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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.1 Belo Horizonte abr. 2012

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n1p73 

ARTIGOS

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n1p73

 

O funcionamento familiar do paciente com câncer

 

Family functioning of patients with cancer

 

El funcionamiento familiar del paciente con cáncer

 

 

Mônica Cristina Batista de Melo*; Erika Neves Barros**; Maria da Conceição Vieira Arcoverde Campello***; Leany Queiroz Lopes Ferreira***; Luciana Lins de Carvalho Rocha***; Camille Izabella Mariana Gomes da Silva***; Nelse Tainah Figueirôa dos Santos****

 

 


Resumo

Adoecer de câncer produz impacto emocional no paciente e família ameaçando a saúde mental de ambos. Sabendo-se da importância familiar no tratamento do paciente, o estudo objetivou compreender como a família se organiza para lidar com a doença e o doente, e, assim, contribuir para o conhecimento dessa realidade na perspectiva da terapia familiar. A pesquisa analisou, utilizando-se da teoria sistêmica estrutural, o padrão de interação nos grupos familiares de pacientes, identificou as mudanças em sua organização e no funcionamento após o adoecimento. A amostra foi de 83 pacientes em tratamento no Hospital de Câncer de Pernambuco, e o período da coleta de dados foi de julho a agosto de 2009. Trata-se de um estudo qualitativo, os dados obtidos de entrevistas foram analisados seguindo a técnica de análise de conteúdo. Os resultados revelaram mudanças na organização familiar após o adoecimento e tratamento. Como conclusão, percebe-se que os familiares apresentaram flexibilidade para mudar de papéis para cumprir as tarefas do cotidiano, cuidar do paciente, e se organizam tendo como foco fornecer apoio e proteção a seus membros e ao paciente, confirmando a importância da flexibilidade e do apoio familiar para a resolução de problemas e como estratégia em prol da saúde mental.

Palavras-chave:Família, Funcionamento, Câncer.


Abstract

Becoming ill with cancer produces an emotional impact in the patient and family, threatening the mental health of both. Knowing the importance of family in patient care, the study aims to understand how the family organizes itself to deal with the disease and the patient, and thus, contribute to the comprehension of this reality from the perspective of family therapy. The research analyzed, using the structural system theory, the pattern of interaction in family groups of patients and identified changes in their organization and functioning afterafter the cancer was diagnosed. The sample consisted of 83 patients at the Cancer Hospital of Pernambuco and data collection period was from July to August 2009. It is a qualitative study; data obtained from interviews was analyzed in accordance with content analysis the technique. The results revealed changes in family organization following the illness and treatment. In conclusion, we perceive that family members had the flexibility to change roles in order to fulfill the tasks of daily life, care for the patient and organize, focusing on providing support and protection to its members and the patient confirmation of the importance of flexibility and family support to solve problems and as a strategy for mental health.

Keywords: Family, Operation, Cancer.


Resumen

Contraer cáncer produce un impacto emocional en el paciente y en su familia que amenaza la salud mental de ambos. Conociendo la importancia de la familia en el tratamiento del paciente, el estudio tuvo como objetivo entender cómo la familia se organiza para tratar la enfermedad y al paciente, y así contribuir con el conocimiento de esta realidad desde la perspectiva de la terapia familiar. La investigación analizó, utilizando la teoría de sistemas estructurales, el padrón de interacción en los grupos familiares de los pacientes, identificó los cambios en su organización y funcionamiento tras la enfermedad. La muestra fue de 83 pacientes del Hospital del Cáncer de Pernambuco, y el período de recolección de datos fue de julio a agosto 2009 . Se trata de un estudio cualitativo, los datos obtenidos en las entrevistas se analizaron siguiendo la técnica de análisis de contenido. Los resultados revelaron cambios en la organización de la familia después de la enfermedad y del tratamiento. En conclusión, vemos que los familiares tuvieron flexibilidad para cambiar sus papeles para cumplir las tareas de la vida diaria, cuidar del paciente y organizarse con el objetivo de ofrecer apoyo y protección a sus miembros y al paciente, confirmando la importancia de la flexibilidad y del apoyo familiar para resolver problemas y como estrategia de salud mental.

Palabras claves: Familia, Funcionamiento, Cáncer.


 

 

 

Introdução

A palavra câncer origina-se do grego karkinos (caranguejo) e nomeia um conjunto de mais de cem patologias que têm como principal característica um crescimento celular desordenado que atinge tecidos e órgãos (Fernandes Júnior, 2010). As suas causas podem ser externas (relacionadas ao meio ambiente, hábitos e costumes) ou internas (geneticamente predeterminadas, vinculadas à capacidade de se defender de agressores externos) ao organismo, havendo uma inter-relação entre ambas (INCA, 2010).

No Brasil, as neoplasias correspondem à segunda causa de morte desde 2003. Informações disponíveis no site do Instituto Nacional de Câncer (INCA) apresentam uma estimativa de 489 270 casos novos na população brasileira para o ano de 2010, dado também válido para 2011, sendo 253 030 casos estimados na população feminina e 236 240 para a população masculina (INCA, 2010). Apesar dos avanços da medicina que permitem atualmente o acesso a tratamentos que possibilitam o controle da doença e, em muitos casos, a cura, o diagnóstico de câncer produz fortes repercussões emocionais no paciente e em sua família, sendo a doença comumente associada à morte e receio de tratamentos dolorosos, mutilações e perdas (Carvalho, 2002; Bifulco, 2010; Franco, 2008).

O estigma do câncer e as fantasias que envolvem a doença constituem um importante estressor para o doente e seus familiares, podendo causar grande sofrimento psíquico. Ambos, paciente e família, necessitam receber atenção da equipe de saúde para um bom enfrentamento da doença, para uma melhor adesão e resposta ao tratamento e, consequentemente, para a continuidade do equilíbrio familiar (Bifulco, 2010).

Uma doença grave pode provocar a ruptura do equilíbrio familiar. As alterações na dinâmica familiar iniciam-se na fase pré-diagnóstica, quando do princípio dos sintomas, perpassam por todo o adoecimento e podem continuar após a morte ou cura da pessoa doente (Franco, 2008).

Há fatores facilitadores e complicadores para o enfrentamento da doença pela família. Uma estrutura familiar com flexibilidade para mudanças de papéis, boa comunicação entre equipe de saúde, paciente e família, conhecimento acerca de sintomas e da doença, participação ativa nas diversas fases da doença e tratamento, disponibilidade de apoio formal e informal são considerados fatores facilitadores para um bom enfrentamento. São apontados como fatores complicadores: padrões familiares disfuncionais de se relacionar, interagir, comunicar e resolver problemas; ineficiência ou inexistência de suporte formal e informal; crises familiares concomitantes à doença; ausência de recursos financeiros e sociais aliados à baixa qualidade nos cuidados médicos e na comunicação com a equipe de saúde; estigmas que envolvem a doença (Franco, 2008).

Cada família tem a sua forma de se relacionar com as questões básicas da existência humana, entre elas a doença e a morte (Carter; McGoldrick et al., 1995). Compreender como a família se organiza para lidar com uma doença como o câncer pode favorecer a elaboração de estratégias que possibilitem um maior cuidado à família, contribuindo para que ela disponha de recursos para proporcionar um suporte adequado a seu membro doente.

O presente estudo foi realizado com o objetivo de analisar os padrões de interação presentes nos grupos familiares dos pacientes com câncer, por meio da teoria sistêmica estrutural, proposta por Salvador Minuchin, para investigar a participação da família durante o diagnóstico e tratamento da doença.

Considerando que ainda são escassos na literatura nacional estudos sobre os padrões de interação nos grupos familiares de pacientes com câncer, bem como trabalhos que façam referências ao tipo de envolvimento e engajamento familiar no enfrentamento dessa doença, esta pesquisa pode contribuir para reduzir essa lacuna no conhecimento científico. Dada a alta incidência das doenças neoplásicas na população brasileira e a repercussão emocional que o adoecer de câncer causa ao paciente e sua família, pesquisas sobre o tema podem contribuir para a elaboração de estratégias que visem a uma melhor atenção a esses sujeitos, atuando como fator de proteção na manutenção do equilíbrio familiar.

 

Referencial teórico

Numa perspectiva sistêmica, o grupo familiar é entendido como um conjunto que funciona a partir de sua totalidade e no qual as particularidades dos membros se inter-relacionam (Poster, 1979). Portanto, qualquer acontecimento que afete o indivíduo repercutirá em toda a família, e tudo aquilo que atingir o sistema familiar afetará o indivíduo (Franco, 2008).

A família pode ser definida como uma unidade social que enfrenta uma série de tarefas evolutivas e que funciona como matriz do desenvolvimento psicossocial de seus membros. Quando sujeita a pressões, externas e ou internas, a família tem como característica se organizar como estrutura, visando a promover formas de acomodação (Minuchin; Colapinto; Minuchin, 1999).

A teoria sistêmica estrutural, elaborada por Salvador Minuchin, propõe uma forma de compreender a família como sistema. Essa abordagem coloca ênfase nas questões de organização e funcionamento familiar, bem como na gênese e resolução de dificuldades. O modelo estrutural privilegia a compreensão dos indivíduos por meio do estudo das suas relações com o meio social e o familiar, com base em quatro conceitos essenciais: a estrutura, padrão de interações familiares; as regras, leis universais que determinam a organização da família e expectativas mútuas entre os familiares; os subsistemas, temporários e modificáveis, permitem a família satisfazer suas funções; as fronteiras, normas que determinam quem participa das transações e como estas operam (Minuchin, Colapinto, Minuchin, 1999; Minuchin, 1982; Goldbeter-Merinfeld, 1998).

Na visão sistêmica, a família opera de acordo com os princípios clássicos da teoria geral dos sistemas: homeostase, tendência em manter certo padrão de relacionamento e apreender operações para impedir que haja mudanças nesse padrão estabelecido; morfogênese, mudança dentro da ordem estrutural e funcional do sistema admitindo nova configuração; causalidade circular, mudanças em um elemento afetam todos os outros (Poster, 1979).

Como sistema social, a família organiza seus membros rumo a determinados modos de pensar e interagir. As famílias movem-se através de períodos de transição em que as demandas às novas circunstâncias requerem mudanças na sua dinâmica. Durante esses períodos de transição, a família pode reagir adaptando-se e evoluindo ou paralisando-se e mantendo hábitos impróprios para a nova situação (Minuchin, 1982).

A convivência e as negociações entre os membros da família permitem que esta desenvolva padrões e regras de interações e de comportamentos que podem ser claras, rígidas, tênues, difusas e antagônicas. Os padrões de regras claras favorecem um bom delineamento de hierarquias do casal e das funções dos membros de modo geral. Os padrões rígidos, apesar de benéficos em algumas situações, podem impedir novas opções de comportamentos e mudanças sociais, dificultando o desenvolvimento da família. Os padrões com regras tênues facilitam as negociações entre os familiares, porém podem denunciar uma grande vulnerabilidade do sistema familiar. Os padrões com regras difusas podem dar margem a interpretações equivocadas e a comunicações falhas enquanto os padrões com regras antagônicas são conflitantes, causadores de confusão e de prejuízo nas interações familiares (Ackerman, 1986; Eizirik, Bassols, Kapezinski, 2001; Nichols, Schwartz, 1998; Prado, 1998).

As trocas e negociações constantes de informações, crenças, afetos, atitudes e comportamentos entre o social, o indivíduo e o familiar permeiam o desenvolvimento humano. Uma estrutura familiar saudável seria aquela em que os membros aprendem a se adaptar uns aos outros, transformam-se e são capazes de enfrentar, de forma flexível, as dificuldades da vida (Minuchin, Colapinto, Minuchin, 1999; Nichols, Schwartz, 1998; Prado, 1998).

As atitudes e a competência emocional das pessoas para lidar com os conflitos e os processos naturais de mudança podem tanto ocasionar temor e desagregação como apontar para novas e criativas possibilidades. O aparecimento de doenças, como o câncer, que trazem arraigadas a força de preconceitos, mitos e estigmas, leva a crer que, vistas como ameaças ou como ataques ao funcionamento familiar, podem acarretar danos psíquicos capazes de, por meio das transmissões de psiquismo, perdurar por muitas gerações (Andolfi et al., 1984).

A família tem como objetivos sociais a sobrevivência, a união social, o desenvolvimento da identidade pessoal ligada à identidade familiar, a padronização de papéis sexuais, a educação dirigida à interação nos papéis e o desenvolvimento da aprendizagem e do apoio à criatividade (Ackerman, 1986). Espera-se que a família possa cumprir sua função de proteger, orientar e preservar a espécie, definir padrões de organização para seus membros quanto à forma de pensar e agir em todas as situações, inclusive nas de conflito e ou de perigo, como o adoecer de um de seus componentes, quando a família precisa criar novas regras em torno dos subsistemas e modificar os papéis usuais e os hábitos para cumprir sua tarefa (Minuchin, Colapinto, Minuchin, 1999).

 

Método

Trata-se de um estudo de corte transversal, com abordagem qualitativa, sobre o funcionamento familiar do paciente com câncer, realizado no Hospital de Câncer de Pernambuco.

A pesquisa atendeu aos critérios éticos contidos na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que contempla as Diretrizes e Normas Regulares de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos. O projeto de pesquisa foi previamente apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Câncer de Pernambuco.

 

Participantes

Participaram dessa pesquisa 83 pacientes adultos, em tratamento oncológico no Hospital de Câncer de Pernambuco, com idades entre 19 e 87 anos, de ambos os sexos, que aceitaram participar deste estudo e, para tanto, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

Procedimentos

A coleta de dados ocorreu nos meses de julho e agosto de 2009. Foi utilizado um questionário com perguntas sobre aspectos sociodemográficos dos participantes e um roteiro para entrevista semiestruturada, com questões abertas voltadas para os objetivos da pesquisa. As falas dos entrevistados foram registradas de forma escrita, buscando-se preservar as expressões utilizadas e respeitando as palavras e os termos usados pelos pacientes. Para analisar os dados, utilizou-se o método de análise de conteúdo, do tipo análise temática, respeitando suas três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados obtidos e interpretação (Minayo, 2006).

 

Resultados

Aspectos sociodemográficos

No grupo estudado, 50 participantes eram do sexo feminino e 33, do sexo masculino. Quanto à procedência, 43 desses pacientes afirmaram residir na Região Metropolitana do Recife (RMR), 37 sujeitos eram provenientes do interior de Pernambuco e 3 entrevistados moravam em outros estados da Região Nordeste. Em relação à idade, 42 participantes tinham mais de 60 anos, 20 pacientes tinham entre 50 e 59 anos, 14 pessoas disseram ter entre 40 e 49 anos, 3 sujeitos tinham entre 30 e 39 anos e 4 entrevistados estavam entre os 19 e os 29 anos. No que se refere ao estado civil, observou-se, entre os participantes desta pesquisa, uma maior prevalência de pessoas em união estável: 56 pessoas residiam com um companheiro, destacando-se a ocorrência de relacionamentos duradouros. Destes, 43 sujeitos eram casados e 13 declararam manter uma relação consensual. Doze entrevistados eram separados/divorciados, 10 eram viúvos e 5 eram solteiros.

Sobre a atividade atual, 37 participantes se declararam aposentados, 3 entrevistados eram pensionistas, 8 eram donas de casa, 5 estavam desempregados, 19 exerciam atividades remuneradas (agricultor, marceneiro, empregada doméstica, etc.), 14 sujeitos não responderam a essa questão. Quanto à religião, 59 participantes declararam-se católicos, 17 pacientes eram evangélicos, 1 sujeito denominou-se espírita, 2 entrevistados afirmaram que não pertenciam a nenhuma religião, 4 pessoas não responderam a essa pergunta. A renda familiar mensal situou-se em torno de dois salários mínimos para 29 entrevistados, 17 participantes tinham renda familiar de mais ou menos um salário mínimo, 12 famílias recebiam mais de três salários, 4 pessoas declararam não ter renda fixa. O número de residentes por domicílio foi, em média, de 2 a 4 pessoas para 45 dos entrevistados, entre 5 e 7 residentes por domicílio nas famílias de 11 participantes, 5 sujeitos moravam sozinhos.

Aspectos qualitativos

A análise dos relatos colhidos nas entrevistas apontou para uma narração da família a partir da descrição de seus membros, a união do casal ocorreu predominantemente entre pessoas da mesma comunidade, com o casal tendo entre um e três filhos. Quanto à organização financeira, constatou-se a prevalência da divisão de despesas entre os membros da família, revelando padrão de aliança e complementaridade de funções. A figura materna apareceu como fonte principal de educação para os filhos. Nos hábitos de lazer, percebeu-se um investimento na vida social, com o predomínio de atividades envolvendo a família. Após o adoecimento, a família organizou-se de forma a favorecer um bom suporte ao paciente.

 

Discussão

Aspectos sociodemográficos

A predominância, nesse grupo, de sujeitos do sexo feminino (60,2%) mostra-se em concordância com as estimativas oficiais de câncer no Brasil divulgadas pelo INCA, que apontam para certa prevalência da doença, de modo geral, entre as mulheres: para o ano de 2010, são esperados 16 790 casos a mais do que na população masculina. Excetuando-se os cânceres de pele não melanoma, com estimativa de 60 mil novos casos em brasileiras para 2010, o câncer de mama e o de colo de útero são os mais recorrentes nesse público, respectivamente com estimativas de 49 mil e 18 mil novos casos para este ano, perfil que se assemelha aos de outros países da América Latina. Os autores acrescentam que a alta prevalência do câncer de colo de útero no País, apesar da eficiência dos métodos prevenção e de rastreamento para essa patologia, pode denunciar o fato de que muitas mulheres não realizam, de forma periódica, os exames ginecológicos, por receio ou por dificuldades de acesso a serviços de saúde (INCA, 2010; Pinotti et al., 2010).

Um maior registro de entrevistados com idade acima dos 60 anos (50,6%) pode ser explicado pelo fato de que, com o envelhecimento, aumentam-se os riscos de neoplasias, entre outros fatores, devido à vulnerabilidade dos tecidos aos carcinógenos ambientais, substâncias que provocam ou estimulam o desenvolvimento de tumores malignos no organismo. Cerca de 60% dos tumores surgem após os 65 anos de idade (Naime, 2010). A morbidade por doenças crônicas, como o câncer, têm incidência significativa na população idosa (Costa, 2003). No Brasil, as mudanças no perfil de morbimortalidade ocorridas nas últimas décadas, em parte relacionadas à redução da mortalidade precoce em decorrência de doenças infecciosas e parasitárias, aumentando a expectativa de vida e modificações socioculturais, contribuem para o envelhecimento da população. Esse crescente processo de envelhecimento da população brasileira ocorre de forma significativa entre as mulheres, produzindo um fenômeno conhecido como feminização da velhice (Carvalho et al., 2009) e presente no universo estudado nesta pesquisa.

O fato de 67,4% dos entrevistados manterem uma união estável pode sugerir no grupo a valorização da instituição familiar com relações duráveis, podendo nos levar a pensar nessas famílias como criativas e resilientes, visto que, para a manutenção de relacionamentos duradouros, fazem-se necessárias habilidades emocionais que são desenvolvidas para o enfrentamento de situações novas e adversas, comuns no ciclo vital. A competência emocional e relacional de cada família, nomeada como resiliência, é apontada como importante estratégia para o bem-estar geral (Goldbeter-Merinfeld, 1998). A conjugalidade ou identidade conjugal pode ser compreendida como o modo único de o casal ser e interagir, dando significado a existência conjugal, suas características e seus limites, e constituindo uma importante relação para os indivíduos, pois envolve troca de intimidade e um significativo investimento emocional (Paula, 2004). A presença do companheiro durante a vivência de uma situação de crise, como o adoecer de câncer e seus tratamento, pode facilitar uma atitude de enfrentamento por parte do paciente.

O Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP), referência no seu campo de atuação no Norte e Nordeste do Brasil, é uma instituição filantrópica de saúde que atende a uma população predominantemente carente, assistidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (HCP, 2010). A amostra representada nesta pesquisa constitui-se, em sua maioria, de pessoas pertencentes a classes financeiramente menos favorecidas (para 60,2% dos entrevistados, a renda familiar não ultrapassou dois salários mínimos), principal demanda no HCP e no SUS.

Neste estudo, 92,7% dos participantes afirmaram pertencer a alguma religião, com predomínio (71%) do catolicismo. Atualmente se reconhece a importância da espiritualidade no enfrentamento de situações de crise, como o acometimento de uma doença grave. A espiritualidade é capaz de proporcionar tranquilidade, conforto, encorajamento e tornar eventos ameaçadores menos estressantes. Fenômeno universal que não é restrito a uma religião, uma cultura ou grupo de sujeitos, a espiritualidade favorece uma atitude de enfrentamento ao paciente e sua família durante o adoecer de câncer(Myers, 2000).

Aspectos qualitativos - análise temática

Quando indagados sobre a constituição familiar, 61,4% dos entrevistados apresentaram sua família a partir do número de membros de um grupo de pessoas unidas por laços afetivos e consanguíneos. A definição de família para esses sujeitos assemelha-se à apresentada por Lévi-Strauss (1972), quando refere a existência de três tipos de relações de família: a de aliança (casal), a de filiação (pais e filhos) e a de consanguinidade (irmãos). Entre os participantes deste estudo, 48,2% descreveram dificuldades enfrentadas ao longo do desenvolvimento da família (separação/abandono, morte de membros, privações financeiras, violência intrafamiliar, etc.). Referiram manter um casamento duradouro 38,5% dos sujeitos, e 30,1% das pessoas do grupo estudado referiram um bom relacionamento familiar, com relatos de superação das dificuldades vivenciadas: "Sou o primeiro filho, tenho uma irmã. Meus pais são casados há trinta anos!" (C. M., 29 anos). "Minha mãe morreu de câncer também. Sofremos muito! Tinha onze irmãos, éramos muito pobres. Trabalhávamos na roça..." (M. G. M. S., 59 anos).

A resiliência, capacidade de vencer obstáculos e aprender com eles, tem sua origem na interação de características individuais e aspectos presentes no meio familiar e social, favorecendo a aquisição de recursos internos para lidar com situações adversas. Os relatos contidos nos questionários parecem apontar para a resiliência como fator existente no grupo, pois, mesmo diante de situações difíceis, persistiu uma atitude de enfrentamento.

A união do casal ocorreu, para 41% dos participantes, com pessoas próximas, conhecidas da família de base: 7 eram parentes, 9 eram pessoas da mesma comunidade e 18 eram pessoas conhecidas desde a infância ou adolescência. "Meu pai é padrinho de minha esposa. No dia 15 de janeiro de 83, nos casamos, eu com 18 anos e ela com 17" (E. M. S., 45 anos). "Casei com um primo meu, ficou tudo em família!" (G. T. S., 69 anos).

A formação do grupo familiar se inicia a partir do enlace de um casal e do que estes herdaram de seus antepassados, marcados por organizadores específicos, que podem ser de natureza psíquica ou social, conscientes e inconscientes, permeados pelo que é recebido através da cultura (Carneiro, 1997). A construção de um vínculo amoroso implica grande investimento afetivo, e a escolha do parceiro tende a basear-se em qualidades como fidelidade, integridade, carinho e paixão (Carneiro, 1997). No grupo estudado, a escolha do cônjuge parece ter seguido o princípio da homogamia ou da semelhança, segundo o qual haveria uma tendência para se escolherem pessoas que apresentem semelhança em relação à idade, nível de instrução, local de residência, atitudes, valores, crenças, quando se deseja um relacionamento duradouro (Almeida, 2004).

Sobre a organização financeira, 48,2% dos participantes afirmaram que as despesas familiares eram divididas entre os membros (pais e filhos). Eram provedores de suas famílias 36,1% dos entrevistados e, entre estes, 16 eram homens e 14 eram mulheres. No grupo, 8,4% sujeitos eram mulheres que não exerciam atividade remunerada, sendo o marido o provedor. Citaram outra forma de organização financeira (moravam sozinhos, dividiam despesa com pessoa amiga, pai era provedor) 7,2% dos pacientes. "Quatro pessoas moram lá em casa. Só trabalha a filha. Eu e minha esposa somos aposentados. Tudo é dividido. Todos ajudam" (L. A. F., 63 anos). "Eu trabalho no roçado com mais cinco irmãos. Almoço e janto na casa da minha irmã. Tomo café também, mas durmo na minha casa. Minha irmã é aposentada e também ajuda no roçado" (S. S. F., 69 anos).

Percebe-se, com base nestes dados, que as famílias entrevistadas adotaram padrões de aliança, tipos de comportamento, nos quais as pessoas prestam apoio mútuo, resultando em complementaridade de funções (Goldbeter-Merinfeld, 1998). Os subsistemas se unem em torno de um objetivo comum: garantir a sobrevivência econômica da família. Para tanto, as responsabilidades foram compartilhadas. Lembrando que a maior parte dos entrevistados encontrava-se com 60 anos ou mais, pode-se supor que constituíam famílias com filhos adultos e que enfrentaram, ao longo do desenvolvimento familiar (e crescimento dos filhos), a necessidade de novas configurações transacionais, o que pode ser entendido como demonstração de uma flexibilidade nos papéis.

Na educação dos filhos, observou-se a uma prevalência de 35% das mulheres como principal educador. Em 29% das famílias a educação dos filhos foi relatada como uma tarefa compartilhada entre o casal e para 13,2% das famílias esta atividade era preferencialmente desenvolvida pelo pai da família. Quanto aos métodos utilizados para educar os filhos, as orientações por meio de conversas/conselhos foram relatadas por 62,3% dos entrevistados, sendo que, para 38,7% destes sujeitos, essa foi a principal medida educadora; 16,1% dessas pessoas, além das conversas/conselhos, admitiram fazer uso eventual da força física; 14,5% desses sujeitos referiram utilizar-se de conversas/conselhos aliados a castigos; e 14,5% relataram unir conversas/conselhos a castigos e uso de força física quando julgavam necessário. A escola foi apontada como principal fonte de educação dos filhos por 9,6% dos pacientes. A utilização de força física foi mencionada por 7,2% dos entrevistados como principal medida educadora; e 3,6% dos sujeitos disseram ser a Igreja a responsável pela educação. "Segui a educação de minha mãe, por isso não tive problema com a minha filha. Sou durona, mas deixo ela ter liberdade. O pai mima, mas só quer prender ela e tem muito ciúme" (C. C. A. S., 50 anos). "Eu e o pai damos conselho, mas, quando não obedece, dá umas lapadinhas, uns tapas" (M. C. C. S., 47 anos).

Nesse grupo de famílias, identificamos que, entre os meios utilizados para definir os limites, as leis, responsabilidades e regras da casa, predominou o diálogo, embora algumas famílias tenham adotado, como forma de controle, o ato de bater e o uso de castigos. A orientação e os limites são extremamente importantes para o desenvolvimento infantil (Nicola, 1998; Carter, McGoldrick et al., 1995), sendo necessário, para tanto, o emprego de clareza e a existência de sintonia na comunicação das regras estabelecidas entre os pais ou responsáveis pela educação da criança. Os componentes morais e emocionais acompanham os padrões de transação contratual de cada família, mesmo aqueles em que as origens e razões são indeterminadas, cabendo aos pais ou substitutos a responsabilidade de orientar e educar os filhos (Minuchin, 1982). O casal deve ter padrões complementares de apoio no cotidiano, que podem ser transitórios ou duradouros, dependendo das necessidades da família, sendo importante o hábito de promover negociações e a presença de padrões de aliança (Eizirik, Bassols, Kapezinski, 2001; Nichols, Schwartz, 1998). Na construção da família, percebeu-se a adoção do modelo de funcionamento da família de base, o que sugere a crença de que esse era um modelo bem-sucedido. As famílias, consciente ou inconscientemente, tendem a manter comportamentos ao logo de suas gerações, buscando atingir uma espécie de imortalidade em sua descendência (Berenstein, 1988; Ackerman, 1986; Minuchin, 1982).

Em relação aos hábitos de lazer da família, 61,4% dos participantes referiram algum investimento na vida social. As atividades mais citadas por esses sujeitos foram reuniões e visitas entre membros da família (15 pessoas), ir à praia (15), passeios (11), outros (10). Afirmaram que não mantinham hábitos de lazer 26,5% dos entrevistados, com uma vida dedicada ao trabalho e às obrigações com as tarefas domésticas e os cuidados com a família. "A família se reúne em casa pra almoçar. Um sai telefonando pro outro e a gente faz a festa da gente" (P. A. G. S. L., 54 anos). "Vou pra casa da minha sogra. Vou comer fora, mas não direto. Vou para a casa de minha família" (E. M. S., 45 anos).

A partir desses dados apresentados, percebe-se, entre os entrevistados, o predomínio de atividades sociais desenvolvidas em família, o que pode favorecer uma maior aproximação e intimidade entre os membros, reforçando o sentimento de pertencimento ao grupo. Cada família dispõe de um arranjo próprio, um modo de convivência ou de encontro, expresso por meio de movimentos de aproximação ou afastamento, com toques corporais ou palavras, numa demonstração peculiar da cultura familiar (Papp, 2002). Segundo a teoria sistêmica estrutural, a família desenvolve formas de interação visando a promover crescimento, adaptação e criatividade entre seus membros, sempre buscando a saúde de um modo geral (Minuchin, 1982).

Quanto às mudanças na organização familiar após o adoecimento, 76% dos entrevistados afirmaram receber o apoio da família, sendo que 35% desses sujeitos disseram sentir a preocupação da família com a sua saúde, 30,1% relataram sempre ir às consultas na companhia de algum familiar, 28,6% referiram que a família se reorganizou para fornecer a ajuda adequada e 12,6% reconheceram o incentivo dos filhos nos cuidados com a saúde. Entre os entrevistados, 10,8% afirmaram não ter havido mudança na organização familiar após seu adoecimento. Seis por cento dos sujeitos queixaram-se de não dispor de apoio de algum membro da família. Seis por cento dos participantes disseram não comentar com a família sobre suas necessidades, sentindo-se independentes quanto ao tratamento. "Todo mundo ficou apavorado (após o diagnóstico de câncer). Só o nome (câncer)já apavora! Meus pais estão bem presentes. Senti uma união familiar, cuidado, carinho... Vou continuar morando na minha casa e com minhas atividades normais" (K. C. A., 29 anos). "Deixei de trabalhar há mais de oito meses por causa da doença. Uma de minhas filhas, casada, vai tomar conta da casa quando eu venho pra o tratamento. Andava só pra me tratar, mas agora veio uma filha que mora em Aracaju pra ficar internada comigo" (A. A. J., 49 anos).

Os achados acima expostos mostram que, em sua maioria, as famílias participantes deste estudo organizaram-se de modo a oferecer apoio a seu membro doente e, consequentemente, enfrentar, de uma maneira mais fortalecida, as mudanças impostas pelo câncer. O sistema familiar se estrutura por meio de apoio, regulamentação, proteção e socialização de seus membros, dirigido por leis e regras que estabelecem seu funcionamento e ritmam o relacionamento de seus componentes (Goldbeter-Merinfeld, 1998). Diante das pressões impostas pelo adoecer de câncer, essas famílias apresentaram um comportamento de flexibilidade, permitindo a ocorrência de mudanças para uma resposta mais satisfatória às novas exigências. As perturbações podem desestabilizar o equilíbrio familiar, o que oferece a oportunidade de crescimento para família como um todo e para os indivíduos que a compõem (Minuchin, Colapinto, Minuchin, 1999). Os dados encontrados nesta pesquisa apontam para o envolvimento familiar no enfrentamento do câncer. Houve uma união entre os membros da família para oferecer o suporte necessário ao paciente e aos seus demais componentes. Quando as mudanças no ciclo de vida familiar produzem novas configurações transacionais, essas podem ser incorporadas a estrutura familiar, num movimento saudável.

 

Considerações finais

Os resultados desta pesquisa revelam mudanças na organização familiar dos pacientes após o adoecimento de câncer e durante seu tratamento. Na perspectiva da teoria sistêmica estrutural, as famílias apresentaram flexibilidade para mudanças de papéis, a fim de cumprirem as tarefas que eram esperadas, em especial as de fornecer apoio e proteção a seus membros. Esse fato aponta para uma estrutura familiar saudável, pois os membros da família foram capazes de mudar para enfrentar as dificuldades e os desafios inerentes à doença e tratamento, o que pôde contribuir positivamente para o sentimento de pertença aos componentes do grupo. O princípio da morfogênese foi evidenciado a partir da mudança estrutural que ocorreu nos sistemas, quando estes admitiram uma nova configuração. O impacto do adoecer não atingiu apenas a pessoa doente, repercutiu em toda a família, numa demonstração do princípio da causalidade circular. O princípio da homeostase na família não deve ser entendido como indício de rigidez, mas como um equilíbrio dinâmico voltado para a manutenção dos aspectos saudáveis da dinâmica familiar. As famílias que participaram deste estudo criaram novas regras em torno dos subsistemas e modificaram os papéis usuais e os hábitos para adaptarem-se à nova realidade e garantirem a continuidade de seu equilíbrio.

Por tratar-se de um estudo qualitativo, as conclusões aqui apresentadas limitam-se ao grupo estudado. No entanto, a pesquisa contribui para uma melhor compreensão sobre o impacto do adoecer de câncer na organização familiar e as mudanças ocasionadas por esse evento.

 

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* Mestra e doutoranda em saúde materno-infantil, psicóloga, especialista em Psicologia Hospitalar, docente nos cursos de graduação em Psicologia da Faculdade Pernambucana de Saúde e da Faculdade Maurício de Nassau. Instituição IMIP. E-mail:monicademelo@ig.com.br
** Especialista em Saúde Coletiva, psicóloga do Hospital do Câncer de Pernambuco.
*** Acadêmicas no curso de graduação em Psicologia da Faculdade Maurício de Nassau.
**** Acadêmicas no curso de graduação em Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco, voluntárias que colaboraram na coleta de dados do estudo.