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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.1 n.1 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

E foram felizes para sempre?1

 

Were they happy after?

 

¿Y fueran felices por todo o siempre?

 

 

Ana Margarida T. Rodrigues da Cunha2

Núcleo de Estudo em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - NESME

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Baseados na experiência de atendimento a uma “família – instituição”, tecnicamente denominada “família de guarda”, que adotou doze crianças, trazemos à discussão a importância de cuidar dos cuidadores, em função de vínculos conscientes e inconscientes que direcionam as dificuldades para exercer as funções familiares ... Será que a adoção intensifica os aspectos de mútua dependência chegando mesmo a paralisar o desenvolvimento dos filhos? Teria isto a ver com alguma parceria entre bondade e dependência? Ou filantropia e adoção?

Palavras-chave: Adoção, Família de guarda, Dependência, Filantropia.


ABSTRACT

Supported by clinical experience with a “family – institution”, technically named guard family that adopted twelve kids, we intend to bring to discussion the needs of taking care of who is taking care. Family functions are deeply influenced by difficulties in the linking patterns mostly unconscious as well as cultural ways of dealing with the child dependence and the gains off it by the adoptive fathers that affect its growth. Are there a nexus between careless and kindness? Or between philanthropy and adoption?

Keywords: Adoption, Guard family, Dependency, Philanthropy.


RESUMEN

A partir de la experiencia clínica con una “familia–institución” o familia de guarda, que tomó para adopción doce niños, intentamos discutir la necesidad de cuidar de los cuidadores. Las funciones familiares son profundamente influenciadas por dificultades en los patrones de interacción vincular en su mayoría inconscientes, así como pelas formas culturales de manejar la dependencia infantil e sus ganos que afectan su crecimiento. ¿Habría una relación entre carencia y bondad? ¿Entre filantropía y adopción?

Palabras clave: Adopción, Família de guarda, Dependência, Filantropia.


 

 

INTRODUÇÃO

As histórias infantis nos contam como, após uma série de peripécias, os heróis, vencendo perseguições inimagináveis, ampliam suas habilidades, encontram recursos para o enfrentamento da realidade e alcançam felicidade.

Todavia, o mesmo mecanismo que possibilita ser feliz, na saúde, aumenta a sensibilidade à dor e demanda maior tolerância à frustração. Estou falando daquela felicidade autêntica, não daquela resultante de mecanismos de defesa que atacam a percepção da realidade, fruto da vigência dos mecanismos de cisão que embora úteis para a mente primitiva, significariam adoecer se acrescidos do sempre.

Penso ser este apenas um dos vértices do qual se pode abordar o tema desta mesa, a partir de uma experiência prática.

Passarei então a sintetizar a história de uma família “adotante” de 12 crianças oriundas da FEBEM e das vicissitudes do vínculo de atendimento que aconteceu entre esta família e o NESME (Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares).

 

UMA ASSOCIAÇÃO SE FORMA, INSTITUINDO UMA FAMÍLIA DE GUARDA

Para isso seguiram trâmites legais: foram à FEBEM, falaram de seus propósitos, passaram por um período de experiência, negociaram alguma condições, tais como: “não queremos crianças bonitas de olhos azuis, mas aquelas que têm menos chances de serem adotadas.” Também não abriam mão como critério, da segurança que teriam com a adoção de crianças realmente abandonadas pelos pais, já que temiam perdê-las caso houvesse quem as reclamasse após cuidadas e com um vínculo estabelecido.

Um grupo de crianças se formou com essas características; a idade variava de quatro a doze anos e alguns eram irmãos consangüíneos que eles não desejavam separar.

Ao convívio inicial com as crianças, sem que fosse explicitada a intenção de adoção, seguiu-se os arranjos legais e as providências necessárias para que se efetivasse o processo para terem a sua guarda. Uma casa foi alugada, uma equipe de cuidadores montada, captação de recursos - montaram enfim uma estrutura familiar.

Tive notícias dessa empreitada na época em que ela teve início e lembro-me de pensar na coragem necessária para “meter a mão em tal cumbuca”. Uma sensação de estar frente a uma loucura e ao mesmo tempo sentia uma admiração e respeito pela iniciativa. Na época, eu atendia uma pessoa que trabalhara em um projeto de atendimento a crianças de rua e que havia sido deslocada para a FEBEM. Acompanhava com ela as situações dramáticas da institucionalização dessas crianças e as vicissitudes pelas quais minha paciente ia passando com essa experiência e que mobilizava nela emoções e reações extremamente primitivas e não menos dramáticas. Tento justificar, como vêm a “mão na cumbuca”.

 

ENCONTROS EXPLORATÓRIOS E QUEIXA

De onde viria essa coragem e mais do que isso a motivação que permitia ultrapassar as barreiras inerentes a tal empreendimento?

Uma história familiar nos foi oferecida para explicar as motivações para a adoção, quando seis anos depois, repeti essa pergunta no primeiro contato que tivemos com a Associação, agora na qualidade de profissional da área psi, membro do NESME, para onde encaminhara a solicitação de ajuda.

Contaram-nos a história de Fernando, idealizador da Associação, não presente na reunião. Filho de uma família grande e muito religiosa, perdera uma irmã muito nova e que era considerada uma garota muito especial pois tinha grande intimidade com os santos, a ponto de se referir à Virgem Maria, como Mariazinha. Já doente, contam que consolava os familiares, dizendo que ficaria bem, pois iria para junto DELA. Considerada santa, passou a ser, depois de sua morte, a intermediária entre a família e as forças divinas, para quem Fernando apelou, em momento de dificuldade, fazendo uma promessa cujo cumprimento o levaria a adotar trinta ou mais crianças carentes. Graça alcançada, o cumprimento da promessa foi adiado por um tempo, sofreu ajuste no número de crianças, até que se efetivou.

Mário, seu irmão, e a esposa deste Márcia, também se envolveram de perto no projeto, assim como seus pais e outros membros da família, entre os quais Lúcia (prima) que não estava envolvida diretamente com a Associação, mas contribuía sistematicamente, com seu trabalho como psicopedagoga e outras atividades. Promovera e participara anteriormente de um trabalho com as crianças e alguns membros da equipe que residiam com as crianças: tia Jô e seu marido Leo, com um grupo de teatro que envolveu a todos em uma atividade que permitiu um maior contato consigo mesmos e questões de seu cotidiano. Foi Lúcia que entrou em contato comigo, justificando o pedido de ajuda através de sua preocupação com mudanças que estavam ocorrendo no grupo: adolescência das crianças, mudança de espaço físico (a sede residência da Associação saiu da Granja Julieta e foi para Pinheiros). Percebia muita ansiedade entre as crianças e as sentia abandonadas neste momento de transição.

Esperava-se com a mudança, conter despesas e fazer frente a uma crise nas finanças tanto enquanto Associação como enquanto pessoas. Remodelaram seu modo de vida e pretendiam arrumar emprego tanto para eles (Márcia havia deixado seu trabalho para se dedicar mais à Associação), como para as crianças, investindo em relativizar a dependência dos recursos da Associação através de uma vida que permitisse maior autonomia, pela proximidade da nova casa com escolas, centro comercial onde poderiam se empregar, facilidade de condução etc.

Propusemos um encontro inicial com a equipe da Associação: Fernando, seu mentor, Mário, Márcia que apesar de não morarem com as crianças eram os adultos que administravam de perto o lar adotivo, tia Jô, que juntamente com o marido residiu com eles por seis anos e agora na nova casa vinha diariamente, enquanto seu marido arranjara um emprego, Celina, contratada para os afazeres domésticos, coordenar a vida cotidiana, sendo ela que dormia na casa e Lúcia que solicitara ajuda. Nossa equipe compunha-se de Marilda, na época coordenadora da Clínica, Beth, diretora do nosso Centro de Formação Permanente Em Psicanálise dos Vínculos (CEPPV) e eu, coordenadora da Área de Família e Casal do NESME. As primeiras reuniões foram na nova sede da Associação tendo por objetivo compreender melhor a demanda e formaliza-la. Ao contato inicial, seguiu-se mais dois encontros com intervalos de duas semanas entre eles, no fim dos quais concordamos em iniciar um trabalho com a equipe mentora e a cuidadora da Associação, para pensarmos juntos alguns elementos que foram levantados nesta primeira fase e que implicavam em coletivizar a preocupação que inicialmente era apenas de Lúcia. Concordamos em lidar com as angústias inerentes ao ciclo vital em que se encontravam e os mal-entendidos e ambigüidades a respeito de sua função. Eles pareciam desejar “passar para nós o pacote”, que não conseguiam digerir. Neste, se incluía a dificuldade de lidar com a sexualidade das crianças, suas experiências anteriores que imaginavam de abusos e violência, enfim, com filhos que, segundo eles, se eternizariam na dependência, “tal como ocorre em qualquer família que tenha um filho excepcional”, diziam. Temperavam tudo isso, com uma grande dose de idealização de sua função entre outros mecanismos de fuga imobilizando assim, um maior contato com as crianças, suas famílias de origem, enfim sua história e particularidades sem o que não podiam por exemplo, entender as três dissidências que tiveram (sentidas como traição e falta de gratidão) ou com acusações de que alí não era diferente da FEBEM. Tampouco percebiam suas próprias dificuldades para que pudessem pedir ajuda para si mesmos e/ou inaugurar novos rumos em seu relacionamento.

 

CONTRATO E O TRABALHO COM A FAMÍLIA DE GUARDA

Iniciamos o atendimento, agora na sede do NESME, com a presença de Mário, Márcia, Lúcia, Marilda, Betty, Ana Margarida e Catalina que se juntara à nossa equipe. Fernando, convidado, não compareceu e tampouco tia Jô.

Nossa tarefa era realizar um contrato de trabalho, estipular objetivos, frequência dos encontros, um preço mínimo compatível com suas dificuldades e ao mesmo tempo coerente com o sistema de atendimento da Clínica do NESME, e propor a estratégia a ser usada. No caso, o uso de um livro de história infantil, que nos permitiria acesso à elaboração da divisão mãe boa/ mãe má, definida por nós como instrumento de abordagem naquele momento.

Estava consciente para nós, fruto de nossas discussões enquanto equipe e da elaboração da nossa própria contratransferência, a importância do contrato e introdução do pagamento como forma de introduzir um terceiro, a lei, para nos proteger deste modelo irreal e parasitário que permeia as relações de caridade. Nossa contratransferência porém, fazia parceria com seus anseios tanto que ainda no primeiro encontro, me surpreendi fazendo planos de doações de móveis, livros, roupas, e o mesmo acontecia com outros membros de nossa equipe, ou seja: uma reação tradicional frente à carência e que nos colocava como os que dão esmolas e os definia como passadores de chapéu. Essa percepção nos angustiou e sentimos ter que conquistar um outro lugar, específico à nossa identidade se queríamos ajudar.

Emergiram neste encontro as dificuldades para o pagamento não apenas financeiras já que nos dispúnhamos a adequá-lo a um preço simbólico além de discutir com eles formas de mobilizar os próprios recursos. “Se estamos em uma empresa que beneficia a sociedade e é uma alternativa para substituir a FEBEM, por que ela não paga por isso?”. A idéia aqui, não é reproduzir a reunião, mas tentar passar as emoções envolvidas e que iam definindo os núcleos a serem trabalhados. Surgiu também na reunião uma revolta com pessoas e instituições que haviam ajudado mas que tinham colocado um limite e agora, iam “ajudar outras entidades” ou resolveram parar por precisarem trabalhar. Como eles próprios iriam se autorizar a voltar a trabalhar, se o significado que davam a isso era tão pesado? Onde ficava a possibilidade de sentirem gratidão por uma ajuda a não ser que fosse ilimitada, ou o que dizer do sentimento deles de que não recebiam dos filhos adotivos o reconhecimento esperado? Em outros momentos, imaginavam os jovens tomando para si a tarefa de cuidar de crianças carentes, em um processo de identificação com os modelos que davam.

O trabalho propriamente dito foi intermediado por um conto de fadas “A bruxa Salomé” (WOOD, A. 1987), que a par de nos colocar em um mundo onírico e mítico, nos permitia pensar os emergentes do grupo relacionando-os com as questões que levantamos acima.

Foram quatro encontros, permeados de intercorrências tais como não comparecimento por perda de hora, ou propostas de mudança de horário, mas também por discussões sobre os conteúdos da história que iam significando nossos encontros... Nos despedimos ficando de nos reencontrarmos depois das férias para planejamento da continuidade do trabalho. Márcia arranjara emprego e sua disponibilidade mudara. Nós, acredito, precisávamos também de uma certa distância e as férias eram bem vindas.

 

DISCUSSÃO: DAS CRIANÇAS CARENTES À CARÊNCIAS DOS CUIDADORES

Quis trazer esta experiência porque ela nos permite inverter o foco, partindo da premissa de que pais, adotivos ou não, instituições profissionais envolvidos no processo de ajuda das mais diferentes áreas, necessitam eles próprios, mais do que conhecimento racional para os vínculos que estabelecem. Estamos falando de uma carência não intelectual, mas que envolve o mundo inconsciente e os processos primitivos assim como séculos de uma “cultura”, difícil de mudar, tanto mais que partilhada por nós e que nos coloca frente a sensação de “nadar contra a corrente” se tentarmos nos opor a ela.

Que bom esses trabalhos, que nos pressionam a enfrenta as correntezas do nosso próprio narcisismo, e a nos rever! Mas que frustração quando nos deparamos com a sensação de termos “jogado o bebê com a água do banho”. O fato é que das quatro reuniões na sede do NESME, nenhuma foi paga (e o que é pior... com a nossa anuência). Ainda assim, o trabalho foi interrompido.

Em termos de resultados da experiência, um acompanhamento a posteriori, nos mostrou o cuidado que devemos ter também na avaliação. Nem idealizada nem melancólica, a experiência nos propõe sem dúvida um desafio de ir consertando e construindo os nossos rumos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

WOOD, A. A bruxa Salomé. São Paulo: Ed. Ática, 1994.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Margarida T. Rodrigues da Cunha
E-mail: anamargc@yahoo.com

 

 

1 Apresentado no II Congresso da SPAGESP e VIII Jornada do NESME - abril/2004.
2 Psicóloga, Psicoterapeuta individual e de grupo, Coordenadora da Área da Família e Casal do NESME - Núcleo de Estudo em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares.

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