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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.3 São Paulo set./dez. 2021

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p277-286 

ARTIGO

 

Amor e desejo no vínculo conjugal - a psicoterapia analítica de casais

 

Love and desire in the marital bond - the analytical psychotherapy of couples

 

Amor y deseo en el vínculo matrimonial: la psicoterapia analítica de parejas

 

 

Lazslo Antonio Ávila

Psicólogo, grupoanalista, professor livre docente da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, SP, membro do NESME e da SPAGESP. E-mail: lazslo@terra.com.br

 

 


RESUMO

O casamento é uma instituição milenar, com importantes funções psíquicas, culturais e sociais para seus membros. Sendo a base primária de constituição da família, e sendo esta a formação que consubstancia o vínculo humano, o casamento é geralmente considerado como um dos eventos mais importantes e significativos, tanto em termos psíquicos como para a sociedade. Contudo, na vivência concreta de cada casal, são inúmeros os desafios que a união de dois seres tão dessemelhantes como o homem e a mulher representam. O vínculo conjugal é carregado de desejos, anseios, frustrações e realizações e tanto pode representar uma das definições da felicidade pessoal, quanto pode significar crises e sofrimento psíquico para os envolvidos e seus próximos, principalmente os filhos. Por isso tratar o casal pode ter grandes reflexos e consequências na saúde mental de toda a família. O presente trabalho apresentará diversas vinhetas de tratamentos psicoterapêuticos realizados com casais, embasados na psicanálise das configurações vinculares.

Palavras-chave: Casamento; Psicoterapia dos Vínculos; Família


ABSTRACT

Marriage is an ancient institution, with important psychic, cultural and social functions for its members. Being the primary basis for the constitution of the family, and being the formation that consubstantiates the human bonds, marriage is generally considered as one of the most important and significant events, both in psychic terms and for society. However, in the concrete experience of each couple, there are innumerable challenges that the union of two beings as dissimilar as man and woman represent. The conjugal bond is loaded with desires, longings, frustrations and achievements, and it can represent one of the definitions of personal happiness, and it can mean crises and psychic suffering for those involved and people next to them, especially the children. So, treating the couple can have great reflexes and consequences on the mental health of the whole family. This work will present several vignettes of psychotherapeutic treatments performed with couples, based on the psychoanalysis of the link configurations.

Keywords: Marriage; Psychotherapy of Links; Family


RESUMEN

El matrimonio es una institución milenaria, con importantes funciones psíquicas, culturales y sociales para sus miembros. Siendo la base primaria de constitución de la familia, y siendo ésta la formación que consubstancia el vínculo humano, el matrimonio es generalmente considerado como uno de los eventos más importantes y significativos, tanto en términos psíquicos y para la sociedad. Sin embargo, en la vivencia concreta de cada pareja, son innumerables los desafíos que la unión de dos seres tan semejantes como el hombre y la mujer representan. El vínculo conyugal es cargado de deseos, anhelos, frustraciones y realizaciones y tanto puede representar una de las definiciones de la felicidad personal, cuanto puede significar crisis y sufrimiento psíquico para los involucrados y sus próximos, principalmente los hijos. Por eso tratar a la pareja puede tener grandes reflejos y consecuencias en la salud mental de toda la familia. El presente trabajo presentará diversas vinetas de tratamientos psicoterapéuticos realizados con parejas, basadas en el psicoanálisis de las configuraciones vinculares.

Palabras clave: Matrimonio; Psicoterapia de los Vínculos; Familia


 

 

O casal... Quem inventou isso?? Sabendo, e constatando a cada dia o quanto são dessemelhantes o homem e a mulher, é no mínimo surpreendente que homens e mulheres há milênios venham praticando essa forma tão estranha de união que chamamos de casamento. O que mantém um casamento, tanto hoje em dia, nesse mundo em permanente transformação, quanto ao longo dos 10 milênios de história humana documentada?

No início dos tempos históricos, quando ainda tínhamos todas as ameaças da Natureza, desde o tempo inclemente até as feras selvagens, quando a alimentação era parca e muito difícil de ser assegurada a cada dia, havia boas razões para a formação de pequenos coletivos humanos. Dizem os antropólogos e os arqueólogos que o homem se dedicava à caça e a coleta, e a mulher aos cuidados domésticos, dentro de cavernas. Eram atribuições masculinas a proteção do coletivo, a defesa física, e o provimento dos recursos necessários à sobrevivência do conjunto. Funções femininas: o alimento e o cuidado com a prole - além do desenvolvimento da linguagem e comunicação. Com o nenê humano sendo tão frágil era esperado que a família, alguma forma de família, provavelmente extensa até os limites da tribo, se formasse e tivesse continuidade. O homem provedor e a mulher cuidadora: esses papéis se mantiveram até o século XX, ou seja, 99% de nossa história.

Porém, na contemporaneidade, entre os inúmeros choques trazidos pelas revoluções técnica e tecnológica, com as transformações sociais e culturais disseminadas pelo mundo todo, com o desenvolvimento de todas as áreas da ciência e suas aplicações, com a urbanização selvagem, com o cataclismo das guerras, com a emergência do mercado global e seu capitalismo triunfante, com a transformação dos papéis masculino e feminino, a mulher assumindo um novo e significativo papel no mundo do trabalho e da cultura, e culminando com a revolução digital da qual mal sabemos avaliar os efeitos, chegamos a 2019. E como anda o casamento, hoje?

É claro: também está em crise. Há uma nova mulher e um novo homem, e esse insiste em ser o velho homem. É muito difícil perder um lugar de poder. Mais difícil ainda é abdicar voluntariamente dele. Como dizem os políticos, o Poder é afrodisíaco. O homem estar em posição de superioridade econômica, educacional e financeira, diante da mulher, sempre implicou em privilégios. Porém, sempre implicou também em conflitos. As mulheres nunca estiveram inteiramente subjugadas. E mesmo quando assim parecia, o homem pagava o preço do desamor e da infelicidade ao gozar de seu aparente predomínio.

É fato que o homem e a mulher são diferentes. São desiguais. Tem psicologias distintas. Até seus cérebros são marcadamente diferentes. Mas ambos são idênticos em humanidade. O que a história demonstra é que os homens fizeram da diferença anatômica a base para a diferença social. O que devia ser só diferença foi construído como assimetria. E essa assimetria era de Poder: poder econômico, dominando as fontes de produção e o trabalho; poder intelectual, dominando os mecanismos educacionais e poder patriarcal, dominando a feitura das leis e os diversos mecanismos de controle da vida social. Assim, a diferença virou subjugação e a mulher custou a romper esse status quo.

Então, muito rapidamente aconteceram as mudanças históricas: iniciando com a Revolução Industrial do século XIX, quando as mulheres começaram a ser requisitadas como mão de obra fabril, passando às conquistas educacionais e a mulher galgando posições acadêmicas e culturais; o voto feminino (no Brasil, só em 1945) e as mulheres ingressando na vida política; o grande debate cultural após a II Guerra Mundial, e então a Revolução Sexual, a invenção da pílula anticoncepcional (fator singular de enorme impacto para a independência feminina), e as violentas comoções sociais das últimas décadas trouxeram um mundo novo.

Ainda não existe a igualdade de oportunidades. Ainda acontecem incríveis agressões às mulheres, como feminicídios e violência doméstica, mas o fato é que hoje, ao menos no Ocidente, as mulheres já são mais escolarizadas do que os homens. Estudam por mais anos, tem melhores notas, se capacitam melhor e vão mais e mais adquirindo importância e significado em todos os cenários da vida social. Em alguns países já recebem salários equivalentes aos dos homens, e já quase não se pode mais observar casos graves de submissão e opressão. Mas é só lembrar dos países que ainda praticam fortes distinções entre os papéis sociais do homem e da mulher para relembrar que o mundo atual só se globalizou no sentido econômico, mas não no sentido da igualdade, da justiça e da liberdade.

Mas vamos afinal para o nosso tema: Como vai o casamento hoje em dia? Vai bem e vai mal.

Vai bem quando o homem e a mulher se percebem iguais e parceiros. Não iguais em tudo, iguais em direito e em oportunidades de crescimento e aprendizagem. Parceiros no sentido de que continua sendo muito melhor criar filhos, e ter uma descendência e uma porta para a imortalidade se isso se faz no par, por um pai e uma mãe. Os casamentos vão bem quando ambos, o homem e a mulher, encaram o desafio de andarem juntos pelo mesmo caminho, mas com cada um em busca de seu mais pleno desenvolvimento.

O casamento é bom quando um é para o outro fonte de alegrias, base de apoio, garantia de conforto e segurança, matriz de carinho, de esperança, fonte de prazer sexual e de gozo em viver. Casamentos bons, potencialmente, fazem homens e mulheres viverem melhor. O casamento pode ser um paraíso. E um inferno.

Na terapia de casal vivemos essa ambigüidade, essa encruzilhada. Um homem e mulher, com ou sem filhos, se dá conta de que a sua relação se tornou fonte de angústia e sofrimento, quando estava previsto como fonte de alegria e felicidade. O que aconteceu? O que fez fracassarem os planos todos, principalmente o amor, a paixão, a alegria?

Muitas coisas entram em jogo aqui. O primeiro item diz respeito à idealização e à desidealização. Como Freud (1914/1980) bem demonstrou na Introdução ao Narcisismo, casamos iludidos e cegos, numa pretensa fusão e identidade com o outro, numa fantasia de completude e felicidades eternas. Doce ilusão. A primeira semana de casamento destrói muitos casais. Muitos homens e mulheres não conseguem suportar a decepção de acordarem na primeira manhã após as núpcias e ver um ser humano real ao seu lado. É tão forte o processo de desidealização para alguns, que preferem fugir para tentar manter intacta a ilusão do par perfeito. E o que dizer dos anos seguintes? Quanto mais se vive junto, mais e mais ocasiões de decepção, de desencontro, de desencantamento. Muitos casais procuram terapia nessa hora. O trabalho, intenso, visa em primeiro lugar resgatar a fantasia original, onde houve o apaixonamento e demonstrar, para ambos, que uma nova realidade deve nascer dos escombros dessa fantasia. É preciso nascer a realidade do amor, das cinzas de uma paixão que se consumiu em seu próprio fogo. O amor é uma lenta, uma laboriosa conquista. Ele nasce do progressivo reconhecimento de que o outro é outro. Simplesmente isso: outro. Não é uma parte de mim, não é metade da laranja, não é a tampa da panela, é outro. Um homem e uma mulher reais, cheios de limitações, imperfeitos, belos em sua incompletude.

A terapia quer propiciar esse reconhecimento e essa conquista. O papel principal do terapeuta é o de terceiro em um diálogo que se fez surdo. O papel de ONU no conflito armado.

O mediador que faz com que cada um possa ouvir ao outro. O profissional que, fora do círculo da família e dos amigos, que sempre estão implicados no processo de uma separação, pode ouvir a cada um e propiciar uma nova forma de diálogo entre o par conjugal.

Ambos chegam feridos. É como se fosse tratar de pessoas que sofreram graves queimaduras - até o algodão dói. Cada um deles precisa de cuidados, mas quando tentam se tocar, se ferem. São como os porcos espinhos que Freud mencionou no livro Psicologia das Massas: sentem frio, mas não podem se aproximar, porque se ferem. Eu como terapeuta, digo a cada um que ele e ela merecem cuidados, não só meus, mas um do outro, mas que necessitam de extrema delicadeza. Vão ter de aprender ou re-aprender a se curarem. E sua tarefa é tremenda, porque devem curar o outro de feridas que a própria relação deles lhes causou. Ao invés de fonte de dor precisam ser fonte de cuidado e tratamento. É preciso regenerar o seu vínculo. É preciso curar o Amor ferido.

A técnica é derivada da psicanálise dos vínculos (Fernandes, Svartman & Fernandes, 2003; Káes, 1997). Trata-se de mostrar ao casal que houve mal-entendidos, falhas na interação, fracassos na idealização e na sublimação, desencontros de toda ordem, física, emocional, sexual. E em grande, fundamental parte, frequentemente houve conflitos em relação às famílias de origem.

A família do homem e a família da mulher são poderosíssimas influências na vida do casal, justamente por causa de seu papel na história prévia, ou seja, na formação da personalidade de cada um deles. Influem-se poderosamente ao longo da vida toda do casal (é só relembrarmos de todo o folclore que cerca a figura das sogras) é numa crise conjugal que essa influência mais pode pesar.

É como se uma poderosa força de atração atuasse permanentemente: as famílias querem atrair de volta para o seu seio aquele filho ou filha perdidos para o casamento atual. Mesmo quando aparentemente lutam para que o casal não se separe, e mesmo quando não querem em hipótese nenhuma que esse filho ou filha voltem para a casa paterna/materna, na verdade há uma força em jogo: a família de origem se opõe à formação de um novo casal - exatamente porque é novo. Há uma resistência à mudança, há um medo ao novo, como Pichon-Rivière (1976) nos alertava.

Depois dessa crise de desidealização e afastamento da família de origem, quando o casal já começa a se reconhecer como diferentes, mas inter-dependentes, vem a grande crise de ter filhos. Filhos são outra coisa que a nossa cultura idealiza tanto que deixamos de perceber a imensa operação emocional que eles implicam, para o homem, para a mulher e para o casal. Afinal, o filho é o terceiro. Toda a psicanálise existe para nos alertar de que é no laço do um com o dois, com o três que é o filho, que se constrói o núcleo da personalidade de cada um de nós. Os filhos reavivam o Édipo masculino e feminino. Os filhos são a prova-dos-nove de nossa capacidade de constituição de um psiquismo maduro.

Seja menino ou menina, o nascimento dos filhos tem profundo impacto na personalidade dos pais e no seu vínculo. Isso logo que nascem, quando crescem, quando entram na adolescência, e quando mais tarde saem de casa. Ou seja, ao entrar, quando estão, e ao sair, os filhos põem os pais em crise.

São diversos tempos de transformação que tem potencial desestabilizador. Os casais procuram terapia em qualquer desses momentos. Vamos a alguns exemplos, vinhetas de situações terapêuticas:

- O casal João e Joana se conheceu e se apaixonaram porque trabalhavam juntos e perceberam que tinham uma ótima complementaridade no campo profissional. Viram que podiam crescer muito juntos e empreenderam junto um negócio, criando uma empresa. Ao longo de 20 anos cresceram muito no sentido pessoal, profissional e econômico. E então, veio a crise. O que era complementaridade tornou-se competição. Cada um gerenciava uma unidade e estavam em guerra comercial. Procuraram a terapia de casal e ao mesmo tempo cada um constituiu um advogado. Após um doloroso processo de retomada dos sentidos perdidos que propiciaram inicialmente sua união, reencontraram a base de sustentação de seu vínculo e decidiram pela criação da terceira unidade de seu negócio. O casal tornou-se novamente potente em termos afetivos e de trabalho conjunto.

O casal Mário e Maria me procurou no auge da crise derivada da descoberta de uma "traição virtual". Maria entrava, em suas horas de solidão, em salas de chat, e havia se viciado em longas conversas romântico-eróticas com um homem desconhecido. Mário enlouqueceu de ciúmes. Tentou todas as formas de vingança, inclusive a eletrônica. Mas nada bastava e nem trazia Maria de volta. O ciúme tornou-se patológico e ambos ficaram aprisionados em uma '"folie a deux", em que Maria já não traia, mas Mário não desistia de sentir-se traído. Iniciaram a terapia. Um longo processo de acusações mútuas, até a exaustão de ambos, permitiu que começassem a reconhecer que o que ambos pediam era a ressexualização de seu vínculo, perdida desde que se tornaram pai e mãe de seus filhos. O ciúme de Mário envolvia tanto sua problemática edipiana nunca solucionada e agora reativada, quanto o ciúme denegado de seus próprios filhos.

O casal José e Josiane se constituiu com base em uma enorme atração mútua, com base em profundas diferenças de personalidade. José é racional, Josiane é emocional, sentimental. Um cuida das finanças e problemas práticos, a outra cuida da família e dos afetos. Achavam-se o par perfeito. Até aparecer um profundo ódio, um pelo outro. De repente, o que antes havia sido motivo de atração e encanto, tornou-se fonte das mais amargas reclamações e incompreensões. O que antes era um encaixe completo tornou-se atrito e desgaste. Até que, numa sessão de terapia, olhando-se com ódio, se puseram a rir quando se deram conta de que José havia se casado com alguém calcado na imago de seu pai, enquanto Maria havia se casado com alguém que ocupava imaginariamente o mesmo lugar que sua mãe, na relação com seu pai. Ou seja, inverteram os papéis e funções de seus pais em seu vínculo conjugal. Um ódio transgeracional.

O lugar do terapeuta de casais também é um lugar de terceiro, e dessa forma ele precisa conseguir casar dentro de si esses pares que são o homem e a mulher, o pai e a mãe, e mais o terceiro, que é o Futuro.

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1980). Sobre o Narcisismo: uma introdução. (J. Salomão, trad.). In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. (Volume XIV, pp. 77-108). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1914).         [ Links ]

Fernandes, W. J.; Svartman, B.; Fernandes, B. S. (Orgs.) (2003). Grupo e configurações vinculares. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Kaes, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo. J. Souza e M. Werneck (Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Pichon-Rivière, E. (1976). Elproceso grupal. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

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