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Vínculo
versão impressa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.17 no.1 São Paulo jan./jun. 2020
https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v17n1p119-137
ARTIGOS
O conto como objeto mediador: uma experiência com grupos com universitários
The short story as a mediator object: a group experience with university students
El cuento como objeto mediador: una experiencia de grupos con estudiantes universitarios
Mayara Karolina Alvarenga Recaldes Gomes Coutinho
Psicóloga (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Mestre em Educação (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) mayarakargcoutinho@gmail.com
RESUMO
O objetivo geral deste trabalho é relatar a experiência de um grupo operativo temático com universitários que utilizou uma peça literária (conto) como objeto mediador, problematizando o uso deste dispositivo como um meio de cuidado em saúde mental na universidade. Realiza-se a análise de uma sessão do grupo operativo com o tema "família" à luz do referencial teórico da psicanálise vincular e do trabalho com grupos em instituições. Resultados: a constituição dos grupos levou em consideração as especificidades do público universitário e o vínculo com a instituição; o conto é um objeto cultural pré-constituído que mobiliza o pré-consciente e favorece os processos de simbolização; a escolha do conto como objeto mediador nos grupos relatados está em consonância com a tarefa primária da instituição universitária; o dispositivo apresentado constituiu-se como espaço de simbolização das experiências vividas na universidade e nas relações interpessoais, com potencial para a elaboração do sofrimento psíquico do jovem universitário. O grupo mediado por contos mostrou-se como um dispositivo de cuidado em saúde mental dos universitários a ser investigado e sistematizado, tendo em vista a ampliação da preocupação com os agravos à saúde mental na instituição universitária.
Palavras-chave: Psicanálise; Grupo; Objeto mediador; Conto, Universitários.
ABSTRACT
The general objective of this paper is to report the experience of a thematic operative group with university students who used a literary piece (short story) as a mediator object, problematizing the use of this device as a means of mental health care in the university. It is performed the analysis of a session of the operative group with the theme "family" in the light of the theoretical framework of psychoanalysis linkage and the work with groups in institutions. Results: the constitution of the groups took into account the specificities of the university public and the bond with the institution; the short story is a pre-constituted cultural object that mobilizes the preconscious and favors the processes of symbolization; the choice of the short story as a mediator object in the reported groups is in line with the primary task of the university institution; the presented device was constituted as a space of symbolization of the experiences lived in the university and in the interpersonal relations, with potential for the elaboration of the psychic suffering of the young university student. The group mediated by short stories proved to be a mental health care device for university students to be investigated and systematized, with a view to increasing concern about mental health problems in the university institution.
Keywords: Psychoanalysis; Group; Mediator object; Short story; University students.
RESUMEN
El objetivo general de este trabajo es informar la experiencia de un grupo operativo temático con estudiantes universitarios que utilizaron una pieza literaria (cuento) como objeto mediador, problematizando el uso de este dispositivo como un medio de atención de salud mental en la universidad. El análisis de una sesión del grupo operativo con el tema "familia" se realiza a la luz del marco teórico del psicoanálisis vincular y del trabajo con grupos en instituciones. Resultados: la constitución de los grupos tuvo en cuenta las especificidades del público universitario y el vínculo con la institución; el cuento es un objeto cultural preconstituido que estimula el preconsciente y favorece los procesos de simbolización; la elección del cuento como objeto mediador en los grupos informados está en línea con la tarea principal de la institución universitaria; el dispositivo presentado se constituyó como un espacio de simbolización de las experiencias vividas en la universidad y en las relaciones interpersonales, con potencial para la elaboración del sufrimiento psíquico del joven universitario. El grupo mediado por cuentos demostró ser un dispositivo de cuidado en la salud mental para estudiantes universitarios para ser investigado y sistematizado, tiendo en cuenta el aumento de la preocupación por los problemas de salud mental en la institución universitaria.
Palavras clave: Psicoanálisis; Grupo; Objeto mediador, Cuento; Universitarios.
INTRODUÇÃO
Ler pode ser considerado como o reencontro com o encontrado criado de si e do outro, dos outros e do mundo. Neste sentido, a leitura de textos literários pode, então, proporcionar um tempo e um espaço para o encontro de si e com a polifonia dos tantos outros que nos habitam ou passam a habitar por meio da leitura. Tomamos a literatura como um objeto intermediário para o psiquismo, pois viabiliza ligações, acionando registros psíquicos que ainda não haviam passado pelo processo secundário (Kaës, 2005). Tomamo-la também como um importante meio para a transformação de experiências dolorosas ou traumáticas, sendo um recurso de simbolização (Petit, 2009).
A leitura é registrada, na maioria das vezes, como uma atividade solitária, na busca de um prazer que não se compartilha, como a personagem de Felicidade Clandestina, conto de Clarice Lispector (1971/2016), deliciando-se na rede com seu livro/amante, talvez um paralelo à capacidade de estar só (Winnicott, 1958/1983). Aqui pensamos a leitura como um exercício de estar só na presença do outro (personagens, autor), mas também podemos localizá-la no espaço transicional, como o brincar, no espaço entre a realidade interna e a realidade externa como um recurso para lidar e transformar a parte da realidade que é insuportável (Grenn, 2013).
Mas e ler com outros? O grupo comporta uma realidade psíquica específica que o distingue dos agrupamentos humanos (Kaës, 2005) e tem o potencial de mobilizar aspectos arcaicos do psiquismo, uma vez que o sujeito advém da intersubjetividade, assim como seus sintomas e as produções do inconsciente (Castanho, 2018). Para que um dispositivo grupal constitua uma situação analítica capaz de acessar a realidade psíquica específica do grupo, são necessárias algumas condições como o enquadre e o metaenquadre, a construção e manutenção da cadeia associativa grupal, a consideração da transferência e o trabalho de simbolização e a tarefa do grupo e da instituição.
Ler com os outros, em nossa perspectiva, circunscreve-se, então, à leitura como uma tarefa do grupo, seguida de um espaço de discussão e reflexão. O texto literário é tomado, assim, como um objeto mediador, servindo de suporte para as projeções do grupo e dos sujeitos do grupo, e deste modo "sustenta as produções, tolera as contradições, não é nem eu, nem o outro, ancora os dois, é o terceiro entre o outro e mim, intermediário" (Vacheret, 2008, p. 188). Ler em grupo, no grupo, abre uma potencialidade de transformação das vivências em sofrimento dentro de uma instituição, quando existe uma sinergia entre o objeto, o grupo e a tarefa da instituição.
Este artigo traduz um esforço de pensar psicanaliticamente a potência da literatura conjugada com a potência do grupo operativo temático dentro de uma instituição universitária. O dispositivo grupal com essas características foi pensado como um dispositivo de cuidado em saúde mental de estudantes universitários, que tantas vezes se encontram aturdidos, com a capacidade de pensar prejudicada, sem condições de encontrar/criar um espaço potencial para a simbolização do sofrimento vivenciado e religar os vínculos que foram rompidos ou não criados.
Abordamos alguns aspectos da saúde mental de universitários, especialmente estudantes de instituições de ensino superior (IES) federais do Brasil, discutimos a tarefa primária da universidade, apresentamos e analisamos uma sessão de dispositivo grupal de cuidado de universitários que utilizou um conto como objeto mediador, destacando os emergentes da sessão e sua relação com o sofrimento psíquico no campo da Universidade. Recorremos ao aporte teórico e metodológico da psicanálise de grupo para a estruturação do dispositivo e para a análise de uma sessão, destacando a mobilização do grupo a partir do conto, colocando em figuração o desamparo vivido diante da tarefa de passar a integrar uma nova instituição e estabelecer novos vínculos.
A saúde mental de universitários: aspectos clínico-institucionais
A saúde mental de acadêmicos de graduação tem preocupado pesquisadores que tomam essa população seja por um viés amostral de pesquisas sobre aspectos específicos, como psicopatologias e habilidades sociais, ou validação de instrumentos, seja como objeto de estudo em pesquisas de pós-graduação sobre a inserção da psicologia no Ensino Superior, conforme levantamento nas bases de dados PEPSIC e BDTDi. Do ponto de vista das políticas públicas para o Ensino Superior, especialmente para as instituições federais (IFES), a preocupação com a saúde mental está incluída no Plano Nacional de Assistência Estudantil, na área da atenção à saúde e tem sido um dos eixos investigados na V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES (Andifes & Fonaprace, 2019).
No âmbito da pesquisa referida acima, com uma amostra de 424.128 estudantes de graduação de 65 IFES, se observou que 32,4% da população-alvo já esteve ou está em atendimento psicológico, no entanto, somente 3% dessa amostra passou por atendimento psicológico em programas de assistência estudantil das universidades nas quais estudam (Andifes & Fonaprace, 2019). Isso demonstra que, embora se esteja ampliando a preocupação com a saúde mental dos graduandos, ainda é incipiente o acesso dos acadêmicos ao atendimento psicológico dentro das universidades federais.
A pesquisa da Andifes e do Fonaprace (2019) também levantou alguns dados sobre a percepção dos acadêmicos participantes acerca do sofrimento psíquico com destaque para a ansiedade, 63,6%, ideias de morte, 10,8%, e pensamento suicida, 8,5%, concluindo que "está acesa a luz vermelha da saúde mental" tendo em vista um aumento dessas queixas na ordem de aproximadamente 4% em relação à mesma pesquisa realizada em 2014 (Andifes & Fonaprace, 2019, p. 84). Importante destacar ainda a presença de outros indicadores de sofrimento psíquico levantados pela V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES, como desânimo e falta de vontade de fazer as coisas, 45,6%, insônia ou alterações significativas do sono, 32,7%, sensação de desamparo, desespero, desesperança, 28,2%, sentimento de solidão, 23,5%, e tristeza persistente, 22,9%, pois constituem sinais de alerta para o desencadeamento de crises suicidas, conforme Botega (2015).
Partindo da perspectiva de Figueiredo (2014, 2017) lemos o sofrimento psíquico pelo viés da metapsicologia e da teoria geral do cuidado, tomando a saúde mental como processos nos quais os trabalhos psíquicos estão atuantes para a digestão e transformação da experiência emocional, enquanto os adoecimentos correspondem a interrupções dos trabalhos psíquicos fundamentados na compulsão à repetição. Figueiredo (2017) teoriza que os sofrimentos psíquicos da atualidade se ancoram em um funcionamento maníaco coletivo, marcado pela negação e onipotência, com vistas à defesa ante um fundo depressivo caracterizado "pelo tédio, pelo senso de futilidade, pela melancolia e pela pulsionalidade destrutiva" (p. 26), que impede o contato e a elaboração da realidade interna dolorosa.
Neste sentido, uma compreensão possível do sofrimento psíquico dos jovens universitários comporta a consideração das interrupções de trabalho psíquico, como o sonho, o luto, o humor, a criação, e as consequências dos funcionamentos coletivos maníacos para a subjetivação. Para o autor supracitado, uma posição maníaca coletiva tem como consequências percalços na saída do narcisismo primário e na evolução das situações edípicas. Por conseguinte, os sujeitos ficam retidos em "um estado narcisista de mente e relações narcisistas de objeto" vivenciando falhas nos processos de triangulação, impedindo o acesso aos processos próprios dos trabalhos psíquicos, levando ao adoecimento (Figueiredo, 2017, p. 32).
Entendemos que esses processos terão consequências na estruturação das instituições e nas vivências realizadas em seu bojo, assim como nos processos de entrada e saída das mesmas. Os jovens universitários estão passando por uma instituição de ensino e serão afetados pelos funcionamentos institucionais, como aponta a própria pesquisa da Andifes e do Fonaprace (2019, p. 84) ao afirmar que "a rotina de estudos na universidade contribui para amplificar os problemas relativos à saúde mental, exigindo dos estudantes posturas flexíveis e resilientes no ambiente acadêmico". Outros estudos corroboram a assertiva de que a vivência institucional da universidade contribui para processos de sofrimento psíquico e adoecimentos, embora em outras perspectivas teóricas (Ariño & Bardagi, 2018; Cremasco & Baptista, 2017; Ribeiro & Guzzo, 2019). Especialmente, Ribeiro e Guzzo (2019) apontam que o "ambiente estudantil muitas vezes não é propício ao desenvolvimento humano integral" e, citando Ribeiro (2018), que "as Instituições de Ensino Superior, apesar de serem um lugar para a formação de profissionais criativos, inovadores e pensantes, muitas vezes não promovem espaços para discussão sobre assuntos pertinentes à vida estudantil" (Ribeiro & Guzzo, 2019, p. 31-32).
A transição do ensino médio para a educação superior e a adaptação dos ingressantes no ensino superior é um processo complexo e multidimensional que envolve variáveis de natureza interpessoal, acadêmica e contextual, as quais podem contribuir para o sucesso adaptativo ou para a evasão precoce, quando não consideradas pela IES (Soares, Almeida & Ferreira, 2006). Neste sentido, a adaptação ao ensino superior exige o desenvolvimento de níveis adequados de autonomia e maturidade dos acadêmicos, e, concomitantemente, uma atuação institucional com centralidade no estudante, que busque conhecer suas especificidades, potencialidades e limitações, acolhendo o acadêmico e ofertando possibilidades de atendimento às dificuldades vivenciadas no início da trajetória no ensino superior (Costa, 2016). A permanência e o sucesso acadêmico encontram-se relacionados a expectativas realistas sobre o curso e sobre a IES, cabendo a esta proporcionar o acesso às informações relevantes para a permanência e desenvolvimento do acadêmico, como os serviços ofertados e a legislação institucional vigente (Soares, Almeida & Ferrreira, 2006; Costa, 2016). A criação de redes de cuidado entre os próprios discentes também é de suma importância, considerando que um bom relacionamento interpessoal entre os discentes tende a favorecer o processo de adaptação e o sucesso acadêmico (Peres, Santos & Coelho, 2004).
Compreendemos que a implicação da Universidade, enquanto instituição educativa, no cuidado de seus estudantes passa pelas considerações elencadas acima, e quando não são consideradas, levam a uma falha da instituição em suas atividades de cuidar, conforme nossa leitura de Figueiredo (2012). Para este autor, as atividades de cuidar, que incluem as dimensões de sustentação e continência, de reconhecimento e de interpelação, fazem parte das obrigações e tarefas específicas das áreas da saúde e da educação. A atuação do agente cuidador nessas dimensões em uma perspectiva que alterna presença implicada e presença reservada, conforme a demanda do sujeito alvo dos cuidados é que viabilizará a experiência de integração necessária à manutenção dos trabalhos psíquicos que caracterizam os processos de saúde (Figueiredo, 2012).
É por este viés que pensamos na atuação do profissional psicólogo nas instituições de um modo geral e, especificamente, na Educação Superior que é nosso campo de trabalho e de pesquisa. Compreendemos que nossa função será identificar os bloqueios e restabelecer os processos de saúde, resgatando essas dimensões do cuidado e enganchando as propostas específicas de trabalho voltadas ao público-alvo de nossas ações à tarefa primária da instituição. Neste sentido, concordamos com Castanho (2018) quando aponta o pressuposto do trabalho institucional a partir da perspectiva psicanalítica:
. . . é um pressuposto nosso que a presença do conhecimento psicanalítico em uma instituição não pode de modo algum se dar pela perversão da tarefa primária da instituição, inserindo-lhe objetivos terapêuticos que lhe sejam alheios. Tampouco volta-se exclusivamente para a realidade intrapsíquica, pois . . . o foco recai (com diferentes níveis de intensidade) sobre as alianças inconscientes e suas produções. (Castanho, 2018, p. 218)
Compreendemos que uma primeira aproximação da tarefa primária da Universidade pode se dar por meio dos objetivos do Ensino Superior, conforme prescreve a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) em seu artigo 43 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996/2005). Destacamos, principalmente, o inciso primeiro que inicia a apresentação das finalidades da Educação Superior: "estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo"; e um trecho dos incisos terceiro "... desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive"; e o inciso sexto "estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente" para abordar o caráter formativo tanto em um viés profissional e científico, como em uma esfera pessoal (LDBN, 1996/2005, p. 21-21). Desta forma, podemos fazer uma primeira formulação da tarefa primária da Universidade: propiciar a formação profissional, científica e cultural de sujeitos capazes de fazer uma leitura crítico-reflexiva e, consequentemente, transformadora de si e do mundo.
Entendemos que essa esfera da formação pessoal pode ser abordada pela compreensão de processos de saúde e adoecimento propostos por Figueiredo (2012, 2014, 2017), pois se encontram no campo dos trabalhos psíquicos para a elaboração das experiências emocionais vivenciadas na realidade de cada um e na realidade compartilhada nos espaços institucionais. As ações de cuidado, neste sentido, direcionariam a atenção às formações intermediárias entre o espaço psíquico singular e o espaço psíquico dos grupos nas instituições, focalizando as relações entre esses distintos espaços na realidade psíquica da instituição. Kaës (2002) afirma que a instituição "realiza funções psíquicas múltiplas para os sujeitos singulares tanto na sua estrutura quanto na sua dinâmica e economia pessoais" como a regulação endopsíquica, a identificação do sujeito com o conjunto social sendo depositária "dos aspectos do psiquismo que escapam à realidade psíquica" (Kaës, 2002, p. 19).
Com isso, é importante marcar que a Educação Superior, em suas finalidades, aponta para um caráter de transmissão cultural e científica, inscrevendo-se em uma tradição, como podemos observar no inciso quinto da LDBN: "suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração" (LDBN, 2005 [1996], p. 21).
Deste modo, podemos pensar que ingressar e permanecer em uma Universidade também comporta se apropriar de uma tradição cultural, o que demandará trabalhos psíquicos para tornar próprio esse espaço. Estes trabalhos psíquicos estariam na ordem dos trabalhos necessários para a apropriação e transformação das heranças transgeracionais no ensejo da citação que Freud (1912-13/2012, p. 155) faz de uma frase de Goethe: "O que herdaste de teus pais, conquista-o, para que o possuas." Pensando no campo da formação universitária, o jovem tem o trabalho psíquico de conquistar o conhecimento sistematizado nas gerações anteriores para passar a possuir uma identidade profissional e ascender ao mundo adulto.
No trabalho institucional orientado pela psicanálise, é preciso ainda considerar outro ponto do pressuposto de Castanho (2018): o foco sobre as alianças inconscientes. Kaës (2014) define as alianças inconscientes como as alianças estabelecidas entre os sujeitos, em um nível intersubjetivo, constituindo "a matéria e a própria organização da realidade psíquica" além de também possuir um caráter intrasubjetivo, na medida em que abarca as relações entre as dimensões pulsionais, estrutural e as relações com objetivos internos. Kaës (2014) teoriza a existência de alguns tipos de alianças inconscientes como as alianças estruturantes primárias e secundárias, os pactos denegativos e as alianças ofensivas. Tais alianças inconscientes vão estruturar as relações e a constituição do sujeito, assim como terá efeitos na dinâmica institucional e no interior dos grupos.
No âmbito das alianças inconscientes estruturantes, gostaríamos de destacar o contrato narcísico e colocá-lo em relação com o sofrimento do jovem universitário. Teorizando a partir dos postulados de Piera Aulagnier, Kaës (2014) aponta que os contratos narcísicos, subdivididos em originário, primário, secundário, têm uma função de sustentação do psiquismo, pois comportam o investimento do grupo sobre o indivíduo, sobre o novo membro do grupo, tomando-o como o portador da continuidade daquele grupo oferecendo-lhe as coordenadas identificadoras. O contrato narcísico originário aponta para a afiliação narcísica com a espécie humana, enquanto o contrato narcísico primário é pactuado no âmbito do grupo primário e indica uma inscrição na herança familiar com orientações sobre as identidades do sujeito. Nos grupos secundários e nas instituições, opera o contrato narcísico secundário, com "relações de continuidade, complementaridade e de oposição com os contratos narcísicos originários e primários" (Kaës, 2014, p. 66).
Assumir um contrato narcísico secundário reativa o contrato narcísico primário de cada um dos postulantes e demanda um trabalho de elaboração, pois "todas as mudanças das relações entre o sujeito e o contexto, toda a pertença ulterior, toda e qualquer nova adesão a um grupo questiona - põe em cheque - e em alguns casos enseja até processos elaborativos, do aporte desses contratos" (Kaës, 2014, p. 66). É a partir desse cenário que pensamos ser possível colocar em relação esse tipo de aliança inconsciente - o contrato narcísico secundário - com o sofrimento psíquico do universitário. Pois estamos tratando da entrada em uma nova instituição, inscrita numa tradição de transmissão cultural que exigirá a adesão a alianças inconscientes e um consequente trabalho elaborativo sobre os conflitos resultantes dos questionamentos dos contratos e alianças às quais esteve sujeito até então.
Construindo o dispositivo
Tendo em mente as considerações anteriores sobre o trabalho do psicólogo orientado pela psicanálise em uma IES, o sofrimento psíquico do jovem universitário e suas especificidades, assim como a tarefa primária da instituição universitária, apresentamos um dispositivo grupal que teve como objetivo conjugar esses diferentes fatores. Analisaremos uma sessão grupal que utilizou como objeto mediador o conto "Os laços de família" (Lispector, 1960/2016). Essa sessão foi a segunda de uma série de quatro sessões programadas de um grupo operativo temático sobre "família", oferecido a alunos de graduação de uma Universidade pública federal, localizada em cidade de pequeno porte na região Centro-Oeste do Brasil. Os temas para os grupos com os acadêmicos surgiram em parte das demandas observadas em atendimentos individuais e também a partir da leitura de textos científicos sobre as problemáticas da transição da adolescência para a idade adulta.
O referencial teórico adotado para a construção do dispositivo foi o de grupos operativos centrados na tarefa, de Pichón-Rivière (2009), pensando em uma tarefa para o grupo que se aproximasse do tema a ser trabalhado, mas que também estivesse em consonância com a tarefa primária da universidade (Castanho, 2018). O grupo foi aberto a todos os graduandos (Psicologia, Administração e Matemática), com a proposta de realização de quatro encontros com a tarefa explícita de "refletir sobre as relações familiares e as vivências na universidade". Tratava-se de um grupo fechado, heterogêneo quanto ao sexo, idade, curso e semestre dos participantes. A adesão ao grupo foi relativamente baixa, com oito inscrições, e cinco participantes regulares, sendo três mulheres com idade entre 19 e 50 anos e dois rapazes (17 e 19 anos). Quanto ao semestre, tínhamos participantes que estavam em diferentes pontos da graduação, desde ingressantes até concluintes. Na sessão analisada a seguir participaram três pessoas dos cursos de administração e psicologia, sendo dois ingressantes e uma veterana. O conto "Os laços de família" (Lispector, 1960/2016) foi escolhido após a primeira sessão do grupo, quando se observou como emergente principal do grupo a questão das despedidas, do deixar para trás as vivências dos grupos primários para a construção de novos vínculos.
Quem nos escuta? O sofrimento na Universidade
A leitura do conto e o convite para conversar sobre o que os participantes pensaram e/ou sentiram durante a leitura foi feito na abertura da sessão pela coordenadora. Em seguida a coordenadora leu um trecho do conto "Os laços de família" que descrevia a cena em que mãe (Severina) e filha (Catarina) estão no táxi, a caminho da estação de trem. A autora (Lispector, 1960 /2016) desenvolve uma narrativa sobre a dinâmica de distanciamento e reaproximação de mãe e filha ante uma situação inesperada, o solavanco no carro, que traz à memória da filha situações de cobrança da mãe sobre sua competência em constituir e gerir a própria família. A leitura foi encerrada na despedida entre mãe e filha na estação de trem.
Nesta sessão, observamos os emergentes "falha na comunicação" e "suicídio", além de figurações e fantasias relacionadas à cobrança por resultados e indisponibilidade para a escuta do sofrimento. O primeiro emergente que surgiu no grupo, "falha na comunicação", reuniu as associações e figurações do grupo sobre a existência de uma "ligação" entre as personagens da mãe e da filha, porém uma ligação qualificada como "frágil" e uma falta de "companheirismo" entre as duas.
Considerando que Castanho (2018), ao reunir a teorização sobre o enquadre e o sofrimento institucional, afirma que os conteúdos ligados ao que está em sofrimento no grupo e na instituição deposita-se no enquadre, dada sua função continente, observamos nesta sessão a figuração do conto, como que numa atuação da narrativa pelos participantes. Assim, duas participantes começam a discordar entre si sobre a possibilidade de uma comunicação não verbal entre mãe e filha, enquanto o outro participante fica o tempo todo em silêncio, tal como o personagem não enunciado do conto (o esposo de Catarina, que discorda o tempo todo da sogra, mas não fala abertamente sobre isso). Notamos assim que, embora o grupo associe verbalmente sobre a comunicação, não comunicação ou comunicação prejudicada entre a mãe e a filha, personagens presentes no objeto mediador, a comunicação truncada entre mãe e filha e o silenciamento de um terceiro é presentificada na configuração grupal presente.
O segundo emergente surge após alguns minutos de silêncio que ocorreu em seguida a uma intervenção da coordenadora que buscou clarificar o embate entre as duas participantes. Uma delas evoca o caso de um suicídio ocorrido da cidade naquela semana. As associações verbais demonstram a identificação do grupo com o sofrimento da família do suicida diante da impotência da morte auto infringida. Mais uma vez o sofrimento de matriz institucional presentifica-se na fantasia de que alguém sabe do sofrimento, mas nada ou pouco faz para evitar o trágico desfecho do suicídio. Pensamos na relação com a universidade/família e a escuta do sofrimento de seus alunos/filhos, tendo em vista que estes acadêmicos estão assumindo alianças inconscientes no bojo de um contrato narcísico secundário que reativam o contrato narcísico originário e o primário, exigindo dos contratantes um trabalho de elaboração psíquica (Kaës, 2014).
Da parte da instituição, espera-se a aposta nos novos membros, o que lhe garante a continuidade e a perpetuação no tempo. Da parte dos ingressantes, espera que se apropriem de uma tradição. Retomamos Figueiredo (2012) para lembrar as falhas que ocorrem quando a instituição não consegue sustentar seu lugar de holding e continência e pensamos que a fantasia que apareceu no grupo retoma essa falha em potencial. É como se os participantes suspeitassem da condição de continência e sustentação da Universidade ao mesmo tempo em que lhe mostra a necessidade de alternar presença implicada e presença reservada, em um tempo e espaço entre escuta e intervenção suficientemente bons.
Outra figuração do grupo segue nesta mesma direção, quando o participante que ficou o período todo em silêncio é explicitamente convocado para falar por outra integrante do grupo. O não falar espontâneo e a recusa em falar provoca um incômodo no grupo, figurando aquilo que é silenciado na instituição, o que é não é tocado, porém permanece presente de maneira negativa. Por outro lado, a cadeia associativa grupal direciona-se para a esperança de retomada de uma efetiva comunicação, que possa tanto falar quanto calar e respeitar a necessidade de não comunicação para preservar o núcleo do self (Winnicott, 1963/1983).
Deste modo, depois de uma intervenção da coordenadora que teve o objetivo de apontar as diferentes funções do silêncio, dentre elas a busca por um espaço próprio e por confiança - em si, no outro, na universidade - uma participante recorda de sua relação com a filha adolescente e como pode haver uma comunicação possível entre os pares, ainda que esta comunicação não esteja aparente ou inteligível para a geração anterior. Entendemos este movimento do grupo como um movimento de esperança e também de um encontrado-criado. Esperança de que a comunicação possa ser restabelecida e os espaços individuais e grupais possam ser respeitados, isto é de que, dentro de uma alternância entre presença implicada e presença reservada, a Universidade possa escutar o sofrimento do acadêmico e ao mesmo tempo permitir que eles mesmos encontrem esses espaços para falar de si e entre si.
Considerações finais
O dispositivo grupal em análise demostra o potencial para o cuidado em saúde mental de acadêmicos de graduação, pois ao considerar a sinergia entre a tarefa do grupo e da instituição, utilizando um objeto mediador que entrou em sinergia com o grupo, foi possível levantar e trabalhar alguns aspectos dos vínculos intersubjetivos e institucionais em sofrimento. Os emergentes foram trabalhados no grupo a partir da cadeia associativa grupal e das pontuações da coordenadora quando o grupo entrava em silêncios prolongados ou quando o sofrimento figurava no grupo, como nos embates infrutíferos, isto é, quando o grupo encontrava-se em um estágio de pré-tarefa. Buscava-se, assim, retomar a tarefa do grupo - refletir sobre família e vivências na universidade - remetendo-a ao conto, especialmente às despedidas e tensões de comunicação entre mãe e filha, que também se manifestavam naquela sessão, havendo uma sintonia com o objeto mediador utilizado naquela sessão - o conto.
Na sessão em análise, surgiram facetas relacionadas ao assumir um contrato narcísico secundário que reativa os contratos anteriores e exige trabalho psíquico para lidar com as fantasias e com o real do tornar-se adulto, ingressante de uma universidade, ambiente que também é cheio de regras e exigências. A tais processos subjazem angústias que podem ser elaboras como dúvida, "será que vou dar conta?", e como imperativos, "tenho que dar conta", muitas vezes sem o reconhecimento da mãe/universidade sobre as competências apresentadas por esse filho/aluno que está crescendo.
O objeto mediador escolhido para este trabalho grupal, o conto "Os laços de família", invadiu a mente da coordenadora após a primeira sessão com este grupo, entrou em sinergia com o aqui agora do grupo e figurou essas facetas, com sua narrativa sobre uma mãe que se faz presente para cobrar a filha sobre sua conduta enquanto mãe, pois, segundo o olhar da avó, seu neto não está adequadamente alimentado. No conto, a filha encontra soluções criativas através de seu "sorrir com os olhos" para essas cobranças e ao retomar a vida após a partida da mãe, em alguma medida, identificando-se com ela, ao atribui-lhe o pensamento "que poderia ser eu senão sua mãe?" e respondendo: "E eu, senão sua filha?".
O conto tem qualidades próprias, que viabilizam seu uso como objeto mediador: é um processo narrativo, conta uma história, e traz uma figuração que "efetua um trabalho de cultura" com um papel intermediário entre a realidade cultural e a fantasia. O conto, como objeto mediador neste grupo, esteve situado na categoria de intermediário, pois viabilizou ligações entre realidades diferentes e inacessíveis à consciência dos participantes, colocando em movimento o processo de simbolização e a busca pelas próprias soluções criativas. Deste modo, pensamos que o dispositivo apresentado neste artigo tem um importante potencial no cuidado em saúde mental de uma população não clínica (estudantes de graduação) a ser explorado e investigado cientificamente em projetos e trabalhos futuros em serviços de saúde mental destinados a este público.
REFERÊNCIAS
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iLevantamentos realizados em duas bases de dados: 1) biblioteca digital brasileira de teses e dissertações (BDTD) a partir dos descritores "saúde mental" e "universitários" e com os filtros tipo de documento (teses) e ano de defesa (2008-2019); e 2) base de dados portal de periódicos eletrônicos de psicologia (PEPSIC), com os descritores "universitários" e "sofrimento"; "universitários" e "adoecimento"; e "universitários" e "suicídio", sem uso de filtros.