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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.13 no.2 São Paulo  2016

 

ARTIGO

 

O CAPS em um município do sul de Minas: da implantação ao impasse

 

The CAPS in a city of south of Minas Gerais: from implementation to deadlock

 

El CAPS en un municipio en el sur de Minas: la implementación al punto muerto

 

 

Thiago Bellato de PaivaI,II,*; Fuad Kyrillos NetoII,**

ICentro de Referência e Assistência Social
IIUniversidade Federal de São João Del Rei (UFSJ)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho tem como objetivo discutir as contribuições da psicanálise a um equipamento de saúde mental com atuação pautada nos princípios basaglianos. Busca-se compreender a especificidade do discurso da inclusão, visto que sustenta as ações desenvolvidas no CAPS de um município de pequeno porte no Sul de Minas Gerais. Portanto, faz-se necessário abordar o surgimento do equipamento e suas ações para que, esclarecidos ao leitor os motivos de sua implantação, possa-se interrogar sobre intervenções que incluam o sujeito em sua singularidade, afinal, compreende-se que a perspectiva psicanalítica considera os impasses do sujeito frente às prescrições institucionais.

Palavras-chave: saúde mental; psicanálise; psicose; instituições; reforma psiquiátrica.


ABSTRACT

This work aims to discuss the contributions of psychoanalysis to mental health equipment with guided activities in Basaglianos principles. It is sought to understand the specificity of inclusion discourse, as its supports actions developed in the CAPS of a small city in southern Minas Gerais. Therefore, it is necessary to approach the appearance of the equipment and its actions, once the reasons for its implementation are duly clarified to the reader, to allow interrogation about interventions that include the subject in their uniqueness. After all, it is understood that the psychoanalytic perspective considers impasses of the subject to institutional prescriptions.

Keywords: mental health; psychoanalysis; psychosis; institutions; psychiatric reform.


RESUMEN

El trabajo tiene como objetivo discutir las contribuciones del psicoanálisis a un equipo de salud mental con actividades guiadas em principios Basaglianos. Buscamos entender la especificidad del discurso de la inclusión, ya que afirma las acciones desarrolladas em el CAPS de un pequeño municipio em el sur de Minas Gerais. Por lo tanto, es necesario abordar el surgimiento del equipamiento y sus acciones para que informó al lector las razones de su aplicación, pueden ser interrogados acerca de las intervenciones que incluyo em el sujeto em su singularidad, al final, se entiende que la perspectiva psicoanalítica considera callejones sin salida de la sujeción a las prescripciones institucionales.

Palabras clave: Salud mental; psicoanálisis; psicosis; instituciones; reforma psiquiátrica.


 

 

O DISCURSO DA PSIQUIATRIA DEMOCRÁTICA ITALIANA: A ANTINOMIA EXCLUSÃO/INCLUSÃO

Uma compreensão mais apurada dos serviços substitutivos ao modelo tradicional de tratamento da loucura e seus propósitos exige o conhecimento dos discursos que os atravessam e osanteparam a fim de que seja possível refletir sobre quais foram os elementos propícios para sua implantação.

Este artigo inicia-se pontuando alguns acontecimentos referentes à saúde mental no solo brasileiro. Tais aspectos permitirão ao leitor concluir que um dos discursos que norteiam tal campo institucional é aquele que propõe a integração social e familiar ao louco, ou seja, a retórica da exclusão. Dunker e Kyrillos Neto (2004, p.117) afirmam tratar-se de um "aspecto de formação discursiva que apreende e localiza os transtornos mentais em uma superfície formada pela antinomia entre inclusão e exclusão".

Ressalta-se que no Brasil uma contundente reforma psiquiátrica só fora possível a partir da ação articulada entre os três níveis gestores que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS). Entre eles encontram-se os trabalhadores de saúde mental que, ao se depararem com um contexto fecundo para o questionamento da situação política e institucional do país, colocaram em xeque a estrutura falida à qual estavam submetidos.

Tal momento, em meados da década de 70, é marcado por uma série de críticas que vão desde a ineficiência da assistência pública em saúde até denúncias de maus tratos aos pacientes internados em manicômios no Brasil. Portanto, em 1978, surge o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) na cidade do Rio de Janeiro e, segundo Amarante (1995, p.492), para

"Entender a função social da psiquiatria e suas instituições, para além de seu papel explicitamente médico-terapêutico, o MTSM constrói um pensamento crítico no campo da saúde mental que permite visualizar uma possibilidade de inversão deste modelo a partir do conceito de desinstitucionalização".

Observa-se que a insatisfação dos trabalhadores de saúde mental encontra na proposta de Basaglia um conjunto de elementos passíveis de viabilizar o desmantelamento do paradigma asilar, principalmente no que corresponde à sua estrutura basal: o manicômio. É a partir desses elementos que os trabalhadores, em 1987, na cidade de Bauru,São Paulo, iniciaram um movimento intitulado "Por uma sociedade sem manicômios", influenciado pelos ideais da Psiquiatria Democrática Italiana.

A Reforma Psiquiátrica Italiana teve como precursor o psiquiatra italiano Franco Basaglia. Foi a partir de sua experiência no Hospital Psiquiátrico de Gorizia que vislumbrou a necessidade de um conjunto de modificações no modelo de assistência psiquiátrica. Basaglia sofreu forte influência de pensadores e suas teorias, entre elas: o existencialismo de Jean Paul Sartre, a filosofia de Michel Foucault (em especial sua obra "A História da Loucura na Idade Clássica"), o marxismo de cunho Gramsciano, os pensadores da Escola de Palo Alto, a psicanálise, entre outros que, sustentados em novos pilares como o conceito de liberdade como condição humana, acabaram por estabelecer parâmetros para a compreensão da psicopatologia como um processo que ocorre na interação entre o sujeito e seu contexto sócio histórico.

Roudinesco afirma que:

"A crítica à noção de doença mental e a contestação de uma psiquiatria considerada patogênica haviam começado por volta de 1959, percorrendo caminhos totalmente diferentes dos seguidos pelo autor de História da loucura. Na Inglaterra, na Califórnia e na Itália, a contestação da psiquiatria surgira nos domínios do asilo e da prática e ocupava o lugar que na França cabia ao dinamismo esclarecido de Henri Ey, à psicoterapia institucional e à renovação lacaniana" (ROUDINESCO, 1994, p.18).

Fica evidente o grande número de autores e movimentos que, inclusive, permitiram a Basaglia sustentar uma perspectiva de tratamento que se contrapunha ao conceito de entidade mórbida, o conjunto de manifestações patológicas caracterizadas pela sua constância e composição que constituem um todo individualizado, proposta de cunho organicista que amparava a Psiquiatria Clássica.

Se para a Psiquiatria Clássica não havia relação de determinação com as relações sociais, torna-se relativamente fácil concluir que suas práticas terapêuticas se diversificavam entre internações, acorrentamento, tratamento moral, banhos quentes e gelados, lobotomia, além da indiscriminada administração de psicofármacos, em especial, a partir dos anos 1950. O que Basaglia perspicazmente observa é que tais práticas retiram da figura do louco sua cidadania e direito, além de lhe furtar a perspectiva de construção de interações sociais que lhe outorguem um espaço na comunidade onde se encontra inserido.

Para fazer frente a tais questões, a partir de 1970, surge em Trieste, na Itália, com Franco Basaglia, a Psiquiatria Democrática, movimento que produziu mudanças relevantes nas formas de atenção à loucura, visto que, ao promover a desinstitucionalização, se propôs a desconstruir a lógica manicomial. O que se delineia, então, é um movimento de antítese frente a uma lógica que, anteparada no conceito de doença mental, acreditava que a loucura nada mais era do que desarranjo neuroquímico ou disfunção mental, frutos de uma classe social desfavorecida.

O movimento da Psiquiatria Democrática visou questionar o caráter higienista e de controle social presentes na Psiquiatria Clássica. Seu nascimento permitiu uma releitura epistemológica da loucura e alargou o campo de reflexão sobre ela ao questionar a linha tênue que se traça entreloucura e normalidade ou, como queiram, entre o normal e o patológico. Segundo Amarante:

"Basaglia vai construindo uma permanente reflexão crítica sobre os conceitos de desvio, normalidade-anormalidade, desajustamento e personalidade psicopática, que contém não apenas uma análise epistemológica, mas uma crítica ao lidar social e político com os mesmos" (AMARANTE, 1994, p.66).

Portanto, a entrada de Basaglia em cena permitiu que a experiência da loucura fosse compreendida como um fenômeno vinculado à díade inclusão e exclusão, o que acabou por lhe outorgar uma conotação social ao preconizar que a abolição do manicômio somente seria possível a partir de uma transformação institucional que desvinculasse do louco a rotulação de doente mental.

Levantadas tais considerações, constata-se a importância de o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) apresentarum projeto articulado a uma leitura mais consistente dos discursos que se propõem a explicar e tratar a loucura. Compreende-se que a simples presença desse serviço não dá garantias de intervenções que tenham como pano de fundo específicoa desconstrução de saberes, discursos e práticas psiquiátricas que sustentam a loucura reduzida ao signo da doença mental e da pobreza.

Para tanto, uma nova questão se impõe à medida que se avança, visto que a experiência vivenciada no CAPS de um município de pequeno porte no Sul de Minas Gerais, foco de nossa pesquisa, permitiu vislumbrar que nem sempre a proposta basagliana é capaz de recobrir inteiramente o campo da loucura. Roudinesco, ao escrever sobre os precursores dos movimentos antipsiquiátricos aos quais Basaglia fazia parte, ilustra que:

"Para esses rebeldes, a loucura não era absolutamente uma doença, mas uma história: a história de uma viagem, de uma passagem ou de uma situação, das quais a esquizofrenia era a forma mais aperfeiçoada, por que traduzia em uma resposta delirante o desconforto de uma alienação social ou familiar" (ROUDINESCO, 1994, p.12).

A citação indica que, para além do discurso da inclusão, faz-se necessário outro campo epistemológico que forneça elementos para a compreensão clínica da experiência da loucura. Não se pretende, com isso, descartar a importância que a Psiquiatria Democrática possui, visto que seus questionamentos e redirecionamentos foram essenciais para a compreensão e trato da loucura; afinal, não há como se pensar em "sujeito" se nos hospitais psiquiátricos são encontradas pessoas encarceradas e acorrentadas, seja física ou mentalmente.

Contudo, busca-se dar um passo além e, assim, convidar a Psicanálise, como perspectiva teórica de pesquisa, para dialogar com tais questões. Visa-se refletir sobre a implantação e aimplementação do CAPS municipal e suas ações, a fim de que se possa apostar na possibilidade de construção de uma intervenção cujo cunho clínico possibilite a estabilização do sujeito psicótico e sua consequente inserção no laço social.

 

PERCURSO DA SAÚDE MENTAL NO MUNICÍPIO: DO NASF AO CAPS

O CAPS teve início a partir de um trabalho de escuta da população e de capacitação de profissionais da atenção primária, realizados nos Programas de Saúde da Família (PSF) do município, por intermédio do dispositivo Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). O trabalho com o NASFiii, ao permitir contato com áreas tão singulares (seja nos aspectos econômicos, sociais e/ou culturais), proporcionou uma leitura mais aguçada dos diferentes tipos de demanda que a população endereçava aos profissionais que se propunham a trabalhar com saúde mental. É válido observar que o NASF é um dispositivo cuja razão de ser é o PSF - seu campo de atuação envolve tanto os profissionais que compõem o Programa de Saúde da Família quanto as famílias que buscam atendimento por meio dele.

Outro fator importante a se evidenciar é que o campo das ações vinculadas à saúde mental nesse município do Sul de Minas ficava sob a responsabilidade dos Programas de Saúde das Famílias e do Pronto Atendimento. Portanto, os atendimentos e as urgências da saúde mental na cidade eram sanados, na medida do possível, dentro desses dispositivos, uma vez que não havia um serviço de referência que se propusesse a tratar dessas demandas diretamente com a população, fosse por intermédio de atendimento ou através de orientações e informações.

As mudanças só começaram a se efetivar com a chegada do NASF ao município. Afinal, antes da experiência da coordenação do Centro de Atenção Psicossocial houve, conforme dito, a oportunidade de participação deste pesquisador na equipe do NASF, no trabalho vinculado à saúde mental.

A equipe do NASF dessa cidade era composta por um coordenador (fisioterapeuta), uma educadora física, um psiquiatra, uma nutricionista, uma fisioterapeuta, um psicólogo e uma fonoaudióloga. O serviço se estruturava em setores especializados cujo intuito era desenvolver um trabalho integrado que almejasse a amplificação e a qualificação das intervenções no que toca à saúde de territórios diferenciados. A estratégia de intervenção do setor de Psicologia dentro dos Programas de Saúde da Família, ou seja, do NASF, era norteada por dois pilares: o trabalho de escuta dos usuários e dos profissionais e a capacitação dos profissionais da rede.

Durante a semana, passava-se pelo menos um período em cada Programa de Saúde da Família, com o intuito de escutar os membros da comunidade e da equipe técnica da atenção primária. Levavam-se em conta as queixas e as angústias da população para averiguar a possibilidade de ofertar condições que viabilizassem o estabelecimento da transferência e do diagnóstico. Verifica-se, assim, o desejo de se constituir um trabalho prévio que permitisse aos pacientes realizar um mínimo de retificação subjetiva para o tratamento. No que concerne ao início do tratamento psicanalítico, Quinet observa:

"Trata-se de um tempo de trabalho prévio à análise propriamente dita, cuja entrada é concebida não como continuidade, e sim - como o próprio nome tratamento de ensaio - parece sugerir - como uma descontinuidade, um corte em relação ao que era anterior e preliminar. Esse corte corresponde a atravessar o umbral dos preliminares para entrar no discurso analítico. Esse preâmbulo a toda psicanálise é erigido por Lacan em posição de condição absoluta: `não há entrada em análise sem as entrevistas preliminares`" (QUINET, 2002, p.14).

No que diz respeito à equipe técnica, a escuta era transmitida por intermédio da capacitação e visava o diálogo sobre algum caso. Em momentos apropriados, disponibilizavam-se informações e orientações pertinentes à saúde mental, o que, evidentemente, não era compreendido como intervenções com perspectiva clínica. Aqui, torna-se importante delimitar o que se entende por escuta para não se correr o risco de expor o leitor à confusão. Afinal, o termo escuta tem ampla significação e pode, equivocadamente, ser interpretado como um simples ouvir o que o usuário tem a dizer. É significativo dizer que a escuta em questão tem o eixo metodológico da psicanálise e de seus princípios.

Entretanto quais seriam as condições mínimas para se reconhecer certo trabalho clínico como psicanalítico? Figueiredo (2002, p.123) recorre à metapsicologia freudiana e à leitura de Lacan para propor aquilo que nomeia como as "condições mínimas para que se identifique como psicanálise determinado modo de trabalho clínico". São elas: a realidade psíquica, a transferência e a interpretação.

No que concerne à primeira condição, a realidade psíquica, Figueiredo observa que:

"A realidade psíquica não se reduz ao ego, embora o inclua, do mesmo modo que inclui o sintoma. Sua fonte primária é o inconsciente, e não há que se conceber nada de profundo ou submerso nessa realidade. Tudo se passa na superfície, na emergência da fala que temos acesso e a qual, de algum modo, respondemos. É na própria palavra do sujeito que começa o trabalho clínico. Ao tratarmos do sofrimento psíquico, só podemos fazê-lo pelo que aparece dessa realidade em palavras e ações prenhes de sentido" (FIGUEIREDO, 2002, p. 124).

Em relação à segunda condição, a transferência, Figueiredo (2002) esclarece que:

"O dispositivo psicanalítico que opera no binômio fala-escuta está bem inscrito no conceito de transferência. Aqui entrelaçamos esta primeira condição a uma segunda: a clínica psicanalítica consiste em produzir um modo de fala através da transferência. Fala-se para um outro que, num primeiro momento, é aquele que atende. Há aí um deslocamento da fala como desabafo, queixa, pedido de alívio, etc. para um plano que podemos chamar de reflexivo ou indagativo" (FIGUEIREDO, 2002, p. 125).

Ainda em relação à transferência, a autora de "Vastas confusões e atendimentos imperfeitos" compreende que se trata "de um movimento do sujeito que apresenta ao analista algo de sua realidade através da fala" (FIGUEIREDO, 2002, p. 125). O analista deve levar o sujeito a ser afetado pelo que diz para que uma questão possa ser formulada.

Passa-se, assim, à terceira condição, a interpretação. Trata-se de um recurso do analista que coloca em evidência a dimensão de temporalidade da causação psíquica, ou seja, a interpretação só pode ser entendida na perspectiva de uma temporalidade específica, em virtude de que não busca revelar a causa, mas, sim, causar um efeito. Figueiredo ressalta que:

"Esta concepção de tempo está presente na própria causação psíquica indicando que o tempo para a psicanálise não é linear ou evolutivo. Não se trata exatamente da ação do passado sobre o presente, ou de um tempo progressivo visando à regressão. Não é túnel do tempo nem volta à infância. Nos termos de Freud, é uma reorganização, uma reinserção dos traços de memória cujo tempo não é previsível nem controlável. Assim funciona a realidade psíquica e o trabalho psicanalítico sobre ela" (FIGUEIREDO, 2002, p.126).

Considerados os aspectos formais da escuta, é significativo dizer que ela produziu efeitos interessantes na comunidade. Antes de discutir esses efeitos, cumpre-nos ressaltar que, na dimensão coletiva a clínica psicanalítica possibilita uma leitura do sintoma como crítica social. Os sintomas, na perspectiva psicanalítica são acolhidos para além de sua apresentação formal, pois sua queixa traz consigo uma perspectiva política. Uma política, por vezes, alicerçada na resistência, sofrimento e recusa. (DUNKER, 2004). Outro aspecto a ser considerado nos efeitos que a escuta da subjetividade produz no coletivo, é a possibilidade do sujeito sustentar sua pequena singularidade diante de discursividades prevalentes. Nesse sentido a clínica psicanalítica pode ser subversiva aoconvidar o sujeito a suportar sua condição desejante frente a instâncias que tenham pretensão de ser imperativa para ele. (SOLER, 2011).

Em primeiro lugar, observou-se o aumento da demanda por parte da população em relação a atendimentos psicológicos. Em vários momentos, foi necessário filtrar a quantidade de atendimentos a fim de que fosse possível compreender que demanda era aquela que se dirigia ao setor de psicologia do NASF. Tais fatores levaram a pensar o que poderia a psicanálise ofertar para um equipamento de atenção primária.

Compreender a demanda dirigida à psicologia levou, em segundo lugar, a uma articulação com as instituições que compunham o município, entre elas a educação, a assistência social e a própria saúde. Fora necessário explicar que determinados casos não justificavam um acompanhamento psicológico e que seria necessária a busca de alternativas no que dizia respeito ao desconforto que os casos produziam no campo institucional.

A escuta permitiu constatar uma significativa abertura da população para a instalação do CAPS. Destaca-se a chegada de alguns psicóticos para atendimento no NASF, o que leva a concluir que nem sempre o melhor tratamento para os psicóticos em crise, ou até mesmo fora de crise, é aquele cujo modelo reflete os ideais da Psiquiatria Clássica.

No que concerne à capacitação, nos outros períodos de trabalho pelo NASF foram feitas reuniões com os profissionais dos Programas de Saúde da Família, com o intuito de estabelecer diálogos que viabilizassem a apresentação do ponto de vista da equipe sobre uma série de casos que eram levados, em sua maioria, pelas agentes comunitárias de saúde.

Partia-se do pressuposto de que orientar e capacitar os agentes e demais profissionais seria uma forma interessante de propagar informações relevantes à área da saúde mental. Em menor escala, havia as conversas também com enfermeiros e médicos. Portanto, foi a partir do NASF que se começou a tecer a possibilidade de articular um trabalho em rede, o que também (até hoje) tem gerado frutos ao CAPS.

No que diz respeito à implementação do trabalho em rede, observa-se mais eficácia na produção de saúde, na melhoria da eficiência da gestão do sistema de saúde no espaço regional, além de contribuir para o avanço do processo de efetivação do Sistema Único de Saúde (SUS). As Redes de Atenção à Saúde (RAS) "são arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado" (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010).

Tal definição sustentaria uma prática de trabalho cuja interatividade com outros equipamentos seria buscada de forma assídua; afinal, somente dessa maneira seria possível o fortalecimento das ações em conjunto. Destaca-se a conversação como principais ingredientes para a construção de intervenções no caso a caso.

O trabalho de escuta e de capacitação realizado pelo setor de psicologia do NASF teve duração de um ano e meio e ajudou a circunscrever a demanda por um dispositivo de saúde mental. Eis alguns aspectos colhidos na escuta, que forneceram fortes argumentações junto à gestão sobre a urgência de pactuar o CAPS:

1) Alto índice de consumo de psicofármacos: antipsicóticos típicos, como decanoato de haloperidol, bem como de antipsicóticos atípicos, como clozapina, olanzapina e risperidona;

2) Consumo exacerbado de psicofármacos benzodiazepínicos, como diazepam, clonazepam, alprazolam;

3) Significativo consumo de antidepressivos, tais como imipramina, citalopram, fluoxetina, paroxetina e sertralina;

4) Índice elevado de consumo de estabilizadores de humor, como carbonato de lítio e carbamazepina;

5) Frequentes internações feitas pelo município. Era amplamente comum ouvir sobre vários usuários da saúde pública que já tinham sofrido pelo menos uma internação. Também foram encontradas pessoas cujos membros da família já haviam passado por internações. É importante não se olvidar de que as internações eram o único recurso que o município dispunha para lidar com situações de crise e casos de tão alta complexidade que deixavam perplexos os profissionais. Cabe ressaltar que, até há bem pouco tempo, as situações de internação eram articuladas pelo Centro de Referência de Assistência Social (CRAS);

6) Elevado índice de desconhecimento, por parte da população, a respeito de intervenções outras que tivessem como objetivo manejar o sofrimento psíquico, apresentando caminhos que não necessariamente resultassem no uso extremado de medicação. Foram detectados alguns casos de uso de medicação por mais de dez anos, constatando-se uma cronificação medicamentosa que, instalada, encontrava sua melhor caricatura na usual e conhecida troca de receita.

No final de 2012, respaldados pelo conjunto dessas informações, os técnicos do NASF puderam intensificar os contatos com a gestora de saúde e fundamentar a importância da pactuação do CAPS. Passa-se às primeiras ações executadas pelo serviço.

 

A IMPLANTAÇÃO DO CAPS: PRIMEIRAS AÇÕES

No início de 2013, o CAPS foi inaugurado no prédio da Secretaria de Saúde do município, ocupando um espaço que, em consonância com as exigências do Ministério da Saúde, atendia os critérios estipulados para o funcionamento adequado de um dispositivo de média complexidade de saúde mental.

Portanto, quais foram as ações efetuadas por esse CAPS para fazer valer uma intervenção cuja orientação superasse o paradigma manicomial? Com quem o CAPS deveria dialogar para instalar um espaço inovador cuja conversação e ações em conjunto se constituiriam como fundamentos?

O passo inicial para a constituição de um projeto de saúde mental foi estabelecer contato direto com os PSF se seus respectivos técnicos. A equipe técnica foi de unidade em unidade (em diferentes pontos da cidade) e se reuniu com as equipes (técnicos) e os agentes comunitários de saúde dos PSFs. Tal contato permitiu explicar aos profissionais de saúde do que se trata o CAPS e qual a especificidade de seu público.

Foi firmada também uma parceria com os agentes comunitários de saúde; afinal, era de conhecimento geral que tinham amplo leque de contatos, o que facilitaria o acesso à comunidade. Leva-se em conta, neste caso, o vínculo e a relação de confiança estabelecida com a população, fato fundamental para sua mobilização. Os agentes poderiam, inclusive, facilitar a medicação de pacientes em crise, graças a essa relação.

É interessante observar que o contato com as unidades dos PSFs permitiu pequenas discussões de casos que, de uma forma ou outra, seriam, a partir de agora, também pertinentes ao CAPS. Afinal, era muito comum que os pacientes psicóticos, na ausência de equipamentos específicos de saúde mental, fossem atendidos na Atenção Primária e na Alta Complexidade, isto é, no Pronto Atendimento e na Santa Casa.

No que toca ao dia a dia do CAPS - atendimentos, oficinas, reuniões, entre outros -, o que passou a ficar evidente é que nem sempre a prática ancorada nos ideais da Reforma Psiquiátrica e seus elementos ideológicos têm conseguido apaziguar o sujeito psicótico que, atravessado por seus delírios e alucinações, interpela os técnicos do equipamento, colocando-os em xeque.

Há aqueles que, quando se deparam com a retórica da inclusão social ideal, presente nos princípios da Reforma Psiquiátrica, encontram a possibilidade de anteparo que ajuda a fazer frente, inclusive, às situações de crise. Não é incomum que os pacientes permaneçam aderidos às rotinasapresentadas pelo CAPS e frequentem o equipamento com grande assiduidade. Entretanto, há também aqueles que, acometidos por crise, desconsideram qualquer proposta de cunho humanista cujo acolhimento revela o ideal da inclusão.

Tais aspectos exigem uma pausa para se refletir sobre o que se opera neste ponto que concerne à dimensão de sujeito relativo aos usuários do CAPS. Será que se poderia dizer que um serviço amplamente ancorado nos ideais da inclusão não acabaria por dificultar a emergência do sujeito em seus aspectos singulares e contingentes? Considera-se, portanto, o que a psicanálise entende pelo conceito de sujeito.

 

A PSICOSE NA INSTITUIÇÃO E SUA TENSÃO COM A DIMENSÃO DO SUJEITO

O que se visa aqui é indagar sobre a possibilidade da existência do sujeito na experiência psicótica. O conceito de extração psicanalítica possibilita abordar o impasse das manifestações singulares do sujeito psicótico frente às aspirações institucionais de adequação e retorno ao convívio social. No que diz respeito ao conceito de sujeito, convém ressaltar que "Freud nunca construiu uma teoria - menos ainda uma filosofia sobre o tema" (CABAS, 2010, p. 13).Constata-se, a partir de conceitos como interpretação e transferência, uma redefinição da experiência humana cujo aspecto subversivo dá origem a um novo saber. "Um saber sobre o sentido, o alcance, a meta e a razão do ato. Do ato enquanto humano" (CABAS, 2010, p.13). Portanto, compreende-se que a noção de sujeito é uma referência implícita na obra freudiana, que permite à Lacan, no contexto de seu primeiro projeto, ou seja, um retorno à Freud, extrair essa referência expondo-a à luz do dia.

O conceito de sujeito elaborado pela psicanálise lacaniana fornece ferramentas fundamentais no que diz respeito ao tratamento da experiência psicótica. Busca-se o que é específico do sujeito na psicose pelo fato de que, nessa estrutura, também se encontra um sujeito falante, em que se evidencia a presença de um terceiro denominado Outro. Calligaris, ao abordar tal condição, ressalta que:

"Se um psicótico não é um animal, então não está só entre o Imaginário e o Real, está no Simbólico também e tem uma significação, uma metáfora própria. Se essa metáfora tivesse uma determinação universal, seria uma metáfora neurótica. Deste ponto de vista, só há singularidades psicóticas" (CALLIGARIS, 2015, p.70).

Tal conceito ultrapassa noções que o vinculam como categoria determinada pelo aspecto social e pela dimensão imaginária. O que se pretende aqui é dar ênfase à dimensão de linguagem dada ao sujeito como subvertido ao significante. Soler pontua que:

"Como ordem do sujeito, a psicose também não é um fenômeno que decorra apenas do imaginário. Lacan enunciou essa tese contra aqueles que mencionou na seção intitulada 'Depois de Freud', isto é, contra os que tentaram apagar ou até anular a insistência tenaz com que Freud procurava restabelecer a referência ao pai. Com a metáfora paterna, Lacan situa-se absolutamente na sequência [sic] dessa obstinação de Freud, e essa é uma questão que se mantém atual, pois muitos autores continuam a reter apenas os aspectos imaginários da psicose" (SOLER, 2007, p.13).

A citação acima permite compreender o campo das psicoses para além de seus fenômenos imaginários; a questão do sujeito pode estar presente até mesmo no campo das psicoses na medida em que "a estabilidade e a boa ordem da relação perceptiva com a realidade não são tão naturais quanto se poderia imaginar, e sim uma função dos fenômenos significantes" (SOLER, 2007, p.14).

Ainda no que diz respeito à questão do sujeito, é imprescindível levar em conta o texto lacaniano "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" (1966). Elaborado em 1966, apresenta, como fio condutor, uma construção teórica cujo intuito é indagar sobre a estrutura do sujeito na práxis psicanalítica. No que concerne à estruturação do sujeito em relação com a consciência, Lacan enfatiza que:

"Nada há, portanto, em nossa vertente para situar Freud que se ordene pela astrologia judicatória da qual se impregna o psicólogo. Nada que provenha da qualidade e até do intensivo, nem de nenhuma fenomenologia com a qual o idealismo possa reassegurar-se. No campo freudiano, apesar das palavras, a consciência é um traço tão caduco para basear o inconsciente em sua negação (esse inconsciente data de São Tomás) quanto o afeto é incapaz de desempenhar o papel do sujeito protopático, uma vez que esse é um cargo que não tem titular ali" (LACAN, 1966/1998, p.813).

Evidenciadas algumas considerações sobre o sujeito a partir da teoria psicanalítica, compreende-se que a emergência do sujeito como aposta da equipe só se torna possível em virtude do espaço ofertado pelo CAPS. Espaço que considera os significantes de cada paciente e viabiliza a suspensão das prescrições institucionais que, amparadas no discurso do cuidado, suspendem o que o ato psicanalítico tem de subversivo. Tais peculiaridades tornam possível cogitar a hipótese de instalação de um dispositivo cuja função é a construção do caso clínico. Segundo Viganò, (2010, p.1), inicia-se um tempo em que o debate clínico aberto e sem esoterismo torna-se possível. Ainda segundo o autor:

"A construção do caso clínico é uma construção democrática na qual cada um dos profissionais do caso (os operadores, os familiares, as instituições) traz a sua contribuição, de uma forma que parecerá paradoxal somente àquele que está doente de tecnocracia e de modelos cibernéticos. Na realidade, trata-se de juntar as narrativas dos protagonistas dessa rede social e de encontrar o seu ponto cego, encontrar aquilo que eles não viram, cegos pelo seu saber e pelo medo da ignorância. Este ponto comum, a falta de saber, é o lugar do sujeito e da doença que o acometeu" (VIGANÒ, 2010, p.2).

Compreende-se que a conceitualização de Carlo Viganò, no que diz respeito à construção do caso clínico, permite uma possibilidade maior de formalização e extração de consequências diante da leitura dos casos com que o CAPS começou a lidar. Viabiliza-se, por intermédio de tal dispositivo, "repensar a construção do lugar da palavra, a partir de um diagnóstico de discurso transclínico que diz respeito à posição subjetiva diante da castração e centrada sobre a letra do gozo" (VIGANÒ, 2006, p.28).

Portanto, ao se cogitar incluir a escuta da palavra na instituição, elabora-se uma intervenção que inclui a subversão subjetiva naquilo que incide sobre o discurso institucional da inclusão. Compreende-se tal tensionamento como fundamental, visto levar em conta o particular do sujeito e o modo como organiza suas representações diante da impossibilidade da relação sexual. Afinal, somente dessa maneira é possível inverter a relação entre o sujeito e a instituição. Viganò ressalta que "não é o sujeito que 'deve' respeitar as instituições, mas é a instituição que será respeitada só se tiver vontade de dar ao sujeito uma representação, um lugar no vínculo social" (VIGANÒ, 2006, p.30).

 

REFERÊNCIAS

AMARANTE, P. D. C. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 491-494, jul/set, 1995. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v11n3/v11n3a11.pdf>Acesso em: 7 out. 2015.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Thiago Bellato de Paiva
E-mail: thiagodepaiva@globo

Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br

 

 

* Psicanalista, psicólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua no Centro de Referência e Assistência Social - Jardim Estrela - Varginha - MG. Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ).
** Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Endereço: UFSJ - Campus Dom Bosco
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