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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2018
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n2p638-654
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n2p638-654
Alterações na formação do indivíduo na passagem do capitalismo liberal para o monopolista: o anacronismo da psicanálise freudiana à luz da teoria crítica da sociedade
Alterations in the individuals formation in the transition of liberal capitalism to monopoly capitalism: the anachronism of freudian psychoanalysis in the light of the critical theory of society
Los cambios en la formación del individuo en el paso del capitalismo liberal al capitalismo monopolista: el anacronismo del psicoanálisis freudiano a la luz de la teoría crítica de la sociedad
Gustavo Henrique Carretero*
Resumo
Este artigo tem como referencial teórico a teoria crítica da sociedade proposta pela primeira geração da Escola de Frankfurt, especialmente as contribuições de T. W. Adorno e H. Marcuse, e tem como objetivo discutir as alterações da formação do indivíduo na passagem do capitalismo liberal para o monopolista. Para tanto, a psicanálise freudiana é utilizada como instrumento para ilustrar como as profundas mudanças econômicas, sociais e culturais impactaram a formação do indivíduo, apontando para a fragilização destes, levando ao favorecimento da adesão a movimentos de massas e totalitários. O anacronismo da psicanálise, portanto, não se refere ao envelhecimento dessa teoria, apesar de seus elementos ideológicos, mas para demonstrar o quanto o progresso se tornou em regressão nas transformações do capitalismo.
Palavras-chave: Formação do indivíduo. Capitalismo liberal. Capitalismo monopolista. Psicanálise. Teoria crítica da sociedade.
Abstract
The theoretical framework of this paper is the critical theory of society proposed by the first generation of the Frankfurt School, especially the contributions of T. W. Adorno and H. Marcuse. It aims to discuss the changes in the formation of the individual in the transition of liberal capitalism into monopoly capitalism. Therefore, Freudian psychoanalysis is used as a tool to illustrate the way profound economic, social and cultural changes affected the formation of the individual pointing to their weakening, favoring the adhesion to movements of masses and totalitarianism. The anachronism of psychoanalysis, therefore, does not refer to the aging of this theory, despite its ideological elements, but it shows how progress has turned into regression in the capitalism transformations.
Keywords: Formation of the individual. Liberal capitalism. Monopoly capitalism. Psychoanalysis. Critical theory of society.
Resumen
Este artículo tiene como referencial teórico la teoría crítica de la sociedad propuesta por la primera generación de la Escuela de Frankfurt, especialmente las contribuciones de T. W. Adorno y H. Marcuse y tiene como objetivo discutir los cambios en la formación del individuo en el paso del capitalismo liberal al monopolista. Para eso, el psicoanálisis freudiano se emplea como una herramienta para ilustrar cómo los profundos cambios económicos, sociales y culturales afectaron a la formación del individuo, señalando un debilitamiento de éstos, lo que lleva a lo favorecimiento de la adhesión a movimientos de masas y totalitarios. El anacronismo del psicoanálisis, por lo tanto, no se refiere al envejecimiento de esta teoría, a pesar de sus elementos ideológicos, sino a demostrar cuanto el progreso se convirtió en regresión en las transformaciones del capitalismo.
Palabras clave: Formación del individuo. Capitalismo liberal. Capitalismo monopolista. Psicoanálisis. Teoría crítica de la sociedad.
O artigo tem como objetivo discutir as alterações na formação do indivíduo na passagem do capitalismo liberal para o monopolista, com base nas contribuições de Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse. Para tanto, uma das ferramentas importantes é a psicanálise. A teoria proposta por Freud, segundo Marcuse (1999), elaborou os conceitos para a crítica psicológica da mais altamente louvada realização da era moderna: o indivíduo. Todavia, com o colapso da era liberal e suas promessas, algumas questões relacionadas à formação do indivíduo se alteraram, gerando certo anacronismo em algumas propostas freudianas. Adorno (2006) acrescenta que o maior mérito da obra de Freud é ter demonstrado a falácia da psicologia individual diante de processos sociais. Ela se constitui como denúncia do período pós-psicológico (no capitalismo monopolista), no qual os homens são transformados em átomos sociais desindividualizados que compõem coletividades. Portanto a psicanálise preserva certa ambiguidade diante da ideologia liberal, enquanto fornece elementos à crítica da formação do indivíduo no capitalismo monopolista.
Para Adorno (1971, 1991 e 2006) e Marcuse (1998) o anacronismo da psicanálise freudiana demonstra o quanto o progresso transformou-se em regressão na passagem do capitalismo liberal para o monopolista. A formação clássica do indivíduo elucidada, em alguns elementos, por Freud entra em colapso por processos totalitários da cultura. Marcuse (1999) aponta que, durante os 20 anos de seu desenvolvimento, a psicanálise elaborou os conceitos para a crítica psicológica da mais altamente louvada realização da era moderna: o indivíduo. Por meio do estudo das pulsões, ela demonstrou o quanto coerção e renúncia são os materiais que formam a personalidade. Assim, o estudo das pulsões é elemento central da apropriação dos frankfurtianos da psicanálise freudiana, pois elucida fenômenos de massas, a regressão dos indivíduos e ressalta a importância de tal formulação para estudos a respeito da relação indivíduo e sociedade.
O conceito de pulsão, em Freud, destaca o descompasso entre as metas da cultura e as do indivíduo na cultura. Gomide (2007), em um estudo sobre a apropriação da teoria freudiana por Adorno, afirma que uma psicologia social analiticamente orientada deve levar em conta a teoria libidinal que traz luz sobre os mecanismos psicológicos que levam os indivíduos a aderirem às massas. A "psicologia da libido" pode elucidar as regressões e os comportamentos irracionais e destrutivos (pulsões destrutivas) da psicologia das massas, pois denuncia o desvio da libido de suas metas reais para fins culturais de dominação. Para a autora, na perspectiva da teoria crítica, as formulações freudianas a respeito das pulsões e suas vicissitudes trazem à tona as mediações entre indivíduo e sociedade, sendo que estas podem ser alteradas pela cultura. As satisfações pulsionais, para Horkheimer e Adorno (1985), estão diretamente associadas à cultura, pois os objetos de satisfação são dados social e historicamente.
O conceito de pulsão também impede a distinção entre natureza e cultura, pois o termo natureza pode ser entendido como a "não identidade humana", ou seja, tudo aquilo que é (e que foi) irredutível à razão ou à dominação social e que se encontra na psicologia humana como algo "arcaico" (histórico e não natural). Para os frankfurtianos, o entrelaçamento entre natureza e cultura foi rompido, gerando uma brusca separação que foi perpetuada ao longo do progresso material e civilizatório da sociedade, visando à dominação do homem e da natureza externa. Assim, os comportamentos humanos proto-históricos estudados pela psicanálise freudiana, por meio das pulsões, são extremamente importantes por não terem se submetido à razão e muito menos à razão instrumental do capitalismo monopolista, ao mesmo tempo em que revelam aspectos não dominados do indivíduo.
Assim, o conceito freudiano de pulsão traz em si o emaranhamento da relação cultura, natureza e indivíduo, pois aponta para as determinações históricas e culturais da sexualidade e agressividade humana. A formação burguesa que visava a libertar os homens do medo da natureza impediu, devido a suas contradições, a satisfação plena das pulsões, revelando o lado sombrio do esclarecimento (resultante da insatisfação dos homens perante o recalque e a repressão), com a ascensão de regimes totalitários de origem fascista e democrático, e na agressividade dos homens entre si.
Do ponto de vista pulsional, a passagem do capitalismo liberal para o monopolista representou um agravamento das contradições e tensões da relação indivíduo e sociedade. Tal processo intensifica o caráter repressivo e homogeneizante da cultura burguesa por meio da intervenção "racionalizada" dos meios de controle social sobre a economia pulsional dos homens. O predomínio do todo sobre o particular e o uso da técnica como instrumento de controle da natureza e dos homens acaba por retornar à sociedade sob formas compulsivas e destrutivas de comportamento, impedindo a satisfação dos homens.
Para Marcuse (1998), o anacronismo ou a obsolescência da psicanálise freudiana demonstra o quanto o progresso tornou-se repressão no capitalismo monopolista, tendo o modelo freudiano de indivíduo sido substituído pelo átomo social (parte integrante e sem contradição de um todo). A verdade da psicanálise não se enfraqueceu, segundo o autor, pois as próprias categorias psicanalíticas conteriam elementos políticos e sociais em si.
Assim, para os Frankfurtianos enquanto as pulsões, as identificações e o narcisismo são tomados como elementos essenciais para a análise de fenômenos sociais, outros conceitos freudianos perdem precisão descritiva perante as profundas alterações no capitalismo. Entre estes, destacam-se as concepções a respeito do eu e do supereu, pois o primeiro se enfraqueceu, enquanto o segundo se externalizou, possibilitando identificações primitivas (históricas e não naturais) que levam a formação do indivíduo para aquém da identificação com a autoridade paterna, que Adorno (2006) remete ao narcisismo. Deve-se questionar quais elementos sociais se alteraram para resultarem em tal configuração?
Carretero (2011) demonstra os impactos das alterações no capitalismo sobre a formação do indivíduo. Nesse sentido, as contribuições da psicanálise têm de ser revistas à luz dos efeitos de tais transformações culturais, sociais, políticas e econômicas, haja vista a mútua constituição entre indivíduo e sociedade. Se o conceito de indivíduo é uma das mais importantes "invenções" da sociedade burguesa, deve-se pensar que a forma como a sociedade se organiza está intimamente relacionada com a possibilidade de existência deste. O capitalismo liberal possibilitou a emergência do sujeito autônomo pela forma como se estruturava. Já o capitalismo monopolista, com sua configuração, preconiza o ocaso deste pela alienação entre sociedade e existência. Os homens se tornam meros apêndices da sociedade, e a psicanálise, nesse sentido, é fundamental para a compreensão de tais fenômenos.
Gomide (2007) ressalta que Adorno reinterpreta o conceito de inconsciente freudiano a luz da concepção de mútua constituição entre indivíduo e sociedade. Este passa a ser concebido como representante de ingredientes sociais que foram excluídos do progresso. Assim, no capitalismo monopolista marcado pelos regimes totalitários, mesmo de origem democrática, tal instância é manipulada para a formação das massas e pelo uso racional de seus conteúdos condenados para promover a irracionalidade da razão dominante. O inconsciente, dessa forma, assume estatuto político e há a denúncia do uso de tal instância no capitalismo monopolista com o fim de integrar as massas. Na atual configuração do capitalismo, outro tipo de organização psíquica, diferente das concebidas por Freud, apresenta-se com a prevalência de forças inconscientes que, todavia, correspondem às demandas econômicas da fase monopolista. Os modos de comportamentos dos indivíduos são expressão cada vez mais evidente da sociedade irracional e suas forças produtivas, tornando-se inócua a discussão a respeito da autonomia quando as próprias necessidades são impostas socialmente. Adorno (2006) acrescenta que analistas praticantes ressaltam a diminuição das neuroses clássicas substituídas por outras aflições psíquicas, que o autor remete ao narcisismo.
Marcuse (1998) destaca que a crítica de que o modelo freudiano representava a sociedade vienense contém seu elemento de verdade, mas, mesmo naquele momento, tais contribuições já exprimiam uma forma de existência em desaparecimento. No capitalismo liberal, a luta entre instâncias para a formação do indivíduo (isso x eu x supereu; princípio de prazer x princípio de realidade; Eros x Thánatos) era decidida neste e através deste, no seu corpo e na sua alma. Todavia, no capitalismo monopolista, tais processos se alteram e se alienam dos indivíduos, passando a ocorrer socialmente.
Segundo Marcuse, dois fatores históricos se alteram, no capitalismo monopolista, impossibilitando processos de socialização que favoreçam a individualidade e, consequentemente, a constituição do indivíduo nos moldes freudianos:
a) o conflito essencial entre indivíduo e sociedade; e
b) o próprio indivíduo constituir-se-ia nesse conflito. Na psicanálise clássica, o funesto conflito entre indivíduo e sociedade se decidia e se confrontava na relação com o pai, que imporia o princípio de realidade sobre o de prazer, ou seja, a dominação das pulsões como representante da sociedade. A rebelião e o acesso à maturidade eram estágios da luta com o pai. No capitalismo liberal, a primeira socialização do indivíduo ocorria na família, eu e supereu se formavam e se desenvolviam na esfera privada. Nesse embate, o indivíduo se tornava um eu com o outro, mas também contra o outro.
Gomide (2007) aponta que, para os frankfurtianos, os conflitos psicológicos baseados na contradição interna entre consciência moral (supereu) e as demandas pulsionais (isso) foram eliminados no capitalismo monopolista pela administração social, haja vista que os grandes trustes, as empresas gigantes e poderosas, e a indústria cultural determinam, de antemão, as decisões subjetivas e os regulamentos sociais e econômicos a serem seguidos. O ideal de eu (ou supereu), pressuposto por Freud, era a garantia da individualização por meio da apropriação da cultura pelo indivíduo. No capitalismo monopolista, tal esfera é expropriada do indivíduo pelos poderes coletivos e instrumentalizada (pela formação externa e de acordo com padrões impostos) a serviço da dominação, gerando a obediência cega e forçada das pessoas aos bens culturais de consumo e aos ideários totalitários que estão a serviço da reprodução econômica. Tais processos favorecem o que Marcuse (1998) denominou de identificações diretas, e Adorno (2006), narcisismo das massas.
Marcuse (1998) destaca que as alterações políticas e econômicas incidem sobre a formação do indivíduo, alterando a forma de socialização destes e, consequentemente, enfraquecendo o que a psicanálise denominou de eu e supereu. Para ele, a família dominada pelo pai não é mais o principal agente de socialização, mas a mass media, os agrupamentos escolares e esportivos, o bando de jovens. O declínio do pai e da família centrada na criança, que favoreciam a individualização, ocorre a partir da decadência da empresa privada familiar. O filho se torna independente do pai, e os conflitos não ocorrem mais no plano familiar, pois obrigações e comportamentos socialmente necessários não são mais aprendidos e interiorizados na luta com o pai e no seio da família, mas de acordo com padrões sociais.
Para Gomide (2007), a partir de suas interpretações a respeito do uso de conceitos freudianos por Adorno, as transformações do capitalismo liberal para o monopolista enfraqueceram a autoridade paterna na família, contribuindo para a formação de indivíduos menos resistentes à autoridade. A atual fraqueza do pai no capitalismo se estende aos recônditos do psiquismo doméstico, pois não havendo a internalização das exigências familiares e do modelo paterno por parte da criança, debilita-se a formação do indivíduo com o enfraquecimento do eu (que não se forma em confrontação com a autoridade paterna), diminuindo a resistência à autoridade pela identificação irrefletida e inconsciente. O desenvolvimento psíquico se estanca na fase em que a autoridade não pode ser introjetada. Adorno (2006) ressalta que a escolha dos líderes fascistas, devido a seus aspectos regressivos, está aquém da imagem paterna. Invocam elementos que, na metapsicologia freudiana, seriam anteriores à formação do complexo de Édipo e indicam a regressão na formação do indivíduo. Gomide (2007) ressalta que as transformações sociais e econômicas da cultura fazem com que os meios sociais (mass media, televisão, enfim, a indústria cultural) tomem o lugar da "figura paterna e da família" como modelos fortes de identificação para a formação do indivíduo. A escassez de modelos de identificação substituídos pelos da cultura de alta concentração tecnológica levam ao enfraquecimento do eu.
Marcuse (1998) acrescenta que o momento histórico em que o eu e supereu se formavam na luta contra o pai como representante do princípio de realidade deixou de ocorrer com as transformações do capitalismo concorrencial para o monopolista devido à passagem da concorrência livre para organizada; concentração do poder nas mãos de uma administração técnica, cultural e política onipresente; produção e consumo de massa que se expande automaticamente; sujeição de dimensões outrora privadas e antissociais da existência ao adestramento; manipulação e controle metódicos.
Mediante o exposto, pode-se perceber que o indivíduo freudiano preconiza um certo tipo de formação: estrutura familiar e organização social que entrou em colapso com a fim do capitalismo liberal. Tal processo gerou o enfraquecimento do eu e supereu, das faculdades críticas, consciência moral e autonomia. Adorno (1991) refere que a consciência, na nova organização econômica, retrocedeu para o inconsciente. Assim, um elemento importante a ser pensado refere-se aos tipos de regressões que o capitalismo monopolista fomenta no eu e supereu. Além disso, quais tipos de identificações são mobilizados nesse processo para a formação de um indivíduo para aquém do complexo de Édipo?
Segundo Marcuse (1998), os fenômenos de massa indicam a atrofia do eu demonstrando como o indivíduo fica disponível para soluções que lhe são externas. A debilidade do eu é também experimentada com o enfraquecimento de faculdades críticas como a consciência moral e psicológica. A burocratização e a administração experimentadas nas relações e no mundo do trabalho facilitam tal processo. As pessoas justificam suas ações de acordo com as exigências da burocracia e administração, havendo a transferência inteiramente racional e progressiva de funções individuais para o aparato, ou seja, a transferência irracional da consciência moral, pela repressão da consciência psicológica ou individual. Tais processos favorecem o enfraquecimento do eu que se torna supérfluo e inibidor para o funcionamento do mundo administrado e técnico do capitalismo monopolista.
Marcuse conclui que:
A humanidade liberada da autoridade do pai fraco, emancipada da família centrada na criança e formada pela Indústria Cultural, demonstra que a liberdade que experimentou na família enfraqueceu o ego. Este que foi formado sem luta, aparece como uma entidade fraca, incapaz de opor resistência às forças que impõem o princípio de realidade (efeitos da publicização da socialização, que antes era privada). No contexto da teoria freudiana o paradoxo desaparece: numa cultura repressiva o enfraquecimento do papel do pai e sua substituição por autoridades externas enfraquecem necessariamente a energia pulsional no ego e, por conseguinte, seus instintos vitais (Marcuse, 1998, p. 99).
Gomide (2007) também ratifica que as transformações sociais e culturais tornam desnecessárias e fragiliza a concepção de eu. Não seria necessária a mediação de uma instância racional em situações que requerem meramente a adaptação. Segundo a autora, a apropriação do conceito de eu por Adorno envolve as esferas pulsionais (das quais tem que se defender), assim como das dimensões sociais que o comprimem, contribuindo, assim, para o seu retraimento. Sob tal pressão, o eu se torna presa fácil tanto para a irracionalidade psíquica quanto de forças sociais potencialmente fascistas, expropriadoras da psicologia do indivíduo (pela exteriorização do supereu).
A autora ressalta que, mesmo com a impossibilidade da existência de um eu autônomo, quando a psicologia e a psicanálise (como ciência e profissão) insistem na existência deste diante da irracionalidade social, acabam por se tornar em instrumento de dominação ao defender a existência de um agente racional e autônomo ante uma sociedade irracional, pois preserva o embate entre razão individual e irracionalidade coletiva que foi reprimido e recalcado no capitalismo monopolista.
Outro reflexo das alterações do capitalismo na formação do indivíduo, como preconiza a psicanálise freudiana, refere-se às formulações sobre o ideal de eu, que posteriormente foi chamado pelo autor de supereu. Adorno (2006) ressalta que tal instância não se encontra mais nos indivíduos, mas foi exteriorizada e controlada pela cultura. Tal fenômeno pode ser observado nas massas fascistas, nas quais o ideal de eu particular é substituído por um grupal ou cultural. Assim, os indivíduos falham no desenvolvimento de uma consciência autônoma independente, substituindo-a por uma identificação com a autoridade coletiva, a qual é irracional, heterônoma, rigidamente opressiva, largamente estranha ao pensamento próprio do indivíduo e, portanto, facilmente substituível apesar de sua rigidez estrutural.
Gomide (2007) afirma que a noção de ideal de eu que aparece na obra tardia de Freud é importantíssima por fazer a articulação entre o individual e o coletivo. Com o enfraquecimento do eu do indivíduo submetido aos movimentos coletivos, o líder, a ideia ou o ideal se coloca no lugar do ideal de eu, e a crítica que poderia fazer resistência a tais coletividades, com a perda da função do ideal de eu, se enfraquece ou se torna inexistente. Assim, o processo de enfraquecimento do eu e a tomada do supereu por instâncias da cultura indicam a "perversão mental" que configura a dinâmica da subjetividade formada dentro do capitalismo monopolista, pois o supereu se transforma em porta-voz de impulsos destrutivos, perdendo a função de consciência e de censura sobre as intenções hostis inconscientes.
Marcuse (1998) elucida tais elementos, ao indicar que os traços regressivos encontrados nas massas por Freud (1921/1996)1 mostram que o indivíduo renunciou ao seu ideal de eu, trocando-o pelo ideal do grupo, tal como encarnado pelo líder, ideia ou ideal. Tal traço se assemelha às massas no capitalismo monopolista com suas tendências totalitárias expressas nos movimentos fascistas do início e meados do século XX, a tendência à "unificação" do mundo globalizado e os movimentos antidemocráticos no Brasil. Um dos perigos mais marcantes, para o autor, da externalização do supereu é o montante de energia agressiva liberada pelas massas e no indivíduo, haja vista que tal energia se direcionava à figura paterna, à autoridade e ao eu anteriormente. O supereu não governa mais a consciência moral, como juiz moral do eu, mas volta a agressão contra inimigos externos do ideal de eu. Assim, os membros da sociedade não apreendem e avaliam mais com base em seu eu e ideal de eu, mas por meio dos outros, por um ideal de eu exteriorizado e comum a todos (o princípio de realidade fala em massa). A energia destrutiva liberada dos conflitos do supereu é destinada para exogrupos.
O enfraquecimento do eu e a externalização do supereu faz com que os indivíduos estejam psíquica e pulsionalmente predestinados a aceitar e fazer suas as necessidades políticas e sociais alheias. Marcuse prossegue afirmando que:
No sistema de trustes (Konzernsystem), com suas burocracias abrangentes, a responsabilidade individual está mesclada e confundida com a dos outros, tal como a empresa individual com a economia nacional e internacional. Nessa confusão, o ideal do ego universal impõese unificando os indivíduos em cidadãos das sociedades de massas: ao impor-se contra as diferentes elites do poder, líderes e chefes em concorrência, ele se encarna em leis bem sólidas, que movem o aparato e determinam o comportamento do objeto, tanto material quanto humano; o código técnico, o código moral e o da produtividade lucrativa fundem-se num todo efetivo (Marcuse, 1998, p. 103).
O autor destaca outro aspecto cruel do enfraquecimento dos indivíduos no capitalismo monopolista: o ideal de eu (ou supereu) exterior não é imposto pela força bruta. Existe, na atual configuração da formação do indivíduo, uma grande harmonia entre dentro e fora, pois a coordenação de tais esferas começa muito antes de se tornar consciente. Os sujeitos recebem de fora o que eles mesmos desejam, a identificação com o ideal de eu coletivo ocorre na criança, ainda mais no momento em que a família não permanece como agente primário de socialização. Marcuse destaca o aspecto negativo da perda da determinação familiar, pois a criança aprende que não é o pai, mas os colegas da creche e as figuras da indústria cultural que ditam o que se refere ao comportamento intelectual e corporal adequado. As transformações no capitalismo (como o declínio da empresa individual privada e familiar, das capacidades e profissões tradicionais "herdadas" a necessidade de uma cultura geral cada vez mais importante e abrangente para a vida das grandes empresas de organizações patronais e sindicais) minaram o papel do pai e da teoria psicanalítica do supereu como herdeiro do pai, de tal maneira que, nos setores mais avançados da sociedade moderna, o burguês já não é seriamente atormentado pela imagem do pai, segundo Marcuse.
Com o enfraquecimento e externalização de instâncias psíquicas no capitalismo monopolista, a formação do indivíduo é dirigida para aquém do complexo de Édipo, pois o conflito entre indivíduo e sociedade, fundamental para a constituição do sujeito freudiano, se desfaz. Esse é substituído por um processo de identificações imediatas ou narcísicas onde há uma falsa harmonização entre os interesses dos indivíduos com os da sociedade, pela adesão direta dos primeiros aos ideais da cultura, mesmo o modelo de indivíduo isolado (monadológico) de Freud que é passível de crítica se torna anacrônico. Os frankfurtianos destacam o aspecto regressivo de tal processo e procuram formalizar tal concepção, buscando na própria psicanálise os elementos para crítica de tal tendência histórica.
Nesse momento da crítica dos frankfurtianos à psicanálise e ao capitalismo, as diferenças entre as concepções de Adorno e Marcuse ficam explícitas. Enquanto o primeiro invoca o conceito de narcisismo para fazer sua crítica às regressões na formação do indivíduo, o segundo remete tal processo às identificações imediatas decorrentes da fragilização da figura paterna e, consequentemente, da autoridade. Gomide (2007) ressalta que a identificação forçada aos ideários da cultura revela a crueldade da atual configuração do capitalismo. A dominação se sobrepõe de tal maneira à subjetividade que, mesmo que os sujeitos percebam a irracionalidade contida nas instâncias coletivas, a forma mais adequada de adaptação à realidade e de se conseguir uma precária satisfação, mesmo que narcísica, se dá por meio da abdicação da própria consciência. A repressão da consciência moral se torna um dos fatores essenciais da aceitação das pessoas às condições sociais que vão contra seus próprios interesses. Tal processo é decorrente da constante mobilização e manipulação de necessidades pulsionais pela cultura, e das exigências econômicas que vigoram na presente fase do capitalismo. O "sujeito econômico independente" do liberalismo foi eliminado, e o indivíduo burguês, que devia sua formação de caráter à economia política do mercado, perde sua razão de ser. A dissolução da consciência moral e a falência do agente mediador da personalidade (eu) para a adaptação social contribuem para a entrega massiva das pessoas aos poderes opressivos, transformando os indivíduos em meros objetos.
Adorno (2006) destaca que a discussão de Freud sobre as identificações contribuiu para a compreensão de alterações nas formas de subjetivação que se devem às condições históricas objetivas. As identificações seriam ligações emocionais com outra pessoa anteriores ao complexo de Édipo, portanto mais primitivas psicologicamente e historicamente. A cultura mobilizaria tal mecanismo pré-edípico para evocar uma imagem do líder para além (ou aquém) da imagem paterna real. O autor remete tal imagem ao todo-poderoso pai primitivo da horda fraterna de Totem e tabu (Freud, 1913/1996). A identificação da criança com seu pai é apenas um fenômeno secundário, ou posterior, alcançando a identificação uma imagem mais arcaica. Adorno ressalta o aspecto narcisista das identificações que têm correlação, segundo Freud, com o ato de devorar, de tornar um objeto amado parte de si mesmo. As lideranças fascistas e as figuras da indústria cultural se parecem mais com a ampliação da própria personalidade do indivíduo, uma projeção coletiva de si mesmo do que a imagem de um pai, cujo papel, durante as fases tardias da infância, pode ter diminuído no capitalismo monopolista. Assim, as identificações para Adorno estão intimamente ligadas a processos narcisistas na sociedade atual.
O narcisismo atual não é nada além:
Esfuerzo desesperado del individuo por compensar, al menos en parte, la injusticia de que en la sociedad del cambio universal nadie prospere jamás por su cuenta; desconoce la raíz sociológica del narcisismo, o sea que el individuo, debido a las casi insuperables dificultades que yacen hoy en la vía de cualquier relación espontánea y directa entre los hombres, se ve forzado a reverter sobre sí mismo sus energías instintivas sin realizar, y la salud que ella (Horney) tiene presente lleva el cuño de la misma sociedad a la que hace responsable de la génesis de la neurosis (Adorno, 1971, p. 148).2
Tal concepção demonstra que, apesar das forças sociais em prol da integração e "extinção" do indivíduo, haveria nesse um processo, mesmo que regressivo, na tentativa de se manter frente à sociedade. O narcisismo é o sacrifício da consciência na tentativa, ainda que ideológica, de se ratificar a importância da própria existência perante o totalitarismo da cultura. A cultura se aproveita cruelmente de tal circunstância para promover mais adesão dos indivíduos. Os líderes fascistas ou personalidades da cultura acabam por se tornar como espelhos nos quais os indivíduos projetam a imagem irreal e irracional que têm de si mesmo.
Para Gomide (2007), o narcisismo (movimento das pulsões para o eu) expressa a solidão, a dominação que se volta contra si e o sofrimento do indivíduo burguês, pois este, para se autoconservar, tem de enfraquecer sua consciência individual para a crítica à realidade. Isso leva ao repúdio desse sujeito a outras pessoas que não se encaixam no mesmo esquema ou estereótipo. A cultura compensa o narcisismo individual, ou petrificação da subjetividade, quando este se torna a matéria-prima dos movimentos irracionais de massa que envolve a adesão imediata aos ideais da cultura.
A autora também esclarece qual a concepção de narcisismo é usada por Adorno: é exatamente no estágio narcísico primário de indiferenciação entre o isso e o eu, e depois da retirada da libido dos objetos para o eu que aponta para um indivíduo como mônada (feito por si mesmo), que Adorno entrevê a realização das forças sociais nos mecanismos mais íntimos dos sujeitos. A concepção monadológica de narcisismo aponta que, diante das sociedades de troca mais desenvolvidas (com a primazia do econômico sobre necessidades individuais), o indivíduo se percebe como mônada perante a objetividade alienada. Nessas condições, o indivíduo dirige sua libido para o eu quanto mais à objetividade irracional se torna para ele mais desagradável e o trabalho sem sentido. Este pode passar a buscar satisfações substitutivas, fornecidas por mecanismos sociais irracionais (movimentos de massas), a fim de engrandecer e reforçar seu ilusório sentimento de "onipotência" (sentimentos narcísicos primários) para tentar se satisfizer das frustrações individuais perpetradas pela cultura. O indivíduo mônada (com seus aspectos narcisistas) passa a ter mais representatividade a partir das transformações do capitalismo monopolista, pois os sujeitos totalmente alienados da sociedade se tornam mônadas.
Adorno (2006) acrescenta outros elementos ao narcisismo individual: este favorece a adesão dos indivíduos às massas. O objeto (líder ou ideia) é tratado da mesma maneira que o próprio eu por meio de idealizações. Um exemplo disso seria que, ao se apaixonar, parte da libido narcisista transborda para o objeto. Assim, o objeto acaba por se tornar um substituto para características não possuídas, ou seja, um ideal de eu não atingido. Os indivíduos passam a buscar nos grupos ou massas características que não possuem e que satisfazem o próprio narcisismo. Os líderes fascistas e figuras da indústria cultural promovem tais aspectos em seus seguidores.
Os indivíduos da atual fase do capitalismo padecem de um conflito que surge das alterações sociais, econômicas e políticas, que se caracteriza por uma instância do eu racional e autopreservadora fortemente desenvolvida, ao mesmo tempo em que sofrem o fracasso contínuo em satisfazer a demanda do seu próprio eu. Tal conflito resulta em fortes impulsos narcisistas que somente podem ser absorvidos e satisfeitos pela transferência parcial da libido narcisista para o objeto (líder ou figuras da indústria cultural) pela idealização, ou seja, a pessoa representa as aspirações e desejos narcisistas de todo o grupo e grande parcela de membros da cultura na era digital. Tais lideranças correspondem a uma ampliação do indivíduo que ama a si mesmo, pois, ao fazer do líder seu ideal de eu, livra-se das manchas de frustração e descontentamento que estragam a imagem que tem do próprio eu empírico. Esse processo é denominado por Adorno de identificação por idealização, e é um padrão coletivo na cultura massificada do capitalismo monopolista. massificação da cultura favorece a formação de um vasto número de pessoas com disposições caracterológicas e inclinações libidinais desse tipo. Além da identificação com o líder ou ideia, tal processo também favorece a identificação de cada membro da coletividade entre si, pois todos teriam eus fragilizados, supereus externalizados e ideais de eu padronizados e encarnados na figura do líder.
Marcuse (1998) descreve o mesmo processo, fazendo uso de outras formulações freudianas, mas a crítica aponta para o mesmo sentido: a fragilização do indivíduo na passagem do capitalismo liberal para o monopolista. Ele não faz uso do conceito de narcisismo para descrever as regressões que os indivíduos sofrem no capitalismo monopolista. Destaca que, devido ao enfraquecimento do eu, a externalização do supereu e o enfraquecimento da imagem paterna, há a identificação direta dos indivíduos com os ideais impostos da cultura e a liberação de grande quantidade de energia agressiva nos indivíduos. A agressividade não usada contra a imagem paterna e contra eu pelo supereu fica "livre" para ser manipulada pela cultura. A derrocada da imagem paterna (devido a mudanças sociais já descritas) provocou o enfraquecimento do eu e externalização do supereu. Tal processo faz com que os indivíduos não alcancem (psicologicamente e em termos sociais, políticos e econômicos) o período de embate contra a autoridade, que caracteriza o complexo de Édipo2 na interpretação sociológica de Marcuse, e leva a formação do indivíduo a estágios regredidos de sua constituição, nos quais ocorre a identificação direta com as autoridades. A energia destrutiva liberada nesse processo é administrada socialmente direcionando o ódio para os exogrupos, o que gera a manutenção do status quo.
Para o autor o ideal de eu é levado a agir diretamente e "de fora" (socialmente) sobre o eu na atual configuração da cultura, isso ocorre antes mesmo que o indivíduo tenha se constituído de fato como sujeito pessoal e (relativamente) autônomo na relação entre eu e os outros. Tais processos reduzem o espaço vital e a autonomia do eu, pela redução da esfera privada, preparando o terreno para o surgimento das massas socialmente, com a identificação direta e sem tensão dos indivíduos, pois a socialização privada preservava espaços para a contradição entre indivíduo e sociedade. A mediação entre o eu (selbust) e o outro que ocorria na formação do indivíduo no seio da família é substituído pela identificação direta com os ideais da cultura:
Na estrutura da sociedade, o indivíduo torna-se um objeto administrado, consciente e inconsciente, e obtém liberdade e satisfação em seu papel como um tal objeto; na estrutura psíquica o ego se contrai de tal maneira que já não parece capaz de se manter como um eu distinto de id e do superego (Marcuse, 1998, pp. 94-95).
Isso leva à identificação estática do indivíduo com seus semelhantes e com a sociedade administrada. Diante de tal perspectiva, os processos psíquicos descritos por Freud não existiriam mais e a função social da psicanálise mudaria em consequência das mudanças na estrutura psíquica. Além disso, o eu despojado de seu poder de negação se esgota no esforço para "encontrar identidade" (que é fornecida socialmente), adoecendo ou submetendo-se. Os outros indivíduos, no papel de concorrentes ou de superiores, suscitam a hostilidade conduzida pelas pulsões (antes direcionadas à figura paterna, autoridade e ao eu pelo supereu): a identificação dos indivíduos com o ideal de eu imposto libera energia agressiva. Pode-se perceber um processo bastante sutil da cultura que leva o indivíduo a se identificar diretamente e a energia agressiva liberada é manejada para metas culturais.
Marcuse acrescenta que, apesar da justificação inteiramente racional em termos de técnica e política internacional, a ativação de energia agressiva libera forças pulsionais que ameaçam minar as instituições políticas estabelecidas, mas a própria cultura maneja tal situação para tornar tal processo inócuo por meio do consumo e controle sistemático dessas manifestações. Uma questão fica em aberto das formulações de Marcuse a respeito da energia agressiva liberada pelas pulsões: seria essa energia "natural" ou proveniente das contradições da cultura? Ele destaca que ao se firmar sobre a repressão e recalque a própria cultura geraria tais tensões (Marcuse, 1999).
As regressões provocadas nos indivíduos pelo capitalismo monopolista à luz das contribuições freudianas, de acordo com os frankfurtianos, independentemente se pensadas na perspectiva marcuseana ou adorniana, geram grandes riscos para a sociedade. Gomide (2007) ressalta que os indivíduos pressionados por agentes coletivos passam a aceitar formas precárias de satisfação, devido à contradição que se estabelece entre autoconservação e obter prazer que não pode ser dissolvida senão pelo ajustamento social. Dessa maneira, em sociedades totalitárias, o indivíduo não tem meios para escapar das recorrentes exigências e provas, as decisões individuais são fornecidas de antemão pela hierarquia social. Isso gera a falsa sensação de harmonia entre indivíduo e sociedade, na qual o indivíduo, para sobreviver ou satisfazer suas necessidades (impostas de fora a ele), deve seguir as regras estabelecidas. A autoconservação reduz-se à irracionalidade e adaptação.
Com a manipulação da cultura, o inconsciente, que representa para os frankfurtianos elementos que foram excluídos do progresso, harmoniza-se com o todo social. O enfraquecimento de instâncias psíquicas faz com que a consciência retroceda ao inconsciente, ou seja, não apareça ao indivíduo. Além do mais, as concepções dos frankfurtianos sobre o eu frágil se referem ao enfraquecimento das capacidades reflexivas e críticas dos indivíduos submetidos à cultura massificada, padronizada e industrializada do capitalismo monopolista. Mediante tal perspectiva, o indivíduo, que carrega em si as marcas da irracionalidade social, não pode ser descrito como possuidor de uma verdadeira psicologia (na perspectiva individualista e liberal), pois o predomínio da sociedade sobre este o condena a regressões e defesas arcaicas inconscientes (que são constituídas historicamente).
Adorno (2006) destaca que a cultura, no capitalismo monopolista, toma os homens pelo que eles são: verdadeiros filhos da cultura de massa estandardizada, amplamente despojados de autonomia e espontaneidade, em vez de estabelecer metas que transcenderiam o status quo psicológico não menos que social. Ao mesmo tempo, o maior mérito da obra de Freud é demonstrar a falácia da psicologia individual diante de processos sociais totalitários, ou seja, como os sujeitos "entregam" seus ideais de eu quando submetidos a processos coletivos e coletivizantes. Há, na psicanálise freudiana, a denúncia do período póspsicológico com a derrocada da ordem liberal (mesmo o modelo de indivíduo de Freud sendo liberal), na qual cada homem foi transformado em átomo social desindividualizado que compõe as coletividades.
REFERÊNCIAS
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Gomide, A. P. A. (2007). Um estudo sobre os conceitos freudianos na obra de T. W. Adorno. (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, Programa de Pósgraduação Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, São Paulo. [ Links ]
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Texto recebido em 16 de abril de 2015 e aprovado para publicação em 15 de setembro de 2016.
* Bolsista de doutorado pelo CNPq do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC São Paulo), metre em Psicologia Social pela PUC São Paulo, graduado em Psicologia em 2006 pela PUC Campinas.E-mail: psycogus@hotmail.com.
1 A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor; que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.
2 Esforço desesperado do indivíduo para compensar, pelo menos em parte, a injustiça de que, na sociedade de troca universal, ninguém jamais prospere por sua conta; desconhece a raiz sociológica do narcisismo, ou seja, que o indivíduo, devido às quase insuperáveis dificuldades que se fazem hoje na via de qualquer relação espontânea e direta entre os homens, se vê forçado a investir em si mesmo suas energias instintivas sem realizar, e a saúde que ela (Horney) propõe leva a cunho da mesma sociedade à qual se faz responsável da gênesis da neurose (Adorno, 1971, p. 148, tradução nossa).