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Vínculo
versão impressa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.13 no.1 São Paulo jun. 2016
ARTIGO
A Clínica de família no Centro de Atenção Psicossocial III: psicose e Configurações Vinculares
The family Clinic in Center Psychosocial Care III: psychosis and Link Configurations
La Cinica familiar en el Centro de Atencion Psicossocial: psicosis y Configuraciones Vinculares
Anamaria da Silva Neves1; Nara Amaral de Omena2
Universidade Federal de Uberlândia
RESUMO
O presente artigo pretende lançar um olhar sobre a clínica de família nos Centros de Atenção Psicossocial- CAPS, discutindo as estratégias de atendimento à família nas modalidades do grupo de familiares e da terapia familiar. Primeiro abordamos o contexto das mudanças da atenção em saúde mental com o foco na atenção psicossocial e o dispositivo dos CAPSs. Discute-se a contribuição da Psicanálise para o contexto da Saúde Mental e especificamente a Psicanálise de Família ou das Configurações Vinculares. Apresentamos um fragmento de um atendimento de família. Ressaltamos a importância da escuta de toda a família para que o novo modelo de atenção psicossocial se constitua. Assim, a terapia familiar no CAPS se insere como um dos dispositivos de cuidado fundamental no encontro cotidiano com o sofrimento, tomando como ponto de partida não apenas o sujeito, mas seus vínculos, ampliando o cuidado a família de modo significativo.
Palavras-chave: Clínica de Família. Saúde Mental. Configurações Vinculares. Psicose.
ABSTRACT
This article aims to cast a glance over the family clinic at the Psychosocial Care Centers – PCCs, discussing the strategies of family care in the forms of family groups and family therapy. First we address the context of changes in mental health care with the focus on psychosocial care and the implement of the PCCs. We discuss the contribution of Psychoanalysis to the context of Mental Health and specifically the Psychoanalysis of Family or the Psychoanalysis of Link Configurations. We present a fragment of a family treatment. We emphasize the importance of listening to the whole family in order to enable the constitution of a new psychosocial care model. Thus, family therapy at the PCCs becomes one of the fundamental care devices in the daily encounter with suffering, taking as a point of departure not only the subject, but his links, thus expanding family care in a significant way.
Keywords: Family Clinic. Mental Health. Link Configurations. Psychosis.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo poner atención a la clínica en CAPS Centros de Cuidado Psicosocial-, discutiendo las estrategias de atendimiento a la familia en términos del grupo familiar y terapia familiar. En primer lugar se acercó el contexto de los cambios en la atención de saludmental con un enfoque en la atención psicosocial y el dispositivo del CAPS. Se discute la contribución del Psicoanálisis con el contexto de la Salud Mental y, específicamente, el Psicoanálisis de la Familia o de las Configuraciones de Vínculos. Presentamos un fragmento de un atendimiento de familia. Resaltamos la importancia de escuchar toda la familia para que el nuevo modelo de atención psicosocial se constituya. Así que la terapia familiar en el CAPS se incluye como uno de los dispositivos de cuidados fundamentales en el encuentro diario con el sufrimiento, tomando como punto de partida no sólo el sujeto, pero sus vínculos, ampliando significativamente el cuidado de la familia.
Palabras-clave: Clínica de Familia. Salud Mental. Configuraciones Vinculares. Psicosis.
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende refletir sobre a clínica de família nos Centros de Atenção Psicossocial, discutindo as estratégias de atendimento à família nas modalidades do grupo de familiares e da terapia familiar.
A criação dos CAPS como serviços substitutivos, representou a mudança na assistência à loucura. O CAPS é, por definição, um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico que tem como foco a atenção integral e territorial ao usuário em sofrimento mental grave, atenção essa chamada de Psicossocial. A Atenção Psicossocial tem como paradigma o cuidado em liberdade, de forma que esse cuidado se volte para os modos de vida do sujeito e vá além do diagnóstico e da doença, tendo como desafio a produção de novos modos de cuidado, novos modos de pensar e estar com as pessoas, baseados na flexibilização de normas, na singularidade e na abertura aos familiares e à comunidade dentro de um determinado território (Amarante, 2007).
O modelo de atenção psicossocial propõe a construção de uma rede de cuidados em saúde mental, cabendo aos CAPS prioritariamente o cuidado a os sujeitos em momentos de crise, mantendo seu vínculo com o território, no cotidiano, com sua família.
O campo da saúde mental "acentua o caráter complexo e múltiplo da experiência da loucura, justamente por se dirigir ao sujeito inserido no conjunto múltiplo de suas relações" (Bezerra Junior, 2007, p. 24). A clínica da Saúde Mental incorpora as questões relacionadas com a vida do sujeito, seus vínculos, seu trabalho, seu mundo familiar.
2. O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL - CAPS
A assistência à "doença mental" no Brasil passou por profundas mudanças. A partir da década de 1980, com o movimento dos trabalhadores em saúde mental, iniciou-se uma discussão acerca dos modelos de assistência à loucura, sob a influência do modelo italiano de desinstitucionalização, levando a novas diretrizes do cuidado pautado pelo respeito à dignidade e à liberdade às pessoas com sofrimento psíquico. Paulatinamente foi se organizando uma rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos, na qual estão incluídos hoje os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Os CAPSs têm sido um dispositivo amplamente difundido dentro do movimento da Luta Antimanicomial.
Com a lei conhecida como Paulo Delgado, Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, foi repensada a política pública de saúde mental brasileira, alterando o modelo hospitalocêntrico, até então hegemônico no Brasil, pelo modelo de atendimento psiquiátrico comunitário, baseado em serviços de saúde mental descentralizados, visando à recuperação do sujeito pela inserção na família, no trabalho e na comunidade.
Nessa lógica, são instituídos os CAPS que tem o papel importante no atendimento à crise psicótica. São dispositivos voltados ao atendimento de psicóticos e neuróticos graves em situação de agudização da crise: "podemos chamar assim aqueles momentos em que o sofrimento mental se torna realmente insuportável para o sujeito e/ou para aqueles que o cercam" (Linha Guia em Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado Minas Gerais, 2006, p.150).
O CAPS funcionou, inicialmente, como articulador estratégico da rede de saúde mental em seu território na reorganização da assistência para superação do modelo asilar.
Apoiada na Lei 10.216, em 2011 foi instituída, pela portaria nº 3088/11, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que busca a consolidação do modelo de saúde mental de base comunitária. Vivenciamos outra mudança de perspectiva, com a RAPS, na construção de uma rede de saúde mental efetivamente integrada e articulada para o cuidado às pessoas. O CAPS deixa de ser o articulador da rede de saúde mental para compor junto a outros equipamentos uma rede de cuidados, ou seja, não há mais centralidade de nenhum dispositivo dentro da rede.
Lobosque (2007) argumenta que o CAPS apresenta o paradoxo de ser um serviço aberto, um espaço voltado para fora dele mesmo e um espaço de intimidade psíquica. A proposta do CAPS é ser um serviço aberto para a comunidade que, ao mesmo tempo, favoreça encontros que possibilitem "reconstruir certa privacidade psíquica, perdida na psicose, sem a qual é humanamente impossível viver, mas que só se pode construir à medida que se abre para outros horizontes, inclusive os desconhecidos!" (Lobosque, 2007, p.55).
Dentro do contexto da Atenção Psicossocial, a crise é entendida como um resultado de diversos fatores que envolvem o sujeito, os familiares e a comunidade. Logo, é necessário que os serviços em saúde mental envolvam todas as pessoas e possibilitem que elas sejam incluídas e possam expressar suas dificuldades, temores. O vínculo com todos os envolvidos é fundamental para que sejam efetivamente ouvidos em seus clamores. Na Atenção Psicossocial, "... o que se pretende é uma rede de relações entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam – técnicos – com sujeitos que vivenciam as problemáticas – os usuários e familiares e os outros atores sociais" (Amarante, 2007, p. 82).
Os CAPSs se propõem, além de evitar ou diminuir as internações psiquiátricas, desenvolver vínculos familiares e comunitários essenciais para o estabelecimento de novas possibilidades de vida. Alguns questionamentos emergem então: Os CAPSs têm conseguido desenvolver esses vínculos? Com têm sido implementada essa prática?
Matos (2010) assinala que, apesar das transformações ocorridas no âmbito da Saúde Mental, encontramos obstáculos para a superação do modelo hospitalocêntrico.
A reflexão da prática clínica em saúde mental no CAPS apresenta desafios de diversas ordens. Propomos o recorte da clínica de família, sob o viés psicanalítico, por apreendê-la comofundante da subjetividade do sujeito, mediadora entre o sujeito e a sociedade, essencial no trabalho com a psicose e consonante com as práticas de cuidado na atenção psicossocial em saúde mental.
3. A PSICANÁLISE, A SAÚDE MENTAL E AS CONFIGURAÇÕES VINCULARES
A Psicanálise com a introdução dos conceitos de inconsciente, da escuta e singularidade da apreensão de cada caso promoveu uma ruptura epistemológica com os ideais de normatividade e adaptação. A Psicanálise elucida o jogo psicodinâmico de forças inconscientes presente no sujeito, interroga o sentido que os sintomas têm na sua trajetória e abre caminhos para outras formas de posicionamento subjetivo (Bezerra Junior, 2077). Dessa maneira, a Psicanálise é um dos pilares teóricos do campo Antimanicomial, "a clínica da Reforma Psiquiátrica exige um diálogo, com as tradições teóricas de que somos herdeiros, especialmente a psicanálise" (Delgado, 2007, p. 61).
A Psicanálise modificou as formas de concepção do homem, com o conceito de inconsciente. Freud (1894/1996) tratou o sintoma não como degeneração, mas como via de expressão do sujeito. Ao lançar seu olhar sobre a histérica, buscou compreender a histeria além de seus sintomas, valendo-se de sua relação comas pacientes, traduzida na transferência. Essa maneira de pensar e agir influenciou a cultura, ao mesmo tempo em que foi influenciada por ela. No campo da saúde mental, hoje, ainda possibilita uma nova compreensão sobre a psicose, embasando novas formas de cuidado.
A discussão sobre a mobilidade da fronteira entre o normal e o patológico é um dos marcos da discussão no campo da clínica em Saúde Mental. Deste modo, Lobosque (2007) considera a interlocução entre a Psicanálise e o campo da saúde mental:
Há algo em comum entre estas experiências de pensamento e ação, mesmo quando não se influenciam diretamente, ou até quando polemizam entre si, a saber: uma crítica radical à soberania isenta e desinteressada da razão, tal como sustentada por uma antiga cumplicidade entre a ciência, a filosofia, e a moral; uma subversão da concepção tradicional de sujeito; um destaque à dimensão do inconsciente; um interesse por aquilo que até então se desvalorizava como irracional. Desta forma, uma atividade intelectual muito viva e intensamente combativa, nos anos 60 e 70 do século XX, retoma toda uma inquietação já suscitada por Nietzsche e Freud no século XIX conferindo especial atenção às questões colocadas pela loucura (Lobosque, 2007, p. 38).
A Psicanálise reconhece que as formas de ser e de sofrer são constituídas na intersubjetividade. Portanto, é no espaço psíquico familiar que se constitui a subjetividade do sujeito. Pensar a psicose ou o sujeito que adoece é considerar o campo intersubjetivo que gera e sustenta esse adoecimento, do qual fazem parte não apenas a família – inicialmente a relação mãe- bebê – mas também os grupos sociais e a comunidade como um todo. Somo sujeitos atravessados pelo simbólico e pela cultura (Bion, 1995; Berenstein, 2011; Eiguer, 1985; Kaës, 2011).
Os analistas de grupos, casais e família, a partir de diferentes inquietações e fracassos nas respectivas práticas, começaram a perceber que a simples transposição do modelo conceitual da análise individual não responderia à complexidade dos vínculos. Com o tempo, as modificações teóricas e clínicas foram dando origem a diferentes abordagens psicanalíticas de vínculosdenominadas de Configurações Vinculares, ainda que cada configuração – casal, família e grupo – tenha suas especificidades (Puget, 1997).
A Psicanálise de casal e família surge como uma ampliação da Psicanálise individual, com a experiência dos grupos e atendimento de patologias graves como a psicose (Gomes, 2009).
O tratamento de grupo de familiares esteve ligado aos atendimentos institucionais realizados a pacientes esquizofrênicos e suas famílias. Pichon-Rivière (1983), psiquiatra argentino, evidenciou a influência dos vínculos da família na produção da psicose e encontrou nela as bases para a compreensão da doença mental, através da noção de "porta voz ou depositário" das tensões do grupo familiar. Para o autor, a doença mental não é considerada como doença de um sujeito, mas de todo o grupo familiar. Existe um grupo familiar doente que deposita no paciente ansiedades e tensões de todo o grupo, do qual o paciente é emergente. Denominado de paciente depositário, emergente ou designado, ele adoece como uma forma de se preservar do caos inerente ao grupo familiar. Se o papel do paciente for eficaz, o grupo consegue manter certo equilíbrio.
O desafio no atendimento de pacientes de difícil abordagem, dentre eles o psicótico, determinou o interesse psicanalítico pela família e seu funcionamento. Os psicanalistas de família se apoiaram nos referenciais desenvolvidos por Freud, Bion, Klein, Winnicott, Bleger e Pichon- Rivière, fundamentalmente, para desenvolver suas teorias.
Existem várias correntes teóricas na área de casal e família. A corrente inglesa é representada pela produção emblemática da Clínica Tavistock, sediada em Londres, onde diversos analistas iniciaram o atendimento de família e casal, trabalhando com a noção kleiniana de mundo interno, objeto interno, relações de objeto familiares. A Psicanálise Vincular ou das Configurações Vinculares tem, na França, como principais fundadores, Eiguer e Kaës. Na América Latina, Pichon- Rivière, Berenstein e Puget, com a noção do vincular, apresenta uma corrente teórica que se diferencia da Psicanálise inglesa e da noção de relação de objeto.
A escola inglesa tem ancorada sua produção teórica nos trabalhos realizados na Clínica Tavistock com grupos, crianças e famílias. Baseia-se nos trabalho de Klein e Bion, respectivamente os conceitos de relação de objeto e de grupo. A característica comum entre eles é a i mportância atribuída à fantasia inconsciente na elaboração e desenvolvimento dos relacionamentos, enfatizando a experiência emocional vivida no "aqui agora" como possibilidade de se elucidar o "mundo interno" ou "fantasias compartilhadas" na família, assim como a ênfase na noção de "espaço para pensar" (Box, 1994, p. 17). A condição de pensar, tanto do indivíduo, quanto da família, mantém relação com estados afetivos e com a forma de lidar com a dor psíquica e possibilita reagir a essas experiências. Sendo assim, o foco do trabalho é o espaço para a família entrar em contato com seus sentimentos e ser capaz de ampliar a capacidade de pensar suas experiências emocionais.
Meyer (2002), representante da escola inglesa, discorre sobre a noção de relações objetais familiares, e pode ser comparada aos vínculos, e ao modo como os membros da família atribuem e comunicam uns aos outros características particulares. Segundo o autor, o ponto central para a compreensão da dinâmica familiar é a noção de um conflito intrapsíquico que se desloca para os outros membros. O mecanismo responsável por essa interação é a identificação projetiva, meio pelo qual parte do mundo interno do sujeito é deslocada, projetado para outro objeto. Por essa razão, o sujeito fica despossuído dessa parte, distorcendo a percepção do outro e de si mesmo. Dessa forma,pode-se postular a existência de um "objeto familiar inconsciente, cuja externalização irá modelar a qualidade das interações pessoais dentro da unidade familiar" (Meyer, 2002, p. 22). A qualidade das interações familiares dependerá do interjogo de identificações projetivas que poderá se fixar em papéis e posições rígidas, tentando manter o outro na condição de continente de determinados aspectos inconscientes indesejados de si mesmo. Da mesma maneira, a estrutura psicótica se configura com o uso excessivo do mecanismo de identificação projetiva e o uso de defesas primitivas contra as ansiedades.
O arranjo compartilhado por todos do grupo familiar dependerá da forma como lidam com sentimentos penosos e contraditórios advindos da condição humana: perda, separação, exclusão, dependência entre outros.
Na clínica francesa são destacados dois teóricos que apresentam importantes contribuições sobre o atendimento familiar e grupal, respectivamente, Albert Eiguer e René Kaës.
Eiguer (1985), no atendimento às famílias, pesquisou os mecanismos de funcionamento inconsciente e seus vínculos, e desenvolveu o conceito de interfantasmatização, que seria o ponto de encontro dos fantasmas individuais de cada membro familiar (Eiguer, 1985, p. 43).
Eiguer (1995) aplica as teorias freudianas do investimento narcísico e libidinal aos vínculos e considera que os vínculos: narcísico e libidinal contribuem para a solidez do grupo familiar, juntamente com a interfantasmatização. O vínculo narcísico é o investimento narcísico comum às ligações humanas e para o qual cada membro da família contribuiria. O vínculo libidinal de objeto seria dominado pelos investimentos libidinais de objeto, e funcionaria de modo conjunto e articulado entre os parceiros, pela identificação projetiva.
Em relação à família de pacientes psicóticos, Eiguer (1985) assinala que o vínculo narcisista predomina como modo de funcionamento não havendo acolhimento das angústias do outro, prevalecendo fantasias de interpenetração e fusão. O autor propõe a compreensão do sintoma psicótico como produção interfantasmática do grupo familiar, ainda que o sintoma psicótico possa ser analisado de acordo com o funcionamento individual, intrapsíquico. Eiguer considera que, "assim como o sintoma neurótico é um compromisso entre duas instâncias do aparelho psíquico individual, o sintoma psicótico é uma formação de compromisso empregada pelo funcionamento familiar" (Eiguer, 1985, p. 89-90).
A interfantasmatização inconsciente é descrita como um duplo investimento recíproco e simultâneo entre os indivíduos. Os membros do grupo "são invadidos por um movimento de ilusão narcísica em que se permitem, da mesma forma que o bebê com a mãe, criar fantasias 'em uníssono'" (Eiguer, 1995, p. 111). A interfantasmatização preenche um dos papéis de organizador do psiquismo familiar, o terceiro organizador. Este conceito se apoia nas ideias de Spitz, Anzieu e Ruffiot.
Outro autor da escola francesa que apresenta significativas contribuições ao tema grupal é R. Kaës. Suas proposições visam apreender como o sujeito do inconsciente se encontra submetido a um "conjunto intersubjetivo" de sujeitos do inconsciente, sustentando que o sujeito do inconsciente é o sujeito do grupo, isto é, sujeito formado da e na intersubjetividade. A intersubjetividade "se constrói num espaço psíquico próprio a cada configuração de vínculos" (Kaës, 2011, p. 23). Sua produção teórica se desenvolve a partir de uma questão central para a Psicanálise: a condiçãointersubjetiva da formação do inconsciente e do sujeito do inconsciente. Para o autor a transmissão psíquica é análoga à transmissão do inconsciente grupal. Ele retoma o artigo de Freud (1914), Uma introdução ao narcisismo, do qual destaca a dupla existência do indivíduo, "é o fim para si próprio e encontra-se submetido a 'uma cadeia' da qual ele é o elo, beneficiário, servidor e herdeiro" (Freud, 1914/1996, p. 85). O sujeito está submetido a uma ordem intersubjetiva que o constitui, ele existe no desejo inconsciente dos pais e avós.
Kaës (2011) sustenta que não se pode deixar de estar na intersubjetividade, ou seja, o sujeito se constitui a partir das ligações inconscientes com outros sujeitos. Estas podendo ser estruturantes ou alienantes. O sujeito do inconsciente é sujeito do vínculo, e é no vínculo com o outro e com "mais de outro" (Kaës, 2011, p. 23) que a sua vida psíquica se constrói. Portanto, a família, enquanto grupo, tem tanto a função estruturante, quanto pode se tornar alienante.
Para o autor, o processo de transmissão psíquica implica ligação entre gerações, favorecedora de transformações, uma evolução entre o que é transmitido e o que é herdado e depois adquirido. Fundando assim a subjetividade do sujeito, constituindo sua própria história, permitindo que o sujeito se inscreva em um grupo, diferenciando-se dos demais. Esta é a transmissão psíquica intergeracional, feita de ligações e transformações.
Nem sempre a transmissão psíquica se dá dessa maneira, ainda segundo o autor, a transmissão psíquica se dá preferencialmente transmitido no interior da família por aquilo que não se contém, aquilo que não foi possível de metabolização, de integração, transmite-se os lutos, os segredo, os vazios, os traumas que não puderam ser elaborados. Temos então a transmissão psíquica transgeracional.
Kaës (2011) se interessa pela questão da intersubjetividade e adverte para a condição intersubjetiva da formação do inconsciente e do sujeito do inconsciente. Considera que a noção de alianças inconscientes abre caminho para esta análise, ou seja, o processo de formação do inconsciente e o sujeito do inconsciente na intersubjetividade:
devido a sua estrutura, a seus conteúdos e a suas funções, as alianças inconscientes são a base e o cimento da realidade psíquica que nos liga uns aos outros, formam a matéria da realidade psíquica própria a um vínculo intersubjetivo: um casal, uma família, um grupo, um conjunto institucional. As alianças inconscientes são eficazes em outro nível: são um dos modos de produção do inconsciente recalcado e do inconsciente não recalcado exigido para fazer parte do vínculo. Elas fabricam uma parte do inconsciente de cada sujeito: cada um de nós está sujeito a tais alianças. Elas são constitutivas da realidade psíquica do sujeito singular, na medida em que ele é sujeito do vínculo (Kaës, 2011, p. 225-226).
Cada um de nós é sujeito e sofre o efeito das alianças inconscientes. Kaës (2011) distingue as alianças que contribuem para a estruturação psíquica: o pacto edipiano, o contrato narcísico e as alianças com derivações alienantes e patológicas, como o pacto denegativo. Para o autor as alianças se baseiam em diversas operações defensivas, ao mesmo tempo em que são necessárias à formação do vínculo, cria neste o não significável, que mantém os sujeitos alheios a sua própria história.
A análise do sintoma, então, deve ser buscada não somente na estrutura do próprio sujeito, mas na análise intersubjetiva, nos vínculos mantidos através dos pactos, alianças, através dosintoma e do sofrimento daquele que se faz "porta sintoma", para ele mesmo e para os outros (Kaës, 2011). Os pactos, as alianças inconscientes são tecidos para que os sujeitos não saibam nada de si ou dos que o antecederam, seus pais, seus avós. E são tecidos cotidianamente nos vínculos familiares.
Isidoro Berenstein e Janine Puget, psicanalistas argentinos, criaram n ovas bases para a Psicanálise de Família com a noção de vínculo, ou o que eles preferem denominar de vincular, já que vínculo é um termo largamente utilizado na Psicanálise com vários sentidos. Os autores investigam os vínculos familiares, as produções sintomáticas do vínculo, bem como a estrutura do sujeito produzido no vínculo, e consideram o vínculo como "uma estrutura inconsciente que une dois ou mais sujeitos, e que os determina em base a uma relação de presença" (Berenstein, 2001, p. 246).
Assim, juntamente com Puget, Berenstein (a partir da clínica com famílias e casais, desde a década de 1950), sistematizou uma teoria própria sobre o "vincular". O termo passou por modificações desde a década de 1970. Os estudos (Berenstein, 2011 &Puget, 2012), argumentam que o paciente está inserido em uma trama familiar e estabelece vínculos próprios, com sentidos próprios a partir do que foi herdado pelo processo de identificação, denominado de intrasubjetivo; também pelas experiências dolorosas vividas por seus pais e que não puderam ser introjetadas, com aspectos transgeracionais ou intergeracionais; e a partir de seus vínculos presentes graças às experiências da cultura, constituem os vínculos transubjetivos.
A dimensão intersubjetiva é ponto de importante discussão para a Psicanálise. Na Psicanálise Vincular, a dimensão intersubjetiva é reservada para o desenvolvimento que ocorre na presença do outro, ou de mais de outro, ou "entre" outros. Berenstein (2011) destaca que vínculo "é da ordem da apresentação e da ação que se deriva do fazer. Este componente não está representado nem o poderia estar, porque não foi realizado. O que está ainda não foi feito, pode ou não ser levado a cabo" (Berenstein, 2011p. 94).
A análise individual esteve centrada nas identificações, na identidade, nas elaborações das perdas de objeto, na ausência. Na análise vincular, há um descentramento e a identificação divide o lugar com a presença, com a imposição do outro a partir de sua alteridade, da ajenidad (Berenstein, 2011; Puget, 2012). A diferença entre presença e ausência permitiu a passagem para outro modelo psicanalítico bastante diferente. Outra metapsicologia é construída onde não há hegemonia na constituição da subjetividade, não há centro, nem Complexo de Édipo, nem vínculo.
Para Berenstein (2011), vínculo é "o trabalho de estar juntos na diferença e de produzir um encontro" (Berenstein, 2011, p. 102). Aqui, a condição necessária para a vida é estar com os outros e fazer algo entre os outros. A subjetividade vincular entende que o sujeito se torna outro no vínculo com o outro, na sua diferença, e essa diferença marcará o trabalho vincular. No vínculo com o outro, ambos se produzem como sujeito, e se tornam "outro com o outro", se modificam, nenhum é o centro, e são constituídos a partir das relações de poder presentes no vínculo.
A noção de vínculo está imbricada com o conceito de outro. Condição já reconhecida na Psicanálise como elemento constitutivo de subjetividade. No vínculo, o outro é marcado pela ajenidad apresentando o irrepresentável e incognoscível. Nesse sentido, a temática da diferença está presente retomando de forma original a condição de estrangeiridade, com a presença de um outro.
Berenstein (2011) diz que "o conjunto família se constitui mediante um 'fazer' com isso que seus integrantes supõem semelhante – por isso normalmente se chama 'familiar' aquilo conhecido, que em parte o é e em parte não – e requer um trabalho com os outros que trazem uma alienidade, de onde surgirá o novo" (Berenstein, 2011 , p. 21). O autor ressalta a diferença como aspecto central dentro dos membros da família e não a unicidade da família que se considera "um".
Cada família surge de uma estrutura familiar inconsciente, com vínculos peculiares. Vários sujeitos estão vinculados e existe entre eles uma relação estável, com aspectos inconscientes específicos que os ligaram durante um tempo. (Berenstein, 2011 , p. 35).
A visão contemporânea da Psicanálise busca a integração dessas contribuições dentro da prática clínica.
No Brasil, a Psicanálise de família e casal sofre influência das duas tendências. Gomes (2009) analisando nosso contexto elenca as principais referências: Féres-Carneiro, a introdutora da psicoterapia de família e casal no Brasil, orientada por Mathilde Neder (PUC/SP). A academia possibilitou o desenvolvimento profícuo em relação à clínica de família, assim como outros grupos, tanto das Sociedades de Psicanálises de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, como os Núcleos: Núcleo de Estudos em saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME), Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo (SPAGESP), Associação Brasileira de Psicoterapia Analítica de Grupo (FLAPAG).
4. A CLÍNICA DE FAMÍLIA NO CAPS
O trabalho de um CAPS tem como princípio a não interrupção dos vínculos de seus pacientes com o seu cotidiano. O paciente é acompanhado durante o dia e retorna à sua casa, criando novos vínculos, e mantendo os vínculos já estabelecidos. Assim, ele chega ao CAPS com as demandas de suas relações vividas em casa, no seu bairro.
Uma das demandas desses pacientes diz respeito às relações estabelecidas no ambiente familiar. Desde questões que precipitaram a crise, relacionadas aos acontecimentos familiares, como a perda de um ente querido, o nascimento ou casamento na família, até conflitos e persecutoriedade, que são direcionados à figura de um familiar mais próximo, divergências que se estendem ao reconhecimento do adoecimento, a condução do tratamento, ou recusa desse, tanto pelo paciente quanto pelo familiar. Desse modo, o projeto do paciente é articulado aos familiares e/ou responsáveis que o conduzem ao CAPS para o tratamento.
As estratégias de cuidado às famílias nos CAPSs incluem o atendimento de grupo de familiares, atendimento do núcleo familiar, participação nas assembleias, atendimento individual e atendimento domiciliar (Linha Guia, 2006). Essas diversas modalidades são desenvolvidas de acordo com a interação de cada família com a equipe.
Nos CAPSs, o atendimento em grupo constitui o principal recurso terapêutico. As iniciativas grupais surgiram com as experiências de reforma dos hospitais psiquiátricos, no atendimento aos doentes mentais (Lancetti, 1993). Os dispositivos grupais foram valorizados em função da importância das trocas interativas que o grupo possibilita, funcionando como um espaçode potencialidade de trocas intersubjetivas. A prática com grupos inicialmente aconteceu com casos de neuroses graves, psicoses ou estados-limites, borderlines.
Bion (1975), partindo de suas experiências com grupos em um hospital militar durante a Segunda Guerra, assim como na Clínica Tavistock, desenvolveu suas ideias a respeito dos fenômenos regressivos e inconscientes do grupo. Ele postulou sobre o funcionamento grupal em dois planos: um consciente, que denominou de grupo de trabalho, e o outro inconsciente, chamado de grupo de pressupostos básicos, que são reações defensivas e ansiedades primitivas, reativadas na experiência grupal. Esses dois planos funcionam de forma dinâmica e interligados. Para o autor, todo indivíduo tem esses aspectos da grupalidade.Cada dispositivo grupal tem suas especificidades. A seguir, apresentaremos o grupo de familiares e o desenvolvimento da terapia familiar.
O grupo de familiares é uma estratégia de cuidado às pessoas com as quais o paciente estabelece vínculos, possibilitando o acolhimento do sofrimento na convivência com a loucura. Pode ainda ser útil aos participantes no auxílio a funções do pensamento, no pensar sobre suas experiências emocionais, o que "implica escutar os outros, assumir o próprio quinhão de responsabilidade pela natureza do sentimento que acompanha a ideia, estabelecer confrontos e correlações e, sobretudo, sentir liberdade para pensar" (Zimerman, 1997, p. 44). O grupo também propicia aos familiares a oportunidade de identificar novas maneiras de pensar os problemas e discriminar os distintos aspectos das diferentes situações.
O espaço do grupo por si só pode representar um potencial terapêutico, de continência e de troca de vivências emocionais para os familiares que se encontram muitas vezes culpabilizados e isolados diante da experiência da loucura.
Dentre as estratégias de atenção à família, o grupo de familiares tem sido utilizado na prática em saúde mental, funcionando como um espaço de acolhimento aos familiares (Melman, 2006).
No grupo de familiares, pais, irmãos, filhos, cônjuges e outras pessoas da família podem partilhar suas experiências da convivência com vivencias desagregadoras e intensas decorrentes da crise psicótica deflagrada em uma pessoa de sua família, bem como reconhecer os próprios sentimentos ambivalentes em relação a este adoecimento, e que não puderam ser vivenciados devido a mecanismos de defesa como a cisão, gerados a partir das configurações vinculares do núcleo familiar, e ainda decorrentes de intenso sofrimento vivenciado pelos familiares, como o processo de culpabilização (Melman, 2006). Acreditamos que não se trata de culpabilizar a família, mas compreender a lógica de correlações de subjetividades presente dentro do grupo familiar, contribuição dada pela Psicanálise das Configurações Vinculares. O grupo é uma estratégia de cuidado às pessoas com as quais o paciente estabelece vínculos, possibilitando acolhimento para esses participantes na escuta diante do sofrimento na convivência com a loucura.
Assim, o principal objetivo do grupo é a escuta da angústia dos familiares. Os grupos de familiares também podem ter o caráter psicoeducativo, com informações a respeito do tratamento, podendo ser conduzido por diferentes profissionais da equipe.
Outro modelo, além do grupo de familiares, é o grupo de família, terapia de família ou atendimento à família. É uma estratégia prevista como atividade a ser desenvolvida nos CAPSs. Oatendimento da família se destina aos membros do mesmo grupo familiar: pais e filhos; avós, se morarem na mesma casa, e ainda pode ser estendido aos filhos que residam fora do meio familiar (Eiguer, 1985).
O atendimento de família exige uma mobilização complexa do serviço. Acolher a angústia de três, quatro pessoas de um mesmo universo familiar, que versam sobre dramas e histórias compartilhadas e aniquiladas, é uma empreitada árdua. O atendimento de família provoca uma turbulência na organização inconsciente estabelecida pelo grupo, mobilizando defesas contra a mudança dessa organização.
Dessa forma, a atitude defensiva da família reforça o foco sobre o paciente "doente" . As sim, a família espera uma melhora desse paciente, não se dispondo muitas vezes a ser tratada como família. Essa dificuldade no atendimento institucional pode ser trabalhada permitindo que a família aceite a proposta de trabalho e/ou se dê conta de seu comprometimento enquanto grupo (Eiguer, 1985).
Por outro lado, o dispositivo analítico de grupo possibilita o acesso à organização vinculativa da família, "inacessível de outro modo" (Kaës, 2011, p. 75). Permite experimentar o efeito produzido pelos vínculos e suas correlações.
A abordagem psicanalítica se propõe à escuta que possibilite ao grupo familiar a construção de novos sentidos para suas vivências, angústias e dificuldades a partir da narrativa de sua própria história. Desse modo, a terapia familiar possibilita a escuta da história familiar, a natureza de seus vínculos e a produção fantasmática presente na produção de uma família e da psicose, assim como a ressignificação dos vínculos familiares.
Dificilmente uma família procura o serviço de saúde mental buscando um atendimento familiar, principalmente nos casos mais graves. Isso também decorre de uma questão cultural onde se prioriza o atendimento individual (Ramos, 2002). Geralmente as famílias chegam com um membro identificado como doente, como problema e se organiza o que Berenstein chama de grupo dualista quando a família se divide entre sadios e doentes.
4.1 O ACONTECIMENTO NA FAMÍLIA
Analisaremos os impasses na clínica de família no cotidiano do CAPS com o fragmento de um caso clínico.
A família é composta pela mãe, Ana, 53 anos, e os filhos: Marcos, de 32anos, Marcelo, 30 anos e Mariana, 28 anos. Os pais se separaram quando Mariana tinha 14 anos. O pai, Mário, tem 78 anos e continua morando na cidade de origem da família. Os nomes foram trocados para preservar as identidades dos sujeitos.
Mariana foi levada ao CAPS pela mãe e por Marcos. Ela f alava o tempo todo sobre sentimentos amorosos pelo colega de trabalho, Leonardo. Tiveram desmaios no trabalho, esquecimento, deixou de frequentar o curso técnico, escutava vozes que a depreciavam e não dormia à noite, além de ter se tornado agressiva com os irmãos e, principalmente, com a mãe.
Os sintomas tinham começado havia um mês, quando Mariana se apaixonou por Leonardo, seu colega de trabalho, tendo ocorrido apenas um beijo entre os dois.
No primeiro encontro com a família ficou marcado o conflito entre mãe e filha e a condição apaixonada/ delirante da paciente. Assim como nos instigou sobre o que o sintoma paixão/delírio da paciente provocava/ evocava na mãe e a configuração e dinâmica vincular da família.
No primeiro momento a mãe e os irmãos procuraram o CAPS em busca de remédios, consulta e informações sobre o estado de saúde da paciente, e sobre benefícios e direitos. Marcos se responsabilizou inicialmente pela medicação, devido aos conflitos com a mãe e à resistência inicial da irmã.
Enquanto Mariana dizia querer trabalhar, a mãe compareceu ao CAPS pedindo orientação sobre auxílio-doença. A ansiedade havia melhorado, estava dormindo bem, mas continuavam os delírios amorosos em relação a Leonardo, o que mantinha as dificuldades de relacionamento com a mãe, com episódios de agressão física, empurrões. Na equipe, discutimos sobre nossas intervenções ou a falta delas no âmbito dos vínculos familiares, principalmente em relação à mãe, já que o conflito entre ambas parecia intensificado.
Mariana emergia como paciente-designada e ela abarcava e representava o que havia de estranho para a família, dividindo-a entre o doente e os sadios (Pichon-Rivière, 1983; Berenstein, 1996). A paciente iniciou o tratamento com uma aproximação tímida dos familiares.
Berenstein (1998) observou que, após a irrupção de uma crise psicótica, os membros do grupo familiar se dividem entre sadios e doentes e estabelecem um vínculo de oposição. Como consequência dessa divisão, a família passa por conflitos que acabam sedimentando no doente, visto como fonte de todo sofrimento familiar.
Para Box (1994), a família se esforça em dissipar os aspectos dolorosos que são sentidos por todos como intoleráveis e, de certa maneira, ficam localizados cada vez mais em um dos membros. Eiguer (1985) assinala que, na família de um paciente psicótico, problemas e conflitos são negados e são dirigidos ao paciente designado, que recebe os conflitos fantasmáticos familiares.
Solicitamos a presença da mãe para atendimento conjunto com a filha. Essa perspectiva do atendimento revela a dimensão das interações vinculares. O sofrimento não é apenas gerado a partir do conflito intrapsíquico, mas também movimentado no vínculo com o outro, inter-psíquico; ou seja, a cada configuração de vínculo se produz um complexo interjogo fantasmático inconsciente.
Elas chegaram separadas, primeiro a mãe, dizendo que a filha não gostava dela, nem de sua companhia. Aflita, falou dos problemas psiquiátricos de uma tia e um tio paternos. Mariana chegou e começou a falar de sua vontade de trabalhar, da dificuldade de convivência em casa, do sentimento que tinha por Leonardo. Novamente a mãe se irritou, houve um enfrentamento com a filha, mas Mariana não se alterou e continuou a apontar as dificuldades da mãe. Esse embate entre mãe e filha é vivido contratransferencialmente como estado de confusão e incapacidade de pensar, nos deixando imobilizadas frente à natureza do conflito vincular destrutivo e desorganizador, e ativo na presença de uma diante da outra.
Conversamos com elas sobre a continuidade do atendimento conjunto de mãe e filha, após esse novo embate. A mãe apontava o trabalho como impedimento para comparecer ao CAPS. No dia desse atendimento ela estava de férias.
A recusa da mãe em aceitar um novo encontro nos mostra o quanto é difícil para o familiar pensar sobre a ressonância afetiva provocada pela intensa presença do outro. Acompanhando o referencial teórico apresentado, percebemos que a oferta de examinar os vínculos familiares pode se constituir em ameaça ao modo como a família vinha se estruturando até então (Meyer, 2002). Por outro lado, temos que trabalhar nossa própria ansiedade, o desejo de envolver o grupo familiar e intervir de acordo com as possibilidades da própria família.
Com a melhora de Mariana, ela conseguiu um trabalho temporário, mas foi dispensada e viajou para a casa da tia materna. Retornou um mês depois, agressiva com a mãe e chorando muito.
Consideramos que foi um novo momento crítico para a família. No CAPS nos organizávamos em torno da dimensão sobre como construir novas perspectivas para ela juntamente com sua família.
Mariana contava como apoio dos familiares, pois eles não se recusavam a comparecer ao CAPS quando eram solicitados; porém, o suporte psíquico era frágil diante do conflito e rivalidade com a mãe.
Questionávamos sobre a significação dessa crise para o grupo familiar e as intervenções possíveis com a família. O lugar de paciente estava se cristalizando nessa família e os aspectos dolorosos do núcleo familiar se localizavam cada vez mais em Mariana.
Percebemos a dificuldade da família em comparecer aos atendimentos.
Meyer (2002) argumenta que, ao aceitar o convite de atendimento da família, essa "tentará acomodar-se à novidade desse convite ('gostaríamos de vê-los como família'). A própria essência da nova proposta será negada" (Meyer, 2002, p. 170), ou seja, a de identificarem que as dificuldades vivenciadas têm a ver com toda a família e com seu modo de funcionamento.
Propor trabalhar as questões vinculativas da família retira o foco do paciente identificado, do chamado doente e aguça o tratamento e a experiência emocional de toda a família.
Assim, fizemos novamente o convite para a mãe participar do grupo de familiares, além dos atendimentos com a família. O grupo de familiares se caracterizou, efetivamente, como a principal estratégia de cuidado. A mãe estabeleceu um vínculo significativo com outra mãe. O grupo parece ter produzido um efeito terapêutico para ela, além da possibilidade de expandir seus próprios vínculos. No grupo de familiares, o foco que anteriormente recaía sobre Mariana se estendeu aos demais. Ana frequentava a igreja, mas não tinha amizades e não se relacionou com ninguém após a separação há 10 anos. Ela destacou sua preocupação em relação à vida amorosa dos filhos: o receio do envolvimento do filho mais velho com uma pessoa casada, e o "namoro secreto" do filho mais novo que não apresentara a namorada à própria família. Aos poucos foram se desvelando as possibilidades e impossibilidades vinculativas de todo grupo familiar.
A possibilidade de escuta dos familiares pode provocar um movimento emocional dentro da família, descristalizando angústias depositadas no paciente-emergente de modo significativo. Possibilitando novos questionamentos a respeito dos lugares e papéis assumidos no grupo familiar e permitindo a construção de novos sentidos de pertença ao grupo familiar.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que o novo modelo de atenção psicossocial se constitua, é preciso considerar toda a família que se apresenta. O CAPS, enquanto dispositivo estratégico da rede de saúde mental busca produzir espaços de encontro, de produção de subjetividades a partir dos vínculos constituídos. Essas diferentes estratégias incluem o grupo de familiares e a terapia familiar.
O grupo de familiares tem um potencial por si só terapêutico de acolhimento das angústias dos familiares diante do adoecimento de um de seus membros. A terapia familiar tem uma dinâmica própria de funcionamento inconsciente que se propõe trabalhar os aspectos vinculativos da família, os aspectos inconscientes constitutivos da família e da psicose, ou seja, que levou à emergência de um paciente identificado como doente. O s familiares precisam se sentir acolhidos e escutados em seu sofrimento e não apenas atendidos ao procurarem o CAPS, mesmo que esse seja um dos momentos possíveis de intervenção. Assim, concordamos com Box (1994) ao afirmar que carecemos oferecer espaços para as famílias para que os conflitos possam ser vivenciados e pensados.
A escuta da família permite a organização diante dos não ditos, do não simbolizado, representações derivadas do pertencimento a uma determinada família, das configurações vinculares que produziram particularidades específicas, entre elas a psicose. Assim como permite aos familiares serem confrontados com as relações de "produzir e serem produzidos pelo vínculo" (Berenstein, 2011, p. 36).
Cada família apresenta questões particulares, determinadas por suas configurações vinculares, pelos vínculos constituídos, pelo tempo de cada um. Trabalho que produz um saber singular, porém determinante para a mudança de foco de intervenção, de uma determinada patologia ou indivíduo para a experiência de ser/estar no mundo, "onde a significação de si decorre do vínculo que se é capaz de estabelecer" (Meyer, 2002, p. 124).
Diante dos desafios na construção da clínica psicossocial, Pitta (2011) aponta que o futuro da Reforma Psiquiátrica Brasileira e seu sucesso residem na percepção da necessidade de se construir um amplo espectro de cuidados para sustentar a existência de pessoas, dentro e fora do CAPS. Assim, a terapia familiar no CAPS se insere, nesse contexto, como um dos dispositivos de cuidado fundamental no encontro cotidiano com o sofrimento, tomando como ponto de partida não apenas o sujeito, mas seus vínculos, ampliando o cuidado a família de modo significativo.
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1 Anamaria da Silva Neves- Professora Associada I no curso de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia. Contato:anamaria@umuarama.ufu.br
2 Nara Amaral de Omena- Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia.
Contato: nara.omena@gmail.com