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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2018
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p894-914
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p894-914
A teoria de Margaret Mahler sobre o desenvolvimento psíquico precoce normal
Margaret Mahlers theory of early normal mental development
La teoría de Margaret Mahler sobre el desarrollo psíquico temprano normal
Anna Ribeiro*; Fatima Caropreso**
Resumo
Este artigo tem como objetivo abordar a teoria sobre o desenvolvimento psíquico precoce de Margaret Mahler e contribuir para a compreensão de seu lugar de destaque nos mais importantes autores psicanalíticos que investigaram o desenvolvimento infantil. Mais especificamente, ele busca fornecer uma visão sistemática do processo do desenvolvimento psíquico precoce normal em crianças de 0 a 3 anos, segundo Mahler. Em um primeiro momento, apresentamos o lugar da autora no cenário da psicanálise infantil e descrevemos a metodologia de pesquisa empregada por Mahler e colaboradores em seus estudos clínicos e empíricos do desenvolvimento infantil. Em seguida, apresentamos os três níveis propostos pela autora em sua teoria do desenvolvimento psíquico, a saber, "desenvolvimento normal", "crises inerentes ao desenvolvimento" e "psicose infantil". Por fim, descrevemos, fase por fase, como se dá o primeiro desses níveis (desenvolvimento psíquico normal) na primeira infância.
Palavras-chave: Psicanálise. Margaret Mahler. Desenvolvimento psíquico. Relação mãe-bebê.
Abstract
This paper aims to approach Margaret Mahlers theory of early normal mental development and contribute to the understanding of her prominent place among the most important psychoanalytic authors who studied child development. More specifically, it intends to provide a systematic view of Mahlers account of the process of early normal mental development in children from birth to three years old. Initially, we outline the authors place in the field of child psychoanalysis and describe the research methodology employed by her and her collaborators in their empirical and clinical studies in child development. Next, we present the three levels proposed by Mahler in her theory of mental development, namely, "normal development", "crises inherent in the development" and "infantile psychosis". Finally, we describe stage by stage how the first of these levels ("normal mental development") takes place in early childhood.
Keywords: Psychoanalysis. Margaret Mahler. Mental development. Motherbaby relationship.
Resumen
Este artículo tiene por objeto abordar la teoría sobre el desarrollo mental temprano de Margaret Mahler y contribuir a la comprensión de su lugar destacado entre los más importantes autores psicoanalíticos que investigaron el desarrollo del niño. Más precisamente, se trata de ofrecer una visión sistemática del proceso de desarrollo psíquico temprano normal en los niños de 0 a 3 años según Mahler. En un primer momento, se presenta el lugar de la autora en el contexto del psicoanálisis infantil y se describe la metodología de investigación utilizada por Mahler y sus colaboradores en sus estudios clínicos y empíricos del desarrollo del niño. A continuación, se presentan los tres niveles propuestos por la autora en su teoría del desarrollo psíquico, es decir, "desarrollo normal", "crisis inherentes al desarrollo" y "psicosis infantil". Finalmente, se describe, fase por fase, como tiene lugar el primero de estos niveles (el "desarrollo psíquico normal") en la primera infancia.
Palabras clave: Psicoanálisis. Margaret Mahler. Desarrollo psíquico. Relación madre-bebé.
1 INTRODUÇÃO
Entre os principais autores que investigaram o desenvolvimento psíquico precoce, partindo de um referencial psicanalítico, e formularam hipóteses para tentar esclarecer quais são os fatores relacionados ao surgimento de patologias, podemos citar a pediatra e psiquiatra húngara Margaret Mahler (1897-1985), o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott (1896-1971), o médico e psicanalista austríaco Renè Spitz (1887-1974) e a psicanalista francesa Françoise Dolto (1908-1988). Entre 1920 e 1945, a psicanálise infantil estava restrita ao circuito europeu (Áustria, Alemanha e Inglaterra), tendo Anna Freud, Melanie Klein, Margaret Mahler, Donald Winnicott, Spitz e psicanalistas clássicos, como Ferenczi e Abraham, como expoentes de pesquisa e terapêutica. Com a Segunda Guerra Mundial, alguns teóricos importantes precisaram se mudar da Europa, indo residir nos Estados Unidos, como foi o caso de Spitz e Margaret Mahler (Geissmann & Geissmann, 2005).
Foi também no período de Pós-Segunda Guerra Mundial que o desenvolvimento psicológico infantil se tornou efetivamente um campo de estudo e intervenção.
Preocupados com os impactos psicológicos sobre o desenvolvimento infantil decorrentes das privações maternas durante a guerra e no período posterior ao conflito, muitos profissionais investiram nos cuidados com a infância (Fernandes, 2007). O desenvolvimento psíquico precoce começou, assim, a ser alvo de maior atenção e investigação. Fernandes (2007) comenta que foi no Pós-Guerra que "as separações e privações precoces maternas foram sendo alvo de preocupação por parte dos profissionais, principalmente, na área hospitalar e institucional" (Fernandes, 2007, p. 20).
Nesse contexto, focada no desenvolvimento do bebê e da criança pequena, localizamos a teórica Margaret Mahler. Sua grande contribuição à psicanálise infantil foi sua inovadora técnica de atendimento de crianças, com base no método denominado tripartite,1 que, segundo Geissmann e Geissmann (2005), revolucionou o atendimento psicanalítico clássico. Mahler desenvolveu uma teoria sobre o desenvolvimento psíquico precoce normal e a patologia da psicose. A autora enfatizou, em sua teoria, a existência de momentos de perturbações naturais e inerentes ao desenvolvimento emocional precoce. Ao longo de todas as fases, há momentos de crises e conflitos que a criança apresenta e que podem ser interpretados como patologias, mas não o são (Pine, 2004). Para Mahler, tais perturbações inerentes ao desenvolvimento diferenciam-se das patologias, por serem transitórias e mostrarem somente que a criança ainda está imatura emocionalmente para a próxima fase. Elas vão enfraquecendo a partir dos cuidados maternos, de maneira que a criança segue seu desenvolvimento normalmente.
Mahler elaborou uma rica teoria sobre o desenvolvimento infantil a partir das hipóteses psicanalíticas, psiquiátricas e pediátricas disponíveis, assim como de suas próprias pesquisas. Sua formação tríplice lhe permitiu compreender o bebê e a criança pequena e ir além das teorias psicanalíticas clássicas. No entanto, principalmente no Brasil, ela é uma autora muito pouco estudada, o que é comprovado pela escassa bibliografia nacional sobre sua teoria. No meio internacional, Mahler ganha destaque em publicações e estudos americanos, mas, na história da psicanálise mundial, é pouco mencionada em estudos sobre psicanálise infantil, de forma que as contribuições de outros psicanalistas como Anna Freud, Melanie Klein e Winnicott permanecem em primeiro plano.
Este artigo tem como objetivo analisar as características do desenvolvimento psíquico normal e apontar os detalhes mais significativos de cada fase, de acordo com a teoria elaborada por Mahler entre os anos 1942 a 1982. Antes da exposição das fases do desenvolvimento infantil precoce, apresentaremos alguns aspectos de sua biografia e de sua metodologia de pesquisa.
2 O PERCURSO HISTÓRICO DE MARGARET MAHLER
Nascida em Sopron, na Hungria, em 1897, Margaret adotou o sobrenome Mahler após o casamento com Paul Mahler, em 1936. Segundo Coates (2004), as vivências iniciais de sua vida influenciaram suas teorizações, especialmente as observações dos cuidados de sua mãe com sua irmã mais nova. Outro fator decisivo em suas escolhas, segundo a autora, foi a relação íntima de Margaret com o pai, que trabalhava com Ciência e Medicina. Aos 16 anos, Margaret mudouse para Budapeste e não tardou a frequentar um grupo de psicanálise que tinha como integrante o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi. Ingressou no curso de História da Arte, na Faculdade de Budapeste, mas logo se transferiu para o curso de Medicina, na Faculdade de Munique. Devido ao antissemitismo, Margaret mudou-se novamente e concluiu sua graduação em Medicina na Faculdade de Jena, tendo se especializado em pediatria e, posteriormente, em psiquiatria.
O interesse de Mahler pela psiquiatria e por crianças pequenas foi intensificado ao presenciar a morte de um bebê após ter sido deixado pelo pai no hospital. Sua hipótese era de que a criança não suportara o rompimento da relação com o pai. Mahler começou, então, a investigar a relação simbiótica dos bebês com seus pais, em especial com suas mães. Ao se mudar para Viena, em 1922, iniciou seus estudos em psicanálise e, em 1933, tornou-se membro do Vienna Psychoanalytic Institute, fundando, juntamente com Anna Freud, o primeiro centro de tratamento de crianças em Viena. Devido à perseguição nazista próxima à Segunda Guerra Mundial, Mahler foi convidada a fugir de Viena para a Inglaterra, onde permaneceu por um período de seis meses. Em seguida, foi para os Estados Unidos, onde residiu até sua morte. Em Nova Iorque, Mahler apresentou diversos seminários sobre psicanálise com crianças e se filiou ao Philadelphia Psychoanalytic Institute. Com suas argumentações sobre a teoria da simbiose e separação-individuação amplamente desenvolvidas, ela começou a estudar as patologias decorrentes das vivências não satisfatórias das fases iniciais do desenvolvimento. Entre as patologias pesquisadas e sistematizadas por Mahler, estão a psicose simbiótica e a psicose autística, ambas em bebês. Teodoro (1997) observa que:
Mahler deu ênfase ao papel do meio ambiente para a criança. Estava particularmente interessada na dualidade mãe-bebê e documentou cuidadosamente o impacto das primeiras separações da criança com relação à sua mãe. Sua tese principal parte de algumas das hipóteses de Freud, Bleuler e Kamer. A documentação da sua pesquisa sobre separação-individuação foi a contribuição mais significativa de Mahler para a psicanálise. Ela repousa na teoria freudiana das pulsões e dos estágios de desenvolvimento libidinal (Teodoro, 1997, p. 1).
Segundo Coates (2004), em 1950, juntamente com Manuel Furer, a autora fundou o Masters Childrens Center, em Manhattan. Nesse centro, Mahler desenvolveu a técnica tripartite de tratamento da criança pequena e seus pais, fato que revolucionou o tratamento psicanalítico com crianças na América do Norte. Por quase duas décadas, Mahler observou crianças psicóticas, mas foi somente após a década de 1950 que sistematizou suas observações em uma pesquisa intitulada The natural history of symbiotic child psychosis (Mahler, 1975), realizada no Masters Childrens Center, com financiamento do National Institute of Mental Health (USPHS). O interesse de Margaret Mahler em estudar o desenvolvimento emocional normal de bebês e crianças pequenas parte de observações daquela pesquisa terapêutica com crianças psicóticas simbióticas em idade pré-escolar. Mahler ansiava por material comparativo entre o desenvolvimento emocional precoce em crianças normais e crianças psicóticas simbióticas, o que a levou, em 1963, a solicitar ao USPHS novo subsídio para pesquisa com crianças normais (Mahler, Pine & Bergman, 1977).
Duas hipóteses principais fundamentam a pesquisa de Mahler. A primeira diz respeito ao processo simbiótico-psicótico, no qual haveria um atraso no desenvolvimento emocional da fase de separação, concomitante a um atraso na maturação do aparelho do ego, levando a criança a lançar mão de mecanismos de defesa psicóticos quando em risco psíquico. A outra hipótese, desenvolvida pela autora em suas produções a partir de 1957, está relacionada ao desenvolvimento normal da fase de separação-individuação, cujos fins seriam o desenvolvimento e a manutenção de um "senso de identidade" (Mahler, 1982). Mahler dava ênfase ao fato de que as situações normais do desenvolvimento parecem ser negligenciadas em detrimento das situações patológicas, o que motivou a autora a olhar para o desenvolvimento normal.
Mahler iniciou um estudo para entender como se desenvolvia, em crianças com desenvolvimento normal, a diferenciação e a formação do ego e senso de identidade. A sua premissa era a de que "existe na criança mediana um processo intrapsíquico normal e universal de separação-individuação e este é precedido pela fase simbiótica normal" (Mahler, 1974, p. 121). Uma observação importante feita pela autora é que o nascimento psicológico parecia não ter acontecido nem para o bebê recém-nascido nem para a criança psicótica. A partir dessa observação sobre a semelhança do estado crepuscular entre o bebê recém-nascido e a criança psicótica, a autora fez dois questionamentos que impulsionaram sua teoria: de que maneira a maioria dos bebês emergem do estado fusionado com a mãe e alcançam seu nascimento psíquico? Quais os determinantes genéticos ou individuais que impedem que a criança psicótica alcance essa segunda experiência de nascimento?
3 A METODOLOGIA DA PESQUISA DE MARGARET MAHLER
Mahler, Pine e Bergman (1975) desenvolveram duas pesquisas, financiadas pelo USPHS, no Masters Childrens Center: a primeira com crianças psicóticas e outra comparativa entre crianças psicóticas e crianças normais. Esta segunda, que nos interessa especialmente neste artigo, teve como amostra dois grupos de pares mãe-bebê: um grupo constituído por crianças psicóticas simbióticas, com idade entre 3 e 5 anos, e suas mães; outro grupo formado por crianças normais, com idade de 4 a 36 meses, e suas mães, as quais eram chamadas medianas. Um primeiro objetivo da pesquisa era o de, ao comparar os dois grupos de pares, obter material que justificasse a hipótese da autora de que a psicose simbiótica tinha sua gênese nas primeiras relações estabelecidas entre o bebê e seu objeto de amor, a mãe. Um segundo objetivo da pesquisa foi o de conhecer o processo sadio do desenvolvimento psíquico dos bebês na presença da mãe mediana, bem como delinear os efeitos negativos e traumáticos para o desenvolvimento da personalidade decorrentes da separação física entre bebê e mãe, ou da presença da mãe depressiva ou indisponível emocionalmente (Mahler, 1963).
Metodologicamente, a pesquisa se dava da seguinte maneira: havia uma grande sala de brinquedos, sutilmente separada em dois ambientes. A díade era atendida em interação ou separadamente, dependendo da necessidade. Quando o bebê fosse capaz de se locomover para longe da mãe, a díade era ativamente separada por esse movimento do bebê, enquanto a mãe ficava à disposição do filho para um retorno assim que necessário. Quatro vezes por semana, mãe e filho frequentavam as sessões de observação em grupo durante várias horas, em interação livre. Semanalmente, as mães eram entrevistadas por Mahler e seus colaboradores individualmente ou na presença do filho. As entrevistas individuais tinham como objetivo avaliar a personalidade da mãe e diversos aspectos do relacionamento mãe-bebê (Mahler, 1963).
Os profissionais que ajudaram Mahler na pesquisa, treinados pela autora, eram responsáveis por observar a dinâmica de interação da díade cujas entrevistas tinham efetuado. Dois outros observadores faziam relatos clínicos gerais e específicos sobre peculiaridades do processo de simbiose e separação-individuação. Essas observações eram comparadas ao material das entrevistas e foram, gradualmente, tecendo a teoria evolucionista de Mahler sobre o desenvolvimento psíquico baseada em três tipos de funcionamentos: normalidade (o que se espera), crises inerentes ao desenvolvimento (não são patologias, ainda que possam aparentar ser), e a patologia das psicoses.
A seguir, apresentaremos em detalhes o desenvolvimento psíquico normal segundo a teoria de Mahler.
4 A TEORIA SOBRE AS FASES DO DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO PRECOCE NORMAL
A autora divide o desenvolvimento emocional infantil precoce em fase anobjetal, chamada autística normal, fase de gratificação de necessidades, chamada simbiótica, e a fase de separação-individuação, que, por sua vez, é subdividida em quatro subfases: diferenciação, exploração, reaproximação e a caminho da constância de objeto libidinal (Mahler, 1982).
4.1 A fase autística normal
As primeiras semanas extrauterinas, ou o correspondente ao primeiro mês de vida, foram chamadas por Mahler de "fase autística normal". Autística pela incapacidade de distinguir dentro e fora de si mesmo. Entretanto a autora ressalta que, mesmo não havendo diferenciação entre self e não-self, há suscetibilidade à recepção de estímulos, diferentemente do que parece ocorrer na patologia do autismo. Nesse período, o estado de sono é consideravelmente maior do que o período de vigília, alternando o bebê entre a sonolência e a satisfação das necessidades. Durante a gestação, toda a economia libidinal parece estar num equilíbrio "perfeito", como um sistema fechado no qual a catexia está voltada para a satisfação alucinatória do bebê, não carecendo de esforços para amenizar excessos de qualquer ordem. Retomando alguns conceitos freudianos dos textos Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950/1998)2 e Além do princípio do prazer (Freud, 1920/2010), Mahler traz a ideia de que o bebê busca, em todo momento, recuperar ou readquirir a homeostase de seu organismo, tentando aliviar os estados de tensão por meio de suas capacidades fisiológicas ainda em maturação (controle de esfíncter, reflexos de tosse, choro ). Nessa breve fase do desenvolvimento, os aspectos fisiológicos dominam sobre os psicológicos. A autora alerta para que o bebê seja protegido contra excessos de estímulos externos durante esse período, a fim de que ainda se mantenha num estado semelhante ao da gestação, a ponto de facilitar seu amadurecimento fisiológico (Mahler, 1975).
Apesar de protegido, o bebê não está isolado de receber estímulos, e essa tendência inata do estado vegetativo e consequente estado psíquico de alucinação primária deve ser gradualmente substituída por uma consciência sensóriomotora, indo do centro do organismo à periferia. É pela libido da mãe investida no filho que há um deslocamento da libido do bebê do interior do corpo para a periferia e, posteriormente, para o ambiente (Mahler, 1974).
O deslocamento libidinal e o gradativo aumento da capacidade sensorial levaram a autora a identificar, na fase autística normal, dois estágios do funcionamento do narcisismo primário. Nas primeiras semanas após o nascimento, temos o narcisismo primário absoluto ou incondicional, conceito desenvolvido por Ferenczi (1992), segundo o qual tudo é percebido como fruto de si mesmo. Num segundo momento, o bebê oscila entre o narcisismo absoluto e a onipotência alucinatória condicional, na qual a satisfação começa a ser percebida como algo que vem de fora e os registros de memória entre necessidade e objeto de satisfação começam a ser percebidos, ainda que o objeto dessa satisfação não seja identificável com clareza (Mahler, 1975).
A relação que se estabelece entre o desconforto orgânico e o objeto de satisfação vai sendo percebida pelo ego rudimentar do bebê, por meio de sensações corporais, e vão sendo inscritos traços de memória que formam representações da imagem corporal do bebê e para o bebê. A imagem corporal é muito importante no processo de separação-individuação, pois ela é precursora de um self-corporal, o qual a autora chama senso de identidade (Mahler, 1982).
Para que o psiquismo possa se desenvolver e chegar ao ponto de uma mínima percepção do mundo externo, é necessário que os aspectos fisiológicos se desenvolvam em conjunto. Sobre o amadurecimento fisiológico, podemos mencionar as pesquisas de John Benjamin (citado por Mahler, 1982).3 A capacidade mínima do bebê de perceber algo do mundo exterior concomitante ao desenvolvimento fisiológico que, juntamente com os traços de memória, culmina no aparecimento de "reflexos" correspondentes, vai gradativamente fazendo declinarem os reflexos primordiais, como o de preensão, reflexo plantar e de Moro. Consequentemente, o bebê acaba impulsionado à fase subsequente no desenvolvimento emocional primitivo, chamada por Mahler (1975) de "fase simbiótica".
4.2 Fase simbiótica
As hipóteses da autora acerca da simbiose são baseadas em dois pressupostos que Freud desenvolveu em 1895, no texto Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950). O primeiro é que o bebê humano nasce prematuro do ponto de vista biológico, sendo, de início, absolutamente dependente da mãe. O segundo é sobre a relação de objeto que o ser humano estabelece com o outro, sendo esta a única garantia de saúde emocional e física do bebê. Mahler (1982) diz que o termo simbiose "foi escolhido para descrever aquele estado indiferenciado de fusão com a mãe, no qual o 'eu' ainda não está diferenciado do 'não eu' e em que 'dentro' e 'fora' estão gradualmente começando a ser percebidos como diferentes" (Mahler, 1982, p. 67).
Para afirmar a existência de uma fase simbiótica, Mahler (1974) precisou estudar díades normais e patológicas desde a mais tenra idade dos bebês até fases posteriores à simbiose. A inferência sobre uma relação dual preexistente foi possível a partir dos primeiros sinais de uma diferenciação entre mãe e bebê. Segundo a autora, a fase simbiótica pode ser definida da seguinte maneira:
A fase simbiótica é assinalada pelo aumento da atenção do bebê e seu investimento afeto-perceptivo nos estímulos por nós (os observadores adultos) reconhecidos como do mundo externo e dos quais o bebê (é nosso postulado) não compreende claramente a origem externa. Nesse momento, começam a estabelecerem-se as 'ilhas de memória', mas não ainda uma diferenciação entre interno e externo, o self e o outro. A principal realização psicológica da fase simbiótica é a criação do vínculo específico entre a mãe e o bebê, indicado pela característica resposta sorridente4 (Mahler, 1974, p. 123).
Assim como na fase autística, o bebê deve ser protegido das situações desconfortáveis nos primeiros cinco meses de vida extrauterina. Caso essa proteção não ocorra ou aconteça de maneira significativamente falha, as consequências do estresse no bebê podem obrigá-lo a desenvolver prematuramente seus recursos egoicos, havendo nisso implicações importantes no desenvolvimento das defesas neuróticas. Outro ponto importante e perigoso da fase simbiótica é a fusão operada entre bebê e mãe como uma fusão psicossomática, onipotente e ilusória nos limites comuns entre os indivíduos. Nos casos graves de patologias da psicose simbiótica, o ego regredirá para esse funcionamento psíquico fusional (Mahler, 1966). O início da fase simbiótica ocorre por volta do segundo mês de vida e se caracteriza pela consciência difusa de que há um objeto gratificador. Nesse início da simbiose, há o estabelecimento mais pleno de um fenômeno psíquico iniciado na fase autística: as ilhas de memória (Mahler, Pine & Bergman, 1977). Visto que o objeto gratificador alivia a tensão no bebê, uma memória é estabelecida entre a tensão e o objeto, levando à diminuição dos reflexos e ao estabelecimento da busca por tal objeto específico. Mahler, Pine e Bergaman (1975) admitem que
As imagens do objeto de amor, assim como as imagens do eu inicialmente corporal e depois psíquico, emergem dos traços mnêmicos, cada vez mais abundantes, das experiências instintivas e emocionais prazerosas (boas) e desprazerosas (más), e das percepções a elas associadas (p. 68).
A mãe, mais uma vez, é a maior responsável por fazer o bebê ir reconhecendo os estímulos externos e formando as ilhas de memória.
Na simbiose, a fusão psíquica entre mãe e bebê, embora necessária, não tem a mesma significação para ambos, pois a necessidade da criança diante do adulto é absoluta, ao passo que a necessidade que a mãe tem de estar fusionada a seu bebê é relativa e pode durar menos tempo que a necessidade da criança. Assim, para que a demanda simbiótica da mãe e do bebê possa ser satisfeita para ambos, e a separação possa se efetuar, precisa haver uma comunicação entre os pares da díade. A maneira como a comunicação do bebê é recebida, interpretada e atendida pela mãe cria um código complexo (leitmotif) que identifica cada filho à sua mãe. Esse código dado ao bebê pela mãe, e que carrega fortemente as vivências maternas, é ajustado ao self primitivo do bebê como um fenômeno de eco (Mahler, 1982). O início da comunicação se dá ainda na fase autística, quando a mãe precisa ser capaz de identificar os padrões de comportamento do bebê, que a autora chama de "padrões de descarga", e responder a tais comportamentos de maneira adequada. Esse mecanismo simples vai gerando padronizações adaptativas ao bebê e fornecendo subsídios às ilhas de memória (Mahler, 1967).
Uma importante forma de comunicação, que ganha status de organizador simbiótico do nascimento psicológico nas hipóteses de Mahler, é o segurar materno (Mahler, 1975). Outra observação importante sobre a qualidade da interação entre mãe-bebê foi a variedade de códigos usados pela criança para indicar necessidade, prazer e tensões e a maneira de decodificação da mãe para cada forma de comunicação vinda do filho. Essa dinâmica mostrou como "o bebê altera gradualmente sua conduta em relação a esta resposta seletiva, de um modo característico, resultante de seus dotes congênitos e do relacionamento com a mãe" (Mahler, 1982, p. 27). Dessa relação interna do bebê, surgem seus padrões de comportamento e qualidades gerais de personalidade.
Embora nem todos os códigos de necessidades sejam corretamente respondidos e interpretados pela mãe, a pesquisa mostrou que há, no bebê e na criança pequena, uma incrível capacidade de adaptar-se a esses equívocos e faltas maternas. É nessa troca de comunicação e interpretação característica da fase simbiótica, bem como na dependência psicológica e sociobiológica do bebê em relação à mãe, que a autora identifica a matriz da "diferenciação estrutural que vai levar à organização do indivíduo: o ego em funcionamento, visando sua adaptação" (Mahler, Pine e Bergman, 1977, p. 63).
Por volta dos 5 a 7 meses, o bebê começa a estabelecer uma distinção sutil entre os estímulos internos ao corpo e os externos. Esse é chamado período de exploração e ocorre no auge da fase de exploração tátil. É notável o interesse do bebê em manusear o rosto da mãe em contrapartida à sua própria face e corpo. O período de exploração foi localizado no clímax da fase simbiótica, em torno do quinto mês de vida, havendo uma sobreposição da primeira fase de separação (fase de diferenciação) com as etapas finais da simbiose.
Aos 7, 8 meses, há um esforço do bebê em desligar-se da mãe, deslocando sua libido para objetos externos que são substitutivos da representação materna, como o objeto transicional, de Winnicott. Quando a locomoção está estabelecida, seja arrastando ou engatinhando, há um movimento ativo do bebê explorando sua realidade. Com isso, a separação física da mãe está sendo treinada pela criança, sendo este o momento de um primeiro rompimento da membrana simbiótica. Se tudo correr bem na fase simbiótica, a curiosidade será o tema da fase subsequente, havendo boa exploração do ambiente. Em contrapartida, quando a confiança básica não é capaz de assegurar à criança o movimento de separação, pode haver acentuadas crises de ansiedade diante de estranhos, comprometendo a evolução psíquica em direção à constância de objeto.
O crescimento emocional, que impulsiona a criança a separar-se e abandonar o estado de simbiose, é mais rápido e menos doloroso no aspecto físico do que no aspecto emocional. No aspecto físico, o bebê passa do colo para o chão e, depois, para o caminhar. Contudo, emocionalmente, o desenvolvimento autônomo do ego é gradual e dura toda a vida. A transição da fase simbiótica para a fase seguinte ainda é marcada pela necessidade da permanência do estado fusional, embora haja também apontamentos para o rompimento desta condição. Passemos agora ao estudo da fase chamada "separação-individuação".
4.3 Fase de separação-individuação
Essa fase é composta por dois momentos distintos que se entrelaçam no processo do desenvolvimento psíquico. A autora conceitua separação como a saída da criança da condição fusional com a mãe, enquanto individuação é o movimento de consolidação da individualidade. A separação advém da diferenciação e perdura durante os dois primeiros anos de vida, cedendo lugar, por volta do início dos 2 anos, ao processo de individuação. Sobre o processo de elaboração das hipóteses acerca da fase de separação-individuação, Mahler (1982) comenta o seguinte:
Minhas descobertas das subfases de separação-individuação desenvolveram-se gradualmente. De ano para ano, novas facetas dos dados observacionais reunidos tornavam-se suscetíveis de organização mais exata. Em 1955, eu já começava a falar no processo de separação-individuação; no entanto, foi somente com meus dois artigos5 de 1965 que as primeiras descrições das subfases de separação-individuação foram publicadas (p. 36).
Mahler ressalta a presença de uma posição ativa do bebê, sendo ele o responsável por operar esse distanciamento, principalmente quando começa a locomoção (Mahler, 1963). Entretanto, para que essa função ativa possa ter qualidade e culminar num desenvolvimento ótimo, é necessário que a mãe esteja disponível emocionalmente para o filho sempre que solicitada.
Os principais eventos psicológicos dessa fase ocorrem entre os 4, 5 meses e os 30, 36 meses. Das observações das díades do Masters Childrens Center, Mahler (1971) descreveu certos comportamentos frequentes nos bebês, como usar objetos inanimados do berçário (com relativa relação com a mãe) como substitutos da mãe em sua ausência, como que lhes atribuindo o papel de objeto transicional. Outro fato observado é que houve significativa modificação cinestésica das crianças normais quando em contato com o corpo humano e pouca alteração quando manuseando objetos inanimados. Entretanto, nas crianças psicóticas, o quadro inverso foi notado. Uma terceira observação foi a ocorrência, entre irmãos, de diferentes reações diante de estranhos, mostrando que, apesar de terem o mesmo objeto materno, a aquisição da expectativa confiante 6 e da desconfiança básica dependem da maneira com que foram cuidados.
Tais observações, aliadas ao fato de haver uma sobreposição de fenômenos característicos tanto da fase simbiótica quanto da fase de separação-individuação, e dada a complexidade de eventos psíquicos, levaram Mahler e seus colaboradores a subdividirem a fase de separação-individuação em quatro subfases. O objetivo dessa subdivisão foi apresentar uma descrição mais acurada dos processos de desenvolvimento emocional primitivo.
4.3.1 Subfase de diferenciação
Esta subfase tem início por volta do quinto ou sexto mês, sobrepondo-se ao final da fase simbiótica e início da fase de separação-individuação. Nessa subfase, as funções locomotoras, desde o engatinhar até o andar livremente, ganham destaque bem como a coordenação motora e visual. É durante esses meses que o bebê vai de uma completa dependência da mãe à independência para explorar o mundo ativamente. Ludicamente, o bebê se interessa por jogos de esconder e pela exploração no entorno dos pés da mãe.
O nome dado a essa subfase remete à hipótese de Spitz (1987) sobre a resposta sorriso, mencionada anteriormente, na transição da fase autística para a simbiótica. Bowlby (citado por Coates, 2004) coloca que o sorriso diferenciado mostra que um elo específico entre mãe e bebê foi prontamente estabelecido. A resposta do sorriso específico a um objeto externo mostra também que a atenção dirigida do bebê começa a deslocar-se da órbita simbiótica para o mundo externo, ainda que o bebê se mantenha atento à figura protetora da mãe. Interessante notar que o estabelecimento de um vínculo de reconhecimento específico por parte do bebê para com sua mãe o leva a separar-se dela, ou seja, à diferenciação. Consequentemente, o reconhecimento do objeto mãe, faz o bebê caminhar na direção do rompimento da membrana simbiótica.
Se, nas fases anteriores, a catexia do bebê estava direcionada para os fenômenos internos ao corpo, agora há um processo de "desabrochamento"7 (Mahler, Pine e& Bergman, 1977, p. 73), voltando a atenção e o foco de percepção do bebê para os eventos que ocorrem a seu redor. Mahler pontua que essa modificação da atenção do bebê para o meio externo se dá num sentido de grau e não de espécie, pois, na fase simbiótica, o bebê já estava voltado para o mundo externo representado pela figura da mãe. As memórias estabelecidas entre as idas e vindas da mãe e as experiências de satisfação e frustração a que o bebê é naturalmente submetido na relação simbiótica são responsáveis psiquicamente por essa modificação no foco perceptivo.
Aos 6 meses, há "sinais definidos de que o bebê começa a diferenciar seu próprio corpo daquele da mãe" (Mahler, Pine & Bergman, 1977, p. 74), o que ocorre por meio de explorações manuais, táteis e visuais. Mahler (1975) diz que o puxar o cabelo da mãe, afastar-se do seu corpo quando está no colo e observála a certa distância, explorar o corpo da mãe, enfim, todos esses movimentos, apontam para uma tentativa ativa de separação que, mais tarde, vai influenciar a comparação cognitiva por parte do bebê entre o familiar e o não familiar. Há, nesse momento, um período de exploração em que a criança investe sua libido em sua própria locomoção e nos objetos externos, a fim de formar seu próprio critério de realidade. Mahler divide o período de exploração em dois momentos: exploração inicial e exploração propriamente dita. Na exploração inicial, que se justapõe à diferenciação, o bebê inaugura suas capacidades de separar-se fisicamente da mãe, mesmo que para isso necessite de auxílio. Na exploração propriamente dita, o bebê avança livremente para longe da mãe, em postura vertical e sem auxílio.
Se, na fase simbiótica, é a mãe quem estabelece o ritmo e a proximidade com que a criança se locomove e reaproxima, quando o bebê entra na subfase de diferenciação e no período de exploração, sua locomoção começa a ser mais autônoma com o engatinhar, sendo a própria criança a controlar seu distanciamento. Aquelas crianças que tiveram uma vivência simbiótica ótima, com uma mãe disponível emocionalmente, apresentam a curiosidade e a exploração como respostas características em sua relação com estranhos. Já aquelas que não tiveram experiência tão positiva na fase simbiótica podem apresentar intensa angústia diante de estranhos, principalmente nos momentos de exploração. Com a aquisição cada vez mais firme das funções de locomoção, a criança entra na próxima subfase, a de treinamento (Mahler, 1975).
4.3.2 Subfase de treinamento8
Assim como em todo o processo de desenvolvimento, esta subfase também se sobrepõe à fase anterior por volta dos 8, 10 meses, seguindo até os 15, 18 meses. Nessa fase, a exploração do mundo animado e inanimado se intensifica, mas sua intolerância quanto a ser frustrado aumenta significativamente. Mesmo ativa e absorta em suas explorações, a criança ainda tem a necessidade de, de tempos em tempos, retornar ao contato com a mãe para reabastecimento emocional.9
Mahler divide a subfase de treinamento em dois momentos: o treinamento inicial normal, indo do oitavo ao décimo mês, marcada pela habilidade inicial do bebê em manter-se afastado da mãe sem ainda desligar-se dela; e o treinamento propriamente dito, indo do décimo/décimo segundo mês ao décimo sexto/ décimo oitavo mês, em que o bebê já se locomove sozinho, de maneira livre e em postura ereta.
Essa subfase chama-se treinamento, porque a criança literalmente treina afastar-se da mãe, ou seja, nesse momento, a criança está apta a engatinhar e o faz, movimentando-se para longe da mãe e retornando quando a distância ou o tempo sem a presença da mãe se faz angustiante, numa tentativa de reabastecimento emocional (Mahler, Pine & Bergman, 1977). Isto é, na subfase de treinamento inicial, mesmo indo para longe da mãe, esta não perde sua importância como um ponto estável em que o contato físico possa ser operado sempre que a criança sentir necessidade. Quanto mais as funções locomotoras amadurecem, mais a criança pode explorar os objetos e ir cada vez mais longe da mãe, espaçando cada vez mais os momentos de reabastecimento. Seria ótimo, segundo a autora, que o bebê pudesse se manter a uma distância da mãe que lhe fosse razoável para explorar sem interferência materna, mas que esta se mantivesse tão próxima e disponível o suficiente para que, ao retornar para o reabastecimento emocional, pudesse ser acolhido por ela. A necessidade que a criança tem de se reabastecer varia de díade para díade, parecendo, segundo Mahler (1975), existir uma relação entre necessidade da criança e disponibilidade da mãe.
A ausência de disponibilidade materna pode acarretar desarmonia e irregularidade no desenvolvimento das funções primordiais do ego, o que pode ser percebido nos comportamentos agressivos de bater e arremessar objetos, evoluindo para autoagressão, em casos mais graves. Em contrapartida, a confiança que o bebê sente na mãe e o sentimento materno de que seu bebê adquira a posição vertical para que, com isso, possa explorar plenamente o mundo externo, faz com que o filho progrida para o próximo período da subfase de treinamento de maneira normal (Mahler, 1972a).
Passado, então, esse período de treino inicial, a criança de 10 a 12 meses entra na subfase de treinamento propriamente dito, em posição ereta, ainda que a ajuda de um adulto seja necessária. Os autores ressaltam que
A importância de começar a andar para o desenvolvimento emocional da criança não pode ser subestimada. O ato de andar proporciona ao toddler um aumento acentuado de sua descoberta da realidade e do ato de testá-la sob seu próprio controle e domínio (Mahler, Pine & Bergman, 1977, p. 94).
Por direcionar a catexia para o mundo externo, há na criança escassez de catexia para solucionar conflitos internos, o que pode ser notado pela intolerância à frustração. Observa-se uma "impermeabilidade relativamente grande em relação a batidas e quedas e outras frustrações, como ter um brinquedo tirado por outra criança" (Mahler, Pine & Bergman, 1977, p. 94).
Somente depois de a criança começar a dar seus primeiros passos sem auxílio de um adulto, e normalmente em direção oposta à da mãe, é que se pode considerar ter começado a subfase de treinamento por excelência, bem como o desenvolvimento do critério de realidade. A aquisição da livre locomoção é de tal forma importante para as hipóteses de individuação que os comentários da autora sobre o assunto merecem destaque. Dizem Mahler, Pine e Bergman (1975):
No curso do período de treinamento propriamente dito, ficamos impressionados com o efeito verdadeiramente dramático e extremamente estimulante da locomoção em posição vertical sobre a disposição geral do bebê, até então bastante ocupado e acostumado a engatinhar. Tomamos consciência de sua importância para que o bebê atingisse a experiência de nascimento psicológico [ ] (Mahler, Pine & Bergman, 1977, p. 97).
O movimento que se observa do bebê com sua mãe nessa etapa é parecido com um jogo de esconde-esconde, no qual a criança vai para longe, como que para esconder-se de sua mãe, e retorna para os seus braços, como que para receber novamente o reabastecimento emocional e ser absorto nos braços maternos. Notamos que, na livre locomoção, há uma inversão de funções entre bebê e mãe. Esta deixa de desempenhar uma função ativa na relação para que aquele possa assumir esse papel. À mãe cabe, nesse momento, estar atenta e compreender o processo primário da linguagem do bebê, que carrega, em suas vocalizações e gestos, conteúdos de sentidos secundários. Entretanto, ao final da subfase de treinamento, temos um movimento dúbio e regressivo na criança, que passa a ter uma necessidade exacerbada da mãe, inaugurando a subfase de reaproximação (Mahler, 1972b).
4.3.3 Subfase de reaproximação
Dos 15 meses até os 22, 24 meses, a criança passa por um período em que o caminhar livre é importante por marcar o seu domínio sobre suas vontades, mas traz consigo a ansiedade de separação, havendo um retrocesso em processos que na subfase anterior pareciam já consolidados. Esse retrocesso pode ser percebido em comportamentos como uma diminuição sensível em sua capacidade de suportar frustração e uma resposta de ansiedade de separação aumentada, não sendo mais possível simplesmente que o reabastecimento emocional se dê de tempos em tempos. Parece haver um temor da possibilidade de perder o objeto libidinal ou de que ele fique fora do campo de visão da criança. Essa subfase de reaproximação é um dos pontos mais importantes da fase de separação-individuação, pois ela representa o que defendemos como crises inerentes ao desenvolvimento. Embora possam ser interpretadas como comportamentos patológicos, tais crises são naturais ao desenvolvimento psíquico precoce, segundo Mahler. Se, antes, a criança aceitava familiares como substitutos maternos, nesta subfase, a criança não mais os aceita com facilidade, mantendo um domínio sobre a mãe que, muitas vezes, é manifesto de maneira agressiva. Efetivamente, a marca dessa subfase é a ambivalência da criança. Ao mesmo tempo em que usa de sua habilidade da livre locomoção para fugir da mãe e dela se afastar, a ansiedade de separação parece fazer um alerta de que sua autonomia está em perigo, fazendo-a evitar esse distanciamento, apesar de desejá-lo. A ambiguidade psíquica da criança nessa subfase levou Mahler a dividir a subfase de reaproximação em três momentos: reaproximação inicial, crise de reaproximação, solução individual dessa crise (Mahler, Pine & Bergman, 1977).
O período da "reaproximação inicial" se sobrepõe à fase de treinamento, iniciando aos 15 meses de idade. Nesse período, a criança passa a compartilhar com a mãe as descobertas que faz sobre o mundo, enchendo o seu colo de objetos que foi capaz de pegar por causa da livre locomoção. Com a consciência da separação gradualmente crescendo, a criança vai substituindo o interesse em explorar os objetos por uma busca por interações sociais, imitando o que outra criança faz. A interação social traz consigo alguns aspectos importantes para o desenvolvimento psíquico; alguns positivos, como a inclusão do pai como um objeto de amor e a capacidade de relacionar-se com outras pessoas; outros importantes, porém socialmente negativos, como o surgimento da raiva específica, do comportamento de agressão e a crise precoce da ansiedade de separação (Mahler, 1972b).
Por volta dos 18 meses, estendendo-se até por volta de 20, 22 meses, há a "crise de separação", na qual o bebê passa por um processo de vulnerabilidade psíquica, em que sua autoconfiança e autonomia sofrem severa diminuição. Sua gradativa separação física da mãe é substituída por uma conduta de reaproximação constante. A autora enfatiza que será a maneira como a mãe lida, de forma amorosa, com a ambivalência do filho o determinante para a formação da representação do eu na criança, evitando ou potencializando traços neuróticos. Segundo a autora, esse período de crise de reaproximação é a base para uma saúde emocional normal (estável) ou o desenrolar de uma patologia. A comunicação entre mãe e filho nessa fase parece mais prejudicada do que antes, não havendo mais uma comunicação simbiótica e um ajustamento de intenções. Torna-se necessário que agora o verbal tome conta dessa relação, pois somente a empatia pré-verbal não é mais suficiente (Mahler, 1972a).
O terceiro período da subfase de reaproximação foi chamado "resolução individual da crise de reaproximação". Ocorre por volta dos 21 meses e os 22, 24 meses. Nota-se que a criança parece encontrar uma distância ideal da mãe, o que leva a uma diminuição da resposta de ansiedade de separação. Mahler (1975) credita essa resolução à habilidade de nomear objetos, o que proporciona à criança a sensação de ser capaz de controlar o meio, a utilização do pronome pessoal "eu" e a capacidade de se nomear frente aos familiares. Também são apontados pela autora a internalização de regras (começo da constituição do superego) e a capacidade de expressar seus desejos e fantasias por meio das brincadeiras. No aspecto social, outros dois dados importantes desse momento são o estabelecimento, por parte da criança, de relacionamentos específicos com cada parental, mostrando que o pai já é perceptivamente diferenciado da mãe, a consciência da identidade de gênero e a descoberta das diferenças anatômicas. Mesmo com tantas aquisições importantes, ainda estamos diante de um momento de crise que deverá ser solucionado na subfase seguinte.
4.3.4 Subfase de individuação e consolidação de objeto
A quarta subfase vai dos 22, 24 meses aos 36 meses e envolve o desenvolvimento de funções complexas. A comunicação verbal nessa fase evolui e substitui a comunicação primitiva das fases anteriores. No aspecto lúdico, a criança já é capaz de fantasiar e brincar de faz de conta, e o universo adulto se torna seu maior interesse. Pelo fato de funções cognitivas estarem bem desenvolvidas nessa subfase, o tempo já é mais bem compreendido e, consequentemente, ao fim da subfase, a criança já está apta a esperar e tolerar melhor as frustrações. Essa noção é internalizada pelas idas e vindas da mãe. A presença constante da mãe ao final desta subfase já não é mais necessária, pois as funções do eu já estabeleceram a constância de objeto. Mahler (1975) considera que essa quarta subfase tem como função a aquisição efetiva de uma individualidade e a obtenção da constância de objeto. Esta última consiste na internalização de uma imagem mental do objeto mãe de tal maneira que, mesmo longe do campo visual, a criança ainda tenha tranquilidade de que ela continua a existir. Mais do que obter uma constância de objeto, é preciso, para se separar e individuar-se, que a criança adquira uma imagem mental interna e constante da mãe. Somente com essa aquisição é que estaria apta a se separar desta definitivamente. Segundo Mahler (1975), para que a criança estabeleça uma constância de objeto emocional é preciso primeiramente que ela desenvolva uma constância de objeto permanente.10
Para poder, no entanto, construir uma imagem interna da mãe, a criança precisa passar por diversos momentos da díade. Na simbiose, a mãe que satisfaz as necessidades do bebê se coloca em uma posição boa, ao passo que, quando começa a frustrar o filho, coloca-se numa posição má. Ultrapassada a fase simbiótica, a criança é capaz de perceber que a mãe boa e a mãe má são uma só, conseguindo compreender que pode ter sentimentos ambivalentes pela mesma pessoa. A frustração e a inserção da criança no princípio da realidade é que possibilitarão, entre outras coisas já discutidas, que o não11 seja compreendido pela criança quando na fase de locomoção. Será por volta dos 3 anos de idade (depois da consolidação da constância de objeto físico e, consequentemente, da constância de objeto libidinal) que a mãe poderá ser substituída por outro adulto, ou seja, que a criança será capaz de separar-se fisicamente de sua mãe. Ou seja, será por volta do terceiro ano de vida que a criança estará novamente pronta para se separar da mãe, como ensaiou fazer na subfase de treinamento (Mahler, Pine & Bergman, 1977).
Outro comportamento observado nas crianças nessa subfase, especialmente devido ao processo de individuação, é a resistência ativa ao comando dos adultos. Isso porque o senso de identidade está se consolidando, e tudo o que difere do que a criança crê, mesmo que de forma primitiva, precisa ser negado por ela para não se tornar uma ameaça. Aos 3 anos de idade, já é possível predizer, portanto, se o desenvolvimento psíquico tende a evoluir para uma configuração edípica normal ou para uma conduta neurótica. Para a autora, "essa fase de separaçãoindividuação está próxima da experiência de um segundo nascimento, sendo [ ] um rompimento da membrana simbiótica [ ]" (Mahler, 1983, p. 8).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Poucas teorias que se debruçam sobre o psiquismo infantil, especificamente sobre o psiquismo do bebê, descrevem com tanta clareza e detalhes o que se passa mês a mês no desenvolvimento emocional precoce. Sobre o primeiro mês de vida, especificamente, há pouca literatura.
A premissa de que o nascimento biológico não coincide com o psicológico sustenta as argumentações de Margaret Mahler sobre o desenvolvimento psíquico precoce. Em sua teoria, uma posição de destaque é atribuída à relação mãe-bebê e, consequentemente, aos fatores ambientais, nas vivências emocionais precoces. Entretanto fica claro que os fatores hereditários atuantes na estruturação de personalidade da criança não são desconsiderados. Ao comentar a etiologia das psicoses infantis, Mahler (1983) diz o seguinte sobre o papel desempenhado por tais fatores:
No que tange à questão de colocar a etiologia da psicose infantil em fatores hereditários versus traumáticos e de frustração, podemos afirmar ser difícil determinar onde se localiza o distúrbio grave na psicose infantil precoce; se foi causado por uma falta de empatia ou patologia materna, por grande desvio inato do ego do bebê, por uma inerente falta de contato com o meio ambiente ou por descabida necessidade de fusão parasitário-simbiótica com o adulto (pp. 25-26).
Margaret Mahler apresenta uma rica teoria sobre o desenvolvimento psíquico precoce amplamente sustentada em observações e comparações entre grupos de crianças e mães. Sua formação múltipla, em medicina, pediatria e psicanálise, permitiu-lhe obter uma visão mais abrangente dos fenômenos psíquicos do desenvolvimento. Sua metodologia de pesquisa inovadora lhe possibilitou unir hipóteses psicanalíticas a uma metodologia empírica original e, assim, enriquecer enormemente as descrições do desenvolvimento infantil realizadas, até então, pelos os autores psicanalíticos. Acreditamos que suas hipóteses teóricas, assim como o método de tratamento por ela proposto, merecem maior destaque junto às teorias sobre o desenvolvimento psíquico precoce.
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Texto recebido em 19 de outubro de 2015 e aprovado para publicação em 15 de setembro de 2016.
* Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).E-mail: annariani@hotmail.com..
**Doutora em Filosofia, professora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Filosofia na UFJF, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br.
1 O atendimento do bebê e da criança pequena juntamente com os pais, no mesmo ambiente terapêutico, ampliou a compreensão do desenvolvimento emocional primitivo bem como possibilitou a Mahler desenvolver sua teoria sobre as psicoses nos bebês.
2 A primeira data indica o ano de publicação original da obra, e a segunda, a edição consultada pelo autor e só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.
3 Tal autor estudou exames eletroencefalográficos de bebês com 3 a 4 semanas de vida e descobriu um quadro que denominou crise fisiológica da maturação. Essa crise mostra um aumento significativo das percepções externas por parte do recém-nascido e que, do ponto de vista desenvolvimentista, marca o rompimento da condição autística e o início da condição simbiótica com a mãe, que passa a desempenhar uma função protetora contra esses estímulos externos.
4 A resposta sorridente mencionada por Mahler é hipótese do médico psicanalista austríaco Renè Spitz (1987). A questão mnêmica foi estudada por esse autor a partir do sorriso do bebê diante da figura da mãe, numa resposta de reconhecimento àquele que estava na sua frente. Isso possibilitou a conclusão de que a mãe é eleita pelo filho como primeiro objeto de amor, considerando que o amor a si mesmo que o bebê apresenta na vivência do narcisismo primário absoluto não o faz objeto de amor dele mesmo. Posteriormente, a mãe é substituída pelo "objeto transicional" teorizado por Winnicott (2000), que será estudado mais adiante neste trabalho. Assim, Spitz (1987) denomina a fase simbiótica como pré-objetal ou precursora do objeto devido ao fato de nela ocorrer o primeiro contato do bebê com o mundo, o qual começa e termina na relação dual estabelecida com seu objeto, a mãe.
5 Os dois artigos citados pela autora são On early infantile psychosis: the symbiotic and autistic syndromes e "On the significance of the normal separation-individuation phase: with reference to research in symbiotic child psychosis", ambos publicados em 1965.
6 Sobre a expectativa confiante, Mahler (1982) faz as seguintes considerações: "Este fenômeno da 'expectativa confiante', bem como seu oposto ansiedade a estranhos mais que ótima e 'desconfiança básica' contribui e relaciona-se com atitudes posteriores na vida, embora a interferência de vicissitudes de drive e defesa exercerão, naturalmente, grande influência, podendo chegar a alterar tais padrões" (Mahler, 1982, p. 137).
7 Esse processo de desabrochamento diz respeito a uma observação feita por Mahler de que, nessa subfase de diferenciação, as expressões faciais dos bebês se modificam, estando constantemente num estado de alerta para as experiências do mundo externo.
8 Na tradução da Editora Artes Médicas, a fase de treinamento é denominada fase de "exploração".
9 O termo reabastecimento emocional foi proposto por Furer (1964). Quando começam a engatinhar, os bebês que passaram pela fase simbiótica de forma satisfatória movimentam-se livremente, sem demandar com frequência o contato corporal com a mãe. Eles estabelecem um comportamento de ir e vir ao encontro da mãe, de tempos em tempos, para um abastecimento libidinal.
10Para Mahler, o objeto permanente estaria relacionado ao conceito de permanência de objeto de Piaget. Ou seja, há uma diferença entre constância de objeto e constância de objeto libidinal ou emocional. Segundo Piaget (1937), aos 18, 20 meses, a criança já está com a constância de objeto internalizada, mas os objetos aos quais o autor se refere são físicos e inanimados, embora possam ser transitoriamente catexizados, como o objeto transicional. O objeto libidinal não poderia, segundo Mahler (1975), ser comparado ao objeto de Piaget, mas ela admite que para que haja uma constância do objeto libidinal é preciso que anteriormente a criança já tenha adquirido a habilidade psíquica da constância de objeto físico.
11 Spitz (1987) acredita que o não é um dos organizadores do psiquismo da criança, pois ele é a primeira representação efetiva da lei e, portanto, do outro, reforçando a ideia característica da fase de individuação de que ela e a mãe são pessoas separadas, uma vez que a ordem vem de fora e fere seu narcisismo, sua vontade.