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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.26 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2020
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n1p441-459
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2020v26n1p441-459
Pesquisar/intervir na educação básica: o grupo como resistência
Research/intervention in basic education: the group as resistance
Investigación/intervención en educación básica: el grupo como resistencia
Roberta Carvalho Romagnoli*
Resumo
Este artigo coloca em discussão a potência do dispositivo grupal na produção de dados da pesquisa "Educação básica e família: reproduções e invenções no programa Escola Integrada de Belo Horizonte (PEI)", que busca conhecer as relações estabelecidas pelos coordenadores e alunos em formação docente nas oficinas. Trata-se de um programa de formação docente implantado e mantido pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, com base na ampliação da jornada escolar, com estudantes universitários de diferentes áreas do conhecimento. Este estudo tem a pesquisa-intervenção como metodologia e as ideias de Deleuze e Guattari como marco teórico, em diálogo com as ideias de Bourdieu. Com base nas discussões do território escolar, no que se refere à relação com a família e à violência, o grupo aparece aqui como resistência, como um dispositivo que favorece a emergência do coletivo na criação de processos de subjetivação inventivos.
Palavras-chave: Educação básica. Dispositivo grupal. Intervenção psicossocial.
Abstract
This article brings into debate the importance of the group device in the production of data from the research "Basic education and family: reproductions and inventions in the Belo Horizonte Integrated School Program", which means to know the relationships established by coordinators and students in teacher training in the workshops. Actually, It is a teacher training program implemented and maintained by the Belo Horizonte City Hall, based on the expansion of the school day extension, with university students from different areas of knowledge. The study applies the researchintervention methodology and the ideas of Deleuze and Guattari as a theoretical framework, interrelated with Bourdieus ideas. Based on the discussions of the school territory, regarding the relationship with the family and violence, the group appears here as resistance, as a device that favors the emergence of the collective in the creation of inventive processes of subjectivation.
Keywords: Basic education. Group device. Psychosocial intervention.
Resumen
En este artículo se discute la importancia del dispositivo grupal en la producción de datos de la investigación "Educación básica y familia: reproducciones e invenciones en el programa Escuela Integrada de Belo Horizonte - PEI", que busca conocer las relaciones establecidas por los coordinadores y alumnos de la formación docente en los talleres. Se trata de un programa de formación docente implementado y mantenido por el Ayuntamiento de Belo Horizonte, basado en la expansión de la jornada escolar, con estudiantes universitarios de diferentes áreas de conocimiento. Con la ampliación del recorrido educativo de los alumnos, con acciones formativas en las diferentes áreas del conocimiento. Este estudio tiene la investigación-intervención como metodología y las ideas de Deleuze y Guattari como marco teórico, en diálogo con las ideas de Bourdieu. A partir de las discusiones del territorio escolar, sobre la relación con la familia y la violencia, el grupo aparece aquí como resistencia, como un dispositivo que favorece el surgimiento del colectivo en la creación de procesos de subjetivación inventivos.
Palabras clave: Educación básica. Dispositivo de grupo. Intervención psicosocial.
1. A ESCOLA INTEGRAL EM TEMPO INTEGRAL
A Educação em nosso país ainda encontra uma série de impasses na busca da universalização do ensino e da erradicação do analfabetismo, por meio de ações e práticas baseadas no princípio constitucional da corresponsabilidade entre Estado, família e sociedade, para a garantia de direitos de crianças e jovens. Nesse contexto, observamos hoje uma tendência à ampliação da jornada escolar no ensino fundamental, recomendada pela legislação e fomentada pelas políticas públicas. Esse estímulo ocorre desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), com a previsão da ampliação progressiva dessa jornada, na direção do tempo integral. Nessa vertente, em 2007, foi criado, pelo governo federal, o Programa Mais Educação (PME), que, amparado por dispositivos legais, fixa objetivos de ampliação dos programas de tempo integral na rede pública de ensino e a melhoria de atendimento às necessidades dos alunos (Ministério da Educação, 2009). Seguindo esse caminho, o Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, estabelece metas quantitativas para essa expansão, esperando que, em dez anos, haja, no mínimo, 50% das escolas públicas neste regime (Lei nº 13.005/2014). São leis, programas e planos que insistem no aumento do período no qual os alunos permanecem na escola.
Em um país com grandes desigualdades sociais, a educação em tempo integral tem sido um desafio. Já nas primeiras décadas do século XX, Cavaliere (2010) aponta que havia correntes liberais, representadas pelos diversos movimentos de renovação da escola, que apostavam na educação integral pela sustentação de práticas democráticas, cujos pensadores acreditavam nos projetos educacionais que buscam o aprofundamento no caráter público da educação escolar. Como expoente desse movimento, temos o educador Anísio Teixeira, cujas ideias se opunham à Ação Integralista Brasileira, que defendia uma educação regeneradora da moral social baseada nos seguintes pilares: sacrifício, sofrimento, disciplina e obediência, reconhecendo a importância dos direitos da família e da religião. Os integralistas se opunham à concepção radical de ensino público, com a sustentação do privatismo em apoio às escolas católicas. Postura que tem reflexos até hoje na educação brasileira, com a supremacia do ensino privado.
De acordo com a autora, a primeira corrente e sua compreensão da escola nova é a concepção pedagógica que mais tem influenciado as políticas de educação integral, em tempo integral, no Brasil. O escolanovismo, em defesa de um sistema público de ensino para o País, em todos os níveis e com qualidade, baseia-se em uma aposta na educação como um processo contínuo de vida e descoberta, de crescimento. Nesse panorama, Cavaliere (2010) destaca que, para Anísio Teixeira, a escola seria um dispositivo essencial para a modernização. Com métodos ativos de ensino-aprendizagem, essa instituição valoriza a liberdade e interesse da criança, e cria as condições básicas para o aprendizado (Cavaliere, 2010). A expansão dos ideais fundados em bases escolanovistas contribuiu para que novas demandas se inserissem no pensamento educacional brasileiro contemporâneo, o que resultou na construção de políticas públicas educacionais em uma perspectiva de Educação Integral de Tempo Integral, e sua legitimação nos ordenamentos jurídicos.
Na base desse debate, ainda nas décadas de 1920 e 1930, já havia uma grande apreensão com a exclusão social e os problemas causados pela industrialização e urbanização, sendo a escola uma ferramenta de mobilidade social e de diminuição dessas desigualdades. Preocupação partilhada pelas duas correntes que vimos acima: as elites defendendo ações higienistas para libertar as classes populares de sua ignorância, e os pensadores democráticos que acreditavam que a educação integral opera para a reconstrução das bases sociais sustentada por indivíduos formados para a cooperação e a participação (Cavaliere, 2010). O efeito dessa cisão está na base da divisão entre escolas católicas, destinadas a quem pudesse pagar, e escolas públicas, destinada aos pobres. Nessa divisão, o Brasil vem se mostrando um campo rentável para investimentos de grupos nacionais e estrangeiros, especialmente no que se refere à educação (Cavaliere, 2014).
Essa realidade de nosso país, no campo da educação, colabora com a exclusão social. Segundo Carvalho, Ramalho e Santos (2019), a política de ampliação da jornada escolar na perspectiva da educação integral, presente em toda a América Latina, enfatiza a relação entre a educação e a pobreza, pois algumas das condições de vulnerabilidade é a não ascensão na escola e a educação irrelevante ou ineficaz. Nesse contexto, as políticas de educação podem auxiliar na redução dos direitos das crianças e dos jovens pobres. Certamente os modelos de governos neoliberais não solucionaram os graves problemas sociais constitutivos deste continente; ao contrário, aumentaram as desigualdades, a exclusão social e a violência. Problemas que afetam diretamente esse público, propenso a vulnerabilidades, com grande risco social. Assim, essa política tanto apoia a melhoria da qualidade da educação quanto é um importante dispositivo de proteção social, ao ampliar, prioritariamente, a jornada escolar de crianças e jovens pobres.
Examinando os fatores que fomentam a ampliação da jornada escolar nas escolas públicas, Resende, Canaan, Reis, Oliveira, e Souza (2018) afirmam que eles existem tanto no âmbito individual quanto no campo social. No que se refere ao domínio individual, as autoras apontam a "busca por melhores resultados da ação escolar sobre os indivíduos, pelo aumento do seu tempo de exposição a essa ação, ou as mudanças nas concepções de educação escolar, com a ampliação do papel da escola na formação dos sujeitos" (Resende, Canaan, Reis, Oliveira, & Souza, 2018, p. 436). Por outro lado, na dimensão social, deparamo-nos com as demandas das famílias, que necessitam de apoio para levar a cabo seu papel de proteção social. Isso porque o aumento da presença/inserção da mulher no mercado de trabalho, a extensa jornada do par parental, os diferentes arranjos familiares com dinâmicas próprias e singulares, a condição de vida urbana com todos os seus atravessamentos, entre outros, fazem desse grupo também um solicitante da escola em tempo integral, como uma alternativa diante dessas transformações.
Atenta à demanda nacional de ampliação dos programas de tempo integral na rede pública de ensino para a melhoria da qualidade da educação, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH) elaborou, em 2007, o Programa Escola Integrada (PEI), por meio da ampliação da jornada educativa dos estudantes, com ações de formação nas diferentes áreas do conhecimento. Integrando distintas esferas governamentais, escolas, instituições de ensino superior e organizações não governamentais, o programa tem como objetivo assegurar nove horas diárias de atendimento educativo para os estudantes, mediante atividades de acompanhamento pedagógico, cultura, esportes, lazer e formação cidadã (Belo Horizonte, 2012). Esse programa associa-se à escola regular, voltada para competências intelectuais e aprendizagem de conteúdos escolarizados, e "baseia suas ações na intersetorialidade das políticas, sobretudo as de educação e saúde, considerando que, de fato, a escola é local onde se pode verdadeiramente atingir as crianças e jovens de forma mais abrangente" (Barros, 2015, p. 196). Além disso, a proposta se sustenta na lógica da "cidade educadora", utilizando espaços naturais e culturais da cidade como extensão da escola para a ampliação do conhecimento dos alunos participantes do programa.
Desde o ano de sua criação, em 2007, a universidade na qual trabalho firmou um convênio com a Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (SMED) para atuar junto ao PEI, por meio de ações educacionais nas escolas municipais, com oficinas desenvolvidas por estudantes universitários dos cursos de licenciatura, futuros professores em formação. Essas oficinas buscam complementar o processo de ensino e aprendizagem nas escolas municipais e também propiciar a experiência desses estudantes com a escola pública. Por ações educativas complementares pretendendo a educação integral, as oficinas contemplam as seguintes áreas temáticas: Leitura e Escrita e seus múltiplos usos, Esporte e Lazer, Meio Ambiente e Cidadania, Acompanhamento Pedagógico, Matemática Lúdica e Libras (Barros, 2015). Para os alunos da escola pública, tais oficinas propiciam, além do conteúdo específico, momentos de experiência cidadã. Em contrapartida, para os graduandos, a participação no PEI constitui uma forma de inserção no mercado de trabalho, em uma perspectiva distinta do estágio curricular, já que têm certa autonomia e protagonismo. Hoje o PEI tem em torno de 70 graduandos dos cursos de Ciências Biológicas, Educação Física, Geografia, História, Letras, Matemática, Pedagogia e Psicologia.
Entretanto a efetivação do aumento da jornada escolar não se dá de forma simples e remete tanto a aspectos objetivos do cotidiano escolar, tais como espaço físico, higiene, alimentação, entre outros, quanto à divisão de trabalho educacional entre família e escola, cujas permutas ao longo do tempo têm gerado tensões entre as duas instituições. Esses conflitos também se dão nas relações dos estudantes universitários com os professores, com as famílias dos alunos, com o cotidiano da escola. Nesse contexto, insere-se a pesquisa-intervenção Educação básica e família: reproduções e invenções no Programa Escola Integrada de Belo Horizonte (PEI), que busca conhecer as relações estabelecidas pelos coordenadores e estudantes universitários em formação docente nas oficinas, problematizando seus impasses e suas tensões.
Em texto recente, o professor da Universidade de Lisboa, Jorge Ramos do Ó, ao questionar o modo dominante da escola na sociedade ocidental, reprodutivo e homogeneizante, convida o leitor a desvelar as idealizações e as barreiras presentes nesse espaço social, muitas vezes vivenciadas como intransponíveis (Ó, 2018). Fazemos ao leitor o mesmo convite, com base nos resultados preliminares dessa pesquisa, que rastreia essas tensões e possibilidades no texto que se segue, na tentativa de manter a complexidade das relações do PEI com a escola.
2. INDICAÇÕES METODOLÓGICAS
Não só a escola ainda insiste na reprodução e na semelhança (Ó, 2018). Ainda há uma forma dominante de se fazer ciência na qual há uma forte dissociação da produção de conhecimento com a realidade, uma inquestionável separação do sujeito e objeto operando para uma simplificação assídua do que se pretende estudar. Por outro lado, há também uma ciência, ainda minoritária, que se empenha em sustentar a dimensão relacional e interativa para conhecer o mundo que nos cerca, abrindo-se para o heterogêneo e o plural, e preocupada em contribuir para as questões pesquisadas. À margem, essa ciência entende que a produção de conhecimento é uma prática social, atravessada por uma realidade histórica, com forte preocupação política, implicada com respostas provisórias e circunstanciais, compreendendo que as problemáticas atuais envolvem estudos e pesquisas que não se reduzem à racionalidade e devem se haver com a complexidade (Santos, 2002).
Considerando tanto essa visão minoritária quanto as demandas sociais de contribuição da academia às problemáticas da realidade, este estudo se insere na linha de pesquisa-intervenção e se concretizou a partir de uma demanda da própria universidade que tem convênio com a PMB no PEI. Essa metodologia é feita de forma participativa, alterando a forma de o pesquisador se relacionar com o campo e com o processo da pesquisa, uma vez que todo conhecer é um fazer. Assim,
Garantir a participação dos sujeitos envolvidos na pesquisa cartográfica significa fazer valer o protagonismo do objeto e a sua inclusão ativa no processo de produção de conhecimento, o que por si só intervém na realidade, já que desestabiliza os modos de organização do conhecimento e das instituições marcados pela hierarquia dos diferentes e pelo corporativismo dos iguais (Kastrup & Passos, 2013, p. 270).
Nessa direção, o próprio problema de pesquisa foi construído com a população demandante. Fizemos reuniões iniciais com a equipe de coordenadores da PUC Minas e com graduandos das diversas áreas que integram o projeto, escutando as questões que dificultam a sustentação efetiva das ações propostas pelo PEI. Entre esses impasses, encontra-se a relação família-escola, grande complicador do cotidiano do PEI. Nessa relação, alguns pontos foram levantados: o medo de colocar questões para as famílias, pois muitas delas estão envolvidas com o tráfico; a falta de diálogo e a indiferença ante os problemas dos filhos; a percepção da violência doméstica que, muitas vezes, se traduz em agressões no espaço escolar; o uso excessivo de medicação com a aprovação dos pais; a falta de apoio da gestão para a convocação das famílias, entre outros.
Diante das tensões constantes e da real necessidade de outras leituras, demos continuidade ao processo, com um grupo de estudos com os estudantes das licenciaturas que participam do PEI, os graduandos da Psicologia, a coordenadora do PEI e alguns professores que orientam esses estudantes. No primeiro semestre, nossos encontros foram mensais, e esse ano, após a aprovação da pesquisa pelo CNPq, nossos encontros são quinzenais. Iniciamos nosso estudo com a temática família-escola, mas outros pontos foram "problematizados à medida que as relações entre pesquisa, agir e intervir fazem emergir novas questões entre pesquisadores, pesquisados e contexto de pesquisa" (Amador, Lazzarotto, & Santos, 2015, p. 241). Assim, diante do que foi surgindo, discutimos também a violência, o que não estava previsto em nosso projeto inicial.
Como a pesquisa-intervenção atua como um dispositivo que coloca problemas, busca o coletivo de forças em cada situação e o conhecimento emerge do plano de forças que compõe a realidade ora operando em prol do que já estabelecido, ora operando a favor de agenciamentos produtivos, pensamos que esse grupo seria um bom artefato para desarticular as práticas e os discursos reprodutivos, elucidar os processos complexos, as relações despotencializadoras que impedem a invenção. É nessa trama que apresentamos as reflexões sobre as temáticas estudadas e o grupo como vetor de transformação.
3. RELAÇÕES DE PODER: A FAMÍLIA E A VIOLÊNCIA
Como o estudo é feito no âmbito da formação docente e usamos um grupo de estudos para a produção de dados, para acompanhar esses processos, acreditamos que
Nenhuma aprendizagem deveras digna desse nome pode evitar a viagem. São os limiares que nos fazem operar laboriosamente para fundar passagens transparentes e virtuais no seu interior, como ainda, muito importante, o poder descobrir na poética do deslocamento e do afastamento o grande efeito que articula as instituições de saber e conhecimento (Ó, 2018, p. 7).
Para nos deslocarmos e nos afastarmos dos modelos abstratos e dos cerceamentos, abordamos a escola como um território, para além do espaço físico de suas instalações. A escola como uma rede tecida nas conexões estabelecidas entre as subjetividades, espaços relacionais, de vida, de permutas, de sustentação e ruptura de vínculos cotidianos que constroem sentidos e significados para os que lá trabalham e estudam.
O território escolar apresenta-se como algo vivo, dinâmico, para além de captura abstrata que ali possa existir, seja de modelos idealizados, de lugares cristalizados ou de limites, obstáculos. Dialogando com as ideias de Deleuze e Guattari (1996), o território é o lugar do movimento, de ações de entrada e saída, que se engendram em processos de territorialização, desterritorialização e (re)territorialização. Sibertin-Blanc (2010), ao apontar que a obra deleuziana trata de devires, processos irrepresentáveis de diferenciação e variação afirma que tal insistência conduz o filósofo a uma ênfase nas relações espaciais, mais que temporais, em que o espaço, para além das questões empíricas, torna-se uma maneira de pensar e colocar problemas. Com base nessa lógica espacial, mutações se fazem por conexões exteriores, sem que haja um eixo explicativo ou um modelo transcendente, sustentando dimensões que se deslocam sobre um plano de imanência. Nesse raciocínio, não podemos reduzir um território a uma leitura, pois seus deslocamentos se fazem a partir do que está ordenado, classificado e é captado pelo visível, agenciando com a velocidade do intensivo, por meio de forças conectivas. Assim, o território é um campo energético atravessado por diferenças de gradientes e de limiares, aumentos e diminuições de intensidade, processo que coloca em relação espaços e investimentos subjetivos, individuais e coletivos e associações imprevistas que o fazem deslocar.
Essa poética do deslocamento, que impulsiona nossa viagem pelo grupo de estudos e pelos temas escolhidos para serem estudados, é mantida por modelos já cristalizados no território, mas também escapa nos fluxos potentes que podem trazer outras dimensões; pela imanência da repetição e da invenção, mediante a aposta de que toda realidade é em si complexa, contendo, ao mesmo tempo, modelos estratificados e forças conectivas, formas e forças (Deleuze & Parnet, 1998). Isso porque o território escola-universidade que se forma no PEI é composto por segmentos, linhas duras que formatam, homogeneízam no momento da territorialização, estratos compostos pela vigilância constante, pela padronização de condutas e da forma de administrar o conhecimento, pelas regras e rotinas endurecidas que buscam igualar conteúdos e alunos. No entanto esse mesmo território é composto de linhas flexíveis que permitem captar o que está fora dele e se desestabilizar, para deslizar em linhas de fuga, em sua desterritorialização. Linhas que se fazem nas forças que circulam nas relações entre os alunos e entre eles e os professores, nos conteúdos que abrem mundos, sustentadas por agenciamentos, conexões com esse fora que nos trazem o processo, o movimento. Plano de forças e de funcionamentos distintos que compõem as associações que fazemos nesse território também com nossa pesquisa.
Vamos então às idealizações e barreiras intransponíveis, presentes nesse território, como também assinala Ó (2018), linhas duras que sustentam a territorialização da escola e que se diluem nas viagens que estamos produzindo com esses meninos e com os professores que os orientam, lado a lado, no estudo aqui apresentado. Em nossos encontros com eles, por um dispositivo grupal que utilizamos como um dos procedimentos metodológicos para a produção dos dados da pesquisa, surgiram, até o momento, duas questões entendidas como insuperáveis pelos alunos que participam do PEI: a violência e a relação com a família.
Em intercessão com a Sociologia de Bourdieu, cujas ideias desvelam as relações de poder e as hierarquias que permeiam o território escolar, podemos afirmar que, como este é construído, não é feito para a transformação, mas para a reprodução, para a busca incessante de modelos e padrões. Desse modo, como assinala Ortiz (1994), o sociólogo propõe falar de espaço social e não de classe social, flexibilizando o conceito marxista, incorporando a heterogeneidade, mas mantendo as relações de poder e de desigualdade social. A posição que o sujeito ocupa nesse espaço vai determinar suas ações e como se expressa na linguagem, ou seja, o espaço social engendra habitus. A noção de espaço social permite afirmar uma posição relacional, ou seja, comporta espaços móveis sempre considerados em relação aos seus. O que possibilita ou não aproximações e distanciamentos dentro de um mesmo espaço social refere-se não somente a questões econômicas, mas também a bens culturais, em uma dimensão na qual o capital cultural que importa, que é valorizado, é o capital cultural das camadas dominantes. Tendência que existe em nosso país desde as décadas de 1920 e 1930, com as ideias defendidas pelas elites na Ação Integralista Brasileira, que desqualificavam o conhecimento das classes populares.
Infelizmente, o bem cultural que circula na escola, embora seja pregoada uma universalização do ensino, ainda não está ao alcance de todos, o que causa tensões no cotidiano. Como nos disse um aluno de História que faz uma oficina de cultura africana: "O grande choque é entre culturas diferentes. Não conhecemos o mundo dos meninos. Não estamos preparados para isso". Mas para que estamos preparados? Baseadas em nossos modelos e em nossas linhas duras, para julgar e para desqualificar crianças e adolescentes vulneráveis que, com certeza, não tiveram as mesmas oportunidades que nós. Em suas incapacidades, os alunos são vistos como inferiores, marcas que transitam no dia a dia de cada uma das escolas e assustam os professores em formação, estagiários do PEI que compõe o grupo. Esses incômodos foram enunciados várias vezes em nossos encontros.
Então, nesse contexto, o que se passa ainda em nossas escolas públicas, formadas basicamente pelas camadas populares, por alunos e famílias vulneráveis que têm outras vivências sociais? Queixas assíduas e constantes de violências que adoecem professores, matam alunos, agridem funcionários, dando consistência a sensações cada vez mais sedimentadas de impotência. Na interface das questões macrossociais que a produzem, em uma sociedade marcada pela desigualdade e exclusão social, e que desconsidera reiteradamente as condições de produção da vulnerabilidade, identificamos que a própria escola produz violência nas relações sustentadas pelo saber e sua transmissão. Isso aparece na fala do aluno de História que ministra a oficina de jogos e diz da professora de Educação Física que, com o intuito de conter a indisciplina, grita aos alunos: "Vocês não serão ninguém na vida! Não sabem nem falar português e nunca vão saber inglês!". Desse modo, a escola não somente reverbera a violência presente em nossa sociedade, nos territórios marcados pelo tráfico de drogas, nas lutas entre as gangues, mas também produz violência, violência simbólica, como denomina Bourdieu, que não se exprime pela força física, mas pela linguagem, pelo simbólico, com a vontade de humilhar, de desqualificar o capital cultural dessas crianças e jovens, como colocado pelo grupo em várias situações (Ortiz, 1994).
No ciclo de aprendizagem, o desrespeito circula, gerando verdades, certezas, desconhecimentos, raivas e agressões, em busca da idealização de como os alunos deveriam se portar, de como deveriam falar, em uma realidade familiar atravessada pela luta diária pela sobrevivência. Desqualificação que tem como referência a cultura das classes dominante, com sua linguagem, suas aspirações e seu modo de se comportar. A posição que ocupamos com relação ao capital econômico e ao capital cultural vai determinar nosso habitus que é diferente em cada espaço social, como vimos acima. No entanto, em nome de uma pretensa igualdade e idealização, humilham-se corpos "ignorantes" e nada silenciosos, que não estudam inglês, não visitam museus, mesmo sendo gratuitos, que não circulam pela cidade e suas praças, que não se autorizam a ir a cinemas.
Naturalizam-se as agressões dos professores como se fossem adequadas perante o comportamento desses corpos ainda em formação, como diz o professor português (Ó, 2018). Em uma revisão sistemática da produção científica sobre violência da escola no Brasil, pesquisadores afirmam que, infelizmente, a violência simbólica é a mais utilizada pelos professores contra o aluno, apesar de sua invisibilidade (Silva & Silva, 2018). Então, é isso que uma escola deve ensinar?
"Mas também a violência é culpa das famílias desses meninos, com seus arranjos extravagantes", escutamos de uma professora presente em uma palestra que fizemos na Secretaria de Educação. Outra linha dura que amarra esse território e cria significados para as famílias das camadas baixas, que não se adéquam à família nuclear. Ao estudar a mortificação da escola, com sua invariabilidade e uniformidade, Ó (2018) mostra como essa instituição, ao longo dos tempos, opera para emperrar o pensamento livre e desenfreado, o desejo do dissemelhante. Faz parte desse procedimento também a padronização da família. A desqualificação das famílias dos alunos transita no espaço escolar, e estas são vistas, pela diretora, pelos professores e funcionários, como "desestruturadas", "desorganizadas" e responsáveis por boa parte dos problemas da escola, seja a própria violência, seja o fracasso escolar, seja pela negligência com os filhos e sua educação. Cavaliere, Coelho, e Maurício (2013) ressaltam que um dos focos desse conflito é o dever de casa, interface que faz a conexão das práticas educativas com o espaço privado da família. A partir dessa atividade, as autoras revelam a difusão de uma desconfiança contínua que ocorre tanto entre os professores como entre os pais, mediada por percepções pejorativas e negativas da escola acerca das famílias.
Raramente se leva em consideração a condição da família como potencializadora de ações, como também não se busca na escola a abertura a outro saber, a outra linguagem que não precisa ser desqualificada para que se aprenda. Essa é mais uma barreira vivida como intransponível. De fato, para aproximar-se dessas famílias e com elas fazer parceria, trocas de cuidado e pontos de vista, é preciso sustentar um aprendizado da diferença, uma vez que os professores geralmente originam-se das camadas médias baixas, cujas famílias ainda seguem, mesmo com a presença dos novos arranjos, o padrão nuclear, pelo menos imaginariamente. Ao estudar os efeitos da circulação do modelo de família nuclear em meio aos agentes das políticas públicas, Romagnoli (2015) afirma que este pode levar a processos de culpabilização e incapacitação, ao desconsiderar condições concretas de vulnerabilidade por que passam essas famílias e suas estratégias de organização frente a tais condições.
De novo, dialogamos com Bourdieu. Ao analisar a indisciplina e violência na escola, Silva Neto e Barreto (2018) apontam para o distanciamento da cultura valorizada pela escola, com seu ideal de produção intelectual, artística, social e estética, que nada tem a ver com a cultura de parte significativa de seus alunos, historicamente expropriados desse mesmo ideal. "A imposição da cultura da escola a toda a população pela escolarização maciça revela-se, muitas vezes, traumática e violenta, especialmente porque essa instituição tende a ignorar e a se apartar das vivências sociais dos alunos e de suas famílias" (Silva Neto & Barretto, 2018, p. 5). Cultura que, como vimos, também naturaliza a família nuclear com modelo ideal de família.
De fato, devemos estar atentos a nosso trabalho com sujeitos tradicionalmente classificados entre as populações vulneráveis, pois a nossa posição certamente sustenta privilégios que, espontaneamente, convoca hierarquizações que usualmente solidificam essas diferenças e submetem aqueles que já têm uma condição desfavorecida. Como salientam Silva Neto e Barretto (2018, p. 7), "As relações de poder são fundamentais para se compreenderem as temáticas da indisciplina e da violência escolar. As hierarquias produzidas pelas desigualdades de gênero, de raça, de classe e geracionais estão presentes na sociedade, mormente em sociedades tão desiguais como a brasileira". E o que fazemos com isso?
Embora os temas tratados no grupo de estudos tenham sido apresentados brevemente aqui, na verdade, para além deles, houve forças experimentadas em nossos encontros que nos convocaram a repensar as hierarquias e os julgamentos, bem como a enfrentar essas barreiras e obstáculos. Isso porque, no estudo e na discussão desses pontos, o grupo em si traz a criação de possibilidades, de repensar as práticas de estágio e de construir novas formas de enfrentamento para essa problemática.
4. O DISPOSITIVO GRUPAL NA PRODUÇÃO DE DADOS
Entre linhas duras e segmentos que tendem a se reproduzir, encontram-se também deslocamentos, vividos de forma inicial e provisória, na produção de conhecimento/intervenção, a partir da importância do coletivo e do dispositivo grupal em uma tentativa de convocar levezas e conexões com a vida. Então, na produção de dados da pesquisa, trabalhamos com o grupo de estudos mencionado anteriormente, que consideramos como um dispositivo de formação de futuros professores e psicólogos que busca sustentar um campo de problematização em meio às formas e forças da educação. Dispositivo de resistência à reprodução e ao assujeitamento, às barreiras examinadas no item anterior e que produz subjetividades ativas e inventivas.
Em diálogo novamente com Deleuze (1996), entendemos que o dispositivo é um agenciamento, um processo de conexões e engrenagens múltiplas, que busca articular elementos que vêm de diversas procedências e de diferentes naturezas. Ao articular as linhas de saber, poder e subjetivação, ocorrem, no dispositivo, processos de produção e de reprodução ligados a essas linhas e este "pode ser entendido como uma máquina de produção de discursos e de açõesrelações, em que se faz 'falar' e se faz 'ver', produzindo enunciações, visibilidades distintas, acontecimentos e modos de ser" (Hur, 2012, p. 21). Nessa perspectiva, o dispositivo (em nosso caso, o grupo de estudos) é uma máquina que subjetiva, que produz processos de subjetivação, convoca modos de vida em meio a linhas de saber e poder.
Um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos que se destitua este de toda interioridade e mesmo de toda a identidade. A subjetivação sequer tem a ver com a "pessoa": é uma individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma vida ). É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. É uma dimensão específica sem a qual não se poderia ultrapassar o saber nem resistir ao poder (Deleuze, 1992, p. 123).
Então, compreendemos, de maneira parcial e em uma leitura circunstancial, que esse grupo-dispositivo que agencia diferentes atores, de áreas distintas e classes institucionais variadas dentro da universidade, faz-se por linhas de poder e de saber; em alguns momentos, reproduzindo todas as hierarquias presentes nessa instituição e, em outros, buscando funcionar transversalmente, engendrar novos possíveis, resistindo à reprodução das linhas duras do território escolar. Entre as linhas de reprodução, temos uma universidade, vários cursos, uma faculdade e um instituto, uma sala de aula com horário específico, membros com certa assiduidade e outros bem rotativos, professores que supostamente sabem mais e alunos que pensam que sabem menos, um projeto de extensão e um projeto de pesquisa em curso, ambos com bolsas e financiamento de instituições de peso, territórios escolares complexos e com muitos problemas, entre outras. Nas linhas de produção, que coexistem justapostas a essas acima, tentamos produzir zonas de intercessão com base em certa flexibilidade, na circulação de experiências, saberes de vida intercambiantes, afetos alegres e potentes. Trata-se de buscar ampliar conexões, de conquistar dimensões transversais no e pelo grupo.
Insistindo na necessidade de análise da dimensão complexa do social, do político, do econômico e do poder, Guattari (1987) propôs a transversalidade como uma ferramenta conceitual para se conhecer as tramas grupais. Ele acredita que esse movimento deve ser sustentado nos grupos, em contraposição a movimentos de verticalidade que provocam introjeção das normas e das demandas instituídas presentes nos grupos assujeitados e também a movimentos de horizontalidade que associam diferentes setores e disciplinas, conhecimentos distintos sem que se estabeleça uma relação entre eles. A verticalidade do grupo mantém estratificações piramidais e hierárquicas (a diretora separada dos professores, os professores separados dos alunos, a coordenação da pesquisa conduzindo o grupo. As dinâmicas horizontalizadas sustentam a coesão grupal mantendo a identidade de cada setor), a Psicologia, a Geografia, a História, a Pedagogia, com seus alunos e professores, mantendo suas diferenças e se juntando para estudar um texto. Para além da verticalidade hierarquizante e da horizontalidade niveladora de perspectivas, a transversalidade remete a uma dimensão conectiva, colocando em análise os modelos que atravessam os sujeitos e os grupos.
A transversalidade aposta no deslocamento necessário para que o grupo seja um dispositivo produtor de novas realidades, um vetor de resistência. Dessa forma, o grupo torna-se um grupo sujeito que sustenta sua própria criação. A transversalidade é, pois, "uma dimensão que pretende superar os dois impasses, o da pura verticalidade e o da pura horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis e, sobretudo nos diferentes sentidos" (Guattari, 1987, p. 96). Entendemos que apostar na transversalidade é resistir à reprodução de hierarquizações para que encontros potentes se efetuem, para que a vida circule e a educação se faça.
A transversalidade se liga ao coletivo. Escóssia e Kastrup (2005), com base nas ideias de Deleuze e Guattari, apreendem o coletivo como um plano de coconstrução da realidade, na qual não existe a oposição indivíduo e sociedade. A esse respeito, Deleuze e Guattari (1996) afirmam:
A diferença não é absolutamente entre o social e o individual, mas entre o campo molar das representações, sejam elas coletivas ou individuais, e o campo molecular das crenças e dos desejos, onde a distinção entre o social e o indivíduo perde todo o sentido (p. 98).
Dessa maneira, não há dicotomias, mas justaposição, em uma realidade que funciona por produção e agenciamentos. O molar e o molecular são indissociáveis e sua grande diferença é em seu funcionamento. O molar, visível e instituído, é composto pelas linhas duras, que territorializam e ordenam, dando a impressão de obstáculos intransponíveis no território escola-universidade, seja pelos estratos examinados acima, seja pelas linhas de poder e saber que perpassam a formação dos estagiários e os lugares de professor-aluno. Modelos que buscam a repetição e a padronização. Esse funcionamento molar se insere no molecular através de estratos finos que buscam igualar por molecularização endurecidas. Contudo o molecular é também expansão da vida, funciona pela busca de conexões intensivas, atualiza forças e constrói linhas de fuga, operando desterritorializações, processos cambiantes e movimentos.
A transversalidade ocorre porque há imanência dessas duas formas de funcionamento, molar e molecular, linhas duras e linhas de fuga, permanência e mutação. Trata-se de pensar a realidade e os grupos nessa coexistência e nesses tensionamentos, como algo dado e como algo em construção, buscando o coletivo onde não se via, onde ele não circulava, sustentando novos desejos emergentes, outras formas de estar juntos, outros modos de vida. Nesse contexto, o molar, o estabelecido e endurecido, não é definitivo, embora possa parecer, "Como se uma linha de fuga, mesmo que começando por um minúsculo riacho, sempre corresse entre os segmentos, escapando de sua centralização, furtando-se à sua totalização" (Deleuze & Guattari, 1996, p. 94). Riacho que constrói coletivos, que advém das relações, emerge a partir dessa micropolítica ativa que materializa novas formas de expressão, dá passagem a deslocamentos inventivos, associando diferenças em um território marcado também pela conservação. Assim, professores, estudantes universitários, alunos da educação básica, supervisores, pesquisadores, misturam-se no molecular, afetando e sendo afetados pelos encontros, agenciando potências, engendrando fugas ao esperado, formando um plano de produção conjunta na construção de saídas para a precarização da vida que se faz presente no território escolar.
Transversalizando, todos nós sabemos e não sabemos, temos lugar de fala, autonomia. Podemos pensar, não para imitar ou reproduzir com fidelidade uma teoria ou um autor, mas para sustentar nossos desassossegos e acolher nossos desejos de dissemelhanças. Agenciar o que estudamos, com o que experimentamos, ter arroubos críticos, ver de fora para nos posicionar. Em alguns instantes, somos "comunidade de iguais", como coloca Ó (2018), construindo uma resistência crítica, produzindo igualdade que se atualiza na procura do saber, o que todos ali buscamos. Conseguimos isso sempre? Não, mas os focos de enunciação, as pequenas invenções que emergem em certos momentos, já nos bastam.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação é um direito fundamental, que favorece o desenvolvimento de um país e de cada um de nós, ajuda a combater a vulnerabilidade e diminui os riscos sociais e, nesse sentido, a inserção da Psicologia é fundamental. Entretanto, como nos lembram Oliveira-Menogotto e Fontoura (2015), fomos introduzidos na escola dominantemente por meio de um modelo médico/clínico, em uma lógica centrada no indivíduo, responsabilizando o aluno pelo fracasso escolar. Durante muito tempo, efetuamos uma psicologização das condições de produção das questões relacionadas à escola, entre elas da violência e da relação com a família, que apresentamos neste texto. Cada vez mais, somos convocados a superar esse modelo reducionista, ampliando nosso olhar para as implicações institucionais e sociais, vencendo obstáculos e resistências oriundos de nossa própria formação, para que possamos, de fato, contribuir com a área.
Assim, entendemos que precisamos escapar da reprodução de relações hierárquicas e empobrecedoras, seja entre disciplinas, entre professores e alunos, seja entre nós mesmos, para que a vida se faça no transversalizar de diferentes dimensões de subjetivação. Esse plano de experiência compartilhada permite a todos refletir e combinar ciência e vida, teoria e prática. Aliás, a teoria, quando ela é boa, é uma prática, ela se encarna na prática. Vale lembrar que a separação teoria e prática é do domínio da representação, do modelo que tentamos burlar em nossa resistência. No grupo, os textos se associam com os casos dos estudantes, com as experiências no PEI, com os desafios de nossas atividades cotidianas. Trocamos experiências distintas e somos afetados por diferentes disciplinas, nós nos abrimos para a alteridade, para o não eu, conectamos com o fora, o fora de nós, o fora do que conhecemos, o fora da universidade. Mais do que respostas e soluções, o grupo é uma experiência de problematização, de invenção de problemas, necessária para todo processo de formação seja na universidade, seja na educação básica, uma vez que a aprendizagem inventiva é outra maneira de entrar em relação com o mundo e com nós mesmos. Não devemos naturalizar os problemas da escola, que chegam para serem aceitos e para não se pensar, mas sim ver como são construídos e que invenções nós podemos fazer ali.
Nesse processo, é preciso explorar, sempre que possível, os dispositivos coletivos, sobretudo em um momento em que modos de subjetivação estão sendo produzidos a partir da polarização, da lógica binária de verdades e destituições. Andamos esgotados, em uma sociedade que vive a pandemia de certezas entremeadas pelo medo de se expressar, de falar, de pensar, inclusive pelos laços sociais e afetivos que estão se desfazendo. Em nosso cotidiano, a verdade e o medo irrompem com mecanismos de dominação biopolítica, que se alastram e mantém nossa subjetividade reduzida a um "eu", sustenta o modo indivíduo de funcionamento. Nunca tivemos tanta necessidade dos grupos, das redes que sustentam resistências. Jamais desejamos tanto sermos levados pelos coletivos, pelos povos, lembrando que "Não é 'o povo' que produz o levante, é o levante que produz o povo, suscitando a experiência e a inteligência comuns, o tecido humano e a linguagem da vida real, que já haviam desaparecido" (Comitê Invisível, 2016, p. 51). Nada é mais potente que um bom encontro.
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*Doutora em Psicologia pela PUC-SP, professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), pesquisadora do CNPq e da Fapemig.