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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.3 n.1 Ribeirão Preto fev. 2007

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Integralidade, na concepção de enfermeiros, da estratégia de saúde da família*

 

Integralidad en la concepción del enfermeros de la salud de la familia

 

Integrality according to family health nurses

 

 

Elexandra Helena BernardesI; Maria José Bistafa PereiraII; Nilzemar Ribeiro de SouzaIII

I Enfermeira, Professora, Mestre da Faculdade de Enfermagem de Passos da Universidade do Estado de Minas Gerais.
II Enfermeira, Professora Doutora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
III Enfermeira, Professora Doutora da Faculdade de Enfermagem de Passos da Universidade do Estado de Minas Gerais.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo identificar quais as concepções atribuídas à integralidade na perspectiva do homem pelos enfermeiros de Saúde da Família (SF). Isso se deu através de abordagem qualitativa, entrevista semi-estruturada, com oito enfermeiros atuantes em equipes de SF numa cidade de Minas Gerais. A análise foi orientada pela técnica de análise temática. Os resultados evidenciam que a integralidade, sob a perspectiva do homem, apareceu, na maioria das vezes, relatada e compreendida de maneira memorizada, confusa e até distante de seus significados originais, onde o homem é tomado enquanto máquina. Apenas algumas falas revelaram o homem como um ser integral, indivisível, influenciado pela rede de relações que o conforma.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde (BR), Saúde da família, Enfermagem em saúde comunitária.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo identificar cuales las concepciones atribuidas a la integralidad en la perspectiva del hombre por los enfermeros de la Salud de la Familia (SF). Se efectuó a través de una aproximación cualitativa y entrevista semiestructurada con ocho enfermeros de equipos de SF en una ciudad de Minas Gerais, Brasil. El análisis fue dirigido por la técnica del análisis temático. Los resultados evidencian que la integralidad en la perspectiva del hombre apareció la mayor parte del tiempo dicha y entendida de una manera memorizada, confundida e inclusive distante de sus significados originales, considerando el hombre como una máquina. Sólo algunas hablas revelaron al hombre como ser integral, indivisible, influenciado por la red de relaciones que le conforma.

Palabras clave: Sistema Único de Salud (BR), Salud de la familia, Enfermería en salud comunitaria.


ABSTRACT

This study aimed to identify which conceptions Family Health (FH) nurses attributed to integrality in man’s perspective. It was carried out through a qualitative approach, using semistructured interviews with eight nurses working in FH teams in a city in Minas Gerais, Brazil. The analysis was guided by the thematic analysis technique. The results proved that, most of the times, integrality in man’s perspective was reported and understood in a memorized way, confusing and even distant from its original meanings, considering man as a machine. Only some statements revealed man as an integral and indivisible being, influenced by the relationship network he is constituted of.

Keywords: National Health System (BR), Family health, Community health nursing.


 

 

INTRODUÇÃO

A Conferência Nacional de Saúde afirma que os modelos vigentes mantêm caráter assistencialista, sendo pouco capazes de responder às necessidades da população. São modelos curativistas, operados por profissionais muitas vezes despreparados para atuarem com o respeito devido aos direitos do usuário e suas necessidades e com a qualidade necessária. Priorizam mais a doença, gerando expectativa de que a única forma de resolver os problemas de saúde seja tratar a doença medicamentosamente. São modelos privativistas, que praticam arrocho salarial e a precarização das relações de trabalho(1).

A assistência de enfermagem, no contexto do modelo biomédico, está atrelada à medicalização e ao cumprimento de tarefas de vigilância prescritas, ditadas pelos profissionais médicos. Esse modelo supõe que o indivíduo que apresenta algum distúrbio ou tem algum defeito, é doente. A doença está localizada em algum lugar do corpo ou alguma parte da máquina, então, ela pode ser diagnosticada, classificada, ter um curso, um prognóstico e o tratamento feito através de drogas, cirurgias e outros, sempre acrescentando ou tirando algo do corpo(2).

Nesse processo, muito lentamente, a assistência de enfermagem pôde começar a perceber sua verdadeira participação, entendendo que não basta executar tarefas de vigilância, cuidados físicos e técnicos ao usuário, percebendo que poderia atuar também como elemento da equipe terapêutica e, através de suas atividades, ajudar o usuário a enfrentar suas dificuldades(2).

Algumas imperfeições do modelo vigente têm raízes centradas na racionalidade científica moderna, caracterizada pela fragmentação da natureza e do próprio homem. Esse é dividido em partes que, progressivamente, são vistas pela ciência como peças, infinitamente fragmentáveis, permitindo que a razão seja hierarquicamente superior e separada das paixões, dos sentimentos e dos sentidos(3).

Assim, partindo do modelo biomédico e do tratamento ao indivíduo enquanto objeto, máquina, é atribuído um sentido à integralidade relacionada ao movimento de medicina integral que, em linhas gerais, criticava os aspectos dos profissionais médicos ao adotarem, diante de seus pacientes, atitude cada vez mais fragmentária e por estarem inseridos em um sistema que privilegiava as especialidades médicas, construídas em torno de diversos aparelhos ou sistemas anátomofisiológicos. Isso significava a possibilidade do paciente ser apreendido de forma reducionista, pelas suas dimensões exclusivamente biológicas, em detrimento das considerações psicológicas, sociais e outras, uma vez que o conhecimento médico nas várias especialidades ressaltava apenas a dimensão biológica(4).

Para a medicina integral, a integralidade teria a ver com atitude dos profissionais de saúde que seria desejável, que se caracterizaria pela recusa em reduzir a pessoa à condição de objeto, de aparelho, ou sistema biológico, que, supostamente, produz o sofrimento e, portanto, a queixa dessa pessoa(4).

Nessa direção, a integralidade refere-se tanto ao homem quanto à organização do sistema de saúde, reconhecendo-se que cada qual se constitui numa totalidade, membro de uma comunidade; as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, da mesma forma, assim como as unidades constitutivas do sistema se configuram também um todo indivisível, capazes de prestar assistência integral(5).

A integralidade, não é somente um princípio do Sistema Único de Saúde (SUS), constitucionalmente definido. Ela é como uma bandeira de luta, parte de uma imagem objetivo**, um enunciado de algumas características do sistema de saúde, de suas instituições e de suas práticas que são consideradas, por alguns, desejável. A integralidade ainda é apontada como tentativa de falar de um conjunto de valores pelos quais vale lutar, por se relacionar ao ideal de uma sociedade mais justa e mais solidária(4).

No contexto da Saúde Mental, percebe-se, desde 1991, através de regulamentos da Política Nacional de Saúde Mental(6), que a integralidade é definida como componente obrigatório dessa política, tanto no que se refere à reorientação da assistência oferecida, quanto à estruturação da equipe que desenvolverá tal assistência.

Assim, também, defende-se, aqui, a necessidade de se pensar a saúde com outras feições sócioculturais, no que diz respeito à formulação, distribuição e organização dos serviços, onde a integralidade em saúde deve ser entendida no sentido ampliado de sua definição legal(7).

Dessa maneira, torna-se oportuno, nesse momento, refletir sobre as concepções de integralidade, com o intuito de identificar quais aquelas atribuídas à integralidade na perspectiva do homem pelos enfermeiros, membros de equipes de Saúde da Família (SF).

 

METODOLOGIA

Para responder ao objetivo proposto neste estudo descritivo, utilizou-se a abordagem qualitativa, que se torna importante para avaliar as políticas públicas e sociais, tanto sob o aspecto de sua formulação, aplicação técnica, quanto dos usuários a quem se destina, bem como compreender o universo de significados, motivos, aspirações, concepções, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundos das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis(8). Como instrumento de coleta de dados, optou-se por utilizar a técnica de entrevista semi-estruturada.

O projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto para revisão dos aspectos éticos do estudo e conseqüente autorização para a realização, segundo a regulamentação de pesquisas em seres humanos(9).

O desenvolvimento deste estudo teve como local um município no interior do Estado de Minas Gerais, que contava, no momento do estudo, com 17 equipes de SF atuantes, cobrindo aproximadamente 72% da população total.

Os sujeitos foram constituídos por oito enfermeiros que atuavam em equipes de SF no respectivo município, tendo como outro critério para inclusão a aceitação em participar livremente do estudo. O sigilo e o anonimato desses participantes foram respeitados através da identificação dos recortes das falas, por nomes de flores, de acordo com suas escolhas.

A análise dos dados foi sistematizada conforme a técnica de análise temática, proposta por Minayo(8). Na operacionalização dos dados, seguiu-se as seguintes etapas: ordenação, classificação e análise final, que encaminhou à identificação das unidades de significados.

 

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Apresentando os sujeitos

Acreditando que a construção de concepções passa por questões de formação, de experiências que o sujeito vai construindo através de saberes, dúvidas, reflexões, realizar-se-á neste momento, rápida apresentação dos oito enfermeiros que se constituíram em sujeitos deste estudo, no sentido de se conhecer quem fala e de onde fala.

As características sociodemográficas e profissionais desses enfermeiros estudados revelaram que, nesse grupo, predominou a faixa etária de 25-30 anos, tempo em que exerciam a profissão, quatro com menos de três anos, dois entre quatro e seis anos e dois com tempo superior a seis anos. Quanto à formação profissional, três possuíam apenas graduação, outros dois estavam cursando especialização em Administração Hospitalar e Gestão em Serviços de Saúde e outros três já haviam concluído o curso de especialização, lato sensu, em áreas diversas: Administração em Serviços Hospitalar e Saúde Pública, Saúde Coletiva e Terapia Intensiva Infantil. Quanto à experiência profissional, todos tinham realizado estágios extracurriculares durante a graduação em diferentes áreas e após a graduação, antes de entrarem na Estratégia de Saúde da Família (ESF), um havia atuado junto à unidade básica de saúde, outros quatro haviam tido experiências hospitalares e com supervisão de estágios ou docentes de cursos técnicos, e outros três haviam iniciado diretamente em equipes de SF. Quanto ao recebimento de capacitação, antes de entrarem na ESF, somente dois enfermeiros haviam recebido e, após a entrada, apenas um outro recebeu.

Definindo integralidade

Através dos achados, percebe-se que, entre as falas dos enfermeiros, há a presença de dificuldades de abordarem essa concepção e de distinguir esse princípio da universalidade, às vezes aparecendo um pouco confuso, disperso, em suas abordagens.

[...]No caso, significa, né, que é o direito integral da pessoa, né? Que possa... ser correta, então é... a respeito da nossa! Assim! Do nosso trabalho a gente eu... não sei assim, pra mim tá um pouco confuso e então pra mim tá um pouco assim disperso esse princípio, sabe? (Violeta).

[...]Então, eu acho que é um atendimento pra todos, também indiferente de tudo. Aí entra, engloba, eu falo que tá englobando tudo (Rosa).

[...]Integralidade? Ai meu Deus, que eu lembre disto! (Suspirou). Acho assim... Essa integralidade é tentar resolver o máximo de problemas (Azaléia).

Concepção fragmentada

A concepção de integralidade na perspectiva do homem apareceu de forma fragmentada, justaposta, cujos aspectos biológicos e psicológicos são somados. Ela é revelada por depoimentos que indicam predominância de uma percepção biologicista, linear, pautada numa formação mecanicista, tecnicista e reducionista.

[...]um atendimento que eu falo assim, que eu peço, com muita educação, o povo tá muito carente, nem é tanto a doença, é mais, eles tão precisando mais de psicólogo do que realmente passar pelo médico, uma conversinha com a enfermeira, também quebra muito o galho e com a própria equipe (Rosa).

Muitas vezes há valorização do biológico, da fragmentação e uma escuta realizada por um profissional que não seja da área especializada (psicologia) é tida como quebra-galho.

É apontado como causa disso o grande desenvolvimento tecnológico, o aumento das subespecialidades e o crescimento da medicina biológica, onde o enfermeiro torna-se, cada dia mais, tecnicista como se pode observar na maioria das instituições de saúde da atualidade, onde, também, o ensino da enfermagem ainda continua voltado para atender esse sistema, mantendo viva a dicotomia mente/corpo(2).

Generalização do homem como um todo

Além da concepção de integralidade como a soma biopsicológica, observa-se que a complexidade dos vários sentidos da integralidade na perspectiva do homem é reconhecida, no entanto, em alguns discursos, como um todo, como um ser visto em seus aspectos biopsicossociais.

[...]Integralidade eu acho que... é o atendimento, no geral mesmo, tanto condição social, que eu acho que o nosso maior problema aqui é a doença social, que a gente fala, pobreza, é... talvez a falta de informação (Margarida).

[...]a integralidade é olhar o indivíduo como um todo, eu penso assim, olhar todas as necessidades dele é... física, psicológica, social (Pingo de Ouro).

Essa concepção é marcante e apareceu com certo automatismo, como marca lingüística, uma generalização da concepção, porém, não apareceu acompanhada de explicitação clara, que faça sentido operacional, com valorização da necessidade e participação do usuário. Esses achados podem indicar possível memorização da concepção sem articulação com a prática.

Concepção articulada da integralidade

Uma concepção mais elaborada do princípio da integralidade na perspectiva do homem é revelada no discurso do enfermeiro Girassol, que aponta para a visão de um ser indivisível, influenciado pelo seu contexto, por uma rede de relações que o conforma. Nesse discurso pode-se observar uma exposição da visão do todo de forma mais detalhada, explicitada e verbalizada para além da memorização, para a compreensão mais aproximada da complexidade que o ser humano apresenta na sua constituição.

[...]Integralidade a gente pensa assim numa pessoa, no seu biopsicossocial, né? A pessoa vista pelo seu todo, a gente não tem como analisar qualquer paciente aqui simplesmente pelo aspecto biológico, né! Em nível das funções fisiológicas, não é isso. Ele tá envolvido dentro de um sistema, dentro de um contexto social, com as pessoas, né? Dentro de um contexto psicológico, também, né? [...]Não adianta a gente só querer tratar o físico se o seu meio social não tá adequado, se suas relações humanas não estão adequadas, envolve vários fatores aí também, moradia, emprego, né, tudo isso (Girassol).

Nessa concepção, aparece o homem como fonte e centro de valores. Um modelo que vem tentando atuar com integralidade, centrado na pessoa, é o Modelo Humanista, que vem se desenvolvendo desde que existe a preocupação com o homem total, sem a dicotomia corpo-mente. Esse modelo valoriza o indivíduo pelo que ele é independente de sexo, raça, cor, status ou posses materiais. Valoriza o relacionamento estreito, respeitoso, equilibrado e recíproco com o mundo natural. Valoriza as relações interpessoais na família, no trabalho e no mundo, focalizando a pessoa com todas as suas ligações, ou seja, sua história e suas expectativas. Supõe também que uma pessoa é mais adequadamente ativa e produtiva na medida em que conhece a si própria, estando aberta para conscientizar-se de seus sentimentos, atitudes, motivos e que possa reconhecer sua responsabilidade pelos seus atos(2).

A valorização do homem como pessoa é uma premissa básica para o desenvolvimento da atenção integral e humanização no contexto da enfermagem, onde deve haver valorização tanto da pessoa do enfermeiro como da pessoa do usuário. Sendo valorizado como pessoa, o enfermeiro reconhecerá a importância do seu desempenho não apenas para a instituição, mas também para o seu próprio crescimento e sua auto-realização. Terá condições de ver no usuário uma pessoa e através dessa ótica nortear sua conduta profissional(10).

Esclarecendo a concepção de integralidade, tendo como referência o homem, sob a perspectiva do homem

Para se esclarecer a concepção de integralidade (sob a perspectiva do homem), realizou-se a seguinte indagação: ao realizar um exame de prevenção do câncer de colo uterino, ou um atendimento a um outro usuário portador de hipertensão arterial ou diabetes, o que você consideraria como ações necessárias para agir com integralidade?

Homem visto enquanto máquina

Através dos discursos percebe-se a predominância do homem entendido enquanto objeto, máquina, onde as ações são orientadas por necessidades geradas a partir de ansiedades do profissional.

[...]Primeira coisa que eu faço é orientar a cliente, sabe? Vou falar para ela: ‘você vai ficar dois dias sem ter relação sexual’. Se é uma pessoa que nunca fez, se chegar na unidade e se teve relação ontem, eu colho preventivo hoje. Assim, porque eu não posso deixar ela escapar da minha mão, né? Mas se ela vem antes, eu oriento e quando ela chega aqui eu vou fazer o preventivo, eu colho o preventivo, oriento como que vai ser feito, mostro o espéculo, a escovinha, a espátula, sabe? Mostro que é tudo descartável, pra paciente ficar mais segura e faço o preventivo e faço o exame de mama também. Se for uma paciente acima de 40 anos, que nunca fez uma mamografia, sabe? Aí eu já peço. Se não deu nada que eu gosto que faça todo ano, porque o Ministério até preconiza de você fazer dois anos, se der dois normais, passar dois anos sem fazer, eu não acho justo, entendeu? Então eu acho que de 2 em 2 anos é muito tempo. Eu peço pra vir de ano em ano. Porque eu acho que a minha consciência vale mais também (Rosa).

[...]a gente tem uma dificuldade da mulher tá vindo à unidade de saúde, pra tá fazendo esse exame. Então, ela vindo à unidade, eu tento tá trabalhando com câncer de mama, prevenção do câncer de mama, quanto ao auto exame, se tiver algum achado a gente tá encaminhando pra mamografia? [...]O exame e orientações contra DST, eu tento tá englobando, né? Todo contexto do, Programa Viva Mulher, nessa consulta, né, pra poder tá captando essa usuária, né? [...]eu tento passar por igual, as minhas orientações pra todas e tento tá assim capturando ela, né, de todos os lados, nesse contexto (Violeta).

As ações, nesse sentido, são desenvolvidas para tranqüilizar o usuário visando facilitar o cumprimento de atividades de caráter biológico, ou prescritas pelo profissional médico, ou propostas pelos próprios enfermeiros, e mesmo pela unidade de saúde com o objetivo de melhoria de indicadores epidemiológicos.

Em outros termos, observa-se que as necessidades apresentadas são fundamentalmente aquelas do sistema e dos profissionais, uma vez que, nesses contextos, o usuário não existe enquanto pessoa, mas como um objeto da produção.

O profissional fica preso às necessidades biológicas, o que indica coerência com sua formação reducionista, tecnicista, onde o homem é concebido como um objeto, que deve seguir regras, normas, protocolos, perdendo a possibilidade de se expressar.

Nessa concepção, a existência humana passou a ser explicada por conceitos cósmicos, energéticos e outros, emprestados da física, hidráulica e até mesmo de realizações pertinentes às ciências exatas. O que causou aniquilamento e desumanização do homem pelo sistema social, que o torna mero mecanismo desprovido de todo e qualquer sentido existencial(11).

Um outro aspecto observado nos discursos, que pressupõe ainda um entendimento do homem enquanto objeto, é revelado quando o profissional, a priori, pressupõe as necessidades do usuário sem dar escuta. Percebe-se com isso a presença de interação profissional-usuário autoritária, onde somente o profissional toma as decisões (unilaterais), oferecendo os recursos legais e disponíveis.

[...]Esta chegou para uma consulta de enfermagem, da roça, e sentou na minha mesa e eu comecei a fazer a consulta. Num primeiro momento eu pensei que era planejamento familiar, em busca de métodos contraceptivos, tal, preparei até para isto, e ela começou a contar a história dela e... eu fui examinar a mama dela para a gente fazer o exame de prevenção do câncer de mama e ela ‘não!’, e ela começou a chorar compulsoriamente. [...]Ela queria me mostrar que ela estava apanhando, que ela estava sendo violentada, e ela não tinha mais como lidar com esta situação. Além dos hematomas assim e ela estava totalmente afetada psicologicamente, com baixa auto-estima, e com medo, medo, né? De retornar à roça. Por outro lado, ela estava preocupada, porque suas meninas também tinham sido espancadas e tinham ficado, ela tinha pegado um carro pra vir aqui. Aí, na hora o que que eu pensei? Eu tenho que dar o meu recurso, é todo um complexo, como que eu vou liberá-la?. O que que eu fiz, defini a situação, encaminhei, primeiro acalmai, tranqüilizei, falei que ela, não era a primeira e que muitas mulheres passavam por isto, mas que hoje nós estávamos com recursos, favorecendo e assegurando a mulher, né!, e encaminhei ela para o pronto-socorro para poder fazer um BO e para a delegacia da mulher. Então ela saiu daqui orientada (Tulipa).

Há certa tendência para impor pontos de vista do profissional e corrigir o que se acha errado ou incorreto. Entretanto, isso demonstra profundo desrespeito pela pessoa. Portanto, se se quer ajudar a resolver, de fato, os problemas dos usuários, deve-se entrar delicadamente no seu mundo, procurando não interferir no seu modo de ver e de sentir as coisas e avançar no sentido de alcançar aquilo que, para o outro, esteja confuso e obscuro, evitando apreciações e julgamentos do nosso ponto de vista(2).

Nessa discussão, a questão de ajudar o outro com o reconhecimento que o outro é o mais habilitado que existe para saber e decidir sobre o que mais lhe convém no plano de sua existência. Assim, ajudar não significa nem eliminar, nem diminuir essa qualidade que a pessoa possui, mas criar condições favoráveis para que ela se realize(12).

Não é mais possível esperar o genérico e repetível na assistência de enfermagem, como se busca nas ciências físicas, onde todos os comportamentos são idênticos e onde é absoluta a certeza das leis. No contexto da assistência de enfermagem faz-se necessário reconhecer que é através do relacionamento interpessoal que a pessoa se realiza, porque é no encontro com o outro que emerge a consciência de si próprio e do valor pessoal. Nessa relação, a pessoa torna-se um indivíduo único, no encontro e na comunhão interpessoal. Isso se dá sempre através do outro que lhe fala, o ama, promove-o no sentido de ser mais e não simplesmente ser mais um. São essas relações que tornam a pessoa sujeito e protagonista de sua própria vida e daquilo que lhe dá sentido(10).

Apesar do homem, como indivíduo, poder ser tomado como um dos inúmeros exemplares da espécie humana, ele nunca pode ser considerado como um número, uma peça da totalidade. Pois o homem-pessoa deve ser entendido e tratado de maneira singular, inconfundível, único e irrepetível(10).

Percebe-se, ainda, através das falas que a angústia e medo são abandonados com a valorização da técnica e, quando trabalhados, são com a finalidade de possibilitar melhor intervenção dos procedimentos técnicos, biológicos. O usuário não é reconhecido como sujeito.

Nessa percepção, entretanto, o foco de atenção não deve estar nas técnicas, mas sim nos recursos da equipe terapêutica e principalmente na tendência e na potencialidade que existe no próprio ser humano(2).

Para entrar no mundo dos sentimentos e concepções pessoais de alguém torna-se necessário e imprescindível ouvi-lo, através da mensagem emitida pelas comunicações verbais e não-verbais, onde se buscará uma compreensão do que o outro expressa na direção de alcançar os significados que ele dá, visando entender a realidade como ele a entende(2).

Homem concepção articulada

Nas falas dos enfermeiros Girassol e Margarida, observam-se relatos que apontam para uma visão integral do homem, contextualizada através de relato da sistematização desse princípio. Observa-se a existência de valorização do contexto mais próximo (a família), com co-responsabilidade e participação dos familiares, porém, a participação fica ainda um pouco presa ao cumprimento de prescrições e encaminhamentos do profissional médico, com pouca participação do usuário ou familiares na tomada de decisões.

[...]a gente vai na casa de um hipertenso. Você vai falar pra ele que ele não pode tá comendo comida salgada, que tem que comer mais fruta, verdura, uma alimentação saudável, que ele precisa de fazer caminhada, ter um lazer, né. Sendo que às vezes o que ele tem pra comer é só arroz, é... feijão que ele ganha da vizinha, né. Então, fica um pouco a desejar, porque por trás tem a condição social dele, que impede de dar continuidade a esse trabalho (Margarida).

[...]um diabético! Então, ele vem, a gente presta o atendimento, fornece todas as informações que seriam necessárias. Aí, depois, a gente vai tá conversando, vendo a realidade desse paciente. Uma visita domiciliar, também tá vendo que contexto ele vai estar, a gente vai tá tentando amenizar algum problema que eventualmente ele já traga com ele. A gente vai tá analisando ali na sua residência, que é o seu contexto, com quem ele vive, as relações humanas que ele tem, até a gente vê a nível do psíquico, como tá as relações em casa, com a família, a gente sabe que tudo isto influencia, as disponibilidades de recursos que ele tem. Então, assim em termos de alimentação mesmo, dentro da parte financeira, dentro das condições de tá comprando medicação e no final a gente tá analisando tudo, todo esse contexto, durante o tratamento pra gente poder tá observando, se o tratamento tá tendo, tá tendo um certo efeito, eficácia (Girassol).

O modelo centrado na pessoa promove transformações profundas na organização, administração e ministração da assistência, as quais exigem do enfermeiro uma nova postura, visto que todo o cuidado de enfermagem deve estar voltado para as necessidades que o usuário apresenta(2).

Nesse sentido, o desenvolvimento de nova postura deve ser traduzido pelo estabelecimento de relação de ajuda, que seja baseada na interação enfermeiro-usuário, onde o enfermeiro visa ajudar o indivíduo a encontrar suas próprias soluções e a sair mais amadurecido do processo. O enfermeiro deve utilizar sua pessoa como instrumento e poder atuar, dependente ou independente, de maneira compreensiva, colocando o usuário no centro. Dessa forma, poderá ouvi-lo objetivamente, identificar suas necessidades e ajudá-lo a compreender e a encontrar soluções para seus problemas. Assim, o enfermeiro não deverá intervir senão para aumentar a informação do usuário sobre sua própria atividade, ajudando-o a instrumentalizar-se para agir(2).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentro da perspectiva de homem percebe-se que a concepção de integralidade passou por dificuldades de expressão, aparecendo um pouco confusa, dispersa em suas abordagens. Passou também por uma concepção fragmentada, ou justaposta, dos vários aspectos que constitui o homem. O homem nessa perspectiva é tomado enquanto objeto de produção, num enfoque predominantemente biologicista, mecanicista e reducionista, cujas necessidades apresentadas e que revelam ser trabalhadas são fundamentalmente aquelas do sistema de saúde e dos profissionais.

A concepção do homem tomado como um todo também apareceu e foi identificada entre a maioria dos entrevistados, com um certo automatismo, como uma marca lingüística, porém, não apareceu acompanhada de explicitação clara e que faça sentido operacional.

Apenas algumas falas, dentre as várias reveladas, aproximaram da concepção de integralidade tendo como referência o homem como um ser integral, indivisível, influenciado pelo seu contexto, por uma rede de relações que o conforma. Nessa concepção de integralidade, o homem foi tomado como um todo, as concepções foram identificadas de forma detalhada, explicitadas e verbalizadas para além da memorização, para a compreensão mais aproximada do reconhecimento da complexidade que o ser humano apresenta na sua constituição.

Assim, identificou-se que as concepções específicas, na maioria das vezes, têm sido relatadas e compreendidas de maneira memorizada, pouco clara e até distante de seus significados originais. Esses achados remetem à reflexão, em boa medida, que se deve resgatar, aprofundar e rever os projetos, as práticas didático-pedagógicas que vêm sendo utilizadas no processo de formação profissional para o setor saúde, especialmente no que se refere à reorientação da prática em saúde mental, no sentido de que essas tem se dado de maneira tradicional e desarticulada do projeto político, com poucas possibilidades de formar sujeitos sociais com capacidade crítica e propositiva para atuarem com potencialidades, nos espaços sociais, para transformar as organizações das práticas e dos serviços institucionais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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11 Angerami VA. Existencialismo e psicoterapia. São Paulo (SP): Traço; 1984.        [ Links ]

12 Rudio FV. Orientação não-diretiva na educação, no aconselhamento e na psicoterapia. Petrópolis (RJ): Vozes; 1990.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Elexandra Helena Bernardes
E-mail: elexandrah@bol.com.br

Maria José Bistafa Pereira
E-mail: zezebis@eerp.usp.br


Nilzemar Ribeiro de Souza
E-mail: nilzemar@passosuemg.br

Recebido: 15/09/2006
Aprovado: 21/11/2006

 

 

Agradecimento à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, pelo apoio financeiro durante a elaboração da pesquisa.

* Trabalho extraído de dissertação de mestrado intitulada: Princípios do Sistema Único de Saúde: concepção dos enfermeiros de Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade do Estado de Minas Gerais, apresentada ao Programa de Mestrado em Enfermagem em Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo.

** As imagens objetivos funcionam como tal exatamente por abarcar várias leituras distintas, vários sentidos diversos, ou seja, toda imagem objetivo é polissêmica, possui vários sentidos, mas o que é mais importante disso tudo é que a imagem objetivo traz consigo um vasto número de possibilidades de realidades futuras a serem criadas através de nossas lutas, que têm em comum a superação daqueles aspectos que se criticam na realidade atual.

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