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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.13 no.23 Barbacena jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

A dinâmica entre representação-palavra e representação-objeto na esquizofrenia1

 

The dynamic between word representation and object representation in schizophrenia

 

La dinámica entre representación-palabra y representación-objeto en esquizofrenia

 

 

Caio Cezar Sangioni CerattI; Prof. Dr. Paulo José da CostaII

IPsicólogo, servidor público na Universidade Federal do Paraná - Setor Litoral, Matinhos-PR
IIDoutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia/USP, Prof. PPG Psicologia na Universidade Estadual de Maringá

 

 


RESUMO

No presente estudo se pretende discutir a relação entre os conceitos de representação-palavra e representação-objeto na esquizofrenia no contexto dos textos iniciais de Freud, escritos entre 1891 e 1915, buscando contribuir para a compreensão do psiquismo do paciente esquizofrênico de acordo com os postulados freudianos. Nos trabalhos analisados, Freud recorre ao mecanismo de repressão para explicar a dinâmica das psicoses. As hipóteses referentes ao funcionamento da linguagem expostas no texto sobre as afasias em 1891, assim como o papel específico dos mecanismos de defesa não neuróticos dos trabalhos posteriores, reaparecem articuladas e amadurecidas no artigo O Inconsciente, de 1915, onde o autor aborda de modo mais sistemático o funcionamento psíquico dos quadros esquizofrênicos, especialmente aquele vinculado à linguagem.

Palavras-chave: Representação-palavra; Representação-objeto; Equizofrenia; Psicanálise; Sigmund Freud.


ABSTRACT

The present study intends to discuss the relationship between the concepts of word representation and object representation in schizophrenia on the context of Freud's initial works from 1891 to 1915, seeking to contribute for the understanding of the schizophrenic patient's psyche in agrément with the Freudian's postulates. In the analyzed works, Freud makes use of the repression mechanisms to explain the dynamics of the psychoses. The hypotheses referring to the operation of the language exposed in the work on aphasias in 1891, as well as the specific role of the non-neurotic defense mechanisms of the subsequent works, reappear articulated and mature in the article The Unconscious of 1915, where he approaches in a more systematic way the psychic process, especially that linked to the language of the schizophrenic condition.

Keywords: Word representation; Object representation; Schizophrenia; Psychoanalysis; Sigmund Freud..


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo discutir la relación entre los conceptos de representación-palabras y representación-objeto en la esquizofrenia en el contexto de los trabajos iniciales de Freud, escritos entre 1891 y 1915, buscando contribuir a la comprensión de la psique del paciente esquizofrénico según los postulados. Freudianos. En los trabajos analizados, Freud utiliza el mecanismo de represión para explicar la dinámica de las psicosis. Las hipótesis sobre el funcionamiento del lenguaje expuestas en el texto sobre afasias de 1891, así como el papel específico de los mecanismos de defensa no neuróticos de trabajos posteriores, reaparecen articuladas y maduradas en el artículo O Inconsciente, de 1915, donde el autor se acerca más el funcionamiento psíquico de las condiciones esquizofrénicas es sistemático, especialmente el vinculado al lenguaje.

Palabras-clave: Representación-palabra; Representación-objeto; Esquizofrenia; Psicoanálisis; Sigmund Freud.


 

 

Introdução

Apresentar um estudo conceitual sobre determinado tema freudiano quase sempre se mostra laborioso, por motivos que variam desde as dificuldades de tradução até a extensão de sua obra. Autor muito criativo, Freud (1856-1939) buscava a cada novo estudo entender e aprofundar o conhecimento acerca da psique humana; porém é sabido que alguns temas, devido à distância cronológica entre suas publicações, deixam lacunas e aparentes contradições. Podemos citar a esquizofrenia, enquanto um quadro patológico, como um destes tópicos que ficaram dispersos na obra freudiana.

Por mais que no tempo de Freud a psicanálise buscasse encontrar fundamentação para as patologias do psiquismo, seu estudo mais aprofundado se deu ao redor do que ele chamou de psiconeuroses de defesa. Dessa forma, em relação às psicoses e, sobretudo, às afecções já existentes com outros nomes e que viriam a ser reunidas no que passou a se denominar de esquizofrenia, o autor parecia não ter intenção de explicá-las naquele momento inicial, como afirmou em 1914 no início do texto Introdução ao Narcisismo: "Desejo ressaltar que não me proponho aqui explicar ou penetrar ainda mais no problema da esquizofrenia (...)" (FREUD, 1996d, p. 82).

Não há nesse momento esforço específico de distinção entre neurose e psicose, mas, segundo Simanke (2009), certa separação entre os dois conceitos aparecia vez ou outra, de acordo com as distinções médicas da época. O que interessa destacar aqui é que Freud, à medida em que desenvolvia seus estudos passou a utilizar o termo misto neuropsicose, inclusive no título de importantes textos da época: As neuropsicoses de defesa, de 1894, e Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa, de 1896. Somente a partir da segunda tópica é que haveria uma reconceituação do termo psicose enquanto categoria específica.

A investigação de afecções como a paranoia e a esquizofrenia permitiu a Freud chegar a novas conclusões, como o papel do narcisismo na vida psíquica, e ao aprimoramento da estrutura do ego. Afirma Simanke (2009, p. 124):

É nesse período, correlativo ao surgimento e à consolidação da teoria do narcisismo que se situam os escritos em geral considerados os mais importantes sobre as psicoses, como no Caso Schreber (1911), mas incluindo também desenvolvimentos essenciais para a compreensão da esquizofrenia e da melancolia.

Mesmo que os termos surgidos nessa época, como neuroses narcísicas, não sobrevivessem às novas sistematizações da segunda tópica, algumas conquistas teóricas dessa fase foram fundamentais para o perfil final da concepção de Freud sobre as psicoses. Por estes exemplos podemos notar como os conceitos possuem uma historicidade, no sentido de que não são produtos que tenham surgido acabados na mente de Freud.

Outro exemplo da inevitável aproximação de Freud (1996e) com temas psicóticos é o texto O Inconsciente, no qual há um breve capítulo sobre o assunto. Nele é discutida a inversão do psicótico em relação ao neurótico no que diz respeito ao investimento da representação-palavra e da representação-objeto, conceitos que são de fundamental importância para a compreensão da dinâmica psíquica do quadro esquizofrênico.

Não obstante, embora estudos contemporâneos estejam resgatando os conceitos de representação nos textos iniciais freudianos, notamos algumas lacunas em relação às alterações nessa dinâmica nos casos patológicos, principalmente na esquizofrenia. Tais lacunas dizem respeito a que Freud, embora tenha contribuído com elementos para a compreensão da afecção esquizofrênica, ele não foi além, cabendo aos seus sucessores os estudos mais sistemáticos nesse campo, conforme afirmam Laplanche e Pontalis (2001).

Assim, o presente estudo pretende discutir a relação entre os conceitos de representação-palavra e representação-objeto na esquizofrenia no contexto dos artigos iniciais de Freud, aqueles publicados entre 1891 e 1915, buscando contribuir para a compreensão do psiquismo do paciente esquizofrênico de acordo com os postulados freudianos. Através da sistematização conceitual proposta por este trabalho, julgamos ser possível esclarecer o papel das representações-palavra e representações-objeto nesse quadro patológico carente de explicações teóricas sistemáticas na obra freudiana.

 

A Representação-palavra e a Representação-objeto

Iniciaremos o estudo dos conceitos de representação-palavra e representação-objeto com uma observação quanto à variação na grafia dos termos. Seguiremos a grafia presente na edição espanhola da Biblioteca Nueva Madrid, de 1981, na qual as palavras são traduzidas como representación-palabra e representación-objeto, diferentemente das traduções brasileiras - Standard, da Imago, de 1996, e da tradução da Companhia das Letras, de 2010 - nas quais se adotam representação de palavra e representação de objeto ou representação de coisa.

Essa decisão deu-se de acordo com o que expôs Garcia-Roza (2004), ao afirmar que a expressão representação de palavra dá a ideia de uma representação que representa a palavra, enquanto o sentido originalmente proposto por Freud daria conta de uma representação que é a própria palavra, sendo desnecessário o uso da expressão com a preposição de; isto é, "a partícula {de} não indica aqui que o objeto ou a palavra sejam aquilo que a Representação representa, mas sim que objeto e palavra são ambos considerados enquanto Representação" (GARCIA-ROZA, 2004, p. 228).

A divisão da representação em representação-palavra e representação-objeto pode ser encontrada originalmente em 1891, no artigo Sobre a concepção das afasias. Nele Freud (2008) caracteriza a representação-palavra como um complexo associativo fechado, formado por imagens, tanto acústica, como visual da letra, quanto cinestésica da fala e cinestésica da escrita. Vale notar que as associações não se dão progressiva e mecanicamente, mas em um processo constante em que a cada nova associação o complexo associativo sofreria uma reorganização de suas estruturas constituintes.

A representação-objeto, por outro lado, seria um complexo associativo aberto formado por imagens sensoriais (aqui num sentido bem mais amplo, havendo possibilidades para novas imagens se juntarem, daí o caráter aberto do complexo) que se associam infinitamente, recriando e modificando sempre as representações (CAROPRESO, 2001).

Laplanche e Pontalis (2001) colocam a representação-palavra como componente fundamental do processo que liga a verbalização à tomada de consciência, ou seja, associando-se a uma imagem verbal, um determinado componente mnêmico adquire condições qualitativas para permanecer no Sistema Pcs-Cs. Contudo, é importante ressaltar a observação que Freud (2008) faz ao pontuar que a representação-palavra não se liga inteiramente à representação-objeto. Esta ligação se faz exclusivamente pelo componente imagem-acústica da representação-palavra com o componente visual da representação-objeto.

Assim, de acordo com Caropreso (2001, p. 31), "a Representação de palavra é um complexo associativo fechado que, pelo menos no caso dos substantivos, adquire significado a partir da sua associação com uma Representação de objeto"; mas esses conceitos, utilizados num período tão inicial da psicanálise, foram plenamente ressignificados em torno de 1915, fase de sistematização da metapsicologia freudiana, na qual a mencionada distinção representa papel fundamental, que marca uma ruptura não apenas com outras concepções psicológicas, mas também com a neurofisiologia da época.

Especialmente nos artigos metapsicológicos, Freud (1996e) utilizou a noção de representação de duas formas distintas: como representantes (Repräsentanten) e como representação (Vorstellung). Nesse momento, as representações são concebidas de acordo com a teoria das pulsões, conforme assinala Arnao (2008). Ainda de acordo com esta autora;

(...) o afastamento de Freud em relação à psicologia científica de sua época está muito marcado pelo momento inaugural em que as representações deixam de ser a pedra angular dos fenômenos psíquicos para dar lugar às pulsões, ou para ser subsidiárias destas. Embora as representações continuem exercendo um papel importante na teoria psicanalítica, sua significação estará indissoluvelmente ligada ao conceito de pulsão e ao pressuposto do inconsciente (...). (ARNAO, 2008, p. 195).

Segundo esse entendimento, as pulsões representariam um estímulo endógeno, sendo chamadas por Freud de representantes (Repräsentanten) psíquicos destes estímulos, uma vez que a própria pulsão não é uma representação. Por sua vez, as pulsões estão representadas no aparelho psíquico por representações (Vorstellungen). No entanto, a psicanálise freudiana, ao chegar nesse ponto, não abandona os dois tipos de representação: elas são pequenas partes de um todo que se torna consciente à medida que nossas defesas o permitem.

Aqui convém nos voltarmos para a dinâmica das representações no Ics e no Pcs para compreendermos melhor como isto se dá, e destacar que a Representação-Objeto, por ser um complexo associativo absolutamente amplo, não possibilita por si mesma uma censura psíquica. Dentro dela estão contidas todas as apreensões sensoriais possíveis, inclusive aquelas que nos são moralmente recusadas. Desta forma, permanece encarcerada no Ics até que seja sobreinvestida por representações verbais que correspondam a ela no sistema Pcs. Assim, as representações-objeto não sobreinvestidas permanecem reprimidas no Ics (FREUD, 1996e).

Para entendermos melhor como se dá tal processo podemos recorrer ao caso clínico de Elizabeth von R. (BREUER; FREUD, 1996), que nos fornece os elementos necessários para a compreensão da dinâmica Ics-Pcs.

Descrita por Freud como a primeira análise integral de um caso de histeria feita por ele, a jovem Elizabeth Von R. sofria de intensas dores nas pernas. Após permanecer cuidando de seu pai até a morte dele, Elizabeth apaixonou-se por seu cunhado, mas que tal sentimento tomasse voz por vias diretas da consciência. Sempre que, de alguma forma, direta ou indiretamente, o assunto era levantado, as dores se manifestavam de modo vigoroso (BREUER; FREUD, 1996). Foi então levada por um colega médico a Freud, cujas análises indicavam um caso típico de histeria, mas sem que houvesse qualquer explicação substancial de como tal processo se desenrolava. Após um período de terapia, Freud constatou que as dores nas pernas se davam através de um processo de conversão histérica, ou seja, um afeto que não podia obter sua descarga se convertia através de processos inconscientes em algum tipo de descarga somática consciente.

No caso de Elizabeth, a carga afetiva estava em torno da representação do cunhado e a carga somática se dava nas pernas por dois motivos: já havia ali sinais de leves dores reumáticas e se tratava de uma zona histerogênica, visto que era onde o pai se apoiava para que lhe fizesse os curativos. Ao tentar tomar consciência, a paixão pelo cunhado era reprimida pelo fato de não ser aceita moralmente, e então, através de processos inconscientes as cargas afetivas convertiam-se em descargas na forma de dores nas pernas (BREUER; FREUD, 1996).

Ao estudarmos este exemplo, podemos colocar a paixão pelo cunhado como relacionada à representação-objeto que, ao não encontrar seu correspondente em representação-palavra, não consegue tornar-se consciente; todavia esta representação continua viva e atuante no Ics de Elizabeth, até que encontra, por meio de deslocamentos, uma representação-palavra que possa agregar sua carga afetiva - neste caso, as dores reumáticas nas pernas. Ao ser sobreinvestida pela representação da dor, a representação da paixão pelo cunhado passa a ter um meio de realização, sem que possa ser censurada; mas a paixão pelo cunhado continua presente, mesmo se manifestando em forma de dor, e assim, cada vez que algo cotidiano estiver ligado a ela, a dor se acentua (BREUER; FREUD, 1996).

Podemos correlacionar ainda a dinâmica entre representação-palavra e representação-objeto com os dois modos de funcionamento do aparelho psíquico, a saber, o primário e o secundário. Estes conceitos surgem inicialmente no Projeto para uma psicologia científica (1895), são revistos no capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900) e continuam presentes ao longo do desenvolvimento do pensamento freudiano.

Laplanche e Pontalis (2001) distinguem os dois modos de funcionamento do aparelho psíquico de acordo com dois referenciais. O primeiro é que, do ponto de vista tópico, o processo primário está relacionado ao Ics, enquanto o processo secundário está vinculado ao Pcs - Cs; e o segundo é que, do ponto de vista econômico-dinâmico, no processo primário a energia psíquica flui livre de uma representação à outra, sem obstáculos, de acordo com a via de maior facilitação, enquanto no secundário a energia encontra-se ligada, ocorrendo um adiamento da satisfação e certa regularidade.

Ao compreendermos dinâmica entre as representações em estudo podemos também compreender como se dá a passagem do processo primário para o secundário. Freud (1996e, p. 206), em O Inconsciente, afirma que "a Representação consciente engloba a representação-objeto mais a representação-palavra correspondente, enquanto a representação inconsciente é apenas a representação-objeto".

Assim, isoladamente, a representação-objeto está sob a ação do processo primário de funcionamento psíquico, uma vez que está nos domínios do Ics. Ao associar-se à representação-palavra, que pertence ao domínio do Pcs, adquire deste a sintaxe necessária - característica do processo secundário - para ter acesso aos domínios Pcs-Cs.

Vale notar que no cerne desta dinâmica psíquica entre representação-objeto e representação-palavra está o mecanismo de repressão. Através dele podemos inclusive entender as dinâmicas dos representantes psíquicos em quadros patológicos, como o da esquizofrenia.

Segundo Simanke (2009), o próprio Freud utiliza a repressão como ponto comum entre as diferentes patologias, como a paranoia e a esquizofrenia, sendo o ponto diferencial entre elas os polos iniciais e finais do retorno do reprimido. Aliás, a ideia de que os sintomas podem ser explicados por um retorno do reprimido está presente desde os primeiros textos freudianos.

Nesse momento é preciso salientar, de acordo com Laplanche e Pontalis (2001), que Freud usou termos como demência precoce e parafrenia para se referir às afecções que já existiam com outros nomes, mas que culminaram sendo reunidas sob a denominação de esquizofrenia, conforme já indicado anteriormente. Contudo, Freud os usava segundo sua própria concepção, não sendo propósito do presente trabalho tratar das especificidades de cada termo no campo freudiano e no campo médico da época. Tanto que parafrenia, apenas para ilustrar, foi um "um termo proposto por Freud [embora não o tenha criado] para designar, quer a esquizofrenia, quer o grupo paranoia-esquizofrenia" (LAPANCHE; PONTALIS, 2001, p. 424), que, entretanto, não correspondia a compreensão estabelecida na época pela proposição kraepeliana. Para os propósitos aqui especificados, basta entender que Freud, embora soubesse o que acontecia na ciência médica de seu tempo acerca das psicoses, por vezes ele tinha um posicionamento próprio.

Tanto que apesar de utilizar o termo parafrenia para aproximá-lo da paranoia, delimitando assim o campo das psicoses, Freud (1996d) insiste na especificidade da esquizofrenia em relação à paranoia ao nível do processo (repressão e desinvestimento da realidade) e ao nível das fixações - anterior ao da paranoia, vinculada ao início do desenvolvimento que leva do autoerotismo ao amor objetal.

Retomando o caso de Elisabeth utilizado como ilustração da dinâmica das representações, também podemos, a partir dele, contrapor a alucinação histérica à alucinação esquizofrênica. Esta última seria uma versão exacerbada da conversão histérica - presente no caso Elisabeth - mas, em oposição a esta, a imagem alucinada esquizofrênica não remete a uma representação reprimida e não compartilha o caráter simbólico do sintoma (SIMANKE, 2009).

Assim, pode-se notar certo parentesco entre a esquizofrenia e a histeria, no que se refere ao caráter alucinatório orgânico, o que levou Freud (1996e) a elaborar uma apreciação mais metapsicológica do funcionamento da linguagem nas psicoses, centrada no problema do delírio. Nesse artigo Freud afirma que, no caso da esquizofrenia, o conteúdo do Ics se faz evidente de modo muito direto.

Por outro lado, a distinção entre a histeria e a esquizofrenia dá-se na referência ao orgânico: enquanto na histeria a inervação corporal ter-se-ia realizado sob a forma de dores nas pernas, como no caso de Elisabeth, permanecendo o motivo para tal sintoma inconsciente, na esquizofrenia, segundo Simanke (2009, p.165), dá-se o contrário: "o paciente tem a sensação da alteração orgânica, sente a tendência a realizar a ação e expressa ambas no discurso, juntamente com suas causas".

A falta de uma relação simbólica na esquizofrenia que remeta de um registro atualizado (pré-consciente) a outro oculto (inconsciente) não quer dizer que nessa patologia não ocorram distorções defensivas. Segundo Freud (1996e), nesse caso ela se dá de forma mais drástica, pois o modo de registro que vigora no Pcs - por representações-palavra e processo secundário - passa a ser regido pelo modo de registro que vigora no Ics, isto é, pelo processo psíquico primário. Na esquizofrenia tudo se passa como se o Ics viesse à tona, submetendo a seu regime as representações-palavra do Pcs. Vale ressaltar que não há regressão tópica, isto é, mudança do registro entre as instâncias psíquicas, e sim, uma mudança no modus operandi destas instâncias (SIMANKE, 2009).

Após os entrelaçamentos efetuados ao longo desta parte, é possível considerar que nos quadros de esquizofrenia a alteração da dinâmica entre representação-palavra e representação-objeto está relacionada diretamente ao processo de "inversão" no Pcs, o qual passa a atuar de forma semelhante ao Ics.

 

O Percurso Freudiano

Percorrendo a obra de Freud podemos identificar dois movimentos no pensamento freudiano acerca das representações nos seus textos iniciais. O primeiro corresponde ao período que vai de 1891 a 1895, representado pelos artigos Sobre a concepção das afasias e Projeto para uma psicologia científica. O segundo inicia-se com A interpretação dos sonhos, em 1900, e adquire maior consistência na fase metapsicológica de 1915, com O Inconsciente.

No primeiro movimento encontramos um Freud preocupado com a sistematização de sua teoria dentro do paradigma científico vigente, de caráter quantitativo e fortemente ligado às questões materialistas explícitas, como a busca de uma unidade elementar do aparelho psíquico - o neurônio - e a explicação quantitativa da dinâmica das energias psíquicas. Esse período, apesar de Freud estar inspirado por teorias de caráter tendenciosamente mecanicista, não deve ser entendido como mera reprodução do conhecimento neurológico da época. Em Sobre a concepção das afasias, Freud (2008) enfatiza o aspecto funcional do aparelho psíquico, em detrimento da visão corrente, puramente anatômica; já em Projeto para uma psicologia científica, Freud (1996b) incluiu o papel dos estímulos endógenos no funcionamento do aparelho psíquico, dando início a conceitos-chave trabalhados posteriormente, como as ideias de pulsão, repressão, defesa, entre outras.

Não obstante, em Sobre a concepção das Afasias, em parte Freud (2008) identifica o psiquismo com a consciência, de forma que as representações não são concebidas separadas desta, enquanto no Projeto há uma recusa desta identificação, abrindo espaço para que se conceba um psiquismo inconsciente. Isso se deu diante da manobra utilizada de deslocar o paralelismo entre processos nervosos e psíquicos para um paralelismo entre representações conscientes e inconscientes, atribuindo uma natureza psicológica aos processos corticais, antes considerados concomitantes aos fenômenos psíquicos (CAROPRESO, 2003; ROSSI, 2005).

Diante disso, podemos entender esse primeiro movimento como elementar na construção freudiana sobre uma nova visão de homem e de realidade, distinta da sustentada pela ciência até aquele momento. Partindo da questão da linguagem, Freud (2008) pôde compreender que não nos relacionamos diretamente com a realidade, mas tomamos consciência dela pela mediação das representações. Ademais, passa a diferenciar o processo fisiológico do processo psicológico, contradizendo a neurologia da época. Antes considerados semelhantes e como regidos pelas mesmas leis, os processos fisiológicos e psicológicos passam a ser entendidos como concomitantes dependentes, regidos não mais por causa e efeito, mas por leis associativas.

Após a descrição estrutural e funcional das representações nos estudos sobre as alterações da linguagem, Freud (1996b) retoma tanto a questão da linguagem quanto a das representações, para exemplificar que a consciência é mediada por signos linguísticos. Considerando as mudanças importantes na concepção do aparelho psíquico empregadas no Projeto - os conjuntos de neurônios que permitem quantidades e qualidade de energia psíquica, um ego primitivo, estímulos endógenos, etc. - podemos compreender que é através da associação entre representação-palavra e representação-objeto que se torna possível substituir o ato pelo pensamento, isto é, o pensamento independente da ação - raciocínio - e do desejo.

No segundo movimento, a partir de 1900, temos a publicação de A interpretação dos sonhos, em que Freud (1996c) enfoca o aparelho psíquico não mais do ponto de vista neuronal, mas com ênfase nos aspectos estruturais e dinâmicos dos sistemas que o compõem. Pela análise da dinâmica das representações nos processos oníricos, principalmente no mecanismo de regressão, Freud percebeu que estes processos também ocorrem nos estados de vigília, dando um importante passo na compreensão do funcionamento psíquico normal e patológico; contudo é possível notar um afastamento cada vez maior entre a percepção original e a consciência desta. Se no primeiro movimento apontado Freud (1996b, 2008) já afirmava que os representantes psíquicos não são idênticos aos estímulos que os provocaram, nesse segundo movimento Freud (1996c) afirma que esta distância é maior ainda. Ao passarem pelas instâncias psíquicas, inclusive as de censura, as representações adquirem investimentos diversos, de forma a tornarem-se meras imagens virtuais que pouco têm da real percepção da realidade material.

Por fim, com a inclusão da problemática das pulsões na sua teoria, de forma mais explícita a partir da publicação de O inconsciente, Freud (1996e) afasta-se de vez das teorias neurológicas da época e, consequentemente, da psicologia científica, que estava em crescimento. Além disso, nesse texto Freud se preocupa em caracterizar mais demoradamente o que é esse inconsciente psíquico e analisa pela primeira vez a mudança no funcionamento das representações em casos patológicos, como a esquizofrenia.

Conforme vimos, Freud já abordava os sintomas de caráter psicótico em 1894, início de sua produção voltada às questões psicopatológicas. Nesta primeira aproximação, mesmo que sem uma nosografia específica para as psicoses, podemos notar um interesse pelas chamadas fugas para a psicose enquanto mecanismos de defesa. Trata-se do desligamento da realidade diante de vivências traumáticas, através de alucinações, delírios, entre outros fenômenos dessa ordem. Ademais, esse desligamento não se dá apenas enquanto defesa, mas também como via de realização alucinatória de desejos incompatíveis entre si no contexto das formações patológicas da neurose.

Segundo Simanke (2009), quando se articulam os textos iniciais com O Projeto de 1895, a representação rejeitada pelo ego, neste momento da teoria freudiana, é vista como desprazerosa, de forma que a repressão se dá não por incompatibilidade entre as representações, mas por um conflito entre os interesses do sujeito e a realidade. Assim, diferentemente do que ocorre nas histerias e obsessões, a alucinação se dá como tentativa de reconstrução subjetiva da realidade, isto é, representada para o e pelo sujeito.

Esse pensamento pode ser visto novamente, segundo Miguelez (2011), no capítulo VII de A Intepretação dos Sonhos, no qual Freud transpõe o fenômeno da alucinação comum à atividade onírica para os processos alucinatórios patológicos. É nesse momento que Freud lança a hipótese de que os mecanismos regressivos responsáveis pelos sonhos também estariam presentes nos processos psicóticos, porém de forma mais radical, isto é, regredindo aos estágios iniciais do desenvolvimento psíquico.

De acordo com Ferreira (2006), o papel da alucinação nas psicoses seria o de reconstruir de modo mais adequado as impressões do mundo interior ou exterior que se tenham tornado intoleráveis ao indivíduo. Nota-se, assim, uma regressão no modo de funcionamento psíquico, mais próximo e semelhante àquele presente no início da vida.

Diante disso, é possível notar que desde As Neuropsicoses de Defesa, Freud (1996a) ressalta o mecanismo de afastamento da realidade via fenômeno alucinatório como fundamental para o entendimento de um quadro psicótico; porém esse mecanismo será melhor entendido e elaborado com o desenvolvimento do conceito de narcisismo, a partir do estudo do caso Schreber e, posteriormente, com os artigos sobre narcisismo e repressão.

Na análise do Caso Schreber podemos notar uma clara afirmação de que o cerne da afecção psicótica esquizofrênica, que é o que nos interessa no presente estudo, está tanto no mecanismo pelo qual o reprimido retorna quanto no ponto de fixação libidinal. Se comparada a outros quadros, na esquizofrenia temos um retorno mais drástico, anterior ao estágio narcísico, fixando-se na fase de autoerotismo infantil. Simanke (2009) ressalta que, neste caso, o mecanismo da esquizofrenia corresponderia à versão exagerada da conversão histérica, com o diferencial de que na esquizofrenia a imagem alucinada não remeteria a uma representação reprimida nem compartilharia do caráter simbólico do sintoma, conforme já situamos anteriormente.

Não obstante, é em 1915 que Freud (1996e) irá abordar de forma mais sistemática o funcionamento psíquico (especialmente aquele vinculado à linguagem) dos quadros esquizofrênicos. Para Simanke (2009) e Vegas (2005), a contribuição dessa passagem está na compreensão de que na esquizofrenia a distorção defensiva se dá de modo tão radical que o modo de registro que vigora no Pré-consciente é modificado pelo modo de funcionamento característico do Inconsciente, isto é, o processo psíquico primário.

Por fim, as hipóteses referentes ao funcionamento da linguagem expostas no trabalho sobre as afasias em 1891, assim como o papel específico dos mecanismos de defesa não neuróticos dos trabalhos posteriores, reaparecem articulados e amadurecidos n'O Inconsciente de 1915.

 

Considerações Finais

Como o objetivo desta pesquisa foi compreender as alterações que ocorrem na dinâmica entre a representação-palavra e a representação-objeto na esquizofrenia, recorremos aos textos de Freud do período entre 1891 a 1915 com a finalidade de sistematizar tanto a representação em si quanto o quadro esquizofrênico.

Quanto à divisão topográfica da primeira tópica, temos um aparelho psíquico constituído de três instâncias, o Inconsciente (Ics), o Pré-Consciente (Pcs) e Consciente (Cs), que possuem características distintas de funcionamento. A censura existente entre os sistemas impede o acesso de conteúdo inconsciente aos demais sistemas, mas também permite que eles cooperem entre si.

Como o Pcs é responsável pela inibição da descarga das representações investidas do Ics, cabe a ela também submetê-las ao processo secundário para que possam se tornar conscientes. O investimento da representação reprimida liga-se a uma representação substituta no Pcs de forma a permitir sua descarga consciente.

Dessa forma, a principal diferença entre a dinâmica normal e a esquizofrênica é esta transferência do investimento entre as representações reprimidas no Ics e as disponíveis no Pcs. Enquanto no funcionamento neurótico o investimento da representação reprimida é redirecionado a um objeto fantasiado e depois a um reprimido, mantendo o investimento objetal, na esquizofrenia o investimento volta-se para o ego. Sobreinvestido, o ego regride a um estado narcísico que o fragiliza. Ocorre, assim, uma mudança na comunicação entre os sistemas Ics e Pcs.

Na dinâmica neurótica a representação-objeto, a qual necessita passar ao Pcs, é sobreinvestida pela representação-palavra correspondente, de forma a adquirir maior organização e ser regida pelo processo secundário, enquanto na esquizofrenia as representações-palavras do Pcs passam a ser regidas pelo processo primário, típico do Ics. Dessa forma, transferem entre si investimentos condensados, assim como nos processos oníricos, pois "na esquizofrenia as palavras estão sujeitas a um processo igual ao que interpreta as imagens oníricas dos pensamentos oníricos latentes - que chamamos de processo psíquico primário" (FREUD, 1996e, p. 227).

Nesse sentido, baseando-se nas proposições freudianas, Vegas (2005, p. 99) afirma que:

O que o estudo da esquizofrenia demonstra é que a linguagem, pertencente ao campo da consciência, passa a funcionar como as representações inconscientes, ou seja são regidos [sic] pelo processo primário e estão sujeitas a deslocamentos e condensações e também que o material que na neurose está reprimido possui acesso livre à consciência.

Nos textos analisados, Freud recorre ao mecanismo de repressão para explicar a dinâmica das psicoses; mas essa postura será modificada nos textos da segunda tópica, quando ele realiza novas articulações da teoria com os avanços conceituais subsequentes, sem deixar de lado os avanços oriundos dessa fase inicial da obra freudiana. Assim, torna-se fundamental conhecê-la para compreender tanto a evolução da teoria psicanalítica em si quanto seus desdobramentos em diferentes vertentes.

Por fim, concordamos com Freire (1998) quando ela afirma que, apesar do descrédito de Freud em relação ao tratamento psicanalítico com psicóticos, não se pode ignorar a contribuição dos continuadores da obra freudiana, tanto da escola inglesa quanto da francesa, os quais souberam aproveitar as reflexões do fundador da psicanálise e criar a partir daí possibilidades para uma clínica das psicoses.

 

Referências

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1 Agradecemos a bolsa concedida pela Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná.

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