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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.13 no.23 Barbacena jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

A implantação da rede de atenção psicossocial do rio grande do norte: avanços e desafios

 

The implementation of care network of rio grande do norte: advances and challenges

 

La implementación de una red de atención psicosocial de rio grande do norte: avances y desafios

 

 

Laiane Felix BorgesI; Lannuzya Verissimo e OliveiraII; Maria Jalila Vieira de Figueiredo LeiteII; Sandra Michelle Bessa de Andrade FernandesII

ITecnóloga em Gestão Hospitalar, Escola de Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
IIEscola de Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

 

 


RESUMO

Trata-se de uma pesquisa documental que objetivou identificar os avanços e desafios para efetivação da Rede de Atenção Psicossocial no estado do Rio Grande do Norte. A coleta de dados ocorreu nos seguintes documentos: Planos de Ação Regional de três Regiões de Saúde do estado aprovados nas Comissões Intergestores Regionais (CIR) em 2012, Termos de Intenções de sete regiões aprovados nas CIRs no ano de 2015, Plano Estadual de Saúde do quadriênio 2012 - 2015 e Relatórios Anuais de Gestão Estadual de 2013 a 2016 que foram analisados à luz da estatística descritiva. Identificou-se a diminuição dos leitos psiquiátricos na 2ª e 7ª Regiões de Saúde. Em relação a distribuição dos dispositivos da RAPS há uma desproporcionalidade, na 6ª e 8ª região a quantidade de dispositivos é baixa em detrimento as outras regiões. Há uma concentração de serviços nas cidades polo, principalmente nas 2ª, 4ª e 7ª regiões. E, observou-se que grande parte das ações propostas nos Planos e Termos de Intenções não foram efetivadas. Conclui-se que apesar da implantação dos dispositivos da atenção especializada da RAPS, em todas as Regiões de Saúde do estado do Rio Grande do Norte, sua efetivação está aquém do preconizado.

Palavras chaves: Saúde mental; Regionalização; Atenção à saúde


ABSTRACT

It is a documentary research that aimed to identify the advances and challenges to effective Psychosocial Care Network in the State of Rio Grande do Norte. Data collection occurred in the following documents: Regional Action plans of three Health Regions of the State approved in committees Regional Intergestores (CIR) in 2012, Terms of Intentions of seven regions approved the CIRs in the year 2015, State Health Plan the 2012 quadrennium - 2015 and Annual Management Reports of the 2013 2016 that were analyzed the light of descriptive statistics. Identified the reduction of psychiatric beds in the 2nd and 7th health Regions. Regarding the distribution of the devices of the RAPS there is a disproportionality, the 6th and 8th region the amount of devices is low over the other regions. There is a concentration of services in the cities polo, mainly in the 2nd, 4th and 7th regions. And, it was observed that most of the actions proposed in the plans and intentions have not been effective. It is concluded that despite the deployment of specialized care devices RAPS, in all Health Regions of the State of Rio Grande do Norte, your implementation falls short of the recommended.

Keywords: Mental health; Regionalization; Health care


RESUMEN

Se trata de una investigación de escritorio que procuró identificar los avances y retos para una red de atención psicosocial eficaz en el estado de Rio Grande do Norte. Recolección de datos se produjo en los siguientes documentos: planes de Acción Regional de salud de tres regiones del estado aprobaron en comisiones Intergestores Regional (CIR) en 2012, términos de intenciones de siete regiones aprobaron el CIRs en el año 2015, Plan Estatal de salud el 2012 cuatrienio - 2015 y anual informes de gestión de la 2013 2016 que se analizaron a la luz de la estadística descriptiva. Identificado la reducción de camas psiquiátricas de la salud 2ª y 7ª regiones. En cuanto a la distribución de los dispositivos de las RAPS existe una desproporcionalidad, la 6 º y 8 º región la cantidad de dispositivos es baja a expensas de las otras regiones. Hay una concentración de servicios en el polo de las ciudades, principalmente en las regiones 2 º, 4 º y 7 º. Y se observó que la mayoría de las acciones propuestas en los planes y de intenciones no han sido eficaces. Se concluye que a pesar del despliegue de atención especializada dispositivos RAPS, en todas las regiones de salud del estado de Rio Grande do Norte.

Palabras-clave: Salud mental; Regionalización; Atención a la salud


 

 

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas leis 8.080/90 e 8.142/90 (BRASIL, 1990), garantiu o direito à saúde como política de seguridade social, vinculado à condição de cidadania e tem por princípios a universalidade e equidade do acesso e a integralidade das ações, devendo ser organizado em uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo as diretrizes da descentralização com comando único em cada esfera de governo, mediada pela participação social (PAIM, 2009).

A regionalização representa a organização dos serviços com base em regiões e requer a articulação entre gestores estaduais e municipais na implementação de políticas de saúde para a população, facilitando assim o acesso à atenção à saúde (PAIM, 2009).

Nesse contexto se insere as Redes de Atenção à Saúde (RAS), as quais distribuem os serviços de baixa, média e alta complexidade no território para garantir atendimento integral e resolutividade dos problemas de saúde da população, evitando-se assim a fragmentação das ações de saúde (PAIM, 2009). Segundo a Portaria 4.279/10 (BRASIL, 2010) as Redes de Atenção à Saúde surgem como uma possibilidade para a reestruturação dos serviços e processos de trabalho em saúde, com integração horizontal e vertical, criação de vínculos, bem como cooperação solidária entre os níveis de gestão e as equipes. Destarte as RAS são:

[...] organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela atenção primária à saúde - prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e com equidade - com responsabilidades sanitária e econômica e gerando valor para a população. (MENDES, 2011, p. 82)

Com base na Portaria 4.279/10 (BRASIL, 2010), o Grupo Técnico de Atenção realizou discussões que foram pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite em 2011 - 2012 e culminaram na definição de redes temáticas de atenção à saúde, de acordo com as prioridades da agenda do governo, a saber: Rede Cegonha; Rede de Atenção às Urgências e Emergências; Rede de Atenção Psicossocial; Rede de Cuidado à Pessoa com Deficiência; Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas (BRASIL, 2014).

Nesse interim, emerge o Decreto 7.508/11 conceituando a Região de Saúde como um espaço geográfico constituído por municípios limítrofes cuja delimitação considera aspectos culturais, econômicos, sociais e as redes de comunicação e transporte. Esse tipo de organização facilita o planejamento em saúde, sendo as Comissões Intergestores Regional (CIR) instâncias para a pactuação e articulação das ações de saúde dos municípios em redes de atenção (BRASIL, 2011c).

Especificamente no que concerne a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída através da Portaria 3.088/11, em consonância com os preceitos da reforma psiquiátrica brasileira, destaca-se que objetiva criar, ampliar e articular os pontos de atenção para atendimento às pessoas com transtornos metais, sofrimento psíquico e usuários de álcool e outras drogas no âmbito do SUS (BRASIL, 2011a).

A fim de alcançar os objetivos a que se propõe, a RAPS é composta pelos seguintes componentes: Atenção básica em saúde (Unidade básica de saúde, Equipe de atenção básica para populações específicas e Centros de convivência); Atenção psicossocial especializada (Centros de atenção psicossocial, nas modalidades I, II, III, álcool e drogas e infantil); Atenção de urgência e emergência (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, Sala de estabilização, Unidade de pronto atendimento - UPA 24 horas, portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro); Atenção residencial de caráter transitório (Unidade de recolhimento, Serviços de atenção em regime residencial); Atenção hospitalar (enfermaria especializada em hospital geral, serviço hospitalar de referência para atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas); Estratégias de desinstitucionalização (Serviços residenciais terapêuticos) e reabilitação psicossocial (BRASIL, 2011a).

O dimensionamento dos CAPS ocorre de acordo com o número de habitantes, a saber: CAPS I - serviços de menor porte para municípios com população entre 20.000 e 50.000 habitantes; CAPS II - são serviços de médio porte e dão cobertura a municípios com mais de 70.000 habitantes; CAPS III - são os serviços de maior porte da rede, para municípios com mais de 200.000 habitantes; CAPS i - especializados no atendimento de crianças e adolescentes com transtornos mentais, para municípios com mais de 150.000 habitantes e os CAPS AD - especializados no atendimento de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, são equipamentos previstos para cidades com mais de 70.000 habitantes (BRASIL, 2011a).

Ademais, sabe-se que a RAPS propõe a organização dos serviços numa rede articulada e comunitária de cuidados para as pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005). Busca-se assim uma assistência humanizada, cidadã, amparada por legislação específica, em que se procura substituir a internação em hospitais psiquiátricos por tratamentos em serviços de base territorial, através de trabalho interdisciplinar que visem a criação de vínculo com os usuários (COSTA et. al., 2012).

Acrescente-se que desde a implantação da Lei 10.216/01 (BRASIL, 2001) houve significativa redução dos leitos em hospitais psiquiátricos do SUS, sendo reduzidos de 85.000 ao final da década de 1980 para menos de 26.000 em 2014, com a implantação de mais de 2.200 CAPS, além de aproximadamente 700 Residências terapêuticas para pessoas com transtorno mental, histórico de internação manicomial e sem vínculo familiar (FAGUNDES JÚNIOR; DESVIAT; FAGUNDES DA SILVA, 2016). Em 2014, 86 % da população estava coberta com serviços extra hospitalares ou territoriais com base comunitária, segundo dados do Ministério da Saúde (MACEDO et.al., 2017).

Apesar dos esforços para um tratamento mais humanizado e de base territorial, a saúde mental ainda sofre com a fragmentação do cuidado e a hegemonia do modelo biomédico, presentes em muitos serviços de saúde (SEVERO; L'ABBATE; ONOCKO CAMPOS, 2014).

E, ainda que existam avanços pontuais quanto a co-responsabilização do cuidado/ matriciamento entre os CAPS (ou demais serviços de atenção especializada em saúde mental) e a Atenção básica, percebe-se reduzida preocupação com a integralidade do cuidado, tratando-se apenas situações específicas de crise, sem a vinculação com o paciente e sua família (COSTA et. al., 2012; MIRANDA; OLIVEIRA; SANTOS, 2014). Para Batista e Nobre (2013) tais dificuldades resultam da legislação proposta de modo verticalizado, sem a oferta de suporte adequado às equipes assistenciais.

Atualmente se tem observado a desospitalização do usuário, ao invés de sua desinstitucionalização, esta na perspectiva de acolhimento com produção de novas identidades e subjetividades, construídas na interação do sujeito com o território, configurando-se como objeto do movimento de luta antimanicomial desde a década de 80 (AMARANTE & TORRE, 2017).

São mantidas distorções na implantação da política de saúde mental, com manutenção do modelo manicomial coexistindo com serviços substitutivos no mesmo território, sobretudo no tocante à manutenção e propagação de espaços de segregação destinados ao cuidado de usuários de álcool e outras drogas, a exemplo das comunidades terapêuticas (MACEDO et al., 2017; PERRONE, 2014).

A justificativa deste estudo está na inclusão da temática de saúde mental como parte da agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde, bem como na necessidade de avaliar os impactos do processo de regionalização e da conformação da rede de atenção especializada (BRASIL, 2015). Acrescente-se que outros estudos regionais têm se pautado na temática, afirmando a necessidade de discussões sobre a formação e atuação profissional em saúde mental, a articulação entre os serviços das diversas redes de atenção e a contribuição da ciência para efetivação dos preceitos da reforma psiquiátrica nas ações e serviços de saúde em estados brasileiros (PESSOA JUNIOR et al., 2016a; PESSOA JUNIOR et al., 2016b; BONFADA et al., 2013; AMORIM; SEVERO; ROMAGNOL, 2015).

Sabe-se também que o conhecimento da rede é fundamental na gestão, a fim de subsidiar a articulação entre os dispositivos da rede e análise das práticas desenvolvidas nos serviços, considerando suas especificidades (BATISTA & NOBRE, 2013). Mediante o exposto este artigo objetiva identificar os avanços e desafios para a efetivação da RAPS no estado do Rio Grande do Norte através de uma análise da capacidade assistencial e da proposição das ações.

 

Metodologia

Com a finalidade de alcançar o objetivo proposto, optou-se pela pesquisa documental descritiva com abordagem quantitativa. Esse método consiste na investigação de documentos, sejam eles internos (da organização) ou externos (governamentais), envolve a negociação do acesso aos documentos, a verificação de autenticidade, a compreensão e identificação do tema e por fim a análise dos dados extraídos do documento (ZANELLA, 2011). O exame analítico de documentos busca interpretações novas como também complementares sobre um tema. Sendo necessária a exposição dos fatos, pois são o objeto da pesquisa, para depois realizar a inferência (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009).

O cenário do estudo são as regiões de saúde do estado do Rio Grande do Norte no período de 2012 a 2017. O desenho da regionalização do RN foi aprovado na 186ª Reunião Ordinária da Comissão Intergestores Bipartite em 17 de dezembro de 2009 e atualizado em 2013 através da deliberação 909/13 que revisou o desenho de regionalização do RN, configurando as oito regiões de saúde do estado. Essa divisão considerou critérios técnicos, econômicos, geográficos, administrativos e de desenvolvimento. Cada região é composta por um conjunto de municípios considerando um deles como município polo a saber: 1ª Região (Polo São José de Mipibu) com 27 municípios, 2ª Região (Polo Mossoró) com 14 municípios, 3ª Região (Polo João Câmara) com 26 municípios, 4ª Região (Polo Caicó) com 25 municípios, 5ª Região (Polo Santa Cruz) com 21 municípios, 6ª Região (Polo Pau dos Ferros) com 37municípios, 7ª Região (Polo Natal) com 5 municípios e 8ª Região (Polo Açu) com 12 municípios (CIB/RN, 2013).

A coleta de dados ocorreu nos seguintes documentos: Planos de ação regional de três regiões de saúde do estado aprovados nas CIRs no ano de 2012; Termos de intenções de sete regiões aprovados nas CIRs no ano de 2015; Plano Estadual de Saúde do quadriênio 2012 - 2015; Relatórios anuais de gestão estadual entre os anos 2013 a 2016. Também foram utilizados dados do Cadastro nacional de estabelecimentos de saúde/ Departamento de Informática do SUS (CNES) durante o período de 2012 a 2017.

Para a análise dos referidos documentos realizou-se uma leitura com identificação das ações propostas e das ações realizadas no âmbito da saúde mental em cada documento. Após isso, foram classificadas com as ações propostas e realizadas, de acordo com as variáveis de repetição e equivalência das proposições, elencando como principais aquelas que mais se repetiram.

Para análise dos dados do CNES foram utilizadas as seguintes variáveis: número de leitos clínicos de saúde mental, por município/região de saúde; número de leitos de outras especialidades - psiquiatria; leitos em hospital/dia de saúde mental, por município/região de saúde.

Com a análise documental dos referidos documentos se pretende verificar a proposição de ações e sua execução, bem como avaliar a quantidade de estabelecimentos componentes da RAPS distribuídos nas Regiões de Saúde do estado. Com os dados do CNES avaliar o número de leitos psiquiátricos existentes em cada Região de Saúde do Estado no período analisado. Os dados foram analisados a partir de estatística descritiva simples e agrupados em gráficos e tabelas.

 

Resultados

No período analisado observa-se a diminuição dos leitos psiquiátricos na 2ª e 7ª regiões de saúde do estado, com redução de 184 leitos. Em contrapartida, a 1ª região apresentou aumento expressivo no número de leitos, passando de 02 em 2012 para 66 em 2017. As demais regiões apresentaram estabilidade (Gráfico 1).

Os dispositivos da RAPS devem ser distribuídos pelas regiões de saúde de forma equitativa de modo a contemplar as necessidades da população e de acordo com a legislação pertinente. Entretanto, a distribuição nas oito regiões é desproporcional. Na 6ª e 8ª regiões a quantidade de dispositivos é muito baixa em comparação com as outras regiões que possuem perfis epidemiológicos semelhantes. Na 7ª região há maior oferta de serviços, mas também maior número de habitantes (Tabela 1).

No que diz respeito à alocação dos serviços nos municípios pertencentes a cada região de saúde, observa-se maior concentração dos serviços nas cidades polo, principalmente nas 2ª, 4ª e 7ª regiões. Com relação à disponibilização dos serviços, percebe-se que apenas a 7ª região oferta todos os serviços especializados da RAPS e há pelo menos um dispositivo por município nesta região (Figura 1).

Em relação aos Planos e Termos de Intenções analisados percebe-se uma grande quantidade de ações propostas em todos os documentos (Quadro 1). Como principais proposições encontram-se a implantação de dispositivos da RAPS, a formação de espaços para o debate sobre a temática e a preocupação com a qualificação profissional.

No tocante aos Relatórios Anuais de Gestão (RAG), percebe-se que o monitoramento das ações propostas é realizado através do uso de indicadores e que apesar da grande quantidade de proposições elaboradas nos planos e termos de intenções, a concretização dessas proposições está aquém do esperado. Destaca-se o relatório de 2016 que contém mais indicadores que os demais (Quadro 2).

 

Discussão

A partir da década de 90, movimentos pela redução de leitos psiquiátricos e sua substituição por serviços de base territorial se iniciam em diversos estados brasileiros, fazendo com que o Ministério da Saúde comece a instituir políticas de saúde mental que contemplem os preceitos da reforma psiquiátrica. No início dos anos 2000, o processo de desinstitucionalização passa a fazer parte da política de saúde mental do país, com a promulgação da Lei 10.216/01 que redireciona a assistência em saúde mental do âmbito manicomial para um cuidado em serviços de base comunitária (BRASIL, 2005; PESSOA JUNIOR, 2016a).

Como estratégias para a redução de leitos psiquiátricos e a consolidação do processo de desinstitucionalização, o Ministério da Saúde lançou o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH) que classifica os hospitais psiquiátricos de acordo com seu porte e número de leitos, propondo reduções regulares e progressivas, e o Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria) que visa a garantia da qualidade assistencial mínima às pessoas com sofrimento mental ou transtornos mentais, bem como aquelas que fazem uso de álcool e outras drogas que se encontram em situação de internação em hospitais psiquiátricos (PESSOA JUNIOR, 2016a).

Segundo resultados publicados da PNASH/Psiquiatria na Portaria 1.727/16, referente às vistorias realizadas nos anos de 2012 a 2014 em todo território nacional, no RN três instituições foram avaliadas e mantém leitos psiquiátricos nas categorias N I (até 160 leitos) e N II (até 240 leitos), confirmando a grande quantidade de leitos psiquiátricos existentes no estado (BRASIL, 2016).

Para o sucesso desses programas é importante que a redução dos leitos ocorra de forma planejada e concomitante com a implantação de serviços comunitários, como os CAPS, NASF e Residências Terapêuticas, garantindo a continuidade da assistência aos usuários (BRASIL, 2014; PERRONE, 2014). Também deve ser assegurado que os recursos outrora utilizados para manutenção dos leitos sejam mantidos na assistência à saúde mental (BRASIL, 2005).

Para efetivação do processo de desinstitucionalização se fazem necessárias a contrapartida dos governos e a disponibilização de serviços substitutivos ao serviço hospitalar. Isso necessita de pactuações nas três esferas de governo, exigindo um intenso processo de negociação entre os gestores, sendo as comissões intergestores a principal instância de diálogos e conciliações (BRASIL, 2005).

É válido ressaltar que a desinstitucionalização deve ser muito mais que um processo de desospitalização. A desospitalização consiste unicamente no atendimento ao usuário fora do hospital, consistindo na simples reforma de serviços e organização de rede de cuidados assistenciais. Por sua vez, a desinstitucionalização prega pelo fim de uma cultura institucional e de práticas manicomiais de violência, isolamento e falta de dignidade (AMARANTE & TORRE, 2017). Essa prática deve perpassar não somente o cuidado ao usuário, mas também a atenção aos seus familiares e a mudança na perspectiva da prática profissional (PERRONE, 2014; BONFADA et al., 2013).

A mudança deve fazer parte também da sociedade, para que acolha a pessoa com transtorno mental, através de ações articuladas inseridas na RAPS, promovendo a convivência e a conquista de dignidade desta clientela tão estigmatizada (BONFADA et al., 2013).

O esforço para desinstitucionalização dos usuários precede a instituição da RAPS que em sua conformação exclui os leitos psiquiátricos em manicômios e comunidades terapêuticas da rede de atenção. Mas, tais leitos ainda são utilizados como alternativa de assistência no cuidado de pessoas com transtorno mental e usuários de álcool e outras drogas (BRASIL, 2005; PERRONE, 2014).

A assistência a usuários de álcool e outras drogas é historicamente relegada à segundo plano, ficando a cargo de outras áreas de atuação que não a da saúde, por estar associado a criminalidade e práticas antissociais. A complexidade do problema e a ausência do Estado contribuiu para a disseminação de organizações não governamentais, em sua maioria denominadas comunidades terapêuticas, que têm como preceito o modelo psiquiátrico ou cunho religioso, geralmente segregatórias, exigindo a abstinência plena - o que contraria a perspectiva da redução de danos- e confluindo para exclusão social dos usuários (BRASIL, 2005; PERRONE, 2014).

A proposta das comunidades terapêuticas foi colocada como solução para deficiência de ação do Estado no tratamento de usuários de álcool e outras drogas, sendo regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em sua RDC 101/01, provocando o aumento de leitos psiquiátricos não inclusos na RAPS como observado na 1ª Região de Saúde. Destaca-se que as comunidades terapêuticas, tem sofrido críticas em relação ao seu modelo de atenção e também denúncias de agressões e maus tratos, atitudes condenáveis e longe do previsto na reforma psiquiátrica, podendo estar relacionado à falta de fiscalizações, pois não existe nenhum órgão que organize e fiscalize sua forma de atuação (PERRONE, 2014; RIBEIRO & MINAYO, 2015; MACEDO et al., 2017).

Diferente das comunidades terapêuticas, as residências terapêuticas fazem parte da RAPS e se constituem em parte decisiva para a concretização das diretrizes de superação do modelo de atenção centrado no hospital psiquiátrico, oferecendo ao usuário auxílio no processo de reintegração à sociedade na busca por sua autonomia (BRASIL, 2005). Mas, como observado, apenas duas regiões de saúde possuem esse dispositivo, possivelmente insuficientes para atender a demanda, por isso a presença tão marcante de leitos psiquiátricos (Tabela 1, Figura 1).

Torna-se válido discutir também que a RAPS deve ser composta por diversos dispositivos em funcionamento integral, articulados com outros equipamentos sociais, para além dos estabelecimentos de saúde, como órgãos da educação, cultura e segurança. Esses serviços devem estar disponibilizados no território, o qual tem importância fundamental para uma assistência à saúde de qualidade, a garantia de acessibilidade e a desinstitucionalização proposta pela reforma psiquiátrica brasileira (BRASIL, 2005).

Além da atenção básica, os CAPS destacam-se como importantes dispositivos da RAPS, sendo responsáveis pela integração com os outros pontos da rede, com a finalidade de atender as necessidades da população e de reinserir o usuário na comunidade, dando-lhe apoio e autonomia (BRASIL, 2005; MIRANDA; OLIVEIRA; SANTOS, 2014). Todavia, constata-se, não raras vezes, a burocratização dos processos assistenciais e o retorno às práticas institucionais (AMORIM; SEVERO; ROMAGNOL, 2015), demonstrando que o acesso aos serviços por si só não garante a qualidade do atendimento (MIRANDA; OLIVEIRA; SANTOS, 2014).

Os CAPS começaram a surgir na década de 80, mas apenas em 2002 apresentaram expansão, devido ao incremento financeiro do ministério da saúde. Têm prioritariamente administração municipal e seu principal indicador é o número de CAPS /100.000 habitantes (BRASIL, 2011a). Segundo os RAG a meta para o indicador de cobertura de CAPS foi atingida no estado, apesar da distribuição irregular desses dispositivos nas regiões de saúde (Quadro 2).

Identifica-se também que a quantidade de leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais está abaixo da recomendação da Portaria 3.088/11, sendo de um leito para cada 23 mil habitantes (BRASIL, 2011a). Acrescente-se que as 1ª, 3ª, 6ª e 8 ª regiões de saúde não possuem nenhum leito com tal finalidade, provocando assim 'os vazios assistenciais', ou seja, quando o usuário não tem acesso ao serviço que garanta a integralidade do cuidado.

A atenção básica por sua proximidade com as famílias, representa um potente recurso estratégico da RAPS, pois deve acolher e coordenar o cuidado das pessoas com os distintos transtornos mentais, dentre eles os usuários de álcool e outras drogas. Contudo, sabe-se que não há cobertura plena da atenção básica em todos os municípios do estado do Rio Grande do Norte. Ademais, ainda existindo tais serviços nem sempre há adequação estrutural para atendimento a esses usuários, sobretudo pela falta de capacitação dos profissionais da atenção básica para atender às especificidades desta clientela (MIRANDA; OLIVEIRA; SANTOS, 2014; BONFIM et al., 2013).

Nesse contexto, ressalta-se a necessidade de capacitação dos profissionais da atenção básica quanto ao cuidado às pessoas com transtorno mental, capacitação esta primordial em todos as realidades, com destaque para os pequenos municípios brasileiros onde não há CAPS (70%). Nesses casos, é importante o apoio matricial, caracterizado pelo suporte técnico em áreas específicas produzindo-se a co-responsabilização de casos, que pode ser oriundo de um CAPS localizado em município polo da Região de Saúde (BRASIL, 2005; BONFIM et al., 2013; PESSOA JUNIOR, 2016a). Assim, faz-se necessário priorizar políticas de educação permanente, bem como a construção do conceito da reforma psiquiátrica ainda no espaço acadêmico de formação, provocando um sentimento de responsabilidade pela inserção social de pessoas com transtornos mentais (BONFADA et al., 2013).

Com relação aos atendimentos a crianças e adolescentes com transtornos mentais há uma grande lacuna e omissão por parte do Estado, por isso foi criado o fórum nacional de saúde mental de crianças e adolescentes com a finalidade de articular os serviços de atenção à saúde e de fortalecer a rede comunitária de saúde mental para este público. Nesse sentido, é fundamental a consolidação dos CAPS i como serviço de atendimento prioritário para crianças e adolescentes com transtornos mentais, funcionando com lógica territorial e comunitária (BRASIL, 2005).

Assim pode-se perceber o acesso dificultado da população a essa rede de atenção, devido à distribuição irregular dos dispositivos da RAPS nas regiões de saúde e a quantidade de serviços distante do preconizado. Na 8ª região, por exemplo, há apenas um CAPS I para atender doze municípios, com uma população total de mais de 150.000 habitantes, quando, de acordo com o preconizado, deveria ter pelo menos cinco. Em relação aos CAPS III observou-se a existência de apenas dois dispositivos em todo o estado, demonstrando uma grande barreira para o processo de desinstitucionalização e um nó crítico da RAPS, por desempenhar um importante papel na linha de cuidado da rede com garantia de cuidados contínuos e gestão da crise no território (MACEDO et al., 2017).

Outra dificuldade está na distância dos dispositivos, geralmente alocados nos municípios polo, impossibilitando o acesso regular dos usuários de municípios mais distantes (PESSOA JUNIOR, 2016a; MACEDO et al., 2017).

Para que essas dificuldades sejam minimizadas é importante um bom planejamento, contrariando o encontrado no cenário deste estudo, uma vez que apenas três regiões elaboraram o Plano de Ação Regional da RAPS com a proposição de ações que em sua maioria não foram concretizadas. Por isso, o processo de descentralização e regionalização deve ser potencializado e instrumentos de planejamento regional devem ser elaborados com sua implantação monitoradas, garantindo, assim, o acesso e a qualidade dos serviços de saúde (MACEDO et al., 2017).

Sabe-se que existem particularidades na divisão das regiões de saúde, devendo considerar as diferenças na oferta de serviços, recursos humanos e características da população a ser atendida, pois a dimensão territorial é um desafio para a efetivação das redes de atenção (MACEDO et al., 2017). As regiões e rede de saúde devem enfatizar o processo de planejamento em saúde englobando o sistema gerencial e logístico, como também os espaços de negociação, coordenação e regulação, fortalecendo assim o papel do Estado (ALBUQUERQUE & VIANA, 2015).

Apesar de o Plano Estadual propor ações de nível macro, as proposições estão em consonância com o proposto nos planos de ação regionais e termos de intenções, o que demonstra que as instâncias de discussão da rede estão sendo efetivas. A atenção à saúde mental foi colocada como prioridade não apenas na implantação de serviços, mas também na formação profissional dos responsáveis pelo cuidado. O Ministério da Saúde tem disponibilizado cursos de capacitação profissional, como também apoiadores institucionais para a elaboração de planos de ação da RAPS (BRASIL, 2014).

O problema, constatado através da análise dos Relatórios Anuais de Gestão, está na não concretização das proposições. Importa saber os motivos que levam a esse não cumprimento. Sabe-se que as pessoas com transtornos mentais não são prioridade da agenda de muitos gestores municipais, então cabe à população a reivindicação para melhoria da qualidade da assistência, bem como da facilidade de acesso a esses serviços, já que a RAPS como outras redes temáticas dispõe de financiamento próprio conforme Portaria 3089/11 (BRASIL, 2011b). A falta de capacitação especializada e de engajamento dos gestores, também pode ser a causa da escassez de ações concretizadas.

Ademais, evidencia-se a fragmentação da RAPS no RN, reverberando na manutenção de leitos em hospitais psiquiátricos e em comunidades terapêuticas (MACEDO et al., 2017; PESSOA JUNIOR, 2016a).

Existe uma outra realidade que diz respeito à excessiva dependência dos CAPS por parte dos usuários, levando a um processo institucionalizante fora dos muros dos hospitais pela fragilidade da rede de atenção como também dos modos de gestão e de profissionais que fazem o serviço sem uma crítica do modus operandi (SEVERO; L'ABBATE; ONOCKO CAMPOS, 2014; AMORIM; SEVERO; ROMAGNOL, 2015).

Compete aos gestores utilizarem os instrumentos disponibilizados pelo Ministério da Saúde como o PNASH/Psiquiatria e o PRH para adequar a RAPS, fazendo com que ela seja resolutiva. A participação social, juntamente com o gestor local, também é de suma importância nos processos de gestão, para a construção de uma rede que atenda às demandas (BRASIL, 2005). As redes de atenção devem ser pensadas para atuarem além da dimensão estratégica e considerar a solidariedade com parte de seus princípios e valores (PERRONE, 2014; PESSOA JUNIOR, 2016a).

Um dos principais desafios para a consolidação da RAPS e também da reforma psiquiátrica é a formação profissional especializada em saúde mental (SEVERO; L'ABBATE; ONOCKO CAMPOS, 2014), que ainda é deficiente e cultiva práticas institucionalizantes (PESSOA JUNIOR et al., 2016b). Ainda se convive com baixa remuneração e precárias condições de trabalho, além da concentração desses profissionais nos grandes centros e da dificuldade de contratação para trabalho em municípios mais afastados (BRASIL, 2005; PESSOA JUNIOR, 2016b; MACEDO et al., 2017). Portanto, é primordial que a expansão dos serviços, para consolidação da RAPS, atenda ao princípio da equidade e priorize as regiões mais carentes de serviços (MACEDO et al., 2017).

 

Considerações finais

Conclui-se que apesar da implantação dos dispositivos da atenção especializada da RAPS, em todas as regiões de saúde do estado do Rio Grande do Norte, sua efetivação está aquém do preconizado. Como avanço observa-se que a implantação dessa rede promoveu a redução de leitos psiquiátricos em direção à desinstitucionalização das pessoas com transtorno mental, mas as dificuldades de acesso e o número de dispositivos da RAPS é ainda insuficiente para atender a demanda e configura-se em desafios no âmbito do estado do Rio Grande do Norte.

A implementação das proposições/pactuações observadas nos documentos estudados denota o esforço e a utilização de espaços de negociação para as demandas da saúde mental. Mas, embarga em questões políticas, em excessiva burocracia, na falta de prioridade e na falta de estrutura física e de pessoal. Destarte, faz-se necessário, a sensibilização de todos os envolvidos no processo de cuidado às pessoas com transtorno mental, preocupação que deve estar presente desde os espaços de formação profissional até a oferta de educação permanente nos serviços de saúde.

Avançou-se muito com a implantação da RAPS, agora a preocupação está em fazê-la funcionar como o preconizado na reforma psiquiátrica, resultado da luta dos movimentos em prol de um atendimento de saúde mental digno e comunitário.

A ausência dos planos de ação regional da RAPS de cinco Regiões de Saúde do Estado, além de sinalizar quanto à não prioridade no planejamento da área, configura-se nas limitações deste estudo. Acredita-se que estudos sobre a temática realizados sob a perspectiva dos usuários, profissionais e gestores podem trazer contribuições para a produção científica na área.

Este estudo contribuirá para a compreensão da disposição da RAPS no estado do Rio Grande do Norte e o conhecimento das barreiras a serem transpostas, somando esforços para a efetivação desta rede, na luta por um cuidado mais humanizado e resolutivo às pessoas com transtornos mentais em consonância com os preceitos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Ademais, os dados elucidados nesta pesquisa podem fomentar reflexões para os demais estados do território brasileiro, bem como pode contribuir na produção científica na área de saúde mental.

 

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