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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.17 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v17n1p25-51 

ARTIGOS

 

O cuidado de crianças e adolescentes após o transplante de medula óssea: vivências de mães

 

Caring for children and adolescents after bone marrow transplantation: mother's experiences

 

El cuidado de niños y adolescentes después del trasplante de médula ósea: experiencias de madres

 

 

João Antonio de OliveiraI; Érika Arantes de Oliveira-CardosoII; Manoel Antônio dos SantosIII

Igraduando do curso de Bacharelado e Licenciatura em Enfermagem da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. E-mail: joao.antonio.oliveira@usp.br
IIpsicóloga, Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e psicóloga do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq). E-mail: erikaao@ffclrp.usp.br
IIIpsicólogo, Professor Titular do Departamento de Psicologia e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade em Pesquisa - Nível 1A. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

 

 


RESUMO

No Transplante de Medula Óssea (TMO) de crianças e adolescentes, a mãe geralmente é a acompanhante no período de hospitalização. Ao assumir esse papel, ela é exposta a uma série de eventos estressores, além de lidar com o risco de perda do filho. Este estudo teve por objetivo compreender como mães vivenciam o cuidado de crianças e adolescentes submetidos ao TMO. Trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, de abordagem clínico-qualitativa, com recorte transversal. Participaram seis mães, com idades entre 39 a 49 anos. Para a coleta de dados utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada. As entrevistas individuais foram audiogravadas e transcritas na íntegra, e os conteúdos foram submetido à análise temática. Os resultados indicam que as mães vivenciam, de um lado, as angústias relacionadas às incertezas que o TMO implica e, por outro, a perspectiva da cura, que alimenta a esperança de salvar a vida do filho, mesmo com o longo caminho a ser percorrido. As mães buscam restaurar suas forças e preservar seu equilíbrio psíquico por meio da rede de apoio social e do apego à fé, que caracterizam os recursos de enfrentamento mais utilizados. Investigar o cuidado na perspectiva das mães permite conhecer como elas compreendem e lidam com o tratamento do filho submetido ao TMO, o que pode favorecer a elaboração de estratégias de intervenção a serem oferecidas pela equipe multiprofissional.

Palavras-chave: transplante de medula óssea; mães; crianças; adolescentes; cuidadores.


ABSTRACT

In Bone Marrow Transplantation (BMT) of children and adolescents, the mother is usually the companion during the hospitalization period. In assuming this role, she is exposed to a series of stressful events, in addition to dealing with the risk of losing her child. This study aimed to understand how mothers experience the care of children and adolescents submitted to BMT. This is a descriptive and exploratory research, with a clinical-qualitative approach, with a transversal cut. Six mothers participated, aged 39 to 49 years. For data collection, a semi-structured interview script was used. The individual interviews were audio recorded and transcribed in full, and the contents were subjected to thematic analysis. The results indicate that mothers experience, on the one hand, the anxieties related to the uncertainties that BMT implies and, on the other, the perspective of healing, which feeds the hope of saving the child's life, even with the long way to go. Mothers seek to restore their strength and preserve their psychic balance through the social support network and the attachment to faith, which characterize the most used coping resources. Investigating care from the mothers' perspective allows to know how they understand and deal with the treatment of the child submitted to BMT, which can favor the development of intervention strategies to be offered by the multiprofessional team.

Keywords: bone marrow transplantation; mothers; children; teenagers; caregivers.


RESUMEN

En el Trasplante de Médula Ósea (TMO) de niños y adolescentes, la madre suele ser la acompañante durante el período de hospitalización. Al asumir este papel, está expuesta a una serie de eventos estresantes, además de enfrentar el riesgo de perder a su hijo. Este estudio tuvo como objetivo comprender cómo las madres experimentan el cuidado de los niños y adolescentes sometidos a TMO. Esta es una investigación descriptiva y exploratoria, con un enfoque clínico-cualitativo, con un corte transversal. Participaron seis madres, de 39 a 49 años. Seis madres participaron. Para la recolección de datos, se utilizó un guión de entrevista semiestructurada. Las entrevistas individuales se grabaron en audio y se transcribieron en su totalidad, y los contenidos se sometieron a análisis temáticos. Los resultados indican que las madres experimentan, por un lado, las ansiedades relacionadas con las incertidumbres que implica el TMO y, por otro, la perspectiva de la curación, que alimenta la esperanza de salvar la vida del niño, incluso con el largo camino por recorrer. Las madres buscan restaurar su fuerza y preservar su equilibrio psíquico a través de la red de apoyo social y el apego a la fe, que caracteriza los recursos de afrontamiento más utilizados. Investigar la atención desde la perspectiva de las madres permite saber cómo entienden y tratan el tratamiento del niño sometido a BMT, lo que puede favorecer el desarrollo de estrategias de intervención que ofrecerá el equipo multiprofesional.

Palabras clave: trasplante de médula ósea; madres; niños; adolescentes; cuidadores.


 

 

INTRODUÇÃO

O avanço científico e tecnológico trouxe, nas últimas décadas, um aporte significativo de novos conhecimentos para a área da saúde. Nessa perspectiva, o Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas (TCTH), comumente conhecido como Transplante de Medula Óssea (TMO), constitui um dos procedimentos mais arrojados e promissores na atualidade para o tratamento de doenças onco-hematológicas, imuno-hematológicas, oncológicas e autoimunes (Castro Jr & Brunetto, 2003). Todavia, o TMO é um procedimento complexo, extenso e agressivo, sujeito a intercorrências e efeitos adversos. É indicado como opção de tratamento para diversas doenças, tais como falências medulares, desordens adquiridas, doenças autoimunes e alterações hematológicas, além de vários tipos de neoplasias, como leucemias, linfomas e tumores sólidos, contribuindo significativamente para melhorar o prognóstico dos pacientes (Alves et al., 2012). Atualmente, as doenças para as quais o TMO tem sido indicado com maior frequência são: Anemia Aplástica Grave, Anemia de Fanconi, Leucemia Linfóide Aguda, Leucemia Mielóide Aguda, Leucemia Mielóide Crônica, Linfomas de Hodgkin e não Hodgkin. Essas patologias são potencialmente fatais (Castro Jr & Brunetto, 2003).

O procedimento técnico do TMO consiste, fundamentalmente, em suprimir a medula doente e transferir células progenitoras (CD34) normais para o indivíduo debilitado pela doença de base. Essa transferência visa a reconstituir todo o sistema hematopoiético. A medula implantada passará a assumir a produção das células sanguíneas e estará envolvida também com a ação citotóxica em células doentes remanescentes do receptor. Após o sucesso do transplante, a hematopoese torna-se subordinada ao novo enxerto (Alves et al., 2012). O procedimento pode ser realizado de quatro formas distintas: alogênico (as células-tronco hematopoiéticas provêm de um doador vivo, aparentado ou não aparentado, compatível, selecionado por testes de histocompatibilidade), autólogo (as células, retiradas do próprio paciente, são armazenadas e reinfundidas depois do regime de condicionamento), singênico (entre gêmeos univitelinos) e com células do cordão umbilical (Dias, Mastropietro, Oliveira-Cardoso, & De Carlo, 2012).

Do ponto de vista psicológico, o TMO é um processo longo, desgastante e permeado por perdas, tanto concretas como simbólicas (Oliveira-Cardoso & Santos, 2013). Do ponto de vista operacional, o TMO se desdobra em cinco momentos: a preparação pré-transplante, caracterizada pelo período pré-admissional, no qual se faz uma abrangente avaliação médica e admissão do paciente em isolamento protetor na unidade; regime de condicionamento, quando o paciente recebe quimioterapia em dose maciça; aspiração, processamento e infusão de medula óssea, etapa realizada na própria unidade hospitalar; enxertamento da medula óssea, procedimento marcado pela implantação da medula; alta hospitalar e acompanhamento ambulatorial, que ocorre quando o enxertamento é considerado bem-sucedido, ou seja, quando não ocorrem complicações decorrentes do transplante. É um período, também, que impõe a necessidade de que o paciente resida próximo à unidade hospitalar por, aproximadamente, três meses: após esse intervalo já pode retornar a sua casa. A partir desse momento será realizado o acompanhamento ambulatorial (Alves et al., 2012). Os efeitos adversos da quimioterapia e da radioterapia podem levar ao comprometimento múltiplo de órgãos e tecidos. Complicações como mucosite, fadiga, náuseas e vômitos, diarreia, dor, infecção, pancitopenia e supressão imune podem ocorrer em qualquer momento do tratamento e/ou na recuperação, podendo persistir por dias ou meses após o transplante, evidenciando a toxicidade e agressividade do procedimento terapêutico (Cooke, 2011).

No Brasil, o câncer atinge, anualmente, entre 12 a 13 mil crianças, representando a terceira causa de morte infantil entre um a 14 anos de idade, com incidência de 1,4 para 10.000 indivíduos. Tal situação decorre do fato de que menos da metade dos sujeitos acometidos consegue chegar aos centros multidisciplinares de tratamento, o que tem inspirado a realização de estudos sobre aspectos diagnósticos e terapêuticos, buscando conhecer esse fenômeno (Fernandes et al., 2012). A literatura aponta que metade dos transplantes realizados no mundo ocorre em crianças e adolescentes (Andres, Lima, & Rocha, 2005).

Quando uma criança é diagnosticada com uma doença crônica, é necessário que a mãe/cuidadora compreenda os aspectos médicos da doença e busque desenvolver algumas habilidades para lidar com as necessidades do filho. Além disso, deve buscar esclarecer as dúvidas e aplacar os temores dos demais familiares. Em nossa cultura a mãe é percebida como uma figura central no cuidado da criança doente, vivenciando de perto o longo processo da doença, que se inicia com a percepção de alterações na saúde da criança e que se consolida com o estabelecimento do diagnóstico médico. A descoberta da doença desencadeia uma crise familiar, que deve ser processada como um momento de transição psicossocial, com potencial para definir e redefinir os papéis exercidos pela mãe e demais familiares (Angelo, Moreira, & Rodrigues, 2010; Arruda-Colli, Sansom-Daly, Santos, & Wiener, 2018).

É comum que, ao longo do processo de hospitalização, crianças e adolescentes tornem-se mais dependentes da presença materna. Dependência e autonomia são movimentos intrínsecos ao desenvolvimento humano. Quanto mais novo e imaturo for o indivíduo, maior será o seu grau de dependência. Todavia, com o processo de adoecimento e hospitalização, muitas atividades que a criança já desempenhava de forma independente passam a ser realizadas pela mãe ou pela equipe de enfermagem (Andres et al., 2005), o que implica um movimento regressivo, algo esperado e que, no contexto de doença grave, mostra-se adaptativo.

Frequentemente, o TMO impõe situações para as quais os familiares do paciente não se sentem preparados para enfrentar. Podem não saber (ou não se sentirem capazes de) estar próximos daquele a quem estimam. O tratamento pode acarretar necessidades de ajustamento que excedem o repertório de recursos adaptativos de que o indivíduo ou a família dispõem. Em face das mudanças de papéis e da busca de recursos sócio financeiros, emocionais e outros, torna-se imperativa a reestruturação da rotina familiar (Matsubara et al., 2015). As famílias vivem sob constante estado de tensão, com oscilações do estado de humor devido aos inúmeros riscos de infecções decorrentes da hospitalização prolongada e dos procedimentos médicos invasivos, que por si só aumentam o risco de complicações e até de desfecho fatal. O lado bom é que a percepção adequada das dificuldades pode acionar estratégias de confrontação positivas, como levar as mães a redescobrirem novos sentidos no ato de cuidar da criança/adolescente que se encontra em situação de extrema vulnerabilidade.

A despeito da relevância dessa temática ainda há poucos estudos voltados à compreensão das questões relacionadas à participação dos pais e/ou responsáveis no tratamento e na alta hospitalar, em especial quando se considera a necessidade de dar continuidade ao cuidado no ambiente domiciliar. Essa responsabilidade pode gerar sobrecarga na família. A literatura destaca aspectos importantes que emergem dessa situação. Se, por um lado, os impactos da doença criam dificuldades de ajustamento, tanto para a criança quanto para a família, por outro lado, as variadas opções terapêuticas disponíveis atualmente também envolvem uma longa e sinuosa trajetória, mesmo nos casos de sucesso terapêutico, uma vez que há especificidades no processo de tratamento que o fazem ser acompanhado de acréscimo de estresse para o cuidador familiar nas várias fases do tratamento (Andres et al., 2005; Mazza, Souza, Estevão, Guimarães, & Mercês, 2016). A contínua monitorização e disciplina impostas pelo tratamento complexo favorecem com que os pais desenvolvam habilidades especificas para atenderem as necessidades de cuidado de seus filhos, paralelamente ao aumento de suas responsabilidades familiares dentro de sua rotina habitual.

Os papéis desempenhados pela mãe englobam múltiplas compreensões e percepções, o que pode ser constatado tanto quando se olha para aqueles que estão próximos, como para os que estão mais distantes da criança ou adolescente com doença crônica (Souza & Melo, 2013). A aproximação com a perspectiva das mães possibilita compreender de que forma a doença repercute na vida da criança e do adolescente, incluindo o seu existir no mundo com os outros e não apenas considerando um ser doente. A contínua experiência do medo da perda e o sofrimento físico e psíquico tendem a incorporar-se na existência das mães que, além disso, vivenciam sentimentos de angústia e preocupação em relação aos demais filhos, ao esposo, ao eventual trabalho e a outras demandas cotidianas que elas muitas vezes necessitam deixar em segundo plano (Oliveira et al., 2010).

A literatura evidencia que a participação ativa das mães é de fundamental importância durante e após o tratamento, o que se estende para o período de recuperação do filho submetido ao TMO (Beattie & Lebel, 2011; Kastel & Enskar, 2014; Mazza et al., 2016). Nessa perspectiva, é essencial facilitar-lhes o acesso a recursos que as auxiliem a compreender o que está se passando com seus filhos e consigo mesmas. Esse conhecimento pode auxiliar os profissionais de saúde a fortalecer as famílias, para que possam lidar melhor com as situações decorrentes do tratamento (Fernandes et al., 2012).

Ademais, a ruptura abrupta do cotidiano, que se contrapõem à necessidade de dar continuidade à rotina de afazeres diários, bem como o medo de perder o ente querido e outros sentimentos desagradáveis que são despertados diuturnamente, além dos outros aspectos anteriormente mencionados, podem gerar sofrimento emocional nos cuidadores familiares. A sobrecarga afetiva precisa ser manejada adequadamente para evitar um declínio exagerado na qualidade de vida dos pais, o que, por sua vez, pode prejudicar o bem-estar da criança adoecida (Cardoso et al., 2018). Geralmente, a família se sente na obrigação de ser (ou parecer) forte, quando na verdade gostaria que tudo aquilo terminasse antes mesmo de iniciar (Kars et al., 2008; Silva, Kameo, & Sawada, 2014). Alguns pais respondem com estoicismo, tentando parecer mais fortes do que realmente são, o que pode contribuir para um desgaste físico e psíquico ainda maior.

Apesar de ser reconhecido o fato de que o acompanhante do paciente pediátrico do TMO é exposto a uma série de eventos estressores, na medida em que convive de perto com procedimentos invasivos que causam dor, fadiga crônica e agravos à imagem corporal da criança transplantada, sabe-se também que o paciente se beneficia com a companhia estável, constante e confiável de alguém da família que permanece próximo o tempo todo. A atenção devotada, vigilância e apoio do cuidador principal são considerados elementos importantes para alcançar a melhora do paciente. O suporte próximo e afetuoso pode até possibilitar, em certos casos, que a criança deixe o hospital mais cedo do que o esperado.

As inquietações que inspiraram o presente estudo foram: quais são as necessidades das mães que acompanharam o filho com doença crônica durante a internação para a realização do TMO? Como os sentimentos e incertezas vivenciados pela mãe diante da doença grave do filho em situação de hospitalização se configuram na experiência do tratamento? Como essas cuidadoras têm vivenciado o cuidado na situação pós-alta hospitalar e o acompanhamento ambulatorial de seu/sua filho/a? Considerando essas interrogações, este estudo teve por objetivo compreender como mães vivenciam o cuidado de crianças e adolescentes submetidos ao TMO.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo, com recorte transversal, de abordagem clínico-qualitativa. A abordagem qualitativa foi escolhida por ser o enfoque que melhor possibilita o alcance do objetivo proposto, já que tem como fundamento o conhecimento produzido sobre as subjetividades a partir da descrição da experiência humana, considerando o modo como ela é vivenciada e definida pelos próprios participantes. Turato (2005) afirma que o método qualitativo tem por objetivo a busca de significados, vivências, crenças e sentimentos. Conhecer os significados atribuídos pelos indivíduos a acontecimentos decisivos de sua existência é um requisito crucial para a melhoria da relação profissional-paciente-família-instituição, nos contextos de cuidado à saúde, promovendo condições para maior envolvimento no tratamento por parte dos pacientes e melhor compreensão do comportamento dos familiares e profissionais da equipe de saúde.

A abordagem clínico-qualitativa propõe a descrição e interpretação dos sentidos e significados produzidos acerca de fenômenos relacionados à vida do indivíduo, com referência aos cuidados com a saúde, podendo ser um paciente, familiar, profissional ou outro participante qualquer. Essa abordagem convida o pesquisador à valorização das trocas afetivas a partir da relação interpessoal, baseada na escuta com foco sobre o processo saúde-doença, explorando tópicos relacionados à terapêutica, ao serviço de saúde e/ou ao modo como lidam com as mudanças ocorridas em suas vidas (Turato, 2000).

Participantes

Participaram do estudo mães (ou familiares que exerciam a função materna) de 39 a 49 anos, de crianças e adolescentes que se encontravam na fase pós-alta hospitalar do TMO. A idade das mães variou de 39 a 49 anos e a dos filhos, de 9 a 17 anos. As participantes foram abordadas durante os retornos ambulatoriais que faziam regularmente em uma Unidade de TMO de um hospital universitário do interior paulista.

Os critérios para inclusão foram: ser mãe, ou exercer os cuidados maternos, de criança/adolescente submetido ao transplante e que estava no período pós-alta hospitalar com acompanhamento ambulatorial na unidade. Foram incluídas todas as mulheres que preencheram esses critérios e que mostraram disponibilidade para colaborar de maneira voluntária com a pesquisa, formalizando sua concordância por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram excluídas as mães que apresentaram dificuldades de comunicação e/ou compreensão, que impediam ou limitavam o engajamento na tarefa.

Seis mães preencheram os requisitos preestabelecidos. Outras quatro potenciais participantes foram excluídas devido ao fato de que seus filhos não estavam no momento sob alta hospitalar no acompanhamento ambulatorial. Nenhuma das mulheres convidadas se recusou a colaborar. Na Tabela 1 estão descritas algumas das características sociodemográficas das participantes, identificadas por nomes fictícios, assim como de seus respectivos filhos.

Instrumento

Foi utilizado como instrumento de coleta de dados um roteiro de entrevista semiestruturada, que abordava questões referentes ao diagnóstico do(a) filho(a), processo de decisão para que o(a) filho(a) se submetesse ao TMO, percepções maternas e do(a) filho(a) sobre o tratamento, estratégias de enfrentamento utilizadas, organização da rotina pós-tratamento e perspectivas de futuro. Esses tópicos foram definidos com base na revisão da literatura e considerando o objetivo proposto.

A utilização da entrevista como técnica para a coleta de dados possibilita o levantamento de dados diretamente com as pessoas (informantes-chave) que experimentaram a situação investigada. A entrevista, vista como ferramenta que propicia um levantamento adequado e eficaz de dados, requer do pesquisador cuidado e prudência durante o processo, buscando promover uma atmosfera permissiva e confiável, evitando expressar julgamentos sobre as condutas da pessoa entrevistada, de modo a deixar a participante relatar livremente sobre determinado tema ou questão, sem interrupções ou constrangimentos, de modo a oferecer a devida atenção ao que ela se dispõe a compartilhar, demonstrando interesse e sensibilidade (Ludke & André, 2013). A entrevista utilizada na abordagem de pesquisa qualitativa tem três particularidades essenciais: a intersubjetividade, a intuição e a imaginação.

Coleta de Dados

O período da coleta de dados se estendeu de janeiro a dezembro de 2016. As entrevistas foram realizadas individualmente, em situação face a face, ao longo de um a dois encontros. A aplicação foi guiada por um roteiro semiestruturado. O material foi gravado em áudio digital e transcrito posteriormente, na íntegra e de modo literal. A coleta de dados foi realizada em um ambiente preservado, no contexto hospitalar, resguardando-se os princípios de conforto e privacidade das participantes. Para as mães que se mostraram fragilizadas durante o processo foi oferecida a possibilidade de atendimento de apoio psicológico, disponibilizado pela psicóloga do serviço, que assessorou o trabalho de coleta de dados.

Análise dos Dados

A análise dos dados foi delineada tendo por referência a proposta de organização dos relatos transcritos, que contempla os seguintes passos: ordenação dos dados, classificação e análise final (Minayo, 2014). A primeira etapa, ordenação dos dados, iniciou-se com a transcrição dos áudios digitais gravados e a leitura do material empírico, procurando nesse primeiro momento ordená-lo em agrupamentos, definidos pelo corpo dos relatos. Segundo Andres et al. (2005), este procedimento possibilita criar diversos títulos em torno dos quais se reúnem os dados brutos, propiciando, desse modo, uma primeira visão de conjunto. Após essa fase, seguiu-se à classificação dos dados, a partir de uma leitura flutuante, exaustiva e recorrente do conjunto do material obtido, buscando-se maior aproximação aos dados coletados, com o objetivo de identificar as ideias centrais e os aspectos relevantes que se destacaram nos conteúdos selecionados. Dessa maneira, esse processo permitiu agrupar os títulos por sua semelhança, constituindo os subtemas que, por fim, possibilitaram definir os temas mais abrangentes.

Cuidados Éticos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, CAAE 20718313.5.0000.5407. Foram respeitados os aspectos éticos salvaguardados na Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram elaboradas as seguintes categorias temáticas: Diagnóstico e adoecimento, Transplante de Medula Óssea, Alta hospitalar, Estratégias de enfrentamento, Relações familiares, Experiência do TMO, Interrogando o futuro.

Diagnóstico e adoecimento: "tudo mudou muito"

As participantes descreveram com riqueza de detalhes o processo de diagnóstico e adoecimento de seus/suas filhos(as). Segundo Silva, Oliveira-Cardoso e Santos (2019), apesar de turbulento, este é um período de reorganização e questionamentos, que impõe aos cuidadores a necessidade de compreender e aprender a defrontar-se com os sintomas da doença, os procedimentos terapêuticos que ela demanda e o ambiente hospitalar, passando a ajustar sua vida à nova realidade que se instala a partir do diagnóstico. As participantes relataram as modificações desencadeadas pela ruptura da normalidade e a consequente reformulação que implementaram em suas rotinas.

[...] eu trabalhava, o Caio estudava, e depois tudo isso mudou, né? Eu tive que parar de trabalhar; ele, de estudar e, assim, foi mudando... Muita quimioterapia, muita internação, foram 90 dias direto de internação, tudo mudou muito (Matilde).

As mães referiram ter encontrado dificuldades em compreender a doença e experimentaram reações emocionais como medo e insegurança em face das incertezas potencializadas pelo estado grave de seus filhos. Relataram ter realizado buscas por conta própria em fontes depositadas em mídias digitais para obterem informações sobre a enfermidade e o tratamento, porém, contrariando suas expectativas, não encontraram respostas que cessassem seus questionamentos.

Foi difícil, porque eu não sabia o que era e o pediatra me indicou um médico oncologista e hematologista, e você já imagina que é um câncer, e aí eu acabei indo para a internet e foi uma das piores coisas que eu fiz [...] então eu sofri muito mesmo, pensei que eu fosse perder meu filho (Ana Carolina).

As entrevistadas relataram desconhecimento do diagnóstico e sua total perplexidade diante da descoberta da enfermidade de seus/suas filhos/as. Beck e Lopes (2007) avaliaram o grau de conhecimento do cuidador sobre a doença da criança ou adolescente. Parte dos participantes do estudo relatou a sensação de incapacidade de prover o cuidado. Segundo os autores, informações apropriadas sobre a doença da criança são a base da motivação para a busca de sucesso e de um bom prognóstico, o que reforça a importância do conhecimento prévio da dinâmica do quadro clínico e de suas características para um melhor enfrentamento do tratamento. Corroborando esses achados, no presente estudo a comunicação médico-paciente-cuidador foi descrita pelas participantes como deficitária. A literatura mostra que essa comunicação, do ponto de vista das mães cuidadoras, é fundamental para a aceitação e enfrentamento da doença de seus filhos, já que elas comumente encontram dificuldades desde o momento em que recebem o diagnóstico, prevalecendo o sentimento de culpa e tristeza (Kastel & Enskar, 2014).

As participantes, ao se recordarem do início do adoecimento de seus filhos, ou seja, os primeiros sinais e sintomas indicativos de que algo não ia bem, relataram não ter identificado, inicialmente, algo diferente na saúde das crianças/adolescentes. De acordo com Silva, Barros e Hora (2011), é frequente observar um longo percurso entre os primeiros sintomas, a procura de ajuda, a obtenção de um diagnóstico e o delineamento de uma proposta de tratamento para crianças com câncer. Mesmo depois de percebidos os sintomas iniciais, as participantes narraram dificuldade no estabelecimento do diagnóstico por parte dos profissionais de saúde. Sabe-se que diversos sintomas do câncer infantil são inespecíficos, porém também se observa o despreparo dos profissionais de saúde. A busca dos pais pelo diagnóstico dos filhos tem sido descrita na literatura como uma verdadeira "peregrinação" por serviços de saúde, configurando-se como uma árdua caminhada, perpassada por diversas especialidades, realização de exames repetidos, dificuldade no estabelecimento de diagnóstico precoce, escassez de recursos e desorganização de serviços. Soma-se a essas barreiras a falta de capacitação de profissionais,

Transplante de Medula Óssea: "mexe muito com o emocional"

A decisão de submeter-se ao TMO se consolidou quando as mães ouviram da equipe de saúde que esta seria a melhor opção de tratamento disponível para a doença de seus filhos, sendo de fato, em muitos casos, a única possibilidade de alcançar a cura. A literatura mostra que o tratamento, ao ser apresentado como potencialmente curativo, proporciona ao paciente e à família um sopro de esperança, que por sua vez reduz os sentimentos disfóricos provocados pelo impacto do diagnóstico (Matias et al., 2011).

Todavia, o TMO caracteriza-se como um longo processo de instabilidade, que envolve acompanhar a criança ou adolescente em uma série de procedimentos médicos invasivos, dolorosos, gradativos e fragmentados. Cada procedimento realizado representa um novo desafio que precisa ser vencido, com intervalos mínimos ao longo de cada etapa. No período identificado como aplasia, definido como o intervalo entre a infusão e a pega da medula, geralmente se observa incremento de ansiedade dos cuidadores, que acompanham as consequências adversas que o tratamento inflige ao ser cuidado (Cardoso & Santos, 2013). Neste estudo as mães revelam suas aflições e dificuldades em vivenciar esse período de espera por resultados. Descreveram que essa quadra de suas vidas foi marcada por medo, insegurança e angústia, e acrescentaram que tais sentimentos foram potencializados pela incerteza quanto à eficácia do tratamento. Quando a imprevisibilidade se soma ao temor do desconhecido, nota-se um forte incremento do estresse resultante das expectativas de que o tratamento surta o efeito esperado.

Por outro lado, algumas mães relataram que, face à imprevisibilidade que caracteriza esse momento, a situação aflitiva intensificou ainda mais sua proximidade emocional com o(a) filho(a), favorecendo um diálogo constante e contínuo, no qual elas foram capazes de expressar seus pensamentos e sentimentos diante da experiência inquietante do TMO.

Porque eu acho que o transplante é uma coisa, assim, que mexe muito com o emocional, mexe muito, você não sabe o que vai acontecer adiante, aquela expectativa, ansiedade [...], mas, assim, deles estipularem dias... "Olha, a medula vai pegar mais ou menos lá pelo dia 15", aí cria uma expectativa tão grande, uma ansiedade tão grande, e isso acho que mexe muito, interfere até (Maria Rosa).

Alta hospitalar: "é hora de cuidar de mim também"

A rotina do paciente submetido ao TMO, quando se encontra no período de alta hospitalar sob acompanhamento ambulatorial, mantém-se concentrada exclusivamente nas atividades de cuidado à saúde (Patrocínio, Cardoso-Oliveira, Zuben, & Santos, 2015). Quando essa rotina é incorporada de forma automatizada e se assemelha a uma repetição ritualizada de gestos diários, perde-se a espontaneidade do viver. A excessiva atenção dedicada às tarefas de autocuidado acaba reforçando a dimensão da sobrevivência em detrimento da fruição da existência. Isso também pode levar a mãe a manter sua atenção integralmente direcionada ao cuidado do filho transplantado.

Os dados obtidos neste estudo corroboram a literatura, mas desenham um cenário mais positivo do que o relatado por outras pesquisas, tendo em vista que, apesar de ainda estarem muito concentradas no cuidado dos filhos, as mães começaram a se dedicar ao próprio autocuidado. Referiram que era muito difícil cuidarem de si no período da hospitalização, quando se mantiveram "internadas" na enfermaria, em período integral ao lado do(a) filho(a), como exige o protocolo do TMO.

[...] cuidar de mim melhor, porque depois que disseram que ele estava doente, eu nunca mais tive tempo de cuidar de mim, né? Eu só cuidava dele [...] todo mundo [risos], a família toda melhora a situação [com a volta para casa], agora está todo mundo mais alegre, pensando melhor, positivo (Gabriela).

Estratégias de enfrentamento: "entregar nas mãos de Deus"

As mães necessitam desenvolver recursos de enfrentamento (coping) para lidarem com os sentimentos negativos que se manifestam ao acompanharem seus filhos durante o tratamento. Estratégias de enfrentamento podem ser definidas como um conjunto de recursos mobilizados pelos indivíduos para se ajustarem às situações adversas ou potencialmente estressantes com as quais se deparam, com objetivo de preservar seu bem-estar, buscando reduzir os efeitos negativos que tais situações implicam (Souza & Melo, 2013). As mães deste estudo relataram a utilização recorrente de duas estratégias: o suporte proporcionado pela rede de apoio social e a crença proporcionada pela fé.

O número de estudos dedicados à questão do uso da religiosidade como recurso de enfrentamento de problemas de saúde tem se elevado nos últimos anos, já que se compreende que a prática religiosa influencia no manejo do estresse, especialmente em populações femininas (Gonçalves, Santos, Chaves & Pilon, 2016; Seidl, Tróccoli, & Zannon, 2001). O chamado coping religioso evidencia o papel integrador da religião e da espiritualidade na manutenção do equilíbrio psicológico. Neste estudo, as mães participantes também recorreram a essa estratégia com frequência e relataram o fortalecimento de suas crenças e convicções religiosas por meio da prática diária de preces e orações. A fé professada pode estar, ou não, ligada a uma religião específica e parece funcionar como reforço na idealização de sucesso no tratamento da doença crônica de seu filho, proporcionando melhor qualidade de vida (Freitas, Oliveira-Cardoso, & Santos, 2017).

[...] quando as coisas estão complicadas, a única coisa que eu faço é orar a Deus, segurar na mão de Deus e pôr Deus na minha frente, Ele vai vir orientando [...] a gente tem é que entregar nas mãos de Deus e pedir a Deus a melhor solução, porque aí Deus vai te orientando e vai dando tudo certo... é sempre assim na minha vida (Gabriela).

A rede de apoio social descrita pelas participantes é composta, basicamente, pelos familiares e se consolida por meio da comunicação constante. Todavia, o distanciamento do lar e da cidade de origem constituem barreiras que limitam a conexão com os demais membros familiares no decorrer do processo de tratamento. Para lidarem com esse obstáculo, as mães utilizam as redes sociais virtuais disponíveis em aplicativos de dispositivos eletrônicos.

Estudo realizado por Santos et al. (2015) aponta a internet e as mídias digitais como uma ferramenta muito utilizada por indivíduos envolvidos no processo saúde-doença. Esse recurso tem gradativamente apresentado evolução quanto ao seu valor no enfrentamento das doenças crônicas. Essa relevância da comunicação à distância como elemento de ligação e manutenção dos laços familiares ficou evidenciada.

[...] às vezes eu conversava com o meu marido, tinha minhas amigas, né? Eu ficava muito no WhatsApp, passava informações... estavam assim o tempo todo me mandando orações, que estavam rezando, essas coisas (Maria Rosa).

Relações familiares: ausência de figuras importantes

Diferentes arranjos familiares estão presentes no cenário do TMO, como a avó que desempenha o papel materno e as famílias matrilineares. A ausência da figura paterna é um elemento recorrente na estrutura familiar.

Eu peguei para criar porque uma, ela [mãe de Jonathan] queria trabalhar, quando engravidou ficava chorando porque o mundo tinha acabado para ela, que ela não iria conseguir criar essa criança [...] Ele [Jonathan] confia só em mim, então é o costume, né? Ele acostumou mais comigo (Gabriela).

A literatura tem evidenciado a intensa transformação pela qual o contexto familiar tem passado na contemporaneidade, com a participação ativa da mulher no mercado de trabalho, aumento no número de separações e divórcios, diminuição do número de integrantes dos núcleos familiares, alterações profundas nos modos de vida e nos comportamentos das pessoas, novos conceitos em relação ao casamento e mudanças na dinâmica dos papéis parentais e de gênero, contribuindo para o surgimento de novas configurações familiares (Pratta & Santos, 2007).

No discurso de algumas mães deste estudo evidencia-se a nova organização familiar. Os dados corroboram os achados de Lopes, Neri e Park (2005), que destacaram, em sua revisão sistemática da literatura, os efeitos observados nas diversas esferas da vida das avós que criam seus netos, como a sobrecarga financeira e os conflitos com os filhos devido às divergências na educação das crianças. Os dados mostraram que o aparecimento de uma doença grave impõe novos encargos, sobrecarregando ainda mais as cuidadoras e afetando o frágil equilíbrio de forças que mantêm as famílias integradas.

A ausência de outros membros do núcleo familiar, figuras centrais que poderiam funcionar como suporte às mães, foi descrita como fator agravante. As entrevistadas relataram o acometimento de sua saúde emocional, acentuado pelas preocupações em relação a seus outros filhos e/ou cônjuge. Segundo estudo de Silva, Collet, Silva e Moura (2010), ao acompanhar seu filho doente a mãe acaba se distanciando de seu núcleo familiar, o que promove alterações no ciclo de vida familiar, fragilizando os laços entre os membros. A experiência da doença acaba por afetar todos os membros. As participantes vivenciam conflito, pois se sentem obrigadas a se dividirem entre a dedicação às responsabilidades de sua antiga rotina e os cuidados do filho acometido por doença crônica.

Experiência do TMO: "a gente não sai mais daqui sendo a mesma"

A trajetória percorrida pela mãe de uma criança acometida por doença crônica, que foi submetida ao TMO, é permeada por um misto de reações, sentimentos e indefinições. A tentativa de preservação da qualidade de vida do(a) filho(a) configura e dá sentido à condição de cuidadora ao longo da experiência do TMO. As novas responsabilidades assumidas e as tarefas que lhe correspondem fazem com que a mãe redefina seus papéis familiares e estabeleça novas relações (Sá, 2002). Congruente aos resultados encontrados pela literatura, os relatos obtidos no presente estudo sugerem que houve amadurecimento das entrevistadas ao longo da experiência compartilhada com o(a) filho(a), o que fica patente na adesão a novas filosofias de vida na tentativa de lidarem com as situações difíceis.

[...] muito aprendizado, sabe, a gente não sai mais daqui sendo a mesma... mexe muito, mexe muito com a parte emocional, você conhece pessoas, você acaba... Eu acho que melhora, né? A gente melhora como ser humano (Maria Rosa).

As participantes, ao serem questionadas quanto à sua percepção sobre a experiência do TMO, explanaram sobre a falta de uma política de divulgação do tratamento na comunidade e os prejuízos que isso pode ocasionar para a saúde pública. O ponto de vista das participantes é definido com base em suas vivências durante o processo de TMO, mas também a partir de suas observações enquanto usuárias dos serviços de saúde de suas cidades de origem. Para Pereira (2008), tratamentos de alta complexidade acabam por se restringirem a uma ínfima parcela da população, que conta com uma situação econômica que possibilita ter acesso aos recursos mais avançados e dispendiosos, como é o caso do TMO.

[...] eu acho que deveria ser mais divulgado, acho que deveriam dar oportunidade para outras pessoas que sofrem com isso [...] que pena que é só para menores de 16 anos, eu acho, mas tirando isso deveria divulgar mais, porque tem muitas crianças aí que sofrem muito e poderiam ser curadas (Ana Carolina).

Interrogando o futuro: "sabendo se cuidar sozinho"

Segundo Cardoso et al. (2018), o TMO é investido como uma esperança de vida para a família do indivíduo acometido por grave enfermidade, proporcionando novas perspectivas, redução da vulnerabilidade e o desejo de reelaborar o projeto de vida familiar, o que traz de volta a possibilidade de fazer planos e interrogar o futuro. Com a descoberta da doença, as expectativas quanto ao porvir ficam comprometidas pelo sentimento de imprevisibilidade, que decorre da ameaça à vida à continuidade da vida da pessoa acometida pela doença crônica e submetida ao TMO. As mães do presente estudo apresentaram, no período de acompanhamento ambulatorial após a alta hospitalar, uma clara expectativa positiva em relação ao futuro, projetando um amanhã com maior qualidade de vida para toda a família, o que inclui a redução de preocupações. Por outro lado, também declararam que entendem as limitações que o tratamento acarretaria, mas a aspiração a uma vida melhor as motivavam a lutar pela cura de seus filhos e a acreditarem em um desfecho promissor.

Eu imagino eu passeando mais. E ele, com a vida dele, sabendo se cuidar sozinho, e com certeza com alguém do lado dele para o ajudar. Eu quero viver um pouco... (Clara).

Essa fala é ilustrativa do quanto o envolvimento pleno das mães com o tratamento faz com que elas também fiquem vulneráveis. Em sua devoção absoluta, permanecem totalmente absorvidas pelas demandas de cuidados do filho e, frequentemente, negligenciam a satisfação de suas próprias necessidades. Por essa razão precisam acreditar que a cura é exequível, para que no futuro possam redirecionar suas energias em seu próprio benefício sem se autoculpabilizarem. É como se cuidar do outro e cuidar de si fossem tarefas inconciliáveis. Assim, as mães deste estudo demonstram que desejam ter sua vida de volta ("Eu quero viver um pouco..."). Fica claro que se comportar como um agente ativo no processo do transplante do filho (Mazza et al., 2016) pode resultar em prejuízos no bem-estar psicológico da mãe.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os depoimentos de mães de crianças e adolescentes com doenças hematológicas após a alta hospitalar possibilitam compreender as nuances dessa experiência vivida ao lado do(a) filho(a), no percurso do TMO. O tratamento arrojado impõe inúmeros desafios, que precisam ser vencidos paulatinamente, na busca pela cura.

Constatou-se que, quando um membro do núcleo familiar é acometido por uma doença crônica potencialmente fatal, que o leva a ter de se submeter ao transplante, toda a família é exposta aos receios e incertezas inerentes ao tratamento. Todavia, a maior parcela da carga de novas responsabilidades recai sobre o cuidador mais próximo, que na maioria das vezes é a mãe, que passa a se dedicar em tempo integral ao provimento dos cuidados do(a) filho(a) doente. Isso exige reformular radicalmente seu cotidiano, deixando suas tarefas e hábitos de vida diária de lado para aprender a lidar com as novas exigências e sentimentos suscitados pela experiência crítica.

A qualidade de vida das mães é gradativamente prejudicada pelos obstáculos enfrentados no enfrentamento da situação de adoecimento do(a) filho(a) e no longo processo de desgaste acarretado pelo tratamento. As cuidadoras vivenciam, de um lado, as incertezas que o TMO implica, e por outro, a perspectiva da cura, que lhes acena com a esperança de dias melhores, mesmo que haja um longo e tortuoso caminho a ser percorrido. As mães tentam restaurar suas forças e recuperar seu equilíbrio abalado, por meio da mobilização de sua rede de apoio pessoal e do apego à fé, que caracterizam as estratégias de enfrentamento mais utilizadas. No período de acompanhamento ambulatorial, sob o regime de alta hospitalar, a qualidade de vida das mães é paulatinamente recuperada com a saída do ambiente hospitalar e a oportunidade de desenvolver novas atividades de rotina que favorecem a retomada do autocuidado.

Este estudo agrega informações que enriquecem o conhecimento já produzido, ao apresentar novas possibilidades de compreensão da experiência das mães de crianças e adolescentes submetidos ao TMO. Os resultados obtidos reforçam a importância de se compreender o que nos dizem essas mães sobre sua experiência, considerando a problemática da família, as especificidades do "ser mãe" sob condições adversas e a necessidade de permanência prolongada junto à criança e adolescente em acompanhamento ambulatorial e que está sob alta hospitalar. Novos estudos se fazem necessários para proporcionar uma compreensão mais completa, por parte da equipe de saúde, e que forneça subsídios para um tratamento focado nas necessidades emocionais. A comunicação dos profissionais com paciente e cuidadores, o uso da tecnologia de comunicação e informação como estratégia robusta de enfrentamento e o grande desconhecimento que ainda perdura na população em relação ao tratamento, são algumas das questões a serem exploradas em estudos futuros, complementando o conhecimento obtido sobre a experiência materna após o término do tratamento.

 

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