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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro nov. 2005

 

Divulgação Científica

 

Reflexões sobre a interação cérebro-máquina: muito além dos neurônios

 

Reflections on the interaction brain-machine: much beyond the neurons

 

 

Daniel Boari Coelho

Laboratório de Biofísica, Escola de Educação Física e Esporte, Escola Politécnica, Universidade de São Paulo (EP-USP), São Paulo, SP, Brasil

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa a problematização de questões como: há diferença entre o "cérebro" e uma máquina? É possível responder o que é uma decisão tipicamente de um "cérebro" ou de um computador? O que nos separa das máquinas? São trazidos ainda, à tona, tópicos sobre o pensamento e a emoção; quais suas características, a existência de uma localização para estes e se existe a possibilidade do mesmo poder ser replicado por máquinas. Adota-se como recorte dos pressupostos aqui enunciados algumas abordagens: evolutiva, biológica, de processamento de informação e de inteligência artificial. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 133-141

Palavras-chave: cérebro; máquina; pensamento; emoção; vida.


ABSTRACT

This article aims to focus questions as: has difference between the "brain" and a machine? It is possible to answer what it is a decision typically of a "brain" or a computer? What separates us of the machines? It is brought still topics about thought and emotion, like which its characteristics, the existence of a localization for these, and if it is possible that same one exists to be able to be talked back by machines. Therefore, It is adopted some approaches to this article aims at this problem from some approaches, namely: evolutionary, biological, of information processing and of artificial intelligence. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 133-141.

Keywords: brain; machine; thought; emotion; life.


 

 

1. Introdução

Ao se deparar com um rato, o primeiro impulso de um gato é persegui-lo. No entanto, ao ver um cachorro, sua reação é eriçar os pêlos e se pôr em fuga. Essas respostas, comuns a todos os gatos e bem conhecidas, são orquestradas pelo sistema nervoso. Entretanto, mesmo a descrição mais detalhada da reação do gato as circunstâncias citadas anteriormente não pode ser considerada uma explicação de como o cérebro deste animal funciona. É como descrever um complexo sistema de uma máquina por uma de suas particularidades e características. Descrições fenomenológicas deste tipo são menos uma explicação do que uma lista dos fatos a serem explicados. No caso de um gato, ele pode usar várias estratégias para perseguir um rato. A estratégia adotada em uma situação específica é novamente determinada pelo cérebro do gato, mas não existe uma descrição geral do comportamento do gato quando está caçando ratos. A descrição da forma como um gato reage à presença de um rato ou do comportamento de um homem ao se sentir atraído por um membro do sexo oposto não pode mais ser considerada uma explicação. Imagine que o gato seja capaz apenas de dois tipos de comportamento: ataque, ao se deparar com um rato, e defesa, ao estar defronte de um cachorro. Como se processa a escolha entre os dois tipos de comportamento? É irrelevante saber se o gato tem "consciência", na compreensão geral do termo, da decisão que tomou? Que outras informações são necessárias além da visão? São necessárias experiências prévias com tais animais? Através de quais mecanismos as informações colhidas pelos sentidos se transformam em um padrão de comportamento expresso através de uma série de movimentos complexos? Será que a questão é simples-mente explicar de que forma um conjunto de neurônios aparentemente autônomos no sistema nervoso do gato consegue orquestrar a resposta que está mais de acordo com os interesses do animal e que dela dependerá sua vida?

 

2. O que nos dista das máquinas

Até onde sabemos, o sistema nervoso humano é muito mais complexo do que o do gato, mas dele provem decisões semelhantes. A explicação do comportamento humano, quando se tornar possível, será qualitativa-mente semelhante à explicação para a reação de um gato quando se depara com um rato ou um cachorro. No cerne, estará a tradução de informações sensoriais, sua correlata interpretação, a tomada de decisão e a instrução para que os músculos entrem em ação, seja para se colocar em fuga quando em perigo ou para declamar sua paixão por outrem. Os cientistas ainda não sabem de que forma essas diferentes representações são geradas e como são usadas na tomada de decisões, porém a única certeza é de que isto é feito por intermédio de circuitos neuronais.

Sob certos aspectos, o sistema nervoso não passa de uma máquina - um conjunto de neurônios trabalhando juntos de forma extremamente complexa. Os neurônios enviam sinais do tipo "sim/não" para as células seguintes da cadeia de transmissão, informando simplesmente se o neurônio está ativo ou não. Contrastando com a simplicidade da mensagem, onde a intensidade da mesma é determinada pela rapidez com que os sinais são transmitidos, o sistema de sinalização dos neurônios envolve um complicado sistema eletroquímico que parece ser herdado através de seleção natural. Entretanto, como é possível que uma troca tão simples entre os neurônios seja capaz de produzir padrões sofisticados como a decisão de ataque ou fuga do gato ou a atração por outro indivíduo?

Representações binárias do mundo são também processadas por computadores. Portanto, há diferença entre o "cérebro" e uma máquina? Entre tantas questões, se buscará responder a esta, em um primeiro momento.

Será que é possível responder o que é uma decisão tipicamente de um "cérebro" ou de um computador? A linguagem diferencia? Não. Um exemplo é o aparelho construído no Salk Institute, o qual é capaz de transformar textos impressos em inglês falado, sendo capaz, ainda, de determinar a pronúncia correta de letras ou de grupos de letras que podem ser pronunciadas de várias formas. Computadores falando? O último estágio do processo de seleção natural, constituído pela linguagem, copiado por uma máquina. Entretanto, este computador pode ser usado como um modelo para o cérebro. Seus componentes estão dispostos em três níveis - um nível para ler o texto, um nível intermediário e um nível de saída, que gera os sons. Um modelo para o cérebro, segundo o neurocientista Paul MacLean, que assim se expressava: "Somos obrigados a olhar para nós mesmos e para o mundo através dos olhos de três mentalidades muito diferentes" (Sagan, 2002: cap 3).

No homem, o cérebro evoluiu de modo a se constituir em um castelo de três andares, o qual tem, nos lobos frontais (córtex motor), no tronco encefálico e na medula espinhal os elementos importantes de cada uma dessas estruturas. Será que para simular as funções do sistema nervoso é preciso imitar as estruturas naturais?

Apesar da controvérsia existente, as características apresentadas pelos neurônios, e em uma segunda instância pelo cérebro, levam-nos a considerar e comparar o cérebro humano com um computador. O que se conhece da estrutura do cérebro e dos neurônios aponta para uma estrutura integrada na qual o "hardware" (neurônios) e o "software" (sinapses) são inseparáveis. O fato dos neurônios se comunicarem uns com os outros apenas transmitindo a informação se está "ligado" ou "desligado" se assemelha ao modo como os computadores armazenam as informações. A mente, segundo Crick (1994), é uma das propriedades coletivas de um conjunto apropriado de neurônios. A explicação da mente, como a do cérebro, terá de necessariamente ser expressa em termos do funcionamento dos neurônios? A metáfora da mente como computador será apenas controversa ou equivocada? O que nos dista dos computadores? O fato das máquinas serem incapazes de um raciocínio associativo do tipo humano (Pinker, 1997)? Não, muito mais do que isto. São apenas razões práticas para a existência da metáfora da mente como computador. É difícil imaginar como seria possível analisar as informações colhidas em laboratório a respeito das propriedades dos neurônios sem o uso da linguagem desenvolvida para descrever elementos das redes de computador. Assim, a questão é puramente de palavras ou de que mensuramos a mente por intermédio de máquinas?

É possível demonstrar que uma célula capaz de integrar vários sinais de entrada pode simular todas as operações lógicas executadas pelos transistores e outros componentes nos computadores eletrônicos. Isso não demonstra que ambos são equivalentes, mas torna a metáfora atraente. Cálculos extremamente complicados são executados em ambos os sistemas. No exemplo citado anteriormente, a escolha por parte do gato do comportamento apropriado ao se ver diante de um rato ou de um cachorro é resultado de um cálculo. Não sabemos como isto é feito, mas a linguagem computacional torna a descrição possível: um circuito que transferisse sinais de "sim" de uma célula para outra se o total de informações justificasse tal transferência.

Feitos de silício, os computadores eletrônicos são geralmente muito mais rápidos do que o cérebro humano para executar tarefa simples, mas sua vida não é mais longa do que o suprimento de eletricidade que os mantém funcionando. Por sua vez, equipados com excelentes periféricos (em comparação com o teclado e mouse característicos dos computadores) e um versátil software, o cérebro humano é o resultado de uma longa evolução e sua vida útil é igual à do usuário. Então, o que distingue o cérebro do computador e de certa maneira o que nos diferencia das máquinas é a vida? Mas o que á a vida? Ou, qual o conceito de vida? Átomos têm vida? Há vida em um transistor? Podemos ousar questionar? Esta é a resposta e a diferença primordial.

O conceito jurídico de vida surge da interpretação sistemática da Constituição, em um somatório do princípio da dignidade com o conceito de vida meramente biológica. Segundo o budismo, a vida é um processo contínuo de nascimento e morte, mas não existe nenhuma alma que renasça no processo contínuo de nascimento e morte, somente o processo de um momento dando início ao outro. O que a Constituição diz sobre o transistor? Ele nasce? Morre?

A dança da vida se manifesta no instinto do gato, no eriçar de seu pêlo ao se deparar com o cachorro e no afiar de suas garras ao avistar um rato. Gato, rato, cachorro. O olhar do gato sugere que o homem não está sozinho no mundo. Apenas algumas das manifestações de vida. Será o gato, com suas decisões binárias entre o correr e o atacar, o zero e o um, composto de transistores? Se sim, por que a espécie humana nunca pôde reproduzi-lo? Por que uma rede neural tão prezada pelos cientistas e alvo de inúmeros estudos e artigos científicos não reproduz o cérebro do gato? A decisão é binária assim como uma porta lógica? Não são apenas questionamentos que a natureza nos propicia e sim inúmeras respostas emo-cionais. Por que parte das coisas que existem são vivas? O que define algo como um "ser vivo"?

Muito poucas são as respostas do que é vida. Há definições sobre termos como "ciclo vital", "forma de vida", mas não vida. Será que a definição de vida é de tal maneira metafísica, meramente teórica, para uma biologia que está se transformando em simplesmente experimental. Segundo Rizzotti (1996), este é o problema central da biologia teórica. É tal definição que diferencia o homem de uma máquina. O cérebro de um transistor.

Apesar do termo biologia significar conhecimento da vida, a ciência atual não sabe explicar a vida! Gradualmente, nos últimos séculos, o meio acadêmico adotou a crença de que a ciência só pode ser construída pelos "cinco sentidos". Viemos aceitar o materialismo como dogma, a despeito de sua incapacidade de explicar as experiências mais simples de nossa vida diária.

De acordo com a visão essencialista da biologia, algo é definido como membro de uma classe se, e somente se, compartilha com os outros membros um conjunto permanente de propriedades essenciais (El-Hani e Videira, 2000). Mayer (1982) apresenta uma lista de oito propriedades: complexidade e organiza-ção, singularidade química, qualidade, individualidade e variabilidade, presença de um programa genético, natureza histórica, seleção natural e indeterminação. Um gato apresenta tais características, um computador, não. Máquinas, computadores, transistores, átomos: não classificados como vidas, não possuidores de princípio vital. Está respon-dida a primeira pergunta, mas daí provém outra questão: um cérebro apresenta vida? Onde está a vida no gato?

Para os gregos, na antiguidade, especialmente Platão e Aristóteles, há no homem a presença de um elemento divino - a alma - que lhe confere a característica de um ser sagrado, tanto por sua origem, quanto por sua destinação, constituindo-se em fundamento da própria dignidade humana. Os filósofos gregos abordaram com freqüência a existência da alma, a distinção entre o material e o espiritual, a existência do mundo das idéias. Pitágoras acreditava na existência da alma postulando uma existência real para a psiquê. Platão sugeria que, durante o sono, a alma tenta retirar-se das influências externas. Entretanto, segundo Hipócrates, o cérebro é o intérprete da alma.

Surge, então, a resposta da religião. As religiões explicam o fenômeno da vida pelo conceito do "princípio vital", a vida resulta da ação de um agente sobre a matéria. O princípio vital estava presente entre os conceitos científicos do século XIX, larga-mente aceito por cientistas, médicos, fisiolo-gistas e biólogos que eram, na grande maioria, vitalistas. Seu maior expoente teórico foi o médico francês Paul Joseph Barthez (1734-1806). Sua carreira como médico, cientista e professor foi de grande sucesso. Chegou a ser reitor de Montpellier, a mais antiga faculdade de medicina da França. Foi o médico pessoal de Luis XVI e de Napoleão, depois da Revolução. Também redigia o Jornal de Savans, o mais importante jornal de medicina em seu tempo.

Antes de Barthez, os animistas, como Stahl, usavam o conceito de que a própria alma dava vida ao corpo. Idéia pouco aceita e controversa. O principal problema dessa hipótese era explicar como algo imaterial agia sobre um corpo material. Por outro lado, como a alma poderia cuidar dos batimentos cardíacos, por exemplo, sem estar consciente disso? Barthez, insatisfeito com as explica-ções materialistas ou animistas, propôs uma nova visão do homem:

"Eu provarei que o princípio vital explica os fenômenos biológicos e deve ser concebido por meio de idéias distintas das relacionadas com o corpo e a alma." (Barthez, 1778)

A hipótese científica de Barthez foi confirmada experimentalmente pela ciência do magnetismo animal, iniciada pelo médico Frans Anton Mesmer (1734-1815). Depois serviu de base para a criação da medicina homeopática por Hahnemann (1755-1843). Este princípio vital emana por todo o "ser vivo", não sendo exclusivo do cérebro. O cérebro não tem aqui sua função desmerecida, mas sim colocado apenas como um componente do princípio da vida. O princípio vital espalha-se pelo corpo, a vida se sustenta nas extremidades. A vida não está localizada no cérebro, como a concepção do homúnculo na Idade Média. A vida fluiu por todos os órgãos do corpo, desde os olhos do gato que vêem o cachorro até as patas que se postam em fuga.

 

3. O amor

O ser humano como "aglutinado de órgãos" que ama, pensa, chora, sorri. Simplesmente porque são possuidores de fluido vital e enquadrado nas oito categorias da concepção de vida. O corpo ama, não somente o cérebro. Mas o que é o amor? O amor é o próprio bem, não se comanda e não poderia, em conseqüência, ser um dever (Comte-Sponville, 1999). Uma emoção ou sentimento?

Segundo Damásio (1994), emoção é o conjunto de mudanças que ocorrem quer no corpo, quer no cérebro e que normalmente é originado por um determinado conteúdo mental. Segundo o autor, a frase de Descartes "Penso, logo existo" concebe o ato de pensar com uma atividade separada do corpo. Na visão de Damásio, sentimentos e emoções são uma percepção direta de nossos estados corporais.

O amor, se nasce da sexualidade, como prediz Freud, não poderia reduzir-se a ela e, em todo caso, vai muito além de nossos pequenos ou grandes prazeres eróticos. É toda a nossa vida, privada ou pública, familiar ou profissional, que só vale, proporcionalmente, ao amor que nela pomos ou encontramos. O amor não é um mandamento: é um ideal, segundo Kant. Platão, por exemplo, sustentou ser o amor uma apreciação da beleza, principalmente da beleza das idéias abstratas e dos conceitos matemáticos. É a experiência humana mais poderosa, envolvendo muitos sistemas neurológicos (Aron et al., 2005). O autor e colaboradores usaram imagens de ressonância magnética dos cérebros dos voluntários Como conclusão, o amor parece ativar as partes do cérebro ricas em dopamina, um composto químico que tem efeito sobre as emoções. Contrapondo-se aos biologistas, que analisam o amor como reações puramente instintivas, há a impetuosidade espiritual da fêmea do salmão que chega até a passar fome na tarefa de ir encontrar-se com o seu companheiro amado. Amor superando o instinto de sobrevivência. Complementado o corpo, dando vazão a vida.

Corpos com órgãos que são tentáculos do amor. Os olhos o primeiro segmento, o primeiro órgão que vive. Ele é energetica-mente carregado, ele como expressão do todo, de uma unidade funcional expressa o que o desejo quer. A janela para o invisível, mas visível para o interior emocional, que no momento da dor ou do alívio são repre-sentadas pela palavra, pela idéia. O órgão que produz vida. Representado como afeto, como palavra. Viajando e animando todo esse corpo dotado de órgãos. Cada célula pulsando, expandindo e contraindo num movimento universal.

Depois vem o segundo segmento, representado aqui pela boca. A boca que não está reprimida, que está energeticamente ativa, é aquela que beija, que saboreia, que acalenta e que apaixona. O pescoço órgão da decodificação, da ponte, do caminho, da sustentação da cabeça, dos olhos, da boca, pode empreender uma busca de sentido.

O peito, vulcão do amor, do ódio. Caixa que guarda e resguarda. É onde ressoa a prisão. Onde o afeto é feito prisioneiro. Quando vive, quando se torna um órgão é o fabricante de danças, de proteção com seus apêndices braços, de colo, de acalento, de paixão, de compromisso num aperto firme de mãos.

A pélvis, como o olho olha, cria. Movimento ou destruição. Competição pela vida ou pelo poder. Poder que pode ser do "eu posso", como pode ser do "eu quero" tudo para mim. A pélvis e os órgãos genitais fazem um mundo adulto, cheio de compromisso, responsabilidade e alegrias. A alegria de viver está interligada ao rumo, à direção, à intenção.

Todos esses são órgãos falantes, pulsantes e constituintes de uma unidade funcional, representam uma unidade funcio-nal. Animados pela energia orgânica, pelo "princípio vital", pela vida. Diferente dos computadores.

 

4. O pensamento

Segundo Moleschott, o pensamento é um movimento da matéria. Entretanto, há muitas questões sobre o pensamento. Quais suas características? Há uma sede para ele? Pode ser replicado por máquinas? Este problema será examinado a partir de algumas abordagens, a saber: evolutiva, biológica, de processamento de informação e de inteligência artificial.

As semelhanças entre o modo como as pessoas pensam e o modo como um programa computadorizado realiza cálculos diz respeito ao processamento de informação (Sternberg, 2000). Um dos grandes mistérios que nós temos encarado como espécie é a tentativa de entender os mecanismos dos nossos cérebros. Como nós processamos as informações, aprendemos, recebemos novos estímulos, raciocinamos e nos tornamos conscientes de nossa condição? Milhares de pessoas nos campos da neurofisiologia, filosofia, psicologia, educação, sociologia, religião têm tentado se voltar para estas questões profis-sionalmente. Todos nós provavelmente já debatemos o assunto individualmente. Mesmo com a enorme quantidade de dados que têm sido acumulada, existem ainda omissões fundamentais na descrição de como nós adquirimos estas funções básicas. Um dos maiores quebra-cabeças é a maneira pela qual o nosso cérebro armazena informação. Nenhuma relação uma-a-uma foi detectado entre uma determinada célula cerebral ou grupo de células e um pensamento particular ou memória. Se fosse assim, isto seria possível de ser verificado, pela remoção de áreas selecionadas do cérebro e observação da perda de uma característica particular aprendida. No cérebro, a solução dos proble-mas complexos depende da conexão que se estabelece entre os neurônios especializados na solução de diferentes tarefas. A plasti-cidade dessas conexões permite que se aprenda a solucionar novos problemas.

As reações químicas foram os primeiros meios de contato dos neurônios. Só quando estes organizaram suas primeiras ramificações, foi possível o aparecimento de uma corrente elétrica baseada na despolarização. Criou-se uma troca de cargas iônicas em relação à membrana dos neurônios, na qual o sódio e o potássio fazem correr uma corrente elétrica de um ponto a outro do neurônio. Rapidez, exatidão do processamento da informação, capacidade de atenção. São todos fatores importantes e que encontram analogia nas máquinas. Hunt (1978) compreende a rapidez como a velocidade para recuperar a informação sobre as palavras armazenadas em memórias de longo prazo, sendo muito semelhante à rapidez computacional. Segundo Hunt e Lansman (1982), as pessoas mais inteligentes são aquelas capazes de repartir o tempo entre duas tarefas e de realizá-las eficientemente.

Comecemos a citar as diferenças pela abordagem evolutiva da inteligência. Como qualquer outro ser vivo, o ser humano é resultado de um processo evolutivo que privilegiou a sobrevivência e a adaptação. Apesar de dispor de uma potencialidade extraordinária, o cérebro humano, para priorizar a sobrevivência, efetua decisões apressadas, às vezes tidas como insensatas. Basta o estudo do comportamento animal para percebermos que a disputa pela vida exige que um predador esteja em constante preparo para prender sua presa. A vitima, quase sempre mais frágil, precisa se dispor a uma vigilância permanente para não se surpreender com a ocorrência de um ataque normal. Dentro desta estratégia de ataque e defesa que se perpetua em todos os níveis da escala evolutiva, do peixe ao gato, é impreterível que o cérebro disponha toda sua estratégia para a fuga, defesa ou ataque (o mais rápido possível).

Quando se trata de sobrevivência, o tempo perdido com detalhes e distrações com a rotina pode resultar na própria vida. Qualquer sinal novo deve ser percebido e ter uma reação de maneira mais acessível e rápida para empreender uma fuga ou o início de um ataque. No conjunto, de informações que nosso cérebro detecta no mundo à nossa volta, a escala de prioridades estabelece que nos interessa a informação mais útil, acessível, mas não necessariamente a melhor. O cérebro opta pela simplificação para se adaptar e assim nos põe diante de um esboço rápido da realidade. O processo de sobrevivência exige que cada presa esteja sempre de prontidão para se prevenir dos ataques dos seus predadores. Nesse sentido, o cérebro posicionou o foco da consciência na atenção imediata para todos os fatos novos que se sobressaem do meio ambiente. Ninguém pode ser pego de surpresa, nem se deter em uma análise pormenorizada de um objeto, porque pode ser desde um arbusto até uma fera pronta para atacar. Usamos nossa capacidade cerebral de fazer interpretações e reconhecimento com base em pistas sensoriais de informações. O mundo por nós vivido é essencialmente um mundo sonhado e imaginado em nossa mente (Schopenhauer, 2003). Cada objeto que nos atinge impressiona não só pelo que imprime nos sentidos, mas também pelo que nos provoca na mente ao desencadear imagens e idéias. A experiência de cada um é medida pelo referencial de imagens mentais que o ser humano cria e armazena sobre o mundo que vive. E isto que nos diferencia dos computadores. Seus periféricos podem se assemelhar aos nossos sentidos, mas tal representação até onde sabemos não cria imagens mentais em seu processador.

O cérebro humano continua privilegiando todo esse mecanismo de defesa, adaptando-se a rotinas e menosprezando o que é corriqueiro para estar atento ao que é novo, ficando predisposto a agir rapidamente. Os fatos novos, ao lado do perigo que podem ou não representar têm o poder de desencadear, pelo inusitado da sua ocorrência, uma sensação agradável ou hostil, uma emoção forte que se irradia por todo o organismo, liberando a adrenalina para uma reação em cadeia. Por isso, no desenvolvimento do cérebro, seguindo a escala animal, o cérebro emocional, represen-tado pelo sistema límbico, precedeu o desenvolvimento do cérebro intelectual, expresso pelas circunvoluções cerebrais do neocórtex. Se o ato instintivo não é um ato inteligente, este revela uma causa inteligente, pois podemos dizer que o instinto, por ser resultado de um aprendizado, é parte do inconsciente, arquivo mais profundo do psiquismo. É um guia seguro, pois é etapa já aprendida.

Recentemente, descobriu-se que há uma área para o funcionamento dos instintos e que ela não passa pelo cérebro intelectual. O cérebro instintivo é automático, assim como a área que faz com que o coração bata, os sistemas digestivos funcionem e todas as funções automáticas necessárias à manu-tenção da vida física. Este cérebro é o primeiro em contato direto com a medula e assemelha-se a dois pomos, lado a lado.

Toda a seqüência que a célula nervosa primitiva e suas redes de conexões complexas percorreram na escala evolutiva foi acumulando elementos estruturais que perduraram por toda a sua trajetória. Nenhum de seus componentes foi posto de lado pelas transformações que a evolução exigia. Nada do que o cérebro primitivo criou foi descar-tado (Facure, 2001).

Desde os reflexos simples presentes nas primeiras lesmas até os automatismos instintivos da aranha quando tece sua teia, tudo permanece. A experiência emocional que o sistema límbico condiciona nos mamíferos se exalta nos primatas, principalmente no homem, permitindo o aparecimento da racionalidade. Discernindo entre o certo e o errado, o homem aprende a raciocinar e estabelece um código de julgamento. Conseqüêntemente, tal racionalidade vai permitir antecipar a solução para seus problemas, potencializando sua inteligência. O instinto precedendo a inteligência, como causador do que hoje podemos supor que seja o ser inteligente. Entretanto, em um computador há instinto? Até onde sabemos, não. E é esta a primeira diferença.

Recorremos, então, à questão da inteligência artificial. A primeira tentativa para avaliar se um programa de computador é de fato inteligente foi apresentada por Alan Turing, visando determinar até onde um humano poderia ter acesso à inteligência de outrem. Este teste consiste na capacidade de distinguir o desempenho de um computador em relação ao de um ser humano. Atualmente, no entanto, o critério de se testar se o desempenho do computador é comparável ao dos humanos não é mais relevante. Outras são as questões que batem à porta, tais como: há inteligência em um computador? Um computador apresenta as mesmas caracterís-ticas de um ser humano?

Em 1921, quando os editores da Revista de Psicologia Educacional fizeram a 14 psicólogos famosos esta pergunta, as respostas abrangiam dois temas: a capacidade para aprender a partir da experiência e a capacidade para se adaptar ao ambiente circundante (Sternberg, 2000). Sternberg e Detterman (1986) salientam a importância da metacognição, que pode ser entendida como a compreensão e o controle de seus próprios pensamentos.

Partindo desta definição, muitas são as diferenças entre a inteligência humana e aquela que julgamos ter um computador. O instinto se apresenta como a primeira diferenciação. Com relação à estrutura, o cérebro é capaz de processar muitas fontes de informações simultaneamente. Outra limitação diz respeito a uma faceta da inteli-gência humana: a intuição (Dreyfus e Dreyfus, 1990). Basicamente, os autores mostraram que os computadores se sobressaem no aspecto matemático, mas não no intuitivo.

Quanto à questão biológica, muitos viam no cérebro como o órgão diretor do corpo, regulador da vida e fonte do progresso humano. Embora o cérebro humano seja o órgão responsável pela inteligência, os primeiros estudos que procuraram descobrir os índices biológicos da inteligência e outros aspectos dos processos mentais foram um fracasso. Uma abordagem sugere que a inteligência superior se correlaciona com níveis reduzidos do metabolismo da glicose durante as tarefas de resolução de problemas. Parraria, assim, a inteligência a ser reduzida apenas ao consumo de glicose?

Os materialistas admitem o cérebro como a sede da inteligência, muitas vezes relacionando o peso do cérebro, ou o peso relativo do cérebro como uma medida de inteligência. No entanto, Broca já admitia que a inteligencia de um indivíduo não poderia ser medida pelas proporções do crânio ou do cérebro. Este argumento não se fundamenta ao compararmos o cérebro do homem com o do rato de nossa história. Este roedor tem um peso relativo maior do que o homem, levando a considerar que o rato é mais inteligente que o homem.

Outro argumento defende que a inteligência tem sua sede nos neurônios, assim como o computador tem seu proces-sador baseado em transistores. A predominância de massa cinzenta sobre a branca indicaria maior dose de inteligência. Retornemos, então, ao nosso exemplo para refutarmos tal hipótese. O cão apresenta uma relação massa cinzenta/massa branca maior do que o homem o que indicaria uma maior inteligência.

Por fim, há que se considerar também o argumento das circunvoluções cerebrais, para o qual segundo os materialistas, quanto mais sulcada for a superfície cerebral, mais inteligente será o ser. E o caso do elefante? Seu cérebro é muito mais sulcado do que o do homem e sua inteligência, até onde sabemos, é menor.

Diante de tudo isto, temos de admitir que o cérebro é, sem dúvida, muito importante na fisiologia humana. A vida mental se manifesta através dele, mas não é originária dele. Como declarou Price, da Universidade de Oxford, nada existe de contraditório ou logicamente absurdo na hipótese de que memórias, desejos e imagens possam existir sem o cérebro físico. Segundo a religião, são duas coisas distintas para a existência material: o princípio vital, já falado anteriormente, e o princípio da inteligencia. A inteligência não é um atributo do princípio vital e a matéria pode ter vida - mineral ou biológica - sem a faculdade intelectiva de pensar e discernir. A inteligência que dotaria o ser de capacidade pensante, de raciocínio não vem do princípio vital.

Esse princípio, seria capaz de inteligentemente formar um corpo, desenvolvê-lo e dar-lhe vida até mesmo orgânica ou biológica. Esta faculdade de aprender e adquirir conhecimento, de compreender e de se desenvolver como intelecto é uma propriedade inerente ao princípio inteligente, daquele capaz de dotar a matéria de vida animal pensante. Portanto, o intelecto, como atributo espiritual, advém da evolução desse princípio inteligente e se desenvolve com ele, o que nos faz admitir que nos "seres inferiores", seja mero amanhecer da existência, em processo evolutivo. O seu embrião.

 

5. Referências bibliográficas

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Endereço para Correspondência
D. B. Coelho é Graduado em Engenharia de Controle e Automação (Instituto Mauá de Tecnologia - São Caetano do Sul, SP), Mestrando em Engenharia Biomédica (Escola Politécnica - EP-USP). Endereço eletrônico: http://lob.incubadora.fapesp.br/portal/m/daniel/. e-mail para correspondência: d_boari@yahoo.com.br.