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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.7 n.2 Ribeirão Preto dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Transferência e contratransferência: o sentir como instrumento de trabalho no processo grupal

 

Transference and countertransference: feeling as a work instrument on group process

 

Transferencia y contratransferencia: el sentir como instrumento de trabajo en el proceso grupal

 

 

Maria Amélia Andréa1

Sociedade de Psicoterapias Grupais do Estado de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda os conceitos de transferência e contratransferência, instrumentos de trabalho em um processo de psicoterapia psicanalítica individual ou de grupo. Para que esses conceitos se convertam em material a ser trabalhado no atendimento, é necessário que o terapeuta possa ouvir o que é dito, tentando compreender o significado daquela fala dentro da relação que ambos estão vivendo naquele momento específico. É preciso também que tenha consciência de seu próprio estado e de suas sensações. O termo “sentir” foi usado no título do trabalho porque essas idéias estão contidas na definição dessa palavra. Ressalto também que teoria e prática precisam caminhar juntas, para que uma complemente a outra. No que diz respeito à transferência e contratransferência, penso que, da mesma forma, uma complementa a outra, bem como uma não se separa da outra. Em nosso trabalho, sensação e ação também caminham juntas. Sentir, perceber, entender e apontar, assim transcorre uma sessão e também assim foi se construindo este trabalho.

Palavras-chave: Transferência; Contratransferência; Sentir; Afeto.


ABSTRACT

This work deals with the concept of transference and countertransference, tools in a group or individual psychoanalytical psychotherapy process. These concepts become useful in treatment when the therapist is able to pay close attention to what the patient says and tries to understand it as a communication about what both are living together in that specific moment. It is also necessary that the therapist become aware of himself, his own sensations, emotions and thoughts. The term “feeling” was used in the title of this work once its definition usually regards to what is addressed here as transference and countertransference. I also stress that theory and practice need to walk together so that one could be the complement of the other one. In the same way, transference and countertransference must be understood as complementary concepts. In this work, feeling and acting also walked together. Feeling, perceiving, understanding and saying compose the times of a session and so was this work produced.

Keywords: Transference; Countertransference; Feeling; Affection.


RESUMEN

Este trabajo aborda los conceptos de transferencia y contratransferencia, instrumentos de trabajo en un proceso de psicoterapia psicoanalítica individual o de grupo. Para que estos conceptos se conviertan en un material listo para ser trabajado en la atención terapéutica,es necesario que el terapeuta escuche con atención lo que se plantea al respecto, de forma que este pueda comprender cabalmente el significado de todo lo dicho en aquel momento para aquella persona. Es preciso también que se tenga consciencia de su propio estado, así como de sus sensaciones. El término “sentir” fue usado en el título del trabajo debido a que estas ideas están contenidas en la definición de esta palabra. Hago énfasis también en el hecho de que la teoría y la práctica precisan caminar juntas, para que una complemente a la otra. En lo que respecta a transferencia y contratransferencia, pienso de la misma norma, una complementa a la otra, así como una no se separa de la otra. En nuestro trabajo, la sensación y la acción también caminan juntas. Sentir, percibir, entender y tomar notas, es la forma en que transcurre una sesión; y de esta forma es que se fue elaborando este trabajo.

Palabras clave: Transferencia; Contratransferencia; Sentir; Afecto.


 

 

No processo psicoterapêutico toda situação de vida trazida pelo paciente ou pelo grupo, retrata a sua maneira de se relacionar com as pessoas, com a vida e com seu mundo. Há muito afeto presente em cada história trazida, em cada lembrança recordada. Penso que o afeto seja ele de que origem for, está presente durante toda a sessão. Portanto, com grupos psicoterapêuticos temos o objetivo de atuar diretamente à partir do afeto, nas relações entre os membros do grupo, e destes com o terapeuta, portanto no vínculo transferencial.

Trabalhar com o tema transferência/contratransferência é poder pensar no afeto, seja do indivíduo, do grupo ou do terapeuta, como um instrumento de trabalho.

O objetivo deste estudo é refletir como o “sentir” pode ser um instrumento de valor dentro do processo grupal. Como, através de sua sensibilidade, o terapeuta pode dar sentido aos conflitos e enigmas que os participantes do grupo trazem às sessões.

Estes conteúdos são impregnados de material inconsciente, onde estão acumuladas pautas de condutas em relação aos vínculos e papéis que cada um dos componentes do grupo, inclusive o terapeuta, desempenham.

 

O PAPEL DO PSICOTERAPEUTA

Pensando em minha prática como psicoterapeuta é possível rever os meus sentimentos contratransferenciais em relação ao trabalho e à vivência com grupos. Muitas vezes é necessário que estes estejam claros num primeiro momento, para que seja possível perceber as expressões dos sentimentos que surgem no grupo.

Sentimos diretamente os efeitos das atuações e transferências do grupo, e precisamos estar muito conscientes de nossos afetos, para não “atuá-los”. É preciso que o nosso sentir seja um instrumento de crescimento pessoal para nós mesmos, e para os participantes do grupo.

O medo de não compreender um grupo, é um sentimento que impossibilita o terapeuta de estar livre para “sentir” o grupo. Este sentimento é mais intenso ao iniciar o trabalho com grupos, onde há também no terapeuta a sensação de não ter conhecimento teórico suficiente para desempenhar sua função.

Freud (1915, p. 208), faz uma citação que descreve este sentimento:

Todo principiante em psicanálise provavelmente se sente alarmado, de inicio, pelas dificuldades que lhe estão reservadas quando vier a interpretar as associações do paciente e lidar com a reprodução do reprimido. Quando chega a ocasião, contudo, logo aprende a encarar estas dificuldades como insignificantes e, ao invés, fica convencido de que as únicas dificuldades sérias que tem de enfrentar residem no manejo da transferência.

Baseando-me em textos de Grotjhan (1983) e Zimerman (1997), ressalto algumas características necessárias ao psicoterapeuta: ser dirigido pelo desejo de entender; usar a espontaneidade como dispositivo técnico; confiar em si mesmo; ser uma pessoa real, mas também uma figura de transferência; ser um indivíduo que conhece a ansiedade e o medo, bem como a depressão e o desespero; ter uma atitude maternal e de entendimento; ter força e resistência para as lutas necessárias do grupo; poder se colocar no papel de cada paciente e entrar no “clima do grupo”; ter condições de perceber que sentimentos provêm do paciente e quais são dele; conter suas próprias angústias, de modo que não invadam toda sua mente; agir como uma mãe que acolhe, decodifica e dá significado às experiências emocionais da criança; decodificar a linguagem não verbal para a verbal.

Porém, “o perfil do grupoterapeuta se refere àquelas características pessoais que determinam sua atitude frente ao grupo. Não pode ser treinado ou aprendido, mas obtido a partir de características já presentes, aliadas ao estudo de grupo e ao desenvolvimento pessoal” (EMÍLIO, 2003, p. 1).

 

DISCUTINDO OS CONCEITOS

Segundo Zimerman (2000) a transferência é o fenômeno essencial em que se baseia o processo de qualquer terapia analítica.

Inicialmente Freud a considerava como uma forma de resistência ao tratamento, uma forma de amor que a paciente desenvolvia pelo médico. Posteriormente a considerou resultante de reimpressões e como novas edições de antigas experiências traumáticas. Dizia, “este amor consiste em novas edições de antigas características e que ele repete reações infantis” (FREUD, 1915, p. 218).

Quando fala do desenvolvimento do individuo, Freud (1912) diz que, este se conduzirá por sua vida erótica através de uma ação combinada da sua disposição inata com as vivências de seus primeiros anos de vida. E que “o trabalho analítico visa desvendar a escolha objetal infantil da paciente e as fantasias tecidas ao redor dela” (Freud, 1915, p. 217).

É inegável que a tarefa de domar os fenômenos de transferência implica as maiores dificuldades para o psicanalista; mas é preciso não esquecer que são justamente elas que nos prestam inestimável serviço de atualizar e manifestar as moções amorosas, sepultadas e esquecidas (Laplanche; Pontalis, 1983, p. 673).

Zimerman (2000) aponta, em uma visão atualizada, que “no processo psicoterápico há transferência em tudo, mas nem tudo deve ser entendido e trabalhado como sendo transferência”.

Também aponta uma questão, se a transferência é uma necessidade de repetição ou repetição de uma necessidade não satisfeita no passado. A julgar pelas reflexões descritas acima, parece que a segunda alternativa é a mais correta, em que se trazem para o processo psicoterapêutico necessidades antigas, primitivas, que serão retomadas na relação com o psicoterapeuta.

Podem ser repetidas a partir da preservação do setting terapêutico, que é a “soma de todos os procedimentos que organizam, normatizam e possibilitam o funcionamento grupal” (ZIMERMAN, 1999, p. 444). Este espaço mantido e preservado traz ao paciente uma representação de segurança, onde ele poderá experimentar novamente e modificar as vivências anteriores que não foram bem resolvidas.

Na grupoterapia analítica, estas novas situações serão vivenciadas com o terapeuta e com os demais membros do grupo.

Zimerman (2000, p. 162) aponta que “as manifestações transferenciais nos grupos variam de acordo com o momento evolutivo do mesmo”. Que inicialmente ocorrem as transferências cruzadas (necessidade de amor e dependência/descrença e desesperança) e que posteriormente passa a existir uma preocupação entre os membros do grupo. E também que no grupo é importante que todos desenvolvam a capacidade de reconhecer os próprios sentimentos contratransferênciais que os outros lhe despertam. Dessa forma, é possível diferenciar o que é seu, o que é do outro e também o que desperta no outro.

Uma idéia de Dinis (1996, p. 44) que se relaciona a esta acima citada, é que “às vezes cargas pulsionais intensas são dirigidas aos membros do grupo ao invés de ir para o analista. Este deve dar um significado que possa ser partilhado por todos do grupo e não apenas por quem a proporcionou”.

Pensando na figura do terapeuta, Zimerman (2000, p. 160) o aponta como “uma mera figura transferencial modelada pelas identificações projetivas dos pacientes” e que serão as suas atitudes que desencadearão a resposta transferencial do paciente.

Ezriel (apud BLAY NETO, 2001, p. 14) propõe algumas questões que o terapeuta deve se fazer para perceber o papel que o grupo lhe atribui:

“Em que papel pretende o grupo colocar-me neste momento?”

“Que tipo de relação pretende o grupo, inconscientemente estabelecer comigo?”

Estas reflexões são uma forma de perceber o que estão transferindo para a figura do terapeuta, e os apontamentos deste podem possibilitar que o paciente/grupo reestruture sua percepção e seu sentir.

A partir da imagem do terapeuta, é preciso pensar nos sentimentos deste em relação ao paciente, ou seja, a contratransferência.

No início Freud a considerava como algo prejudicial, que indicava que o terapeuta não estava bem analisado. Esta idéia foi mudando e passou a ser entendida como sendo sentimentos do mundo interno do paciente que são sentidos pelo terapeuta e também como uma forma de comunicação primitiva de sentimentos que o paciente não consegue reconhecer e nem verbalizar (Zimerman, 2000).

Concordo com Fonseca (1997) quando diz que a contratransferência refere-se às emoções que se manifestam no terapeuta diante do grupo, que podem ou não ser percebidas por ele.

Penso, a partir disso, que o terapeuta pode guiar-se por sua contratransferência, e essa atitude indica uma comunicação de inconsciente para inconsciente. Segundo Freud (apud LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p. 147): “Todos possuem no seu próprio inconsciente, um instrumento com que podem interpretar as expressões inconscientes do outro”.

E interpretar, segundo a idéia de Dinis (1996, p. 45), “é agir empiricamente com afeto e experimentando-o a partir da autenticidade do sentir”.

Pensando no conceito de identificação projetiva, em que o grupo, ou um membro deste atribui ao terapeuta características que imaginam ser dele, é preciso pensar no terapeuta em relação a estas projeções.

Neste ponto, contratransferência e identificação projetiva podem se confundir e faz-se necessário uma diferenciação entre elas, pois como saber se o que o terapeuta sente é uma emoção projetada ou uma emoção contratransferencial.

Há indicativos de que é identificação projetiva, quando é percebido no trabalho um mal-estar, uma sensação de desconforto, um peso, muitas vezes quase impossível de suportar. O terapeuta inicialmente tem dificuldades para perceber a projeção (Fonseca, 1977).

Bion fala sobre os sentimentos do analista num grupo:

A experiência da contratransferência parece-me possuir uma qualidade inteiramente distinta, que deveria capacitar o analista a diferenciar a ocasião em que é objeto de uma identificação daquela em que não é. O analista tem uma perda temporária de insight, uma sensação de experienciar sentimentos intensos, e ao mesmo tempo, a crença de que a existência destes é inteira e satisfatoriamente justificada pela situação objetiva (Bion, apud Hinshelwood, 1992, p. 198).

Também é preciso entender que a identificação projetiva é tida como uma função da inveja, e que o “ingresso forçado em outra pessoa destrói suas melhores qualidades” (HINSHELWOOD, 1992, p. 193).

Acho possível fazer um paralelo entre a dupla identificação projetiva e contratransferência com relação à emoção e sentimento. Para tanto vou abordar estes últimos conceitos tendo como base Fonseca (1997), que diferencia emoção de sentimento.

Define emoção como sendo a parte mais instintiva, o que se sente e se manifesta na pessoa. “Aquilo que se desenvolveu, percebido por mim, não qualificado, nem denominado por mim” (FONSECA, 1997, p. 168). Relaciono este conceito ao de identificação projetiva; uma ‘emoção’ que é depositada no terapeuta á partir de aspectos do mundo interno do paciente.

Já o sentimento é um pouco mais próximo do racional, pois pode ser elaborado e por vezes verbalizado. Assim, é uma tentativa de traduzir, comunicar, verbalizar para o meio externo o que se desenvolveu internamente. Associo este conceito ao de contratransferência, em que á partir de um sentimento do terapeuta ele pode entender um sinal do inconsciente do paciente ou do grupo. O terapeuta não deve dar ao sinal, o sentido que ele considera como correto, mas tentar perceber o que o paciente está lhe comunicando (FONSECA, 1997).

Blay Neto (2001, p. 15) propõe duas questões que o terapeuta deve se fazer para pensar em que papel ele está colocando o grupo:

“Que tipo de relação pretende o terapeuta inconscientemente estabelecer com o grupo?”

“Está realmente o terapeuta convicto do poder terapêutico da psicoterapia de grupo em função de necessidades de tê-lo diante de si?”

O grupo não pode ser um espaço para as questões pessoais e necessidades do terapeuta; é necessário que ele se perceba em relação ao grupo.

Todos estes conceitos e idéias reforçam o fato de que a psicoterapia analítica se dá através do vínculo, onde se revivem antigas e se criam novas situações, onde sentimentos e afetos são vividos intensamente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Usei no titulo deste trabalho “o sentir no processo grupal”. Portanto acho necessário neste momento esclarecer o porquê deste termo, e para tanto me reporto às definições que de Ferreira (1999, p. 1839):

“Ouvir indistintamente, entreouvir... 5. Pressentir... 6. Compreender, entender, perceber... 9. Sofrer a ação de experimentar... 10. Conhecer por certos indícios... 16. Ter sensação dolorosa ou desconfortável em... 21. Ter consciência do próprio estado, reconhecer-se.”

Ao lê-las, tenho a impressão de que servem para clarear tanto a transferência quanto à contratransferência. O quanto no trabalho é necessário ouvir, compreender, me reconhecer, conhecer certos indícios, para poder entender o sentido do que elas me diziam em palavras, gestos ou sensações.

O quanto preciso me perceber para poder então perceber o que está sendo dito, mesmo quando este dizer não se faz na linguagem verbal. Para esta compreensão é preciso estudo teórico, mas acima de tudo é preciso ter disponibilidade para viver com o grupo toda intensidade de sentimentos, emoções e sensações trazidas por eles.

Teoria e a vivência se completam e uma não teria o mesmo sentido sem a outra.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1983. 693p.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Maria Amélia Andréa
E-mail: m.a.andrea@bol.com.br

Recebido em 19/06/06.
1ª Revisão em 11/08/06.
Aceite Final em 27/09/06.