SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número1Avaliação do nível de propensão para o desenvolvimento do alcoolismo entre estudantes do curso de graduação em enfermagem da Universidade Católica Dom BoscoAYAHUASCA: neuroquímica e farmacologia índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.3 n.1 Ribeirão Preto fev. 2007

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Psicoterapia psicanalítica: aplicações no tratamento de pacientes com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas

 

Psychoanalytic psychotherapy: applications in the treatment of patients with alcohol and other drugs problems related

 

Psicoterapia psicanalítica: aplicaciones en el tratamiento de pacientes con problemas relacionados con el uso del alcohol y otras drogas

 

 

Manoel Antônio dos Santos

Professor Doutor do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto-USP.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo apresenta reflexões sobre a abordagem psicanalítica/psicodinâmica, discutindo suas possíveis aplicações no tratamento de pacientes com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. São delineadas as principais concepções dessa abordagem e descritos os pressupostos teóricos com os quais operam suas técnicas e os fundamentos epistemológicos que sustentam a prática da psicoterapia. Em seguida, são revisados os resultados de pesquisas que oferecem evidências científicas que indicam sua efetividade no campo do tratamento para uso de substâncias psicoativas.

Palavras-chave: Psicoterapia, Drogas ilícitas, Transtornos relacionados ao uso de substâncias/terapia.


ABSTRACT

The paper aims to present reflections on the psychoanalytic/psychodynamic-oriented psychotherapy, arguing its possible applications in the treatment of patients with alcohol and other drugs use problems related. The main conceptions of this approach are delineated, and the theoretical basis underlying their techniques is described, as well as the epistemologic foundations that support the practice of the psychotherapy. After that, the results of research are revised and offer scientific evidences that indicate its effectiveness in the field of the substance abuse treatment.

Keywords: Psychotherapy, Street drugs, Substance-related disorders/therapy.


RESUMEN

El estudio presenta reflexiones sobre psicoterapia psicanalítica/psicodinámica, y la discusión de sus usos posibles en el tratamiento de pacientes con problemas con el uso del alcohol y otras drogas. Los principais conceptos son descritos se delinean y los marcos teóricos con que las técnicas funcionan y sus fundamentos epistemológicos que apoyan el práctico del psycotherapy. Después de eso, los resultados de la investigación están revisados y ofrecen las evidencias científicas que indican su eficacia en el campo del tratamiento para el uso de drogas.

Palabras clave: Psicoterapia, Drogas ilícitas, Trastornos relacionados con substancias/terapia.


 

 

O LUGAR DA PSICOTERAPIA NO TRATAMENTO DOS TRANSTORNOS RELACIONADOS AO USO DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

Em termos gerais, a psicoterapia é uma prática de atenção psicológica que visa auxiliar o indivíduo a lidar com seu sofrimento emocional. O sofrimento resulta da dificuldade de recrutar mecanismos de defesa saudáveis diante dos conflitos psíquicos, resultando em padrão adaptativo problemático.

A psicoterapia é um procedimento sistemático e cientificamente fundamentado, porém sua inscrição histórica é relativamente recente, com pouco mais de um século. Trata-se de campo fragmentado e multifacetado, com centenas de abordagens e sistemas teóricos, embora apenas duas dezenas de abordagens sejam dominantes(1-2).

De forma análoga ao que ocorre nas demais áreas, a aplicação da psicoterapia com dependentes de álcool, tabaco e outras drogas ainda está muito longe de ser um campo unitário, homogêneo e consensualmente estabelecido(3). Desde o início do século XIX até os dias atuais, diferentes modelos foram elaborados para o tratamento do abuso de substâncias psicoativas, visando a abstinência da droga ou a diminuição dos índices de recidiva. Contudo, o desenvolvimento desses sistemas de tratamento nem sempre foi acompanhado de pesquisas rigorosas sobre as abordagens utilizadas(3).

Os indivíduos que apresentam problemas com uso abusivo de drogas ou dependência química também não constituem categoria homogênea, uma vez que diferem em suas características pessoais de escolha da droga, padrões de consumo, motivações para o uso, realidades psíquicas e perfil socioeconômico e cultural. Isso leva à necessidade de implementar diferentes tipos de abordagens psicoterapêuticas que contemplem suas especificidades(3).

Os métodos de tratamento para o uso indevido ou abusivo de drogas abrangem diversas modalidades, que se estendem ao longo de um espectro que abriga desde estratégias biológicas até psicossociais: psicoterapias, intervenções farmacológicas, programa dos 12 passos (modelo aplicado pelos grupos anônimos de auto-ajuda), abordagem da comunidade terapêutica, entre outras propostas. Tipicamente, os programas de reabilitação psicossocial incluem: psicoterapia individual e de grupo, aconselhamento individual, palestras, psicoeducação, aconselhamento familiar, atividades recreacionais, suporte oferecido por grupos anônimos, a exemplo dos Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), entre outros recursos disponibilizados(4).

É importante salientar que o aconselhamento de drogas (addiction counseling) – e não a psicoterapia – consiste na intervenção psicossocial mais amplamente utilizada no tratamento do abuso de substância, embora as psicoterapias sejam amplamente utilizadas nesse contexto(5). Contrastando com a psicoterapia, o aconselhamento é muito menos focado na identificação e na obtenção de mudança interna de processos intrapsíquicos. É muito mais focado no manejo de problemas atuais, especialmente aqueles relacionados ao uso de drogas. Nesse sentido, o aconselhamento pode ser definido como manejo regular de pacientes aditos, primariamente, mediante a oferta de apoio, provendo estrutura, monitorando comportamentos, encorajando a abstinência e disponibilizando serviços concretos tais como aconselhamento profissional, serviços médicos ou auxílio legal (apoio jurídico). Essa abordagem focaliza constantemente o comportamento aditivo, freqüentemente utilizando a linguagem e os conceitos do programa dos 12 passos desenvolvido pelos Alcoólicos Anônimos. Tenta modificar a dependência e/ou abuso pela identificação dos problemas e comportamentos diários que contribuem para o consumo de droga e também pela oferta de serviços concretos que visam a superação desses problemas. O aconselhamento, assim como a psicoterapia, tenta auxiliar o paciente a lidar com as conseqüências relacionadas à adição que, freqüentemente, se tornam parte importante da vida dos pacientes(5).

O presente estudo apresenta reflexões sobre a abordagem psicanalítica/psicodinâmica. São delineadas suas principais concepções e pressupostos teóricos e, em seguida, são revisados os resultados de pesquisas que oferecem evidências científicas que indicam sua efetividade no campo do uso de substâncias psicoativas.

Este estudo se justifica pela necessidade crescente, apontada pela literatura, de confrontar e sistematizar as evidências, estabelecidas até o presente estágio do conhecimento científico, sobre as potencialidades e limites da aplicação dos diferentes modelos de psicoterapia no campo dos transtornos por uso de substância. Nesse campo específico, a psicoterapia psicanalítica é reconhecida como uma das estratégias mais utilizadas no contexto brasileiro, o que torna o presente estudo foco de interesse para a atualização científica de profissionais de saúde mental, especializandos e estudantes da área de saúde de um modo geral, na medida em que trazem subsídios que podem funcionar como guias na escolha da abordagem assistencial a ser adotada.

A seguir, serão descritos os fundamentos teórico-conceituais e técnicos que sustentam a prática da psicoterapia psicanalítica. Em seguida, serão apresentadas as evidências científicas disponíveis na literatura, buscando-se atentar para os dados que possam despertar maior interesse no clínico e nos profissionais em formação.

 

PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E FUNDAMENTOS TÉCNICOS

A abordagem psicanalítica iniciou-se com a clínica da histeria, tendo como ponto de partida a noção de conflito intrapsíquico na neurose. Segundo essa concepção, os conflitos teriam origem no antagonismo entre desejos e repressão (impulsos versus proibição), que alimenta o mal-estar da civilização.

A psicoterapia psicanalítica ou psicoterapia psicodinâmica – ou simplesmente psicoterapia dinâmica – é procedimento derivado da psicanálise, que utiliza seu corpo teórico combinando-o com técnicas adaptadas às necessidades específicas do contexto particular em que se aplica o método psicanalítico. Abrange uma classe de intervenções que se baseiam em teorias psicológicas específicas do funcionamento humano (teoria freudiana, kleiniana, bioniana, winnicottiana, lacaniana, dentre outras). Concentra-se, basicamente, na interpretação de conflitos inconscientes, com o propósito de abrandar a tensão intrapsíquica decorrente da repressão das idéias intoleráveis pelo ego consciente. Trabalha-se para que as motivações inconscientes dos comportamentos possam ser reconhecidas e elaboradas, de modo que o sujeito encontre o sentido que o sintoma assume em sua vida. Considerando-se que cada história é singular, esse sentido construído é único.

O pensar só produz conhecimento quando pode ser atrelado ao sentir. E o sentir situa-se no campo dos afetos, que estão intimamente ligados ao corpo e aos órgãos sensoriais que nos conectam com a dimensão sensorial da realidade. Quando os processos psíquicos estão funcionando de forma abstrata, os afetos podem adquirir expressão simbólica. A palavra é o veículo mais refinado dos processos de pensamento e comunicação, permitindo a elaboração psíquica, na qual o afeto se conecta a uma representação, adquirindo inscrição psíquica.

O sintoma, no sentido psicanalítico do conceito, forma-se quando há um fracasso da palavra – ou seja, do sistema simbólico – em expressar o que se passa com o sujeito. Todavia, ao mesmo tempo em que vela o sofrimento psíquico, o sintoma o revela, desde que encontre uma escuta qualificada que permita que o conflito inconsciente aceda à via da consciência, proporcionando o processo de simbolização e transformação em elementos psíquicos pensáveis.

O excesso de excitação produz alterações nas funções ou órgãos do corpo. O corpo tem uma linguagem própria que comunica que algo doloroso ou traumático não encontrou os caminhos da representação psíquica, isto é, o excesso de excitação (evento traumático) não pôde ser inscrito no aparelho psíquico. Como conseqüência dessa impossibilidade de representação psíquica, uma passagem ao ato é produzida repetidamente, ou um órgão ou uma função corporal é afetada. Produz-se, assim, o trauma psíquico.

A psicoterapia psicanalítica opera sobre o traumático que caracteriza uma situação de crise, incidindo sobre o excesso de energia que transborda, oferecendo contornos simbólicos que possa contê-la e transformá-la em objeto do pensar. O objetivo do tratamento psicanalítico é, então, transformar a linguagem sintomática em realidade psíquica – ou, dito em outros termos, transmutar o que se manifesta na ordem do corpo em palavra, o que permite inscrever o sofrimento no plano psíquico.

Pensar sobre si pode desvelar novas possibilidades e caminhos. O terapeuta crê e aposta no efeito transformador que o conhecimento de si opera na vida psíquica do indivíduo. Busca compreender, na fala do sujeito, a possibilidade de ele tomar contato com as teorias que ele engendra sobre si mesmo. Esse conhecimento do sentido que o sintoma assume para cada um pode tirar o sujeito de uma posição apassivada diante de suas dificuldades de controle dos próprios impulsos, evoluindo para uma postura de agente de sua própria “cura”, ou seja, sujeito ativo que assume sua necessidade de tratar-se e passa a mobilizar seus recursos nessa direção.

Por meio do método da associação livre, o paciente é convidado a verbalizar livremente seus conteúdos psíquicos. Isso é válido para adolescentes e adultos, que já dispõem do pleno domínio da linguagem e desenvolvimento das funções cognitivas. Com crianças utiliza-se o brincar e os jogos como recursos comunicacionais.

A instauração da situação analítica se dá a partir desse convite que se faz ao paciente para dizer tudo o que se passa em sua cabeça, comprometendo-se a fazer um esforço para não omitir o que se apresenta em sua mente, mesmo que lhe pareça inconveniente ou mesmo desagradável.

O psicoterapeuta, valendo-se da atenção flutuante, oferece sua escuta, mediante a qual irá pontuar as resistências que se contrapõem à rememoração dos conflitos e dificultam sua elaboração psíquica(6). O paciente é estimulado a proceder a uma busca escrupulosa dos circuitos constituído pelas representações, mas logo percebe que essa investigação está longe de ser conclusiva, pois outras questões vão se configurando em meio ao percurso que se abre em abismo. As representações se conectam, multiplicam-se, interpenetram-se ou se amontoam em uma sucessão vertiginosa, constituindo uma cadeia de elementos intercomunicantes.

Logo se percebe que aquilo que as lembranças carreiam são apenas representações psíquicas dos fatos, que se superpõem umas às outras. O próprio fato é sempre representação de um passado incapaz de voltar, posto que efêmero, enquanto o acontecimento é o que guarda o sentido. Por isso a psicanálise não é uma tentativa de restaurar fatos do passado, nem uma busca do tempo perdido – a representação, vista isoladamente, é apenas uma fotografia que serviu para fixar um momento, um indício do que não existe, porque simplesmente passou. As representações, como as fotografias, são figurações de outrora. Têm, portanto, valor histórico. Isoladas, elas não guardam a chave do sentido. Mas colocadas umas em relação às outras, adquirem a fluidez do movimento, como ocorre com os fotogramas de um filme. De modo análogo ao filme, o processo analítico desencadeia um desfiladeiro de representações que, por múltiplas e sucessivas interconexões, permitem traçar uma trama de sentidos que leva o sujeito a recriar, compreender e transformar o que “foi”. Assim, a psicoterapia surge como um campo de investigação presidido pela angústia: cada representação examinada provoca o exame de outras representações que, por sua vez, suscitam ainda outras representações.

As características básicas da psicoterapia psicanalítica, aplicada ao contexto do uso de substâncias, são: o apoio e fortalecimento de recursos por parte do paciente. As intervenções podem ser individuais ou em grupo, e o trabalho é mais eficaz quando realizado com o esforço combinado de uma equipe interdisciplinar.

A estratégia metodológica desse tipo de tratamento prevê encontros freqüentes (de preferência duas a três vezes por semana) e longa duração. Os critérios de seleção incluem a integridade das funções egóicas – percepção, memória, atenção e concentração, raciocínio lógico, síntese, condição intelectual preservada – já que, para a eficácia das interpretações, é requerida capacidade de abstração e simbolização.

A abordagem psicanalítica passou a voltar seu foco de atenção ao vínculo paciente-analista, o que se tornou possível graças à reorientação do campo psicanalítico, ocorrida no rastro de um movimento que evoluiu dos modelos de mente baseados nos impulsos, derivados da concepção freudiana de aparelho psíquico, em direção a modelos fundamentados na teoria das relações objetais ou na psicologia do self, o que fez com que o tratamento fosse dirigido para as interpretações da relação transferencial.

Assim, ferramenta fundamental de trabalho nessa abordagem é o manejo da relação transferencial. O paciente tende a transferir para a figura do terapeuta sentimentos e atitudes vivenciados com outros personagens em outros tempos e cenários, reeditando, assim, padrões de relacionamentos primários experienciados com as figuras parentais na infância. Para Freud, a transferência seria a principal forma de resistência do paciente, de modo que poder reconhecê-la e utilizar desse conhecimento para formular as interpretações permitiria desarmar sua tendência de repetir os padrões de conduta estereotipados do passado. A interpretação das resistências promove mudanças na estrutura de personalidade e, por essa razão, a psicoterapia psicanalítica também é conhecida como terapia reconstrutiva ou profunda.

A técnica baseada nos princípios da teoria psicanalítica visa possibilitar o acesso aos conflitos intrapsíquicos, com vistas a elaborá-los e resolvê-los, colocando os recursos do psiquismo a serviço da reestruturação, reorganização e desenvolvimento da personalidade. Nessa concepção, o sintoma nada mais é do que uma comunicação simbólica – se bem que fracassada – a respeito do conflito subjacente. Esse conflito, juntamente com os afetos que o acompanham, é reencenado na relação transferencial estabelecida com o psicoterapeuta, com base no protótipo das relações infantis. É por essa razão que o campo transferencial é a solo de onde emanam as hipóteses do terapeuta. Assim, no que concerne ao sintoma “uso da droga”, na psicoterapia psicanalítica não se visa simplesmente sua remoção – ou redução sintomática. Freud insiste que é preciso compreender o sentido do sintoma e não visar simplesmente seu desmonte pela via da sugestão.

Uma questão que merece atenção é quem será objeto do cuidado terapêutico: o “drogado” ou as partes danificadas de seu self, nas quais se alojam suas defesas imaturas? Na estratégia da psicoterapia de apoio, visa-se alcançar os mecanismos defensivos, substituindo as defesas imaturas por defesas mais saudáveis.

Na medida em que se fortalece o vínculo terapêutico, o paciente estabelece um senso de confiança básica no terapeuta e na relação. Os ganhos terapêuticos surgem a partir desse momento, pois o paciente aprende com o terapeuta que pode confiar em um algo positivo, podendo vislumbrar a esperança na mudança. Caso o paciente integre uma grupoterapia, o guardião desse “objeto bom” poderá ser o próprio grupo, e não apenas o profissional.

O principal fator de mudança, portanto, é a possibilidade de poder internalizar um bom objeto interno, essencial para corrigir as distorções vivenciadas no plano das relações objetais. A propósito, uma boa relação com o primeiro objeto e, por conseguinte, uma internalização bem-sucedida do mesmo, é pré-condição para que seja possível dar e receber amor, base da saúde mental(7). A mudança terapêutica provém da identificação ao bom objeto.

Um outro aspecto importante é a possibilidade que o paciente tem de preencher as lacunas que ficaram no processo de identificação com suas figuras parentais, retificando-as em bases mais realistas. Trata-se de ativar a capacidade reparatória, que permite restaurar os danos psíquicos que, em fantasia, foram infligidos ao objeto.

Na medida em que a relação terapêutica evolui, o ego se fortalece gradualmente, por via de processos identificatórios mais realistas que proporcionam padrões de relacionamentos menos distorcidos, encontrando-se em melhores condições de vivenciar e elaborar adequadamente os conflitos sem se deformar ou recorrer a mecanismos de defesa primários. Nota-se que, nessa fase da psicoterapia, há maior envolvimento com o tratamento e o paciente tende a dedicar-se à construção de um projeto positivo de vida.

 

AVALIAÇÃO DE RESULTADOS

A despeito do imenso saber produzido, no presente estágio do conhecimento existem ainda poucas evidências empíricas e teorias consistentes às quais o terapeuta pode recorrer em busca de orientação(8). O que dificulta saber quando e como um tratamento está realmente funcionando(9). Os achados acumulados até o momento parecem deixar claro que a psicoterapia pode ser efetiva no tratamento do abuso de substância e da adição(5).

Nesses tempos de medicina baseada em evidências e tratamentos apoiados em dados empíricos, tem sido enfatizada a necessidade de pesquisas que tragam o aporte de resultados no campo da psicoterapia psicodinâmica e psicanalítica(10).

A maior parte do que se conhece sobre os princípios da teoria psicodinâmica provém de suas aplicações clínicas, o que dificulta a condução de bons estudos de desfecho de tratamento que demonstrem claramente a eficácia dessa abordagem nos transtornos psiquiátricos específicos. Mesmo reconhecendo essa limitação, autores defendem o argumento de que a compreensão psicodinâmica pode adicionar profundidade no trabalho com indivíduos e grupos, auxiliando ainda no entendimento do processo de reabilitação(11).

Outra questão a ser considerada é que a remoção de sintomas não é um bom preditor do curso subseqüente da psicoterapia. Alguns autores têm defendido que é melhor medir os indicadores da qualidade do processamento psíquico (mudanças na estrutura e na dinâmica de funcionamento mental do paciente)(2). Esse tipo de pesquisa, inclusive, interessa mais ao psicoterapeuta, na medida que permite também compreender o que acontece no interior de uma sessão, como operam as variáveis dentro da relação terapêutica. Desse modo, os estudos de processo (psychotherapy process studies) têm angariado prestígio crescente.

A estratégia metodológica utilizada nos estudos controlados e aleatorizados não é apropriada para avaliar a psicoterapia de longa duração, que se estende por vários anos, bem como a psicoterapia psicanalítica. Leichsenring realizou também uma revisão dos estudos de efetividade das mesmas(10). Diferindo dos estudos controlados, que são estudos de eficácia, os estudos de efetividade são conduzidos sob condições naturalísticas, ou seja, da prática clínica.

O estudo de Leichsenring constitui a mais completa revisão já publicada sobre a evidência empírica disponível acerca da eficácia da psicoterapia psicodinâmica em transtornos psiquiátricos específicos, abarcando o período de 1960 a 2004(10). Essa revisão abrange estudos controlados e aleatorizados com psicoterapia psicodinâmica de curta e média duração, disponíveis em diferentes transtornos psiquiátricos, entre os quais figuram os problemas de drogadição. Nas quatro últimas décadas, período coberto pela revisão, foram identificados quatro estudos controlados aleatorizadosa para o transtorno relacionado ao uso de substânciasb.

No primeiro estudo, os pesquisadores investigaram os efeitos da psicoterapia psicodinâmica de curto prazo (PPCP) e da terapia comportamental-cognitiva (TCC), administradas de forma combinada com aconselhamento de droga no tratamento de dependentes de opiáceos(12-13). PPCP combinada com aconselhamento promoveram melhoras significantes sobre as medidas de sintomas relacionados ao uso de droga e sintomas psiquiátricos gerais. No sétimo mês de seguimento, PPCP e TCC, combinadas com aconselhamento, mostraram-se igualmente efetivas, e ambas as condições de tratamento foram superiores ao uso exclusivo de aconselhamento relacionado ao uso de drogas.

Em um outro estudo controlado aleatorizado, psicoterapia psicodinâmica de duração moderada (PPDM) de 26 sessões, aplicada em combinação com aconselhamento, também se mostrou superior ao uso exclusivo de aconselhamento no tratamento de dependência a opióides(14). Por volta dos seis meses de seguimento, a maioria dos progressos feitos pelos pacientes que haviam recebido psicoterapia psicodinâmica permaneciam.

No terceiro estudo revisado, PPDM de até 36 sessões individuais foi combinada com 24 sessões de aconselhamento em grupo no tratamento de dependência de cocaína(15-16). O tratamento combinado produziu significantes melhoras e se mostrou tão efetivo quanto a TCC, que também foi combinada com aconselhamento em grupo. Contudo, ambas – TCC e PPDM – e o aconselhamento em grupo não foram mais efetivos do que aconselhamento em grupo exclusivo. Além disso, o aconselhamento individual foi significativamente superior a ambas as formas de psicoterapia no que concerne às medidas de abuso de droga. Com relação às variáveis de resultado/desfecho, psicológicas e sociais, todas as formas de tratamento provaram ser igualmente efetivas.

Finalmente, no quarto estudo revisado, PPCP e TCC foram comparadas quanto à eficácia no tratamento do abuso de álcool. PPCP resultou em melhoras significantes nas medidas de abuso de álcool, que se mantinham estáveis no 15º mês de seguimento. PPCD foi significativamente superior à TCC no que concerne ao número de dias de abstinência e na melhora de sintomas psiquiátricos gerais(17).

Foram também incluídos na revisão de Leichsenring os estudos de efetividade da psicoterapia psicanalítica – controlados e quase-experimentais, isto é, não aleatorizadosc (11). Esses estudos incluem grupos controle, para os quais é assegurada a comparabilidade com o grupo de tratamento psicanalítico por meio de procedimentos de pareamento, estratificação da amostra e controle estatístico. Esses trabalhos representam os estudos de efetividade com alto nível de evidência (nível I). De um modo geral, os resultados desses estudos indicaram que (1) a psicoterapia psicanalítica resulta em efeitos que excedem significantemente os efeitos dos grupos de comparação não tratados ou tratados com “dose baixa”; (2) há evidências de que a psicoterapia psicanalítica é significantemente mais efetiva do que formas mais breves de psicoterapia psicodinâmica; (3) a psicoterapia psicanalítica é significantemente mais efetiva do que a PPCP no que diz respeito a muitas dimensões de resultados para os quais a superioridade da psicoterapia psicanalítica seria esperada, isto é, as mudanças estruturais da personalidade.

É importante ressaltar que esses resultados referem-se ao tratamento de pacientes com transtornos psiquiátricos complexos.

De acordo com os resultados das pesquisas de processo(11), o desfecho em psicoterapia psicodinâmica está associado ao manejo competente das técnicas terapêuticas e ao desenvolvimento de aliança terapêutica adequada. Com relação à psicoterapia psicanalítica, estudos controlados de efetividade – seguindo um desenho quase-experimental de pesquisa – proporcionam evidências de que esse modelo é (1) mais efetivo do que o não tratamento ou tratamento usual, (2) mais efetivo do que formas breves de psicoterapia psicodinâmica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na revisão dos estudos sistemáticos da literatura, conclui-se que a abordagem psicanalítica apresenta comprovado potencial terapêutico quando aplicada aos pacientes com problemas relacionados ao uso de drogas.

Os estudos mostram que, independentemente da abordagem teórica utilizada pelo psicoterapeuta para subsidiar sua intervenção, é preciso considerar que cada paciente é singular e necessita de intervenção específica, de acordo com suas necessidades. A resolutividade de um tratamento também pode ser apreciada pela riqueza de recursos assistenciais que são disponibilizados e pela satisfação auferida pelo usuário. No que concerne aos recursos de tratamento, a literatura preconiza o uso combinado de diversas estratégias de atenção psicossocial, de modo a englobar as múltiplas dimensões que compõem a qualidade de vida em seus domínios: físico, psicológico, social, funcional, ambiental e espiritual. Nesse sentido, as pesquisas evidenciam que a efetividade da psicoterapia é potencializada quando combinada com tratamento psicofarmacológico e outras modalidades de intervenção psicossocial(5).

A abordagem adotada oferece tão-somente um conjunto de balizas teóricas e técnicas que o psicoterapeuta, por meio de seu engenho, experiência e sensibilidade, deve manejar, ao seu modo e na relação singular que cada paciente estabelece na travessia do processo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 Santos MA. Profissão: terapeuta – Vicissitudes da formação acadêmica e da inserção no mercado de trabalho. In: Melo-Silva LL, Santos MA, Simão JT, Avi MC, et al., organizadores. Arquitetura de uma ocupação. Orientação Profissional: Teoria e Prática. São Paulo: Vetor; 2003. p. 151/72.        [ Links ]

2 Hanns LA. Regulamentação em debate. Ciência e Profissão: Diálogos 2004; 1 (1): 6-13.        [ Links ]

3 Brasiliano S, Knapp P. Tratamento psicoterapêutico. J Bras Dependência Química 2001; 2 (Supl 1): 12-7.        [ Links ]

4 Pechansky F, Woody G, Mercer D, Luborsky L. Psicoterapia individual para dependência química. In: Cordioli AV, organizador. Psicoterapias: abordagens atuais. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1998. p. 381-95.        [ Links ]

5 Woody GE, Mercer D, Luborsky L. Individual psychotherapy. In: Galanter M, Kleber HD, editors. The American Psychiatric Press: Textbook of substance abuse treatment. Washington: American Psychiatric Press; 1994. p. 275-84.        [ Links ]

6 Etchegoyen RH. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artmed; 2004.        [ Links ]

7 Klein M. Sobre o sentimento de solidão. In: Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago; 1991. p. 341/54.        [ Links ]

8 Gossop M. Tratamentos cognitivos e comportamentais para o uso inadequado de substâncias. In: Edwards G, Dare C, editors. Psicoterapia e tratamento de adições. Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997. p. 146/58.        [ Links ]

9 Claire AW. How good is treatment. In: Edwards G, Grant M, editors. Alcoholism: New knowledge and new responses. London: Croon Helm; 1977. p. 279-89.        [ Links ]

10 Leichsenring F. Are psychodynamic and psychoanalytic therapies effective? A review of empirical data. Int J Psychoanal 85; 2005: 841-68.        [ Links ]

11 Frances R, Franklin J, Borg L. Psychodynamics. In: Galanter M., Kleber HD, editors. The American Psychiatric Press: Textbook of substance abuse treatment. Washington: American Psychiatric Press; 1994. p. 239-51.        [ Links ]

12 Woody GE, Luborsky L, McLellan AT, O’Brien CP, Beck AT, Blaine J, et al. Psychotherapy for opiate addicts: does it help? Arch Gen Psychiatr 1983; 40: 639-45.        [ Links ]

13 Woody GE, Luborsky L, McLellan AT, O’Brien CP. Corrections and revised analyses for psychotherapy in methadone maintenance patients. Arch Gen Psychiatr 1990; 47: 788-9.        [ Links ]

14 Woody GE, Luborsky L, McLellan AT, O’Brien CP. Psychotherapy in community methadone programs: a validation study. Am J Psychiatr 1995; 152: 1302-8.        [ Links ]

15 Crits-Christoph P, Connolly B. Alliance and technique in short-term dynamic therapy. Clin Psychol Rev 1999; 19: 687-704.        [ Links ]

16 Crits-Christoph P, Siqueland L, McCalmont E, Weiss RD, Gastfriend DR, Frank A, et al. Impact of psychosocial treatments on associated problems of cocaine-dependent patientes. J Consult Clin Psychol 2001; 69: 825-30.        [ Links ]

17 Sandahl C, Herlitz K, Ahlin G, Rönnberg S. Time-limited group psychotherapy for moderately alcohol dependent patients: a randomized controlled clinical trial. Psychother Res 1998; 8: 361-78.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Manoel Antônio dos Santos
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

Recebido: 16/10/2006
Aprovado: 15/01/2007

 

 

a Um estudo controlado aleatorizado pode responder se um tratamento funciona sob condições controladas, mas não se um tratamento funciona sob condições naturalísticas.
b Essa revisão incluiu apenas os estudos para os quais parece haver um acordo geral de que eles representam modelos de psicoterapia psicodinâmica e somente os estudos de pacientes com transtorno psiquiátrico específico – ou seja, foram excluídos os artigos com amostras heterogêneas – e pacientes portadores de vários transtornos, em comorbidade(11).
c Nos estudos naturalísticos o grupo de tratamento deve provar ser superior à condição do controle/placebo, do não tratamento, ou ser tão efetivo quanto um tratamento já estabelecido.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons