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versão impressa ISSN 1806-2490
Vínculo vol.18 no.2 São Paulo maio/ 2021
https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p228-245
ARTIGO
Preconceito e parentalidade? Experiências de casais homoafetivos
Prejudice and parenthood: experiences of homoaffective couples
Prejuicio y parentalidad: experiencias de parejas homoafectivas
Letícia Jóia RibeiroI; Tania Mara Marques GranatoII
IGraduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Doutoranda em Psicologia pela mesma instituição. E-mail: joiaribeiro.leticia@gmail.com
IIProfessora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Mestre e Doutorada em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: granatotania@gmail.com
RESUMO
Diferentes configurações familiares têm surgido na contemporaneidade em decorrência de avanços sociais. Entre as parentalidades emergentes, a homoparentalidade é a que mais se distancia do ideal social, já que evidencia a orientação sexual dos pais e mobiliza fantasias de que ela interfira no exercício parental e no desenvolvimento de seus filhos. Por esta razão, investigamos a experiência emocional de casais homoafetivos em relação ao preconceito vivenciado no exercício da parentalidade. Para isso, adotamos uma abordagem qualitativa psicanalítica e entrevistamos seis casais homoafetivos, fazendo uso de uma Narrativa Interativa, dado seu potencial de acesso lúdico e protegido à experiência emocional dos participantes. A análise interpretativa do material narrativo resultou em campos de sentidos afetivo-emocionais dos quais o campo "Que família é essa?" emerge como emblemático do preconceito sofrido pela família homoparental em decorrência de uma visão patriarcal e heteronormativa da sociedade. Embora os casais homoafetivos reproduzam em certa medida o padrão familiar heterossexual, seu modo de exercer a parentalidade aponta para alternativas criativas e levanta novos questionamentos.
Palavras chave: Homoparentalidade; Psicanálise; Gênero; Narrativa Interativa; Preconceito.
ABSTRACT
Different family configurations have emerged in contemporary times due to social advancements. Among the emergent parenting, homoparenting is the one that distances itself from the social ideal the most, as it evidences the parents' sexual orientation and mobilizes fantasies that it interferes with the parenting exercise and their children's development. For this reason, we investigate the emotional experience of homoaffective couples regarding the prejudice experienced in parenting exercise. For this, we adopted a qualitative psychoanalytic approach, and we interviewed six homoaffective couples, making use of an Interactive Narrative, given its potential for ludic and protected access to the emotional experience of the participants. The interpretive analysis of the narrative material has resulted in fields of affective-emotional meaning, from which the "What family is this?" field emerges as emblematic of the prejudice suffered by the homoparental family as a result of a patriarchal and heteronormative view from society. Although homoaffective couples to some extent reproduce the heterosexual family pattern, their way of parenting exercise point out to creative alternatives and raise new questions.
Keywords: Same-sex parenthood; Psychoanalysis; Gender; Interactive Narrative; Prejudice.
RESUMEN
Diferentes configuraciones familiares han surgido en los tiempos contemporáneos como resultado de avances sociales. Entre las paternidades emergentes, la homoparentalidad es la más alejada del ideal social, ya que destaca la orientación sexual de los padres y moviliza fantasías de ella interfiriendo en el ejercicio parental y en el desarrollo de sus hijos. Por esta razón, investigamos la experiencia emocional de parejas homoafetivas en relación al prejuicio experimentado en el ejercicio de la parentalidad. Para esto, adoptamos un enfoque psicoanalítico cualitativo y entrevistamos a seis parejas homoafetivas, haciendo uso de una Narrativa Interactiva, dado su potencial para el acceso lúdico y protegido a la experiencia emocional de los participantes. El análisis interpretativo del material narrativo ha dado como resultado campos de significados afectivo-emocionales de los cuales el campo "¿Que familia es esta?" emerge como un emblema del prejuicio sufrido por la familia homoparental como resultado de una visión patriarcal y heteronormativa de la sociedad. Aunque las parejas homoafetivas reproducen hasta cierto punto el patrón familiar heterosexual, su modo de ejercer la parentalidad apunta a alternativas creativas y plantean nuevas preguntas.
Palabras clave: Homoparentalidad; Psicoanálisis; Género; Narrativa Interactiva; Prejuicio.
Introdução
Entre as diversas configurações familiares emergentes das transformações sociais, a homoparentalidade é a que mais gera preconceito em uma sociedade que, pautada pelo binarismo de gênero e a heterossexualidade compulsória (Butler, 1990; Costa, Caldeira, Fernandes, Rita, Pereira & Leal, 2013; Martinez, 2013; Passos, 2005), sustenta valores conservadores e a crença de que pessoas homossexuais não têm capacidade parental para a criação de crianças saudáveis, em termos de desenvolvimento sócio emocional e psicossexual (Martinez, 2013; Santos, Araújo, Negreiros & Cerqueira-Santos, 2018).
Vale salientar que o neologismo "homoparentalidade" foi criado a partir dos termos "parentalidade" e "homossexualidade", em 1997, pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL) na França, para caracterizar a parentalidade exercida por ao menos um indivíduo homossexual. Embora o termo tenha sido criado por pais e mães homossexuais, seu uso é criticado por parte da comunidade científica (Uziel, 2007) por focalizar a orientação sexual dos pais, ao invés do cuidado parental. A partir da argumentação de Butler (1990) acerca das teorizações de Simone de Beauvoir sobre o sujeito feminino, podemos estender suas reflexões para o contexto aqui estudado e refletir sobre o simbolismo do uso do prefixo "homo" junto à palavra "parentalidade".
Para Beauvoir, o sujeito masculino é tomado como sujeito universal, restando ao feminino o lugar do "Outro" que, por estar fora do padrão, deve ser nomeado (Beauvoir, 1949; Butler, 1990). Da mesma maneira, a não utilização do termo "heteroparentalidade" denuncia a naturalização da parentalidade exercida por indivíduos heterossexuais, tornando desnecessária a marcação da orientação sexual daquele que exerce a parentalidade, já que pressupõe que todos os pais são heterossexuais em conformidade com a matriz heterossexual1 descrita por Butler (1990).
Apesar da celeuma em torno do uso do termo "homoparentalidade", sua adoção tornou-se necessária, neste estudo, como estratégia para reunir trabalhos científicos produzidos ao longo dos anos nessa área de pesquisa, como é o caso da maior parte dos estudos brasileiros e franceses (Gross & Mehl, 2011; Jurado, 2013; Lira, Moraes & Boris, 2016a, 2016b; Lourenço & Amazonas, 2015; Machin, 2016; Martinez, 2013; Medeiros, 2006; Pontes, Féres-Carneiros & Magalhães, 2015, 2017; Ribeiro, 2018; Tarnovski, 2011).
Nesse cenário em que a família homoparental desafia o modelo hegemônico heteronormativo, pretendemos compreender a experiência emocional de casais homoafetivos em relação ao preconceito sofrido no exercício da parentalidade.
Método
Considerando nosso objetivo, adotamos uma abordagem qualitativa psicanalítica, na medida em que este enquadramento valoriza a relação intersubjetiva entre pesquisador e participante e vê o pesquisador como principal ferramenta da pesquisa, já que ele participa de todos os seus momentos, desde o encontro inicial até a análise interpretativa do material (Creswell, 2011; Flick, 2014; Stake, 2011).
Instrumentos
Como recurso investigativo, utilizamos a Narrativa Interativa (NI), criada por Granato e Aiello-Vaisberg (2011, 2013, 2016) com o objetivo de fornecer um espaço potencial para a expressão emocional do participante de maneira lúdica e interativa, tal como no Jogo do Rabisco de Winnicott (1968/1994). A NI consiste em uma breve história fictícia cuja trama é elaborada pelo pesquisador em torno da situação que busca investigar, mas que se interrompe como convite para que o participante dê um desfecho, seja por escrito ou oralmente, de modo livre e associativo. Para este estudo, elaboramos a seguinte NI, comunicando pela via protegida da ficção, o drama de um casal homoafetivo em suas primeiras experiências no campo da parentalidade:
Rafael e Henrique foram visitar as amigas Laura e Vanessa, que tinham acabado de adotar Caio, de cinco anos de idade, e estavam ansiosas para compartilhar essa nova experiência.
Rafael e Henrique perceberam que o casal estava ansioso e, enquanto tomavam café, perguntaram:
- Como está o Caio? E vocês, como estão se virando?
Laura comentou que estava difícil conciliar o cuidado de Caio, o trabalho e a vida social. Além disso, desde que o filho chegou, elas não têm tido tempo para si.
Vanessa se queixou das noites mal dormidas, pois Caio tem pesadelos e as chama em seu quarto. Laura compartilhou seu receio de não saber educar um menino. E Vanessa confessou estar perdida quanto à melhor escola para o filho.
O casal, Rafael e Henrique, percebeu o pedido de ajuda das amigas e decidiu compartilhar sua própria experiência como pais.
Sei que não está sendo fácil. Com a gente foi assim...
Participantes
Participaram deste estudo seis casais homoafetivos (três casais de lésbicas e três casais de gays) de classe média, com idades que variaram entre 28 e 61 anos, residentes em diferentes cidades do interior paulista. Foram incluídos casais homoafetivos que viviam em coabitação e que tinham ao menos um filho dessa união.
Apresentamos, logo abaixo, a tabela I, com a caracterização dos casais participantes, abordando faixa etária, escolaridade, tempo de união, idade dos filhos e estratégia parental adotada pelos casais.
Procedimentos
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos (CEP) da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob o parecer número 2.312.620. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após esclarecimentos sobre os objetivos e métodos da pesquisa, sobre os cuidados éticos e o caráter voluntário de sua participação.
Inicialmente, os participantes foram encaminhados até a pesquisadora, por uma instituição pública do Estado de São Paulo, direcionada ao atendimento à população LGBT. Após aprovação do CEP, a instituição colaboradora intermediou o contato com os participantes e convidou, dentre seus usuários, aqueles que atendiam aos critérios de inclusão da pesquisa. Todos os convidados aceitaram a proposta, sendo agendada uma entrevista com cada um dos casais. A entrevista ocorreu em suas residências, conforme conveniência e preferência dos participantes.
Como primeira etapa da entrevista, a NI foi lida em voz alta aos participantes que acompanhavam a leitura em uma versão impressa. Em seguida, eles foram convidados a dar um desfecho para a história. Como segunda etapa, os participantes foram convidados a refletirem sobre o tema da homoparentalidade, a fim de ampliar os sentidos afetivo-emocionais produzidos durante o processo da elaboração da NI, bem como suas impressões sobre a tarefa de completar a narrativa.
Como forma de registro das entrevistas, foram realizadas Narrativas Transferenciais (NT), conforme recomendações de Aiello-Vaisberg, Machado, Ayouch, Caron e Beaune (2009), com a intenção de transmitir a perspectiva pessoal/vivencial da pesquisadora a respeito de seus encontros com os participantes. Desse registro fazem parte associações dos participantes, descrição do local e contexto em que foram realizadas as entrevistas e movimentos transferenciais e contratransferências vividos no encontro.
Análise dos dados
A análise interpretativa do material narrativo, composto pelas NI e NT, abrange duas etapas - uma individual e outra coletiva - na exploração dos sentidos afetivo-emocionais que fundamentam a experiência singular dos participantes. Uma vez identificada uma determinada constelação de sentidos afetivo-emocionais em torno da temática estudada - em nosso caso a homoparentalidade - um campo de sentidos é identificado e discutido com os demais pesquisadores do grupo de pesquisa, de modo a ampliar a produção de sentidos possíveis e chegar a um consenso, processo de triangulação que agrega rigor à pesquisa qualitativa (Flick, 2014).
De acordo com Herrmann (1991), o campo é "um conjunto de determinações que dotam de sentido qualquer experiência humana" (p.28). Assim, cada campo se organiza em torno de um conjunto de regras lógico-emocionais, que fornece uma estrutura para as condutas, ideias e sentimentos de um indivíduo (Herrmann, 2004).
Ao nomear os campos, optamos por títulos emblemáticos que sintetizam a qualidade dramática da experiência que nos foi comunicada pelos participantes. E, portanto, serão esses campos de sentidos afetivo-emocionais que nortearão nossa compreensão da experiência homoparental e sua discussão à luz da psicanálise e de pesquisas acadêmicas recentes sobre o tema da homoparentalidade.
Para atender aos objetivos deste artigo, focalizaremos o emblemático campo de sentidos "Que família é essa?", emblemático do preconceito sofrido pela família homoparental em decorrência de uma visão patriarcal e heteronormativa da sociedade.
Resultados e discussão
O campo "Que família é essa?" revela o estranhamento que a família homoparental desperta no contexto de uma sociedade heteronormativa. Afinal, o projeto parental coloca em evidência a orientação sexual dos pais desencadeando o preconceito contra arranjos familiares que questionem o modelo vigente, como é o caso da família homoparental (Costa, et al., 2013; Martinez, 2013; Roudinesco, 2003; Santos Araújo, Negreiros & Cerqueira-Santos, 2018).
É importante lembrar que o modelo da família tradicional, predominante até o final do século XVIII, focalizava a transmissão do patrimônio e tinha como função a reprodução da espécie humana, sendo formada por casamentos arranjados. Por outro lado, a família moderna que emerge no final do século XX passa a valorizar a reciprocidade dos afetos, o amor e o vínculo sexual (Roudinesco, 2003; Santos Araújo, Negreiros & Cerqueira-Santos, 2018).
Já em 1960, novos avanços no campo das relações familiares foram impulsionados por movimentos sociais, tais como a emergência do feminismo, a entrada da mulher no mercado de trabalho, a possibilidade do divórcio e o controle da natalidade, dando origem à família contemporânea. Nesse contexto, a transmissão da linhagem deixa de ser valorizada e o afeto protagoniza as relações familiares que passam a ser mantidas em nome do amor (Roudinesco, 2003).
Apesar das transformações familiares evidenciadas acima, o modelo tradicional parece ainda orientar o imaginário coletivo sobre a família. O preconceito contra a família homoparental aparece camuflado e travestido de supostas preocupações com os filhos de tais famílias, embasadas em crenças infundadas de que a orientação homossexual afetaria o bom exercício parental (Rezende, Soares, Gouveia & Ribeiro, 2019; Rodriguez, 2017).
No que se refere à homofobia, a escolha pela parentalidade parece recolocar em evidência o preconceito, obrigando os indivíduos homossexuais a ressignificarem possíveis dificuldades que tenham vivenciado por se distanciarem do modelo hegemônico heterossexual (Ben-Ari & Livni, 2006; Lira, Morais & Boris, 2016b; Machin, 2016). A literatura sugere, e os participantes de nosso estudo confirmam, o fato de que assumir a própria orientação sexual pode levar ao rompimento de laços familiares e de amizade (Medeiros, 2006; Rodriguez, Merli & Gomes, 2015).
Fabio (Casal Vermelho) menciona o sofrimento ao "descobrir-se homossexual" na infância. Ele já se sentia diferente de seus irmãos, pois enquanto estes optavam por brincadeiras socialmente reconhecidas como masculinas, ele preferia brincar com as meninas. Assumir a homossexualidade diante dos seus familiares mobilizou angústias e levou Fábio a buscar a ajuda de um psicólogo. Em sua narrativa, o participante atribui a conquista do respeito familiar ao fato de ter sido o primeiro de seus irmãos a cursar uma faculdade, como se a conquista acadêmica compensasse, de certa forma, a homossexualidade.
Com relação à Natália (Casal Laranja), assumir-se homossexual levou ao afastamento dos familiares. Inclusive, a participante relata ter sido vítima de uma tentativa de homicídio da parte de seu cunhado, que tentou atropelá-la. Natália explica que como aquele era o seu primeiro relacionamento homossexual, a família passou a nutrir a esperança de que o namoro fosse "fogo de palha" (sic) e logo acabasse. Contudo, o nascimento de sua filha parece ter oficializado aquela união, deixando a orientação sexual como "pano de fundo" e reativando o vínculo com alguns de seus familiares. A reaproximação da família de origem depois que a homofobia promoveu o distanciamento, é fenômeno também observado na literatura e definido por alguns autores como o "milagre do nascimento" (Ben-Ari & Livni, 2006; Lira, Morais & Boris, 2016b, Machin, 2016).
Neto e Pedrosa (2017), em seu estudo com crianças em situação de acolhimento institucional, revelam certo estranhamento da parte dos participantes diante da homossexualidade, sendo por eles descrita como proibida e errada, ao passo que a homoparentalidade foi considerada com maior tolerância pelas crianças participantes, na medida em que deixa a homossexualidade em segundo plano. Ao serem convidados a conversar sobre a homoparentalidade, as crianças pareciam desconhecer tal configuração familiar. No entanto, à medida que a compreendiam, reconheciam a família homoparental como legítima, haja vista que eles próprios concluíram que a parentalidade não se dá apenas pela via biológica, mas sim pelo cuidado afetivo dispensado ao filho (Neto & Pedrosa, 2017).
Na mesma direção, Lorenzo, o filho adotivo de Lia e Débora (Casal Roxo), foi questionado pela assistente social sobre o fato de ter duas mães, no intuito de sondar possíveis pré-conceitos que poderiam comprometer aquela adoção específica. Lorenzo, porém, logo esclareceu: "Claro que não, você acha que a gente é preconceituoso?".
A partir da narrativa dos participantes de nosso estudo, os quais concretizaram o projeto parental pela via da adoção, notamos uma preocupação com a aceitação de sua orientação sexual pelos filhos, ainda que estes não tenham manifestado qualquer postura homofóbica. Entretanto, esse tipo de preocupação não se restringe ao campo da homoparentalidade. O estudo de Pekny e Granato (2019) demonstrou que pais heterossexuais com comprometimento motor também estavam receosos de que o futuro filho adotivo não os aceitasse em decorrência de sua limitação física.
No que concerne a outras críticas direcionadas à família homoparental, observamos que a própria literatura científica revela questionamentos sociais de sua época através de seus objetivos e hipóteses de pesquisa (Gartrell et al., 2011; Gollombok et al., 2003; Herrera, 2018; Martinez, 2013; Patterson, 2001; Watkins, 2018), tais como:
1. Desenvolvimento de transtornos psíquicos dos pais homossexuais;
2. Risco de os filhos serem abusados por pais homossexuais, sobretudo quando se trata de pais homens;
3. Crença de que os filhos serão homossexuais assim como seus pais;
4. Prejuízo no desenvolvimento psicossexual das crianças;
5. Prejuízo no desenvolvimento de relações interpessoais das crianças;
6. Ausência de um dos papéis parentais, seja o materno ou o paterno
Em contrapartida, esses mesmos estudos demonstram com seus resultados que tais crenças são equivocadas. Entre os principais achados dessas pesquisas, ressaltamos as conclusões de que a orientação sexual dos pais não afeta o desenvolvimento psicossexual dos filhos, pais homossexuais apresentam saúde mental semelhante à de pais heterossexuais, a orientação sexual dos pais não afeta o bom exercício parental; seus filhos são bem-sucedidos academicamente, mantém uma visão positiva quanto ao futuro, desenvolvem uma relação saudável com os pais e têm bom relacionamento com seus pares (Gartrell et al., 2011; Gollombok et al., 2003; Herrera, 2018; Martinez, 2013; Patterson, 2001; Watkins, 2018).
Além disso, não há indícios científicos de que pais homossexuais tenham maior perspectiva de abusar sexualmente de seus filhos, quando comparados com pais heterossexuais (Gartrell et al., 2011; Gato, Freitas & Fontaine, 2012; Gollombok et al., 2003; Herrera, 2018; Martinez, 2013; Patterson, 2001; Watkins, 2018).
O receio de que a ausência de uma das figuras parentais possa afetar o desenvolvimento da criança que é filha de pais homossexuais foi desmistificado pela comunidade científica, uma vez que pesquisas demonstram que a convivência com pessoas do sexo masculino e feminino não se restringe ao casal parental, podendo ser compensado pelas relações interpessoais extrafamiliares, tais como com professores, tios, amigos, entre outros (Farias, 2017; Gartrell, Bos, Deck & Rodas, 2012; Lira, Morais & Boris (2016).
Tais dados foram corroborados pelas narrativas dos participantes de nosso estudo, sobretudo dos casais homoafetivos masculinos, que afirmam que seus filhos já conviviam com figuras femininas entre seus familiares e amigos. Ainda com a preocupação de garantir a presença de uma figura feminina na vida de seu filho, o Casal Vermelho elegeu uma madrinha para a criança como figura de referência do cuidado, o que confirma a prevalência da matriz heterossexual referida por Butler (2004) quando as funções sociais estão em jogo. A partir desta perspectiva, vislumbramos a naturalização do binarismo de gênero e a correspondente expectativa de que a pessoa se identifique com seu sexo biológico, tenha orientação heterossexual e se relacione com pessoas do sexo oposto. Desse modo, o status cis gênero e heterossexual garantiria a inclusão social do indivíduo, a partir da lógica da heterossexualidade compulsória.
É compreensível que a equivalência entre sexo biológico e gênero resulte na concepção de que apenas uma mulher estaria capacitada a desempenhar o papel materno, na medida em que os papéis parentais estariam também eles orientados pela matriz que define as relações de gênero. É nessa lógica que o Casal Vermelho imagina estar preenchendo uma lacuna de cuidado com a inclusão de uma madrinha na esfera familiar.
O estudo de Tarnovksi (2011) e o estudo de Rodrigues, Gomes e Oliveira (2017) revelam a concepção de pais gays de que homens são menos capazes para cuidar de crianças pequenas, motivo pelo qual recorrem à adoção tardia como estratégia para se tornarem pais. Tal crença é confirmada pelos casais homoafetivos masculinos que participaram de nosso estudo, ao justificarem a adoção tardia pelo fato de uma criança mais velha ser mais independente e demandar menos cuidados ao casal parental. Na realidade, a opção pela adoção tardia acelerou o processo, uma vez que tal perfil coincide com o das crianças e adolescentes que são maioria nos abrigos e casas de acolhimento, dada a preferência dos candidatos à adoção por meninas, de olhos claros, e de zero a quatro anos de idade (Bonfatti, 2017; Pekny & Granato, 2019).
Todavia, embora tenha optado pela adoção tardia, o Casal Vermelho precisou aguardar seis anos pela chegada do filho. O casal atribui o tempo de espera à homofobia dos profissionais que julgavam o processo. Araújo e Oliveira (2008), assim como Costa, Caldeira, Fernandes, Rita Pereira e Leal (2013) e Jurado (2013) argumentam que a adoção realizada por casais homossexuais ainda é vista com maus olhos por estudantes de Psicologia e de Direito, sendo considerada uma forma de subversão da norma social que pressupõe a família nuclear heterossexual como padrão. Além disso, os autores identificam o preconceito dos estudantes participantes que manifestaram a crença de que a adoção poderia ser prejudicial para o desenvolvimento saudável dos filhos.
Por outro lado, Filho (2017) argumenta que a adoção realizada por casais homoafetivos é a melhor opção quando resta à criança passar sua infância e adolescência em um abrigo. O autor chama a atenção para o fato de que os casais homoafetivos são aqueles que mais comumente optam pela adoção de crianças mais velhas, negras, ou aquelas que têm irmãos, atendendo a uma premente demanda social. Apesar desse novo panorama, supomos que o fato de o Casal Vermelho ter entrado com o processo de adoção em um período anterior a 2011 - momento histórico em que o direito à união estável foi estendida a casais homoafetivos - possa ter prejudicado o processo, dada a normatização no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, embora não restrinja o direito de pessoas homossexuais adotarem, exige que os casais adotantes tenham união estável.
No que concerne ao suposto preconceito que a criança possa vir a sofrer por ter pais homossexuais, esta parece ser uma preocupação legítima que a literatura sugere (Lourenço & Amazonas, 2015; Patterson, 2001) e nossos participantes confirmam. Larissa e Giovana (Casal Azul) gostariam de matricular o filho em uma escola tradicional, mas hesitam diante de uma escola católica, onde imaginam que a criança seria alvo de críticas, inclusive dos profissionais. Gabriel e Francisco (Casal Verde) referem ter sofrido preconceito na escola dos filhos, sobretudo dos funcionários que manifestam o próprio incômodo com a família homoparental sempre que o casal leva e busca os filhos na escola. Também Lia e Débora (Casal Roxo) mudaram sua intenção de matricular os filhos em uma escola com histórico de preconceito. E Lia explica: "Acredito ser fundamental optar por uma escola mais humana e que tenha habilidade com a diversidade familiar e casos de adoção, pois o Caio [personagem da NI] precisará desse apoio diferenciado".
A partir da narrativa dos participantes, compreendemos que a família homoparental fica duplamente exposta ao sofrimento que se origina do preconceito. De um lado, os filhos tornam-se vítimas potenciais do preconceito por terem pais homossexuais e, de outro, os pais temem que sua orientação sexual se converta em motivo de sofrimento para os filhos. Tais receios mobilizam estratégias parentais que visam minimizar o sofrimento dos filhos, tal como é proposto por Lia quando busca um apoio diferenciado para o filho cuja presença parece desafiar valores heteronormativos. Gartrell, Bos, Deck e Rodas (2012) e Lira, Moraes e Boris (2016) também referem a crença de pais homossexuais de que seus filhos demandam maior cuidado para lidar com o preconceito. Para os autores, a franqueza das mães homossexuais com relação à sua orientação sexual constitui fator de proteção para os filhos que, assim, aprendem que não há nada de errado com sua família.
Assim concluímos que embora a família homoparental seja uma dentre as muitas formas de "ser família" e, por essa razão, viva conflitos comuns a qualquer família, seu cotidiano é marcado por conflitos singulares, como a luta diária pela inclusão social no âmbito de uma sociedade preconceituosa que reluta em acompanhar a letra da lei que garante direitos à família homoparental. Além disso, o preconceito contra a homossexualidade parece ganhar nova força, na medida em que as funções parentais usualmente associadas ao gênero (mãe-mulher x pai-homem) são colocadas em xeque pela família homoparental que ousa desafiar essa lógica, propondo-se como alternativa satisfatória e suficiente para a complexa tarefa de criar/educar filhos.
Notas
1 Matriz heterossexual para Butler (1990) é uma grade de inteligibilidade cultural na qual os elementos "sexo biológico", "gênero", "prática sexual" e desejo são coerentes e convergem unicamente para um indivíduo heterossexual cis gênero. Em outras palavras, é esperado que um indivíduo do sexo biológico masculino, por exemplo, tenha desejos por indivíduos do sexo feminino, e identifique-se com seu sexo biológico.
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