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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.17 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2021

https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2021.169597 

ARTIGO ORIGINAL

 

Regulamentação do consumo de Cannabis no Uruguai e suas influências sobre a fronteira brasileira*

 

Regulación del consumo de Cannabis en Uruguay y su influencia en la frontera brasileña

 

 

Diogo Henrique TavaresI,II; Vanda Maria da Rosa JardimI; Beatriz FranchiniI; Heitor Silva BiondiIII; Cândida Garcia Sinott Silveira RodriguesI; Jéssica Stragliotto BazzanI,II

IUniversidade Federal de Pelotas, Faculdade de Enfermagem, Pelotas, RS, Brasil
IIBolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil
IIIUniversidade Federal de Rio Grande, Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr, Rio Grande, RS, Brasil

Autor correpondente

 

 


RESUMO

OBJETIVO: conhecer as influências da regulamentação do consumo da Cannabis no Uruguai sobre o consumo desta substância psicoativa na região de fronteira com o Brasil.
MÉTODO: estudo qualitativo, exploratório e descritivo. Participaram 14 pessoas que usam Cannabis, residentes em uma cidade da fronteira Brasil/Uruguai. Dados coletados por entrevista semiestruturada, analisados através da Análise de Conteúdo.
RESULTADO: as transformações sociais estão relacionadas com a aceitação social do consumo; visualização de pessoas idosas que utilizam a substância e maior interação entre pessoas que usam Cannabis dos países envolvidos. As transformações no consumo estão relacionadas com a possibilidade de se adquirir Cannabis in natura, disponibilidade de variados tipos e subespécies da planta e o fluxo de brasileiros para realizar o consumo no lado uruguaio da fronteira.
CONCLUSÃO: investigar espaços de fusão social, cultural e política, pode servir para reflexão acerca do atual cenário brasileiro, e implementação de ações que busquem salvaguardar os direitos humanos, respeitando a autonomia, e cuidando sobre a perspectiva de saúde.

Descritores: Cannabis; Uruguai; Brasil; Áreas de Fronteira; Saúde na Fronteira.


RESUMEN

OBJETIVO: conocer la influencia de la regulación del consumo de Cannabis en Uruguay sobre el consumo de esa sustancia psicoactiva en la región fronteriza con Brasil.
MÉTODO: estudio cualitativo, exploratorio y descriptivo. Participaron 14 personas que consumen Cannabis y viven en una ciudad de la frontera entre Brasil y Uruguay. Los datos fueron recopilados por medio de entrevista semiestructurada, analizados mediante Análisis de Contenido.
RESULTADO: las transformaciones sociales están relacionadas con la aceptación social del consumo; visualización de personas mayores que consumen la sustancia y mayor interacción entre personas que consumen Cannabis en los países involucrados. Los cambios en el consumo están relacionados con la posibilidad de adquirir Cannabis in natura, la disponibilidad de varios tipos y subespecies de la planta y el flujo de brasileños para realizar el consumo en el lado uruguayo de la frontera.
CONCLUSIÓN: investigar espacios de fusión social, cultural y política, puede servir para reflexionar sobre el escenario brasileño actual e implementar acciones que busquen salvaguardar los derechos humanos, respetando la autonomía y cuidando la perspectiva de la salud.

Descriptores: Cannabis; Uruguay; Brasil; Áreas Fronterizas; Salud Fronteriza.


 

 

Introdução

No início do século XX, as substâncias psicoativas (SPA) foram alvo de uma política proibicionista, liderada pelos Estados Unidos e que colocaram outros países do sistema internacional, inclusive o Brasil, nesta mesma órbita, dando início à chamada "Guerra às Drogas"; mortes; violência e de um mercado bilionário, apresentando uma vertente fundamentada no desentendimento e preconceito, encarceramento em massa e criminalização dos pobres(1).

Entre 2009 e 2016, mais de 20 mil pessoas foram mortas no Brasil em consequência de intervenções policiais, em sua maioria homens jovens e negros(2). Sob esse prisma, o crime que tem uma das maiores contribuições para o encarceramento em massa é o tráfico de drogas, com população carcerária de 17.506 mulheres e 183.077 homens, perdendo somente para o tipo de crime contra o patrimônio, que encarcerou 504.108 (494.994 homens e 9.114 mulheres) no país que conta com 442.349 vagas em seu sistema carcerário(3).

Nesse contexto, destaca-se que as ideias prevalentes sobre os resultados esperados da aplicação das políticas proibicionistas seriam irromper o tráfico, eliminar as substâncias ilícitas, proteger a saúde pública, e atingir a aplicação equânime de políticas públicas, aspectos não alcançados, evidentemente. A literatura identifica a importância de repensar alternativas e indica caminhos para a disseminação e solidificação de possibilidades que tratem com responsabilidade a problemática do uso de SPA e a violência urbana advinda do tráfico(4).

Perante essa conjuntura, as reformas de políticas recentes acerca da regulamentação das SPA, como a Cannabis, têm influenciado o debate mundial sobre as políticas de drogas e outras perspectivas. Indo na contramão desse método de controle da sociedade, Uruguai, Espanha e Colorado, nos Estados Unidos, instituíram modelos de legalização da Cannabis por vias que diferem entre si. No Uruguai a legalização veio por meio de um protagonismo do próprio país, tornando-se o pioneiro no mundo a agir de maneira progressista e autônoma(1).

O Uruguai, país que faz fronteira com o Brasil, regulamentou, através da Lei 19.172/13, o mercado de Cannabis para todo país, resguardando os direitos das pessoas de consumirem a planta, por meio da compra, criação de clubes para plantio e plantação individual(5).

A regulamentação do uso de Cannabis pode transformar o contexto das pessoas que usam esta SPA e os aspectos sociais inter-relacionados com esta prática, tais quais, encarceramento em massa, violência e exclusão social, acessar mais facilmente pessoas que realmente sofrem do uso abusivo de SPA e propor novas perspectivas terapêuticas.

O movimento realizado pelo Uruguai para criar alternativas políticas caracteriza um marco histórico que pode influenciar a vida das pessoas que fazem o consumo desta SPA não somente no próprio Uruguai, como também nos países que se interseccionam com este em suas fronteiras, a exemplo do Brasil. As fronteiras caracterizam-se por serem contextos repletos de particularidades, oriundas dos limites territoriais, políticos e paradigmáticos, onde pessoas de ambos os países interagem no dia-a-dia, obtendo uma identidade sociocultural do povo da fronteira(6). Neste ambiente, ainda inexplorado, pode materializar-se um consumo de Cannabis singular, influenciado pelas perspectivas antagônicas sobre o uso desta SPA existentes nos dois lados da fronteira entre Brasil e Uruguai.

Diante deste contexto, este estudo tem por objetivo conhecer as influências da regulamentação do consumo da Cannabis no Uruguai sobre o consumo desta substância psicoativa na região de fronteira com o Brasil.

 

Método

Estudo qualitativo; exploratório e descritivo(7), extraído da dissertação intitulada "Consumo de Cannabis na fronteira entre o Brasil e o Uruguai: olhar sistêmico e temporal a partir da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano".

Os dados foram coletados em um município brasileiro que faz fronteira com o Uruguai. A escolha dos participantes seguiu os critérios de inclusão: realizar consumo de Cannabis, independentemente do país em que fosse realizado; possuir nacionalidade brasileira ou dupla nacionalidade (Brasil e Uruguai); residir no Brasil; e ter 18 anos ou mais. O acesso aos participantes se deu por meio da abordagem não probabilística denominada "Bola de Neve"(8).

O método possibilitou acessar participantes com características em comum. Em sua maior parte eram: homens, jovens, solteiros, que estavam no mercado de trabalho ou cursando o ensino superior. Moravam com a família, com outros estudantes ou sozinhos. Todos faziam uso de Cannabis de modo recreacional(9). Apenas um participante tinha dupla nacionalidade.

As entrevistas ocorreram em solo brasileiro e em dois momentos: outubro de 2016 e abril de 2017. Foram desenvolvidas após a apresentação dos objetivos da pesquisa e aceite de participação, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

No primeiro momento de coleta, o informante inicial foi indicado pelo serviço de saúde mental do município estudado e, após a sua entrevista, o mesmo indicou o segundo participante, e este o terceiro, dando sequência ao método "Bola de Neve"(8).

No segundo momento de coleta, realizou-se contato com o último participante do primeiro momento de coleta, e este indicou um novo para dar sequência ao método. As duas inserções no campo ocorreram em virtude da dificuldade de encontrar pessoas que, ao realizar uma prática ilegal no Brasil, estivessem dispostas a explanar sobre a temática. Muitos sentiam medo de estarem se expondo aos órgãos de segurança do Estado brasileiro. Como critério de encerramento da coleta de dados, utilizou-se a saturação de dados(10).

A coleta de dados ocorreu por meio do roteiro de entrevista semiestruturado com intuito de atingir os objetivos da pesquisa. As entrevistas tiveram uma duração média de 20 minutos e estavam presentes nos locais (espaços públicos de uso - praças, margens do rio; e particulares - residência dos entrevistados) o entrevistador e o participante. Foram gravadas através de um gravador mp4 e posteriormente transcritas e armazenadas em arquivo pessoal do pesquisador.

A análise de dados foi desenvolvida por meio da Análise de Conteúdo(11), que é composta pelas fases: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados e interpretação.

A pesquisa à qual este estudo está vinculado foi submetida à Comissão de Ética em Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), obtendo parecer positivo sob o número 013/2015 e Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas, por meio do protocolo 1.757.934/2016. Todos os aspectos éticos descritos na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde(12) foram respeitados, sendo que, para preservar a identidade dos participantes, estes foram identificados pela letra "P", referente a palavra pessoa, seguida do número de realização da entrevista: P1, P2, e assim sucessivamente.

 

Resultados

Participaram 14 pessoas que usam Cannabis, sendo 12 do sexo masculino e duas do sexo feminino, com idades que variaram entre 18 e 57 anos. Quanto à escolaridade, um participante possuía o ensino fundamental incompleto, um o ensino médio incompleto, dois o ensino médio completo, cinco o ensino superior incompleto e quatro o ensino superior completo. Das ocupações, quatro exerciam a função de estudante exclusivamente, nove estavam no mercado de trabalho e um aposentado. Sobre o estado civil, 10 eram solteiros, dois referiram serem casados, um viúvo e um divorciado.

Este estudo demonstrou que a regulamentação do consumo de Cannabis no Uruguai motivou transformação de distintos aspectos que envolvem as pessoas que usam SPA na região de fronteira com o Brasil. Estas perpassam elementos socioculturais relacionados ao uso, bem como, aspectos referentes a disponibilidade e formas da Cannabis para consumo e os locais onde esta ação se processa. Estes resultados serão apresentados em duas categorias, sendo: "Transformações nas interações e inter-relações socioculturais no consumo de Cannabis" e "Transformações para o consumo de Cannabis".

Transformações nas interações e inter-relações socioculturais no consumo de Cannabis

A regulamentação do consumo de Cannabis no Uruguai influenciou transformações socioculturais relacionadas a esta prática no Brasil na região de fronteira dos dois países. Os participantes do estudo descrevem que este contexto onde há intersecção da lei brasileira e da lei uruguaia sobre a Cannabis, permitiu a transformação na forma como as pessoas discutem a temática na região, (re)significando o valor simbólico desta SPA, e fazendo com que o diálogo seja introduzido socialmente:

A gente consegue falar tranquilamente sobre maconha na rua. Aquela questão de aceitação social mesmo. E isso é muito legal! (P1); A gente está numa cidade que faz com que a gente discuta essas questões da legalização, e a gente vê que, de certa forma, há esse debate sobre a legalização da maconha para o Brasil. O debate aqui é legalizado (P2).

Desde que o Uruguai regulamentou o consumo da Cannabis, a região de fronteira revelou-se disparadora para transformação relacionada ao estigma social vivenciado pelas pessoas que a usam, trazendo a possibilidade de não se sentirem marginalizadas ao realizarem o consumo da substância, revelando-se um novo valor simbólico atribuído à mesma.

Aqui é mais tranquilo também a questão do fumo, de eu chegar, sentar numa praça para fumar um "beck". Claro que você não tem que jogar na cara das pessoas que você está fumando maconha. Mas também eu não sinto a necessidade de ficar escondida (P4).

Além disso, permitiu maior diálogo acerca da temática e uma nova construção simbólica sobre a Cannabis, com consequente redução do estigma social imbuído ao uso desta SPA, tornando possível a visualização da diversidade de pessoas que fazem uso de outras faixas etárias:

Eu vejo muita gente mais velha usando, gente com 60, 70 anos usando maconha. Conheci muitas pessoas idosas que fumam. E parece que aqui, idosos usando é mais normal, se comparado com outros lugares. Aqui as pessoas aceitam mais a Cannabis dentro de casa. Os idosos que usam também não precisam se esconder (P14);

Pelo fato do Uruguai ter legalizado, aqui se tem diálogo sobre isso, e a gente pode ver pessoas de outras idades fumando também, gente bem mais velha, principalmente (P2).

Foi possível perceber também que, pessoas que usam a SPA, de ambos países, passaram a interagir de forma mais harmoniosa e compartilhar ambientes de uso. Estas transformações, estabelecidas ao longo do tempo, são marcadas pela redução da violência entre as populações e estabelecimento da partilha de insumos voltados ao uso:

O que eu percebi foi que, antes, quando a gente saia do lado brasileiro e ia para a cidade deles [uruguaios] curtir uma festa, não dava certo, porque eles falavam: "tem brasileiro, vamos bater neles". Quando os uruguaios vinham para cá, acontecia a mesma coisa. Tinha uma rivalidade de um país com o outro. Depois que legalizaram a maconha no Uruguai, se tem uma rodinha de castelhano, por exemplo, e eu chego ali e falo: "alguém tem seda?", todos vão te oferecer a seda. Eles já vão ver: "esse brasileiro fuma, é gente boa!", ninguém vai querer confusão contigo, só porque saberem que tu és um usuário também. Diminui muito essas rixas, ficou um povo bem mais harmonioso aqui na fronteira, se respeitando mais [...] vira uma troca! Trocando, tu já conhece as pessoas, uma mão vai lavando a outra [ajuda mútua para realizar o uso] (P12).

Transformações para o consumo de Cannabis

Distintos elementos relacionados diretamente com a forma como as pessoas realizam o consumo de Cannabis na região de fronteira entre Brasil e Uruguai sofreram transformações. Dentre os aspectos destacados pelos participantes, está a inclusão de uma nova apresentação de Cannabis no mercado, que antes era somente de modo processado e prensado, em blocos sólidos, e atualmente também se encontra disponível na fronteira brasileira a forma in natura. Um participante destaca que esta forma de apresentação sem processamento possui maior qualidade e traz menos malefícios ao consumidor. Ao encontro desta fala, P11, participante uruguaio (com nacionalidade brasileira, que morava e trabalhava no Brasil), descreveu esse processo com outras palavras e assim revelaram:

Antes só tinha prensado. Depois que legalizou começou a aparecer maconha pura, boa, barão solto, sem estar prensado. Geralmente vem em safras, isso porque agora tem gente que planta em casa lá (no Uruguai) (P5);

Lo que se ve es que está apareciendo más cogoyo [forma in natura] no el prensado el que te venden, que és porquería. Hoy en día hay mucho más cantidad, hace menos mal [...] Se encuentra por un precio más caro un producto más natural, te hace menos daño. Tiene más THC (P11).

Outras transformações ocorreram na fronteira, influenciadas pela regulamentação da substância referida no país vizinho: essas referem-se à disponibilidade de distintas subespécies de Cannabis, que se diferenciam nos efeitos. Por estar em um contexto onde há a disponibilidade de diferentes subespécies de Cannabis, estes podem escolher qual delas será consumida, almejando distintos efeitos trazidos.

Depois que legalizaram no Uruguai, eu já fumei maconha que eu jamais pensei que eu ia fumar na minha vida. Maconha tem várias espécies, mas que aqui no Brasil a gente não encontra. Tem uma espécie, a Purple Haze, que é a roxa, e o efeito é maravilhoso. Já procurei outras também, encontrei numa loja no Uruguai, o efeito é completamente diferente (P4); A gente consegue estabelecer melhor as diferenças através das variedades de maconha e como a maconha é legalizada no Uruguai, tu acabas sabendo melhor a procedência. Então tu sabes o que determinada maconha vai te causar, se tu queres, tu fumas para ficar mais para cima, ou mais relaxado. Com o tempo tu consegues entender o quê de diferente vai acontecer no teu corpo, que tu não vais sentir a mesma coisa se tu fumar maconha de espécies diferentes. Eu consigo identificar os diferentes efeitos (P9); Com a legalização no Uruguai, agora tu encontras muitos tipos aqui. Se tu queres ficar eufórico, ou pensativo, ou sonolento, tu escolhes o tipo que te faz sentir o que tu queres sentir (P10).

As falas dos participantes revelam, ainda, transformações relacionadas à escolha do local de consumo. Como esta prática é ilegal no Brasil, acaba sendo acompanhada de sentimentos de medo e insegurança, o que leva algumas pessoas que usam a optarem em fazer a travessia para o país vizinho, no intuito de consumir despreocupadamente. Todavia, por ser a compra de Cannabis no Uruguai uma prática ilegal para não residentes neste país, esta ação pode levar a pessoa a sofrer sansões dos agentes de segurança pública uruguaios, que em alguns casos, apreendem os brasileiros para obter informações sobre o mercado ilegal uruguaio.

Quando tu atravessa a fronteira para usar lá, parece que sai um peso da tua cabeça. Tu podes acender um baseado, andar tranquilo, que ninguém vai te abordar. Quanto mais tu avanças na fronteira, adentrando o Uruguai, mais tranquilidade tu vai sentindo. Tu tenta te sentir naquela esfera legalizada, mas é difícil tu te desprender do proibido, de onde tu vens. Tu não tens como tu te desenraizar tão facilmente, ainda mais porque tu não sabes como tu vais ser tratado pelos policiais de lá [Uruguai] (P7); Tem amigos meus que foram usar maconha no Uruguai e foram pegos pela polícia lá. Tiveram que implorar para eles [policiais] deixarem eles [usuários] irem embora. Depende do policial, mas fica aquele receio, porque a polícia do Uruguai é outra, é muito mais dura (P8); Quem for lá [lado uruguaio da fronteira], melhor que não fume, porque já tem o bafômetro pra detectar a maconha e é proibido pra gente usar lá (P6).

 

Discussão

Com a nova política de drogas uruguaia, foi possível identificar transformações nos aspectos que perpassam o modo como as pessoas realizam o consumo de Cannabis em suas distintas formas. Os resultados direcionam para ressignificação acerca do valor simbólico atribuído à Cannabis na região brasileira da fronteira, como consequência desse movimento político no país vizinho. Constatou-se que a proximidade com o Uruguai e a realização da travessia de brasileiros diariamente parece originar maior discussão a respeito desta prática e, consequentemente, a diminuição do preconceito e estigma em relação às pessoas que consomem. Este aspecto revela uma nova concepção acerca da Cannabis enquanto símbolo e objeto, que permite visualizar o uso não mais como um comportamento patológico, mas sim como algo aceito socialmente, embora ainda proibido em solo brasileiro.

A construção da patologização do uso de Cannabis na sociedade contemporânea está arraigada na historicidade do uso desta substância e da associação da imagem desta com comportamentos sociais entendidos como desviantes(13). Neste sentido, o critério de normalidade perpassa um julgamento de valor com base na historicidade, que leva à criação de um valor simbólico e a aplicação de um julgamento sobre o comportamento como normal ou patológico, sendo que estas legendas só possuem significado no contexto onde os sujeitos estão inseridos(14).

Nesta perspectiva, o marco temporal trazido pela regulamentação da Cannabis no Uruguai revela-se como propulsor no estabelecimento de uma nova normatividade(14), estabelecida a partir de uma nova referência, a Lei 19.172, de 2013, que regulariza o consumo neste país(5).

As transformações perpassam o abandono da subjetividade produzida, modelada, recebida, consumida e singularizada pelas pessoas da fronteira antes da regulamentação da Cannabis no Uruguai, que era de ilegalidade e marginalização do consumo, para a elaboração de uma nova subjetividade que aceita o uso enquanto comportamento normal. Isso se dá pois este momento é marcado por mudanças que servem para produção de subjetividade. Esta influência orienta e delimita o modo de ser e de interagir com e no contexto, admitindo o uso de Cannabis e permitindo a visualização das pessoas que usam SPA não mais como causadores de problemas sociais.

Deste constructo, afloram novas subjetivações na fronteira Brasil-Uruguai, permeadas pelas discussões e reflexões oriundas das transformações socioculturais trazidas pela regulamentação uruguaia. Nessa lógica, a literatura revela que o estigma está fortemente relacionado com as representações sociais da coletividade, perpassadas pelas concepções de certo e errado. Desprender-se dessas amarras torna-se uma movimentação interna complexa, que implica na desconstrução, enfretamento, aceitação e incorporação de novos conhecimentos pelas pessoas(15).

Como consequência da desconstrução de estigmas, advinda do contato direto da população brasileira com a nova perspectiva uruguaia, a escolha dos locais de consumo também é transformada. O consumo em ambientes privados, habitualmente associado ao fator protetivo, que evita a exposição da pessoa usuária e reduz as chances de abordagens dos agentes de segurança pública, vai dando lugar à possibilidade do uso em ambientes públicos. Isso pode ser reflexo das mudanças trazidas pelo tempo ao significado simbólico da Cannabis e seu consumo na sociedade local, por mais que se tenha a compreensão dos limites territoriais de legalidade e ilegalidade.

Estas características podem estar relacionadas à particularidade do ambiente fronteiriço, marcado pela fusão sociocultural(6). Não somente revelam uma concordância da sociedade brasileira da fronteira acerca das mudanças vividas no Uruguai, indicando que este novo paradigma pode ser aceito com maturidade no Brasil.

O uso em ambientes externos também pode ser entendido como um modo de resistência frente à política de drogas vigente no Brasil, antagônica à experienciada no Uruguai desde 2013. Tal perspectiva busca gerar discussões sociopolíticas com vistas à reelaboração das leis sobre o tema, pautando-se em aspectos científicos, corroborando com movimentos sociais brasileiros, como a "marcha da maconha"(16).

Também podem ser observadas as alterações na forma de exposição do uso por pessoas consumidoras habitualmente escusas, como os idosos. Esta característica pode estar relacionada à ressignificação simbólica atribuída ao consumo de Cannabis, não mais como uma prática criminosa, mas regulamentada, que não mais necessita permanecer sigilosa por essa população. A proximidade territorial dissolve no espaço cultura e política, aflorando nas pessoas que usam Cannabis o sentimento de contemplação das mudanças legislativas do Uruguai, e assim é normalizado práticas não regulamentadas no Brasil.

Enquanto para os jovens o mundo das substâncias psicoativas lícitas e ilícitas deriva-se da curiosidade e busca por identidade, levando-os a buscarem novas formas de se interpretarem, de formarem grupos ou serem aceitos pelos que consideram seus pares(17). O uso por idosos está relacionado ao envelhecimento das pessoas que fazem o consumo há muitos anos(18), ou pela busca dos efeitos terapêuticos da Cannabis descritos pela literatura, tais como a indução do apetite e do sono, maior relaxamento, redução de sintomas álgicos, de ansiedade e depressão(19-21).

Destaca-se que as fronteiras são marcadas, historicamente, pelas disputas territoriais, estabelecendo linhas mutáveis que sofrem pressões de polos opostos e dividem sociedades e culturas(6). Na especificidade da fronteira entre Brasil e Uruguai, essa se caracteriza por diversas fusões e separações ao longo de séculos, sendo que esta historicidade direciona aspectos socioculturais desta região ainda nos dias atuais(22).

Todavia, a permanência de polaridades na região de fronteira entre Brasil e Uruguai contrasta com a existência de aspectos legais e comerciais da região, tais como Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), que estabelece a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, dentre outros aspectos, em alguns países da América do Sul, o que inclui Brasil e Uruguai(23); Decreto nº 5.105, de 2004, que promulga permissão de residência, estudo e trabalho a nacionais fronteiriços brasileiros e uruguaios(24); e o Decreto nº 7.508, de 2011, que estabelece em municípios limítrofes, a articulação interfederativa do sistema de saúde, garantindo o acesso aos serviços a nacionais fronteiriços brasileiros e uruguaios(25). Estes aspectos corroboram para a fusão do povo fronteiriço, sendo uma característica singular para estas regiões(6).

Além disso, a existência de características ou comportamentos comuns entre os dois povos pode ser propulsora da fusão sociocultural, dirimindo polaridades entre os dois lados da fronteira ao longo do tempo. Esse aspecto ganha maior proporção quando a semelhança existente entre as pessoas que compõem os grupos sociais é o consumo de Cannabis, sendo a prática do uso da planta para fins recreativos malvista em muitas sociedades contemporâneas(26).

Os dados revelam que a verossimilhança existente entre as pessoas brasileiras e uruguaias que utilizam Cannabis, que é o consumo, torna-as mais próximas, fazendo com que se respeitem e protejam-se mutuamente. Nos espaços de socialização, como praças e festas, onde ocorre o consumo de Cannabis, o ato de iniciar seu uso sinaliza a possibilidade de uma interação amigável entre pessoas até então desconhecidas, dando início a uma relação de troca de informações, instrumentos para consumo e experiências em relação aos tipos de Cannabis e efeitos(27), ou seja, no espaço de fronteira com o Uruguai, o contexto de não criminalização do consumo favorece a relação interpessoal entre aqueles que usam a planta, ainda que ele não seja permitido no Brasil.

Na especificidade do Brasil, a SPA comercializada pelo tráfico é frequentemente adulterada e se apresenta em blocos sólidos prensados que, para serem consumidos, precisam ser esfarelados. Estudos que analisaram amostras de Cannabis apreendidas no Brasil revelam adulterações por meio da adição de substâncias como lidocaína; folha de tabaco; cocaína(28-29); crack(30); alumínio, cacos de vidro, sílica(31). A adição destas substâncias visa aumentar o volume da Cannabis prensada, melhorar o rendimento e lucratividade na venda, bem como potencializar efeitos psicoativos(30).

Em contrapartida, a Cannabis ofertada no Uruguai apresenta-se na sua forma natural, em folhas desidratadas, trituradas e sem aditivos, sendo esta condição reflexo da Lei 19.172, de 2013, que permitiu ao cidadão uruguaio o cultivo em domicilio de até seis pés de Cannabis, a associação aos clubes de cultivo, ou a aquisição em farmácias, após o devido cadastramento do mesmo ao Instituto de Regulación y Control del Cannabis (IRCCA)(5).

Todavia, a lei uruguaia não versa a respeito da comercialização de Cannabis proveniente deste país para pessoas não cadastradas ou para não residentes do Uruguai, ou o transporte desta substância para fora deste solo e posterior venda. Tal situação pode ser alimentada por pessoas que usam sua cota de cultivo ou compra que são permitidos pelo Estado para a venda a terceiros, ou para presentear consumidores residentes no Brasil com os quais possuem laços afetivos.

A existência do cultivo de Cannabis ilegal no Uruguai pode estar relacionada à resistência dos cidadãos uruguaios em se cadastrar para realizar a prática de modo legalizado, devido ao medo e à repressão existentes antes da regulação(32), aspecto que será gradativamente transformado frente às mudanças culturais advindas do tempo.

Evidencia-se que a Cannabis uruguaia ofertada aos brasileiros possui um valor superior se comparada à SPA habitualmente disponível no Brasil. Constatou-se que a razão da diferença de preço estaria relacionada com a pureza da planta, já que o produto ofertado no Brasil é adulterado e prensado com outras substâncias que aumentam seu volume e mudam seus efeitos, reduzindo o valor agregado. Não somente, a regulação da substância no Uruguai permitiu ao Estado agregar imposto sobre o produto comercializado, tornando-o mais oneroso, se comparado ao brasileiro.

Após a regulamentação do consumo no Uruguai, foi possível brasileiros que residem na fronteira acessarem a substância provinda deste país in natura, o que torna possível a diferenciação das características e subespécies existentes da planta, não adulterada ou processada. A Cannabis pode ser cultivada em vários locais do mundo, mas naturalmente tem características de cultivo em lugares com clima tropical e temperado, sendo os locais regiões endêmicas de espécies de linhagens puras. Dentre as espécies mais visadas pela ciência estão a Cannabis sativa, com grande efeito psicoativo devido aos altos teores de Tetrahydrocanabinol (THC); indica, com baixo teor de THC; e a ruderalis, não utilizada para fins psicológicos(33).

Estas múltiplas variações viabilizaram a experimentação dos efeitos, preditos pela escolha da Cannabis a ser utilizada. Como relatado por participante, foi permitido obter acesso à subespécie Purple Haze. Esta possui origem colombiana, com variações mistas, sativas e indicas. Possui cor por vezes arroxeada, quando sujeita a temperaturas baixas ao extremo, e traz efeitos de euforia, maior disposição para realizar atividades, como também melhor desempenho de criatividade e alegria(33).

A regulamentação do consumo no Uruguai impulsionou a existência de um fluxo de travessia da fronteira por brasileiros para realizar o uso em solo uruguaio. A Lei 19.172, de 2013, estipula que a compra esteja permitida somente aos consumidores de Cannabis residentes no Uruguai e o translado de brasileiros ao país vizinho para comprar a Cannabis pode implicar em sanções legais do país(5).

Os brasileiros que atravessam a fronteira para usar a Cannabis sentem-se parcialmente protegidos pela lei uruguaia no que se refere aos aspectos socioculturais associados ao uso da Cannabis(34). Destaca-se que isso ocorre pois, no dia-a-dia na fronteira, ambas populações se fundem, compartilhando o comércio e serviços, interlaçando costumes. Nesta fusão social, as questões jurídicas extrapolam os limites territoriais, e as populações passam a compreender aquele espaço enquanto único, singular e disposto das mesmas regras, fazendo com que o cidadão residente da fronteira se entenda como pertencente a ambos os países, adquirindo uma identidade própria(6), que não se caracteriza pelo lado brasileiro ou uruguaio, mas sim pela própria fronteira, tensionada e transformada pelas realidades dinâmicas dos dois polos.

Todavia, demonstra-se que após a regulamentação da produção, comércio e consumo de Cannabis, as ações policiais uruguaias em relação ao uso de SPA tornaram-se mais ostensivas, visando coibir o mercado ilegal e o consumo por pessoas não cadastradas ao IRCCA(32).

Cabe destacar que as transformações materializadas nesta nova subjetividade acerca da Cannabis não podem ser compreendidas como matéria estática. Isto se dá pois ela se modifica, se atualiza ou se extingue ao longo dos processos históricos que estão ocorrendo na fronteira, considerando as necessidades sociais contemporâneas(35). Assim sendo, as transformações continuam dinâmicas e mutáveis.

Em contraponto com os resultados obtidos, destaca-se que há evidências de prejuízos físicos, psíquicos e sociais atribuídos à utilização desta SPA, principalmente na adolescência(36). Parte técnica da saúde e sociedade avalia negativamente as novas propostas legislativas referentes ao uso de drogas ilícitas. Julgam-se educação, saúde e segurança como inábeis para enfrentar mudanças semelhantes às executadas no Uruguai. E, por outra parte, teme-se pelo aumento da dependência química, deficiências e patologias psiquiátricas(37). Todavia, impactos na violência, preconceito, diálogo, tolerância social e também na saúde foram tidos como benefícios advindos da nova lei uruguaia.

 

Conclusão

Este estudo permitiu conhecer as influências da regulamentação da Cannabis no Uruguai sobre o consumo na fronteira com o Brasil, considerando o marco regulatório uruguaio. As transformações sociais levantadas referem-se ao maior diálogo sobre a temática, o que leva à aceitação social do consumo, diminuição de estigma social sofrido pelas pessoas consumidoras, visualização da diversidade de usuários de outras faixas etárias e interação harmoniosa entre as populações dos dois lados da fronteira.

Além disso, foi possível identificar transformações importantes no consumo brasileiro de Cannabis, da substância produzida no Uruguai, país em que a nova política de drogas possibilitou a aquisição da SPA in natura e sem processamento e adulterações; disponibilidade de distintas subespécies e tipos para a aquisição e o translado de brasileiro para realizar o consumo em solo uruguaio.

O método "Bola de Neve" demonstrou-se apropriado para aproximação de pessoas que realizam uma prática ilegal no Brasil. Todavia, este pode trazer homogeneidade amostral, o que leva à obtenção de resultados uniformes, devido ao acesso aos participantes ocorrer pelos mesmos grupos sociais, sendo assim uma limitação desta pesquisa.

Evidenciou-se a dinamicidade dos aspectos sociais e políticos que estão relacionados ao consumo de Cannabis; compreende-se que o estudo das transformações trazidas aos ambientes de intersecção de políticas divergentes torna-se imprescindível. Este pode servir para maior reflexão acerca da atual política brasileira, com vistas ao amadurecimento das discussões na sociedade, redução das ações coercitivas e de repressão social descontextualizadas e não efetivas, e a implementação de ações que busquem salvaguardar os direitos humanos, respeitando a autonomia e o direito de escolha das pessoas, e cuidando das mesmas, na perspectiva de saúde.

 

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Autor correspondente:
Diogo Henrique Tavares
E-mail: enf.diogotavares@gmail.com

Recebido: 11.05.2020
Aceito: 04.08.2020

 

 

Contribuição dos autores
Concepção e planejamento do estudo: Diogo Henrique Tavares, Vanda Maria da Rosa Jardim, Beatriz Franchini.
Obtenção dos dados: Diogo Henrique Tavares.
Análise e interpretação dos dados: Diogo Henrique Tavares, Vanda Maria da Rosa Jardim, Beatriz Franchini.
Redação do manuscrito: Diogo Henrique Tavares, Vanda Maria da Rosa Jardim, Beatriz Franchini, Heitor Silva Biondi, Cândida Garcia Sinott Silveira Rodrigues, Jéssica Stragliotto Bazzan.
Revisão crítica do manuscrito: Diogo Henrique Tavares, Vanda Maria da Rosa Jardim, Beatriz Franchini, Heitor Silva Biondi, Cândida Garcia Sinott Silveira Rodrigues, Jéssica Stragliotto Bazzan.
Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Conflito de interesse: os autores declararam que não há conflito de interesse.
*Artigo extraído da dissertação de mestrado "Consumo de Cannabis na fronteira entre o Brasil e o Uruguai: olhar sistêmico e temporal a partir da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano", apresentada à Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

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