TV por assinatura destinada ao público infantil. A partir da análise de 98 horas de gravação em vídeo (uma semana de programação), foram identificados 46 comerciais diferentes, apresentando alguma forma de relacionamento interpessoal em 36 deles. Foram identificados os cenários desses relacionamentos, as atividades executadas pelas crianças, bem como as principais dimensões psicossociais de suas interações ou relacionamento com pares e familiares. Os comerciais enfatizam o lado positivo dos relacionamentos. Episódios de conflito e competição foram tratados com leveza e bom humor. Os produtos anunciados funcionaram como mediadores e facilitadores desses relacionamentos. Pode-se presumir que os relacionamentos presentes nos comerciais, assim como no resto da programação, possam servir de referência para os relacionamentos da criança.
Palavras-chave: Relacionamento interpessoal, Criança, Publicidade, TV.
ABSTRACT
This is an analysis of the nature of childrens interpersonal relationships displayed in TV commercials in a channel addressed to children. Based on the analysis of 98 hours of video (one weeks programs), 46 different commercials were identified and interpersonal relationships were found in 36 of them. The settings for those relationships and interactions were identified, as well as the childrens activities and the main psycho-social dimensions of their interactions with family or peers. The commercials emphasized the positive side of relationships. Conflict and competition episodes were dealt with care and humor. Usually, the advertised products mediated and facilitated those relationships. One can assume that personal relationships in commercials, as well as in TV programs in general, may be used as reference by children regarding their own relationships.
Keywords: Personal relationships, Children, Publicity, TV.
Os estudos sobre o relacionamento interpessoal têm apresentado um grande desenvolvimento nas últimas décadas, com contribuições de diferentes disciplinas, como a Psiquiatria (Sullivan, 1953), a Psicologia da Gestalt (Heider, 1970), a Etologia (Hinde, 1997), os estudos sobre comunicação (Duck,1983) e a Psicologia Social (Argyle, 1992). Com base em princípios da Etologia, Hinde (1997) buscou organizar uma ciência dos relacionamentos interpessoais, integrando as informações disponíveis em torno desses princípios gerais, destacando a importância de uma base descritiva. A proposta de Hinde (1997) inclui crescentes níveis de complexidade, como interações, relacionamentos, grupos e a sociedade, que mantêm relações dialéticas entre si e com o ambiente físico e a estrutura sociocultural. A abordagem de Hinde (1997) diferencia interações, que se referem ao momento do encontro entre duas pessoas, de relacionamentos, que se dão ao longo do tempo. Um ponto importante no presente artigo é como interações e relacionamentos se conectam, especialmente quando são observados por um período tão curto, como acontece nos comerciais de TV. Para Hinde (1997), interações e relacionamentos representam níveis diferentes de complexidade em relação dialética, afetando-se mutuamente. Comercias são produções breves que, usualmente, mostram pessoas interagindo. Apesar disso, eles geralmente trazem elementos que permitem fazer referência aos relacionamentos interpessoais subjacentes. Por exemplo, quando um menino interage com uma mulher adulta em um comercial, freqüentemente, é possível identificar, a partir dos gestos, das palavras (como a criança chamá-la de mãe) ou do contexto, que se trata de um momento do relacionamento entre mãe e filho.
Apesar da contribuição da área de comunicação para os estudos dos relacionamentos, ainda há poucas investigações de relações ou interações interpessoais na publicidade, especialmente em comerciais de TV.
Os efeitos dos comerciais na TV sobre a criança
A influência dos comerciais sobre as crianças é tema de discussão. Para Goldstein (1994, 1995), as pesquisas não sustentam a visão de que elas sejam particularmente vulneráveis à publicidade, afetando menos o comportamento de consumo infantil que a família e os pares. De acordo com a Swedish Consumer Agency (2000), as pesquisas sobre os efeitos da publicidade na TV sobre as crianças geralmente são ambíguas e diferenças culturais deveriam ser consideradas. Para Young (2003), não há dados conclusivos sobre a relação entre publicidade na TV e a escolha alimentar das crianças. Por outro lado, uma força-tarefa organizada pela American Psychological Association para investigar os efeitos da publicidade na televisão sobre o público infantil concluiu que esta atinge os efeitos aos quais se destina: crianças lembram o conteúdo dos comerciais e a preferência por um produto, que pode ocorrer com um único comercial, torna-se mais forte com a repetição. Muitos comerciais para crianças anunciam alimentos e a exposição a eles aumenta o consumo desses produtos (Wilcox et al., 2004).
Vários aspectos do tema têm sido investigados. Para Valkenburg e Buijzen (2005), a habilidade para reconhecer marcas começa bem antes da habilidade para recordá-las, e assistir TV estava significativamente associado ao reconhecimento de marcas (mas não com o recordar). Segundo Chandler (1997), quanto mais reais forem os programas, maior será sua influência sobre o comportamento e as atitudes. Bijmolt et al. (1998) investigaram como as crianças de cinco a oito anos compreendem a publicidade na TV, especificamente a habilidade para distinguir entre programas de TV e comerciais e compreender a intenção da propaganda. A partir de medidas não-verbais, a maioria podia distinguir comerciais de outros programas e tinha noção da intenção da publicidade. Usando medidas verbais os resultados não foram tão conclusivos. Outra pesquisa revelou que as crianças se tornam mais capazes de diferenciar entre propaganda e outros programas na TV e compreender a intenção da publicidade somente por volta dos dez ou 12 anos (Jarlbro, 2001). Para Cohen e Cahill (1999), a mídia leva ao desenvolvimento mais acelerado de algumas características da criança. Assim, ela pode comportar-se como um adulto quanto a alguns hábitos de consumo, sem compreender o que faz como um adulto o faria.
Em suma, em relação aos efeitos dos comercias sobre a criança, não há consenso entre os autores. Os efeitos da forma como os relacionamentos interpessoais são retratados para a vida social da criança são ainda menos investigados e conhecidos.
As crianças e a mídia no Brasil
Em nosso país, as crianças apresentam uma grande exposição à mídia. O Painel Nacional de Televisão do IBOPE indicou que as crianças brasileiras entre quatro e 11 anos passam uma média de 4h51min19s por dia em frente à TV (dados de 2005), ocupando o primeiro lugar mundial em consumo de mídia televisiva (Linn, 2006), passando mais tempo assistindo TV (cerca de 33 horas semanais) do que na escola (23 horas). Crianças de vários países passam, pelo menos, 50% mais tempo em frente à TV do que realizando qualquer outra atividade fora da escola, incluindo estar com amigos e familiares ou realizar deveres de casa (Affini, 2004). A criança tem-se tornado uma consumidora, incentivando grandes empresas a investir no desenvolvimento de produtos para esse mercado. A criança não apenas consome, mas também influencia na decisão de compra de produtos para adultos. Estima-se que 30 bilhões de reais circulem anualmente no Brasil na forma de mesada ou renda própria de crianças e adolescentes (Sambrana, 2003).
Personagens da televisão têm-se transformado em um grande filão econômico mundial, transformando-se em temas de festas infantis, artigos de papelaria ou guloseimas (Brito, 2005). Em países desenvolvidos, os fabricantes participam até mesmo da criação de personagens, avaliando seu potencial para se transformarem em itens de consumo. Quem financia a permanência no ar dos programas infantis é a propaganda, e as crianças brasileiras são expostas a cerca de quatro mil comerciais por mês (Pereira Júnior, 2002).
A lógica e o raciocínio são dispensáveis para persuadir as crianças por meio de comerciais. O segredo é investir na fantasia, na mágica, na aventura, utilizando temas que versem sobre relações afetivas e familiares para vender produtos, marcas ou comportamentos. Devem-se criar conexões entre suas fantasias e o estabelecimento de hábitos de consumo de interesse dos anunciantes (Sampaio, 2004). Segundo Cádima (1997), a criança está desprotegida das mensagens televisivas. Somente a partir dos cinco anos que ela iniciaria a distinção entre as mensagens comerciais e os outros gêneros de informação, o que se completaria somente a partir dos 11 anos. Até então, ela não entende que a atração que assistia foi interrompida por um comercial.
A televisão afeta comportamentos, contribuindo para a obesidade infantil, o despertar precoce da sexualidade e o aumento da violência entre as crianças e jovens (Carlsson, 1999).
Esses dados indicam forte presença da mídia no dia-a-dia das crianças brasileiras e um grande investimento em publicidade voltada para a criança na TV. Pouco se sabe, contudo, sobre o impacto dos modelos de relacionamento da mídia nos relacionamentos reais das crianças.
Interação social nos comerciais para crianças
Entre os mecanismos responsáveis pela atração da TV sobre as crianças, Puggelli (2002) aponta a brevidade espaciotemporal da mensagem e a fruição intensa em tempo reduzido, a simplicidade da situação (familiar e facilmente reconhecível), a simplicidade verbo-icônica (poucas palavras associadas à imagem facilitando a compreensão e assimilação) e a atração dos modelos propostos (ligados a comportamentos amplamente difundidos e cuja adoção pode oferecer um melhor grau de inserção e aceitação entre os pares).
Larson (2001) analisou o conteúdo de 595 comerciais com crianças na programação destinada a crianças (atividades e interações de meninos e meninas em comerciais com um ou ambos os gêneros). Um número similar de meninos e meninas juntos agiu cooperativamente. Contudo, os comerciais somente com meninas as mostravam em ambiente doméstico. A atividade primária foi
o brincar não-criativo, com considerável violência e agressão. As interações eram cooperativas, competitivas, paralelas (crianças não interagindo), independentes (uma criança só) e com nenhuma interação dominante. As atividades incluíam brincar/divertir-se, comer e jogar, entre outras. Os produtos anunciados eram brinquedos, alimentos, restaurantes, vestuário e acessórios, entre outros. Das 892 crianças identificadas, 457 eram meninas e 435 meninos. Comerciais só com meninos (167) ocorreram em maior número que só com meninas (117). Cerca de metade dos comerciais incluía meninos e meninas juntos. O ambiente do lar apareceu em 12% dos comerciais com meninos e 39% dos com garotas. Entre os tipos de interação, foram registrados: cooperação (85% com garotas e 27% com meninos); competição (28% com meninos e nenhum só com garotas). Outras atividades incluíam: brincar (meninas, 75%, e só meninos, 45%), comer (somente meninos 13% somente garotas 2%); atividade atlética (o dobro para meninos). 35% dos comerciais apresentavam alguma forma de agressão, física ou verbal (somente entre meninos). Meninos e meninas se misturavam menos em comerciais de brinquedos do que nos de alimentos. O número de meninos e meninas em comerciais foi próximo. Comerciais somente com meninas se davam mais em ambiente doméstico enquanto meninos ocorriam em ambientes de mais desafiadores.
Incluir interações com pares na publicidade televisiva para crianças leva as crianças a gostarem mais desses comerciais, mas não afeta o desejo pelo produto (Loughlin & Desmond, 1981). Outros autores observaram relações de gênero ou raciais nos comerciais com crianças. Furnham (1997) relatou estereótipos de gênero nas propagadas de TV para crianças, semelhantes para os EUA e Grã-Bretanha. Larson (2002) examinou relacionamentos inter-raciais nos comerciais de TV na programação infantil, envolvendo crianças brancas e afroamericanas, hispânicas, asiáticas ou americanas nativas. Identificou diversos traços positivos, incluindo a presença de diversidade racial e crianças brancas e outras interagindo e se comunicando de modo positivo e construtivo. Comerciais somente com crianças brancas ocorreram em grande número, enquanto aqueles com outras etnias eram raros.
Em suma, as interações sociais nos comerciais para crianças têm sido investigadas de forma limitada. Sintetizando os três itens apresentados, podese concluir que interações sociais (e os relacionamentos interpessoais a que se referem) fazem parte da publicidade na TV voltada para crianças, que esses comerciais afetam de alguma forma as crianças (ainda que não se saiba com clareza o nível ou a forma da influência) e que, no Brasil, as crianças têm um amplo acesso à programação televisiva, estando expostas à publicidade nela veiculada. A presente investigação procura contribuir para o conhecimento dos relacionamentos interpessoais na publicidade voltada para a criança, levando em conta o papel relevante da TV na vida da criança brasileira e o pouco que se sabe sobre os efeitos da publicidade sobre a criança, especialmente como a representação de diferentes formas de relacionamento interpessoal poderia afetar a vida social da criança. O foco do presente trabalho está na programação da TV como um produto cultural. Pesquisas futuras poderiam investigar como as crianças percebem e reagem a esse conteúdo e, em última instância, como essa percepção afetaria seus relacionamentos.
O objetivo deste trabalho foi identificar e analisar as interações sociais (e os relacionamentos interpessoais a que se referem) presentes nos comerciais de TV direcionados às crianças e o papel dos produtos anunciados nessas relações, a partir de programação de um canal pago com programação infantil.
Metodologia
O material de análise
Foram gravadas 98 horas de programação de um canal pago com programação infantil. A escolha de um canal por assinatura deu-se pelas constantes notícias da migração da verba publicitária da TV aberta para a TV por assinatura, devido a um maior retorno financeiro por parte dos anunciantes em função do nível socioeconômico dos telespectadores. A emissora escolhida faz parte da segunda maior cadeia de animação do mundo (incluindo televisão, eventos, internet, cinema, produção de vídeo, DVD e revistas), com início de atividades nos Estados Unidos em 1979, e apresenta intervalos comerciais a cada 10 ou 12 minutos. A programação é composta especialmente de desenhos animados e séries voltadas para o público infanto-juvenil e sofre adequações em função de cada faixa horária. Pela manhã, o destaque é para atrações voltadas para crianças em idade pré-escolar. A partir da hora do almoço (até o início da noite), as atrações envolvem os desenhos animados e programas tradicionais da emissora. No bloco noturno, o destaque é para séries cômicas antigas dos anos 1960 aos anos 1990. No Brasil, o canal está disponível para quase três milhões de telespectadores, sendo transmitido por diferentes empresas. A programação do canal, entre os dias 20 e 26 de outubro de 2006 (uma semana), foi gravada das oito horas da manhã às 22 horas, correspondendo a 14 horas diárias, totalizando 98 horas de gravação. Com base nesse material, foram identificados 2.039 comerciais veiculados nesse período. Desse total, 1.172 comerciais (57,5%) eram comerciais da própria emissora, anunciando sua programação, divulgando eventos ou trabalhando institucionalmente sua marca. A quase totalidade desses comerciais não foi analisada por apenas reproduzir cenas dos programas anunciados. Os 867 comerciais restantes apresentavam um índice de repetição bastante elevado (um chegou a ser exibido 69 vezes na semana!). Foram identificados 46 comerciais diferentes, cujo conteúdo foi analisado quanto à presença e natureza de interações sociais (e os relacionamentos a que se referiam) envolvendo crianças. Destes, 36 comerciais incluíam crianças interagindo, os quais anunciavam produtos de vários segmentos: alimentos (6), guloseimas (5), bebidas lácteas (3), filmes (3), promoções da própria emissora (3), sapatos (2), achocolatados (3), escola (1), álbum de figurinhas (1), site de entretenimento (1), brinquedos (6), roupas (1), mensagem educativa (1).
Procedimento de análise
Os 36 comercias selecionados foram divididos em cinco categorias, em função do tipo de relacionamento interpessoal a que se referiam. A seguir, foram descritos os cenários nos quais as interações sociais se davam e as principais atividades das crianças com seus parceiros. Por fim, foram analisadas algumas dimensões psicossociais dessas interações (e dos relacionamentos aos quais se referiam). Quando um comercial apresentava várias cenas e contextos, ele poderia ser incluído em mais de uma categoria. Os comerciais foram organizados em cinco grupos, de acordo com o tipo de relacionamento interpessoal a que se referiam: (1) Referência indireta a relacionamento Sem cenas de relacionamento, que estava presente apenas na fala do locutor. (2) Relacionamentos com e entre personagens de animação Presença de elementos fantásticos, como personagens em computação gráfica ou animação. (3) Relacionamentos diádicos entre crianças Díades de crianças (somente as duas ou uma dupla destacada em relação às demais personagens). (4) Relacionamentos de crianças em grupos Tríades ou grupos de crianças. (5) Relacionamento criança-adulto Crianças interagindo com adultos.
Resultados
Os resultados tratam das referências a relacionamento interpessoal, dos cenários e atividades, e dos aspectos psicossociais das interações sociais observadas (e das formas de relacionamento interpessoal a que se referem).
Referências a relacionamento interpessoal e participantes
Dos 46 comerciais registrados, 36 retratavam interações sociais (associadas a diferentes formas de relacionamento interpessoal) e foram classificados em cinco grupos: (1) Referências indiretas a relacionamento (quatro comerciais) Dois comerciais divulgavam uma promoção de vendas. Um concurso anunciava como prêmio uma sessão exclusiva de cinema para ser curtida com a sua galera. Outro divulgava a vencedora de uma promoção, cujo prêmio foi uma viagem para um hotel na Flórida, acompanhada pela família. Os outros dois comerciais tinham características semelhantes, referindo-se a produtos para toda a família. Assim, essa categoria, apesar de se referir a relacionamentos (três familiares e um de amizade), não permitiu uma análise mais aprofundada. (2)Relacionamentos com personagens de animação (14 comerciais) Quatro com todas as personagens da história e cenário em animação e dez com personagens animadas contracenando com crianças reais ou em cenários reais. Apesar dos elementos fantásticos, interações sociais foram retratadas. As famílias e os amigos foram mostrados e comportavam-se como famílias e amigos do universo real. A utilização de personagens animados permitiu a convivência das crianças com os personagens-símbolos de alguns dos produtos anunciados, como um gênio mágico de uma marca de bebida láctea, a boneca-símbolo de uma marca de bolos prontos e a embalagem animada de uma marca de achocolatado. Animações e computação gráfica foram utilizadas em 14 dos 36 comerciais. De acordo com Yanaze (2002), um dos principais elementos para comunicar algo às crianças é a adoção de elementos de mágica e fantasia, por favorecerem o envolvimento emocional dos mesmos com as marcas anunciadas. Dos 14 comerciais, cinco retrataram relacionamentos familiares e nove relacionamentos de amizade. (3) Relacionamentos diádicos entre crianças (oito comerciais) Um comercial indicou uma possível amizade (dois meninos morando em casas separadas). Outros quatro indicaram relacionamento familiar (entre irmãos) e três não puderam ser classificados, mostrando simplesmente duas meninas brincando juntas. (4) Relacionamentos de crianças em grupos (19 comerciais) Na maior parte das cenas, as crianças simplesmente apareceram juntas, não sendo possível determinar o tipo de relacionamento entre elas. Em oito comerciais ficou clara a proximidade, estreita relação e sintonia. Em três outros, as crianças nem se olhavam, só dançavam ou apareciam juntas no mesmo ambiente. Em oito comerciais, havia uma espécie de relação de coleguismo, como em cenas de sala de aula e atividades de lazer, na praia ou acampamento. Também foram retratados relacionamentos românticos envolvendo crianças em quatro comerciais. (5) Relacionamento criança-adulto (17 comerciais) A maioria (dez comerciais) expressava relacionamentos familiares, explicitamente designados na forma verbal de tratamento entre crianças e adultos. O relacionamento familiar incluía mãe e um filho (quatro); mãe e filhos (dois); avô e neto (um); relação entre pai e filho (dois). Um comercial mostrou um pai e dois filhos juntos e outro uma convivência familiar mais ampliada, com a interação entre dois filhos, mãe e dois avós. Outros tipos de relação com adultos foram: (a) crianças convivendo com personagens adultas das marcas anunciadas, sendo um palhaço e um gênio (dois); crianças em contato com ídolos da mídia (Xuxa e o ator Caíque Brito) (dois); crianças se relacionando com profissionais específicos, como um vendedor de loja, uma empregada doméstica, uma professora e um porteiro (três).
Cenários e atividades
Nos 36 comerciais analisados foram identificados 42 cenários. A maior parte estava associada ao ambiente familiar, sendo que 21 comerciais mostravam as próprias casas das crianças que protagonizavam as cenas e um mostrou a casa do avô de uma personagem. Os ambientes familiares foram: sala de estar (nove vezes); quarto e frente da casa (quatro casos cada); cozinha (três); corredor e jardim da casa do avô (uma vez cada). Outros 21 cenários mais gerais também foram identificados, especialmente utilizados nas cenas com atividades em grupo, tais como: ar livre (cinco casos); lojas, festas e acampamentos (dois casos cada); cidade, parque de diversões, escola, hotel, cinema e praia (um caso cada). Em quatro comerciais, foram utilizados cenários virtuais, mostrados a partir do momento em que as crianças entravam em uma espécie de portal para um mundo mágico. A análise dos cenários pretendeu identificar em que locais ou contextos as interações foram preferencialmente mostradas. Os relacionamentos mais retratados se davam em grupos (tríades ou redes mais complexas) ou na família. Os cenários indicavam locais típicos para esses relacionamentos. Em relação às atividades, as crianças das 36 propagandas estavam em ação, envolvidas em situações esperadas para as suas faixas etárias. Dezoito atividades diferentes foram identificadas. Em apenas três cenas as crianças apareceram sozinhas. Mesmo assim, a partir do uso do produto anunciado, elas se reuniram a outras pessoas. Em todas as demais atividades as crianças estavam inseridas em duplas ou grupos. As atividades mais comuns foram: (a) brincar (nove comerciais); (b) comer, comum nas propagandas de produtos alimentícios e guloseimas (quatro comerciais); (c) dançar (quatro comerciais); (d) utilizar um computador, conversar e praticar esportes (três cenas cada); (e) tirar fotografia, fazer compras, acampar, assistir televisão ou ficar sem fazer nada e com ares de tédio (duas cenas cada). E ainda: ir ao cinema, ir à praia, andar de patins, estudar, jogar videogame, aplicar trote em alguém e ouvir história (um comercial cada). Pode-se concluir que as crianças, na maioria das vezes, foram retratadas em atividades de lazer e entretenimento. Houve apenas uma situação em que apareceram alunos estudando em sala de aula, o que caracteriza uma atividade mais formal.
Aspectos psicossociais dos relacionamentos
Após identificar os tipos de relacionamentos retratados pelos comerciais (por meio das interações sociais representadas), os cenários e as atividades das crianças, algumas dimensões psicossociais dos relacionamentos foram analisadas. A partir de uma análise inicial dos comerciais, foram estabelecidos oito aspectos investigados nos relacionamentos interpessoais, parcialmente com base em Hinde (1997): similaridade, habilidades de comunicação, companheirismo, cooperação, conflito, competição, rede social e popularidade. (1) Similaridade Traço básico dos relacionamentos de amizade (Garcia, 2005). Dos 36 comerciais analisados, 24 (66%) apresentavam traços de similaridade entre os personagens, tivessem eles ligações familiares ou de amizade. Similaridades comuns referiam-se a idade, tipo físico, aparência, tipo de vestimenta (mesma cor ou modelo). Um comercial mostrou o contraste entre similaridade e diferença, colocando crianças de diferentes etnias em torno de uma fogueira, ouvindo histórias contadas pelo personagem-símbolo de uma rede de fast food. Apesar da diferença física, todas aparentavam ter a mesma idade (entre cinco e seis anos), tinham o mesmo tamanho e participavam da mesma atividade. Como a marca é de uma empresa internacional, possivelmente buscou mostrar a diversidade de clientes. Em alguns comerciais, as crianças não interagiam entre si, simplesmente apareciam juntas. Mesmo nesses casos, havia similaridade de roupas, gestos, aparência e até movimentos de dança. As similaridades, possivelmente, estimulam a percepção de harmonia na convivência entre as personagens. (2) Habilidades de comunicação O estabelecimento de relações sociais positivas está associado a habilidades sociais. Em quatro comerciais, a comunicação foi um fator significativo no relacionamento entre as personagens. Em dois deles, duas meninas desenvolveram tamanha sintonia que conseguiam se comunicar até com base em gestos e olhares. Em outro comercial, um garotinho utilizava sua habilidade verbal para conquistar as pessoas e, com isso, era recompensado com um tablete de chocolate. O último comercial utilizou a comunicação como o grande tema de venda do seu produto. Tratavase de uma escola que dizia ao telespectador que a comunicação é fundamental nos dias de hoje e terminava com a promessa de que quem fosse estudar lá poderia desenvolver amplamente essa habilidade. (3) Companheirismo Relacionado a proximidade e atividades em comum. A idéia de companheirismo apareceu de forma clara em oito dos 36 comerciais, na forma de brincar e de estar junto. Esses companheiros formavam grupos de duas ou três crianças. O companheirismo foi identificado no relacionamento com amigos (quatro comerciais) e entre irmãos (quatro comerciais). O companheirismo estava alicerçado em bases de similaridade, já que as crianças envolvidas (irmãos e amigos) eram bastante parecidas entre si em termos de idade, comportamento e até em aparência. (4) Cooperação A cooperação envolve a ajuda mútua e é um dos princípios sobre os quais se apóia a amizade. Dois comerciais retrataram essa dimensão, envolvendo, aparentemente, irmãos (um menino e uma menina) brincando. No primeiro, os dois resolviam enigmas que os levariam a um mundo mágico. No outro, os dois participavam de uma apresentação teatral para entreter a família, sendo o menino um mágico e a irmã sua assistente. (5) Conflito Em seis comerciais, houve um princípio de conflito: entre amigos ou colegas (três); entre irmãos (dois) e entre pai e filho (um). Em praticamente todas as situações, o conflito foi resolvido de forma amigável. Em dois casos, ele serviu para fortalecer a amizade. O conflito ainda foi retratado com humor e apenas em um caso envolveu um grupo maior (cerca de sete meninas), que rejeitava e zombava de uma menina mais nova (que levou a melhor no final da história). Nos demais, as situações de conflito envolveram duas ou três crianças. (6) Competição Ocorreu em dois comerciais. No primeiro, envolveu dois meninos (colegas ou amigos) disputando para ver quem conseguia conquistar o maior número de garotas. No segundo, a competição teve um caráter mais esportivo e envolveu três meninos (sem relação claramente definida) disputando uma partida de basquete. Nos dois exemplos, a competição foi trabalhada com humor. (7) Denominação da rede social A terminologia utilizada para designar os relacionamentos diferiu para a família e para os amigos. A referência à família (verbal) apareceu na forma tradicional. No entanto, em sete comerciais, a amizade foi designada de modo particular (normalmente pelo locutor na hora da assinatura, juntamente com a logomarca do produto anunciado). A maior parte das designações envolveu o termo galera (quatro comerciais e um galerinha). Outros termos foram amigos (uma vez), turma e time. (8) Popularidade Dois comerciais utilizaram o produto anunciado como propulsor da popularidade. Em um deles um garoto conquistou uma legião de fãs ao dividir com algumas meninas uma versão nova de uma barra de chocolate. No outro, um menino sozinho viu sua casa ser invadida por uma multidão assim que abriu uma caixa de cereais. A popularidade trazida por um produto é um apelo comumente usado na publicidade.
Discussão
Conforme observado na introdução, a criança brasileira está bastante exposta à publicidade na televisão, a qual retrata uma série de relacionamentos interpessoais, cuja influência sobre as expectativas sociais das crianças ainda é pouco conhecida. Interações sociais (associadas a diferentes relacionamentos interpessoais) estiveram presentes em 36 dos 46 comerciais analisados, incluindo relacionamentos diádicos e em grupos (de pares, amigos ou familiares). Esse alto índice de interações sociais presentes na publicidade possivelmente esteja associado à relevância dos relacionamentos na vida das pessoas. Não há como criar uma ambiência natural para expor e vender um produto sem um contexto ligado à vida real, sob pena de distanciar o produto do consumidor ao qual se destina. Ora, a vida real é construída a partir de relacionamentos. Ao escolher interações sociais (e os relacionamentos interpessoais associados) como tema central, contexto ou simples pano de fundo, os publicitários estão aproximando seus produtos de uma parte significativa da vida das pessoas. Mesmo em comercias baseados no mundo da mágica e fantasia, os relacionamentos estiveram presentes.
Os comerciais, por sua breve duração, apresentam limitações para a identificação dos tipos de relacionamentos subjacentes às breves interações retratadas. A duração máxima dos comerciais analisados foi de 30 segundos, e sempre ficou claro o objetivo de vender um produto ou serviço, empregando temas do cotidiano para apresentar as marcas às crianças, dando ênfase a contextos de convivência e relacionamento. Em alguns casos, as crianças apareceram juntas, sem que a relação entre elas ficasse clara (por exemplo, se eram amigos ou apenas colegas). Conforme Hinde (1997), os relacionamentos se dão com base em uma série de interações sucessivas ao longo do tempo. Contudo, de forma geral, mesmo com a curta duração dos comerciais, as interações podiam ser reconhecidas como partes de um relacionamento interpessoal, como uma amizade ou um relacionamento entre pais e filhos.
Também houve um grande número de relacionamentos das crianças em grupos (tríades e grupos complexos) e de relacionamentos familiares, com destaque para a família nuclear (pais, mães, filhos e irmãos). Os comerciais estavam adequados à realidade socioeconômica do público-alvo (classe média de regiões urbanas), com famílias nucleares pequenas, com dois ou três filhos. Nenhum comercial retratou aspectos contemporâneos dos relacionamentos familiares, como separação ou o fato de irmãos serem filhos de pais diferentes. O envolvimento romântico entre crianças foi retratado em quatro comerciais, possivelmente de forma mais presente na publicidade que na vida cotidiana das crianças.
A similaridade, aspecto marcante nas amizades reais, foi explorada nos comerciais, incluindo a semelhança física, de idade, comportamento, vestuário, entre outras. Predominaram os aspectos positivos dos relacionamentos, como cooperação e companheirismo. Aspectos negativos, como solidão ou isolamento, não foram retratados. Nas poucas vezes em que aspectos negativos surgiram, estes foram mostrados com humor e tiveram desdobramentos positivos e engraçados. Os comerciais, aparentemente, idealizam os relacionamentos, com pessoas felizes convivendo bem umas com as outras. Tendo em vista que o objetivo da propaganda é vender um produto, possivelmente, não se deseja imprimir ao comercial uma atmosfera pesada, que traduza conflitos intransponíveis, mas sim provocar leveza, alegria e uma predisposição positiva em relação ao produto anunciado.
Quanto aos produtos, em todos os casos analisados, eles apareceram como mediadores ou facilitadores de relacionamentos. Alguns eram recomendados para o uso de toda a família, outros tinham poder para reunir a galera, fazer novos amigos ou deixar a criança mais popular. Enfim, os relacionamentos interpessoais apareceram como um forte apelo de vendas.
A presença de relações interpessoais nos comerciais de TV para crianças possivelmente exerce atração como modelos de inserção e aceitação entre os pares (Puggelli, 2002). Crianças gostam desses comerciais (Loughlin & Desmond, 1981). Larson (2001), ao investigar alguns pontos em comum com a presente pesquisa, encontrou resultados similares quanto às atividades retratadas (principalmente brincar, comer, jogar, entre outras), mas não com relação à violência ou agressão (não observadas na presente pesquisa). As interações eram cooperativas, competitivas ou paralelas (crianças não interagindo), independentes (uma criança só) e com nenhuma interação dominante. Os produtos anunciados também foram similares (principalmente brinquedos e alimentos). Apesar de Goldstein (1994, 1995) afirmar que a publicidade não afeta diretamente as crianças, não se sabe ao certo como a propagada pela TV afeta os ideais e padrões de relações interpessoais. Por outro lado, pesquisas recentes (como Wilcox et al., 2004), consideram que a publicidade afeta diretamente as crianças. Se os efeitos diretos (como o aumento do consumo de um item anunciado na TV) são mais facilmente identificáveis, a influência em longo prazo da TV para a formação de uma visão do mundo (e dos relacionamentos) ainda é pouco conhecida. Como indicado por Young (2003), não são apenas os comerciais que afetam a criança, mas a programação como um todo. Cinco horas por dia assistindo inúmeras formas de relacionamento, em cerca de quatro mil comerciais assistidos por mês (Linn, 2006), possivelmente afete a visão do que são relações interpessoais e os tipos ideais de relacionamento. Provavelmente, a própria programação da TV, reunindo diferentes tipos de programa (noticiários, séries, novelas, desenhos, comerciais), represente, de formas diversas, e mesmo contraditórias, os relacionamentos interpessoais.
Referências
Affini, M. (2004). Valores e potencialidades de um terço dos brasileiros. Revista Meio e Mensagem, 10, 5-15.
Argyle, M. (1992). The psychology of everyday life. New York: Routledge.
Bijmolt, T. H. A. et al. (1998) Childrens understanding of TV advertising: effects of age, gender and parental influence. Journal of Consumer Policy, 21 (2), 171-194.
Brito, L. (2005). De papai sabe tudo a como educar seus pais. Considerações sobre programas infantis de TV. Psicologia & Sociedade, 17, 17-28.
Cádima, R. (1997). Estratégias e discursos da publicidade. Lisboa: Vega.
Cohen, M. & Cahill, E. (1999). Getting older younger: developmental differences in children and the challenge of developmental compression. International Journal of Advertising and Marketing to Children, 1 (4), 271-278.
Carlsson, U. (1999). A criança e a violência na mídia. Brasília: Unesco.
Chandler, D. (1997). Childrens understanding of what is real on television: a review of the literature. Disponível em: < http://www.aber.ac.uk/media/Documents/short/realrev.html >. Acesso em: 5 abr. 2007.
Duck, S. (1983). Human relationships. London: Sage.
Furnham, A. (1997). A cross-cultural content analysis of childrens television advertisements. Sex Roles, 37 (1/2), 91-99.
Garcia, A. (2005). Psicologia da amizade na infância: uma introdução. Vitória: GM.
Goldstein, J. (1994). Children and advertising: policy implications of scholarly research. London: The Advertising Association.
Goldstein, J. (1995). Children and television commercials; a review prepared for the European advertising tripartite. London: The Advertising Association.
Heider, F. (1970). Psicologia das relações interpessoais. Tradução Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira.
Hinde, R. A. (1997). Relationships: a dialectical perspective. Hove: Psychology Press.
Jarlbro, G. (2001). Children and television advertising: the players, the arguments and the research during the period 1994-2000. Stockholm: Swedish Consumer Agency.
Larson, M. S. (2001). Interactions, activities and gender in childrens television commercials: a content analysis. Journal of Broadcasting and Electronic Media, 45 (1), 41-56.
Larson, M. S. (2002). Race and interracial relationships in childrens television commercials. Howard Journal of Communications, 13 (3), 223-235.
Linn, S. (2006). Crianças do consumo; a infância roubada. São Paulo: Instituto Alana.
Loughlin, M. & Desmond, R. J. (1981). Social interaction in advertising directed to children. Journal of Broadcast & Electronic Media, 25 (3), 303-307.
Pereira Júnior, L. (2002). A vida com a TV; o poder da televisão no cotidiano. São Paulo: Senac.
Puggelli, F. R. (2002). Spot generation. I bambini e la pubblicità. Milão: Franco Angeli.
Sambrana, C. (2003). Geração teen. Isto É/Dinheiro, 307, 54-57.
Sampaio, I. (2004). Televisão, publicidade e infância. 2. ed. São Paulo: Annablume.
Sullivan, H. S. (1953). The interpersonal theory of psychiatry. New York: Norton.
Swedish Consumer Agency (2000). Children and television advertising. 2. ed. Kalmar: Lenanders Tryckeri.
Valkenburg, P. M. & Buijzen, M. (2005). Identifying determinants of young childrens brand awareness: television, parents, and peers. Journal of Applied Developmental Psychology: an International Lifespan Journal, 26 (4), 456-468.
Wilcox, B. L. et al. (2004). Report of the APA task force on advertising and children. Washington, DC: American Psychological Association.
Yanaze, L. (2002). A linguagem publicitária dirigida ao público infantil nos contextos brasileiro e japonês. In: Ghilardi, M. I. & Barzotto, W. H. (Org.). Nas telas da mídia. Campinas: Alínea. p. 157-169.
Young, B. (2003). Does food advertising influence food choice? A critical review of some of the recent literature. International Journal of Advertising, 22 (4), 441-459.
Texto recebido em abril/2007.
Aprovado para publicação em junho/2007.
O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.
*Mestranda em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: amourab@terra.com.br
**Doutor em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: agnaldo.garcia@pesquisador.cnpq.br