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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.21 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2021

https://doi.org/10.12957/epp.2021.62690 

Estudos e Pesquisas em Psicologia
2021, Vol. 03. doi:10.12957/epp.2021.62690
ISSN 1808-4281 (online version)

 

PSICOLOGIA SOCIAL

 

As Tecnologias Relacionais e a Produção de Itinerários Terapêuticos em Saúde Mental

 

Pedro Henrique Moraes*; Gustavo Zambenedetti**
Universidade Estadual do Centro-Oeste - Unicentro, Irati, PR, Brasil
Endereço para correspondência

 

RESUMO

No campo da saúde existe uma disputa paradigmática, na qual modelos teórico-práticos coexistem, ora possibilitando um cuidado psicossocial, ora reproduzindo um tratamento enclausurante. O objetivo desse estudo foi cartografar os itinerários terapêuticos de pessoas com sofrimento psíquico, analisando as capturas e potencialidades da rede de saúde. Foi realizada uma pesquisa sob a perspectiva cartográfica. Teve como participantes quatro pessoas com sofrimento psíquico, com histórico de internação psiquiátrica, usuárias de uma Unidade Básica de Saúde de um município de médio porte da região sudeste do Paraná. Os resultados e a discussão são apresentados em três linhas de análise, nas quais são apresentados os itinerários terapêuticos dos participantes, discutindo-se aspectos relativos à conformação de territórios existenciais e a função das tecnologias relacionais no acionamento das redes de saúde. Enquanto analisador, o itinerário evidencia tensões entre distintos modelos de atenção em saúde, assim como tensões entre a proposição de políticas públicas e seus modos de operacionalização cotidiana. Concluímos que, para que ocorra a transição paradigmática de um modelo hospitalocêntrico para outro, que tenha como foco a Atenção Básica e o território, necessita-se investimento na operacionalização de tecnologias relacionais.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde, itinerário terapêutico, saúde mental, modelos de assistência à saúde.


 

Relational Technologies and the Production of Therapeutic Itineraries in Mental Health

 

ABSTRACT

There is a paradigmatic dispute in the healthcare field, with the coexistence of different theoretical-practical models, sometimes enabling psychosocial care, other times reproducing a cloistering treatment. The objective of this study was to map therapeutic itineraries of people with psychological distress, analyzing catches and potentialities in mental health care of the health network of a medium-sized city. A survey was conducted from the cartographic perspective. Survey participants were four people with psychological distress and psychiatric hospitalization history, users of a Primary Health Care Unit in the southeast region of Paraná. Results and discussion are presented in three lines of analysis, in which participants' care itineraries are presented, discussing aspects related to the formation of existential territories as the role of relational technologies in the activation of health networks. In order to analyse events, we use therapeutic itineraries to highlight the tensions between health care models, as well as tensions between the proposition of public policies and their daily operation modes. We conclude that paradigmatic transition from one hospital-centered model to another, focused on Primary Care and territory, requires investment in the operationalization of relational technologies.

Keywords: Sistema Único de Saúde, therapeutic itinerary, mental health, healthcare models.


 

Tecnologías Relacionales y la Producción de Itinerarios Terapéuticos en Salud Mental

 

RESUMEN

En el campo de la salud existe una disputa paradigmática, donde conviven modelos teórico-prácticos, a veces permitiendo la atención psicosocial, otras veces reproduciendo tratamientos de clausura. El objetivo de este estudio fue mapear los itinerarios terapéuticos de personas con sufrimiento psíquico, analizando capturas y potencialidades de la red de salud. Se realizó una encuesta desde la perspectiva cartográfica. Los participantes fueron cuatro personas con sufrimiento psicológico y antecedentes de hospitalización psiquiátrica, usuarios de una Unidad Básica de Salud en un municipio de tamaño mediano de la región sureste de Paraná. Los resultados y la discusión se presentan en tres líneas de análisis, donde se presentan los itinerarios terapéuticos de los participantes, discutiendo aspectos acerca de la formación de territorios existenciales y el rol de las tecnologías relacionales en la activación de las redes de salud. Como analizador, el itinerario resalta las tensiones entre distintos modelos de atención, así como entre la propuesta de políticas públicas y su funcionamiento. Concluimos que, para la transición paradigmática de un modelo hospitalocéntrico a otro, que se centra en la Atención Primaria y el territorio, se requiere una inversión en la operacionalización de las tecnologías relacionales.

Palabras clave: Sistema Único de Saúde, itinerario terapéutico, salud mental, modelos de atención de salud.


 

 

Os acordos sociais materializados na Constituição Federal de 1988 subsidiaram e abriram espaço para o debate sobre a temática da saúde em território nacional, propiciando a organização e construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar de a saúde ter sido estabelecida como um direito e como um dever do Estado, o SUS é um processo em construção, uma vez que há acontecimentos que impedem seu pleno desenvolvimento (Campos, 2007). Na conjuntura atual, as medidas de ajuste fiscal têm impactado no risco de desmonte da Rede de Atenção à Saúde. A Emenda Constitucional n° 95/2016, que instituiu um Novo Regime Fiscal limitando os gastos em saúde por até 20 anos no país, decorrente da PEC 55/2016, é uma das expressões dessa conjuntura, desconsiderando as necessidades sanitárias da população e submetendo a saúde à lógica econômica (Reis, Sóter, & Furtado, 2016).

Nesse cenário, a Reforma Psiquiátrica e a Reforma Sanitária se caracterizam como um contínuo de luta e resistência contra os interesses hegemônicos que direta e indiretamente influenciam na implantação de políticas sociais (Yasui & Rosa, 2008). Nesse campo de embate entre distintos interesses, discursos e saberes há, conforme salientam Yasui e Rosa (2008), um antagonismo em termos paradigmáticos de entendimento sobre a questão da saúde e da saúde mental. Para os autores, existem dois paradigmas: de um lado o Paradigma Psicossocial (contra-hegemônico), que visa ao acolhimento do sujeito em adoecimento psíquico, preconizando um atendimento que entenda a complexidade da relação sujeito-doença e a singularidade no cuidado; e do outro lado o Paradigma Hospitalocêntrico Medicalizador que, baseado na Psiquiatria estabelecida nos séculos passados, entende o processo de adoecimento basicamente por vias orgânicas e de suas sintomatologias, intervindo majoritariamente por vias medicamentosas (Yasui & Rosa, 2008).

Na materialização desses paradigmas, compreendemos que há expressão de modos de se relacionar com a vida e a existência humanas na sociedade. Partimos do pressuposto, entretanto, de que não podemos contar apenas com a dualidade descrita para a compreensão desse jogo de forças, pois a disputa de modelos teórico-práticos diz respeito a um processo de perpétua ramificação de regimes de verdade. Para tentarmos nos afastar de um dualismo que distingue o bom do mau modelo, Franco (2006) nos alerta que a organização da rede básica de saúde do SUS possui excessivas normatizações, regras de ação, seriação para atendimento etc., mas constitui-se também na micropolítica de trabalho, como processo imanente. Ou seja, há rede rizomática no processo de trabalho em saúde, como também há capturas e práticas manicomiais.

Compreendemos, neste sentido, a natureza como imanente, rizomática, composta por agenciamentos, vínculos e rupturas, que tende à expansão contínua, tratando-se de um "modelo que não pára de se eregir e se entranhar, e do processo que não para de se alongar, de romper-se e de retornar" (Deleuze & Guattari, 1995, p. 14). Rizoma, distinto de árvores ou raízes arborescentes, é raiz que conecta e une seus pontos, pondo em jogo verdades, signos, sem deixar-se conduzir nem ao Uno e nem ao Múltiplo (Deleuze & Guattari, 1995).

Os princípios e diretrizes da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica expressam linhas de fuga que resistem ao Paradigma Hospitalocêntrico/Medicalizador, contudo, no trabalho cotidiano, pode também se materializar como modelo hierárquico de saberes com centros de significância e de subjetivação, radículas e formações de captura de código. Com o objetivo de garantir o aprimoramento das políticas em saúde coletiva e concretizar a transição paradigmática em âmbito micro-sanitário e macro-sanitário, Campos (2007) afirma que é necessária a construção de um novo modelo assistencial com a constituição de novas redes de serviços substitutivos para os manicômios. Além disso, outras condições envolvem a produção de um cuidado humanizado através de estratégias para o fortalecimento das redes primárias, tecnologias e práticas que estejam comprometidas com a cidadania dos usuários (Mângia & Muramoto, 2008).

Em consonância com essa proposta de transição, Merhy (2002) aponta que um caminho possível para a reconfiguração do modelo biomédico hegemônico é através de um processo coletivo, no contexto do trabalho em equipe nos dispositivos de saúde, que busque entender o usuário como parceiro na construção de seu próprio projeto terapêutico. Segundo Merhy (2002), os serviços de saúde utilizam três tipos de tecnologias de cuidado distintas: tecnologias duras (constituídas por equipamentos, máquinas, testes, normas), tecnologias leve-duras (os saberes estruturados que operam no processo de trabalho em cada profissão) e tecnologias leves ou relacionais (responsáveis pela construção de vínculos relacionais que se materializam no encontro entre usuário e profissional). As tecnologias relacionais, nesse sentido, dizem respeito ao modo como são efetivados os vínculos entre usuários e profissionais, quais os lugares ocupados por ambos, quais os níveis de protagonismo e responsabilização que assumem.

A partir da valorização da singularidade dos usuários, o objetivo dos tratamentos ofertados passa a visar às suas necessidades, exigindo a criação de laços entre profissionais da saúde e usuários, instaurando-se um "cuidado que cuida" e que não se torna burocratizado (Mângia & Muramoto, 2008). Esses laços já são iniciados, como demonstram Pinto et al. (2011), na entrada dos usuários na rede de saúde (via Estratégia Saúde da Família, Hospitais, trabalho, Centro de Atenção Psicossocial, etc.) através do itinerário terapêutico de cada pessoa. Para Mângia e Muramoto "... itinerários terapêuticos podem ser considerados recursos importantes para compor a construção de projetos terapêuticos cuidadores que considerem como elementos o conjunto de recursos, experiências e significados de cada pessoa e que tenham como foco central seu contexto real de vida" (Mângia & Muramoto, 2008, p. 181).

Diante dessa conjuntura, o entendimento de como ocorre o engendramento do itinerário terapêutico pelas pessoas é de suma importância para a articulação da Rede de Atenção à Saúde a partir de sua micropolítica. Para a compreensão de como vem ocorrendo a transição paradigmática descrita, nos baseamos em uma abordagem micropolítica da realidade. A micropolítica é ação transformadora do social, potência que revela a complexidade das forças que produzem a existência humana (Rocha, 2003). Cabe destacar, entretanto, que não é ação limitada apenas ao espaço e ao tempo experienciados pelos sujeitos, muito menos é parcela pouco significativa na estrutura macropolítica ou por ela determinada. A micropolítica enquanto campo de experiência humana é campo de produção de sentidos sobre a vida (Rocha, 2003).

Os estudos sobre o itinerário de cuidado têm por objetivo interpretar processos de procura por formas de tratamento (Alves & Souza, 1999). Pinho e Pereira (2012) relatam que são recentes, no Brasil, as pesquisas sobre o percurso em busca de cuidado e sobre o trânsito dos usuários nos dispositivos formais de atendimento. Além disso, afirmam a necessidade de mapear as linhas informais percorridas durante a busca por cuidado pelos sujeitos (Pinho & Pereira, 2012).

A compreensão dos distintos campos de possibilidades socioculturais que estão enredados na construção de projetos terapêuticos muitas vezes revela contradições na rede de saúde, seja por parte dos profissionais, seja por parte dos usuários dos serviços (Alves & Souza, 1999). Pesquisas que se aprofundam na relação entre as redes sociais e a saúde nos mostram que elas interferem no valor que o sujeito confere ao seu sofrimento, conjugando normas, valores e expectativas que se expressam em formas específicas de se pensar o pathos e de agir em relação a ele (Leite & Vasconcellos, 2006). Nesse sentido, Gerhardt considera que:

Os processos de escolha, avaliação e aderência a determinadas formas de tratamento são complexos e difíceis de serem apreendidos se não for levado em conta o contexto dentro do qual o indivíduo está inserido, sobretudo frente à diversidade de possibilidades disponíveis (ou não) em termos de cuidados em saúde para as populações de baixa renda (Gerhardt, 2006, p. 2449).

Nesta direção, realizamos uma pesquisa com o objetivo de compreender como pessoas com sofrimento psíquico e histórico de internação psiquiátrica engendram itinerários terapêuticos em um município de médio-porte do Paraná.

 

Método

Partimos do referencial metodológico da Cartografia, não com objetivo de alcançar metas (méta-hodos) ao final da pesquisa, mas de caminhar traçando e analisando nossas intenções em um movimento incessante que tendeu (e ainda tende) a atualizar-se (hodos-méta) (Passos & Barros, 2015). A cartografia considera a inseparabilidade entre conhecer e fazer assumindo que toda pesquisa é intervenção, com objetivo de acompanhar a constituição do sujeito e do objeto no plano da experiência e dos efeitos do ato de pesquisa no campo investigado (Passos & Barros, 2015). A cartografia é semelhante ao relato de uma viagem que se faz durante um processo de pesquisa. Conforme Gonçalez e Machado:

Uma cartografia busca traçar os movimentos sucedidos em um ambiente subjetivo, provocados por conjuntos de intensidades que o invadem, atravessam, abalam, transformam. Cartografar esses movimentos tem a ver com uma prática que lhes dá visibilidade e sentido. Uma cartografia problematiza um território subjetivo, investiga-o processualmente, sem representá-lo, sem interpretá-lo (Gonçalez & Machado, 2011, p. 68).

O cartógrafo experimenta jogar com o processo instituinte-molecular, entendido como os fluxos que desmontam os territórios existenciais consolidados, sendo o conflito em si como jogo responsável pela produção da diferença (Guizard, Lopes, & Cunha, 2015). Portanto, cartografar não envolve o desenho de mapas fixos, mas o acompanhamento de fluxos que se montam e se desmancham (Gonçalez & Machado, 2011). Prado Filho e Teti, também discorrendo sobre a cartografia, afirmam que esta:

Não se refere a método como proposição de regras, procedimentos ou protocolos de pesquisa, mas, sim, como estratégia de análise crítica e ação política, olhar crítico que acompanha e descreve relações, trajetórias, formações rizomáticas, a composição de dispositivos, apontando linhas de fuga, ruptura e resistência (Prado Filho & Teti, 2013, p. 47).

Constituíram-se como participantes quatro pessoas que já passaram por internação psiquiátrica e, no momento da realização da pesquisa, faziam atendimento com uma psicóloga em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) que está vinculada a uma Estratégia Saúde da Família (ESF), em um município de médio porte da região sudeste do Paraná. Este serviço é uma das principais portas de entrada de muitas pessoas na Rede de Atenção à Saúde (RAS), sendo centro de comunicação com serviços de média e alta densidade tecnológica (Portaria n. 4.279, 2010). A referida UBS foi recomenda pela Coordenação da Atenção Básica de Saúde do município. A viabilidade de acesso ao campo também foi facilitada devido a um vínculo existente entre a universidade e o serviço, visto que se configura como campo de inserção de estágios. Do ponto de vista da conformação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em agosto de 2018 este município contava com os seguintes pontos de atenção: ala psiquiátrica em Hospital Geral; unidade de Pronto-Atendimento Municipal; Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) II regional, prestando atendimento a 9 municípios de forma alternada (cada dia é reservado a um município); Ambulatório Municipal de Saúde Mental (uma unidade central e duas psicólogas lotadas em 2 UBS de regiões distintas do município); Ambulatório de Especialidades do Consórcio Intermunicipal de Saúde (psiquiatria); Unidades de Atenção Básica: 15 unidades registradas como "Postos de Saúde" no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, sendo seis delas com a presença de Equipes Saúde da Família (ESF).

As entrevistas foram realizadas em uma sala da UBS, no segundo semestre de 2018. Utilizamos um roteiro semiestruturado de entrevista, sendo nossa pretensão realizar uma conversa com os(as) participantes com o máximo de liberdade que nosso encontro poderia permitir, com perguntas abertas que viabilizavam maior abertura para o diálogo (Minayo, 1994).

Para mantermos o sigilo, criamos nomes fictícios para cada um dos quatro participantes: Iara, 44 anos, passou por um internamento quando tinha 28 anos; Tainá, 45 anos, teve um internamento em clínica privada fora do município e outro na ala psiquiátrica de um hospital geral; Kauê, 26 anos, foi internado duas vezes e frequenta outros serviços de saúde mental; Moacir, 59 anos, já passou por um internamento. A presente pesquisa segue os procedimentos éticos previstos segundo as diretrizes da resolução 466/2012 e da resolução 510/2016, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Centro-Oeste (sob número de parecer 2.588.924). Diante dos relatos dos participantes sobre seu percurso pela Rede de Saúde e internações psiquiátricas, buscamos compreender como os sujeitos vivenciaram a permeabilidade dos pontos de acesso à rede. Cartografar este percurso foi, e ainda é, um ato de desvelar e denunciar contradições, mas também compreender e analisar o movimento próprio da pesquisa e da sua constituição.

Nesse contexto, criamos analisadores para possibilitar um movimento de análise dos jogos de força do campo percorrido durante a pesquisa. O analisador é sempre criado, constituído nos encontros. O estudo do itinerário terapêutico tem sido um dos meios utilizados atualmente para avaliar os sistemas de saúde (Gerhardt, Burille, & Muller, 2016). O itinerário terapêutico dos participantes serviu como principal analisador para a Rede de Saúde do município, pois se instaurou sobre nosso percurso de pesquisa como uma problemática a respeito do acesso à rede por esses sujeitos.

 

Resultados e Discussão

Inicialmente, apresentamos os pontos de atenção percorridos pelos participantes na busca pelo cuidado em saúde mental, conformando itinerários terapêuticos. Na segunda linha de análise, discutimos a produção de territórios existenciais, buscando evidenciar como as pessoas singularizam seus percursos de cuidado a partir do sentido que produzem em torno do tratamento, da percepção em relação aos serviços, etc. Na terceira linha de análise discutimos a função das tecnologias leves na produção micropolítica das redes de saúde.

Itinerários Terapêuticos e Produção de Cuidado

O acesso da maioria dos participantes à rede de saúde foi primeiramente via internamento, decorrente de tentativas de suicídio, quando os familiares os levaram a clínicas e hospitais especializados. Iara relatou que passou por internamento na ala psiquiátrica por tentativa de suicídio. Ela frequentou duas vezes o CAPS de seu município após o internamento, mas relatou não ter gostado do tipo de cuidado ofertado. Afirma que, além de não gostar de atendimentos em grupo, o CAPS é longe de sua residência. O único serviço que mencionou que frequentava, no momento da entrevista, era a UBS.

Moacir foi internado e depois buscou ajuda por conta própria em outros serviços, incluindo a UBS de seu território, conforme ele mesmo relata: "Daí comecei a recuperar minha autoestima, eu senti qualquer coisa no ar, sabe? Eu comecei a procurar a doutora pra fazer a questão psicológica. Até então eu larguei do alcoolismo, larguei largado e a doutora, eu comecei a contar as coisas pra ela e essa maneira do tratamento do psicológico foi melhor que o psiquiátrico". Moacir recebeu acompanhamento com a psicóloga da UBS após sua passagem pela internação. No momento da pesquisa, a UBS era o único serviço que usava.

Kauê também nos relata sobre sua trajetória na rede de saúde. Depois de tentar cometer suicídio, foi internado na ala psiquiátrica do hospital geral de sua cidade. Antes desse evento, já fazia consultas com psiquiatra particular desde a sua adolescência. Depois do internamento, relatou que teve o auxílio de sua família na busca por assistência em saúde mental. Nas suas palavras: "Nós viemos aqui na secretaria, que eu estava com depressão, estava bem complicado. Daí veio até a minha mãe e a minha tia, daí daqui que me encaminharam pro CAPS, daqui do postinho. Eles fizeram um papel, daí daqui eles levaram um papel pro CAPS, daí eu comecei a me tratar lá". Kauê atualmente frequenta a UBS para consultas com a psicóloga e usualmente vai até o CAPS, serviço que deixou de usar com regularidade.

Tainá possui um itinerário terapêutico distinto dos demais participantes, pois passou anteriormente por um internamento voluntário em uma clínica particular em outro município. Na cidade onde reside atualmente, teve seu segundo internamento em uma ala psiquiátrica de um hospital filantrópico. Teve encaminhamento deste hospital para a UBS a partir da médica que acompanhou seu tratamento no internamento, conforme ela mesma relata: "Doutora [...] que pediu pra eu procurar um posto, eu consultei com o clínico aqui. Porque eu sempre vinha aqui no posto pra pegar receita de remédio antes do doutor (...) chegar na cidade, sabe? Daí eu pegava com o clínico geral os remédios, a receita. E daí que eu descobri que tinha psicóloga aqui e eu marquei e consegui". Fazia consultas com a psicóloga do serviço e frequentava um psiquiatra particular, que acessou por recomendações de amigos. Ela contou que usualmente vai a tratamentos alternativos de saúde ligados à sua religião e que recebe apoio de amigos e colegas da sua comunidade.

Cabe ressaltar que a presença de uma psicóloga na unidade de atenção básica representou a possibilidade de um acompanhamento com caráter psicossocial, não centrado exclusivamente na medicação. Apesar do cuidado em saúde mental na perspectiva psicossocial não ser exclusividade do psicólogo, devendo compor as ações da atenção básica, muitas equipes ainda apresentam dificuldades na realização deste cuidado, seja por falta de tempo, sentimento de impotência ou de não reconhecimento de habilidades para este tipo de cuidado (Fegadolli, Varela, & Carlini, 2019). Diante disso, a resposta medicamentosa e a prática da renovação de receitas muitas vezes acabam sendo reproduzidas nos serviços de atenção básica (Bezerra, Gondim, Lima, & Vasconcelos, 2014).

Percebemos, nos relatos dos participantes, distintas linhas percorridas em busca de cuidados em saúde mental. Alguns participantes receberam indicações de familiares, amigos e/ou de outros estabelecimentos filantrópicos e religiosos para frequentarem serviços de saúde. Outros se vincularam aos serviços públicos mediados por profissionais de saúde após o internamento. Nesse contexto, percebemos a importância da rede sócio relacional do sujeito, pois conjuga normas e valores a respeito do sofrimento psíquico e de modos de lidar com ele. Além disso, percebemos que o encaminhamento na rede de saúde formal torna-se uma importante estratégia para articulação dos dispositivos da rede, possibilitando que o sujeito trace seu itinerário terapêutico com autonomia e que acesse a saúde como direito. Esta é uma questão a que vamos nos ater com intuito de analisar, a partir dos itinerários terapêuticos dessas pessoas, a rede de saúde do município.

Territórios Existenciais e Singularidade na Busca por Cuidado

Enquanto as políticas públicas concretizadas em leis, portarias, notas técnicas, princípios e diretrizes buscam orientar a construção de serviços e ações em saúde mental, debruçamo-nos aqui sobre a compreensão de como os participantes vivenciam essas políticas em seu cotidiano. Acessar o relato de experiência de um sujeito por via de um serviço de saúde implica em adentrar um território existencial. Estudar territórios envolve, além de localizá-los e representá-los, compreender sua capacidade de se transformar, desterritorializar e se recriar. Romagnoli (2006), a partir de sua leitura das obras de Deleuze e Guatarri, viabiliza nossa compreensão a respeito da subjetividade humana. Segundo essa autora, a subjetividade é constituída por linhas múltiplas: algumas duras, que realizam a divisão binária e se efetuam por meio de classificações e codificações; e outras flexíveis, semelhantes a zonas de indeterminação que permitem agenciamentos criativos (Romagnoli, 2006).

Os agenciamentos são possíveis com o contato da subjetividade com o "fora", expressando linhas de fuga, conectando-se com processos coletivos, produzindo novos modos de existência (Romagnoli, 2006). A realidade e a natureza, na visão de Deleuze e Guatarri (1995), são constituídas por superfícies e planos que coexistem sem hierarquia e determinação, denominadas platôs. De acordo com Romagnoli (2006), no plano da organização a vida se expressa de modo dicotômico, via operações de transcendência, separação e codificação: o louco e o normal, o homem e a mulher, o rico e o pobre. No plano da consistência se articulam forças moleculares, invisíveis, onde não existem oposições, mas agenciamentos e criação (Romagnoli, 2006). O que sustenta ambos os planos é o plano da imanência, dimensão de fluxos e conexões que opera no "entre planos", de modo segmentar no plano da organização e fluido no plano da consistência (Romagnoli, 2006).

Pessoas com sofrimento psíquico e suas famílias habitam um território existencial fortemente marcado por linhas duras, modos de se pensar e existir estanques (Romagnoli, 2006), constituídas a partir do fluxo maquínico de discursos médicos, sociais e políticos a respeito dos transtornos mentais. No território existencial desses sujeitos, entretanto, também coexistem linhas flexíveis que possibilitam afetamentos do que vem do "fora". Evidenciamos no relato dos participantes processos semelhantes aos discorridos: fluxos estanques e agenciamentos criativos, que ora são potencializados, ora são impedidos de se materializarem pela configuração e pela operacionalização da rede de saúde.

Quando questionada se alguma informação ou pessoa auxiliava na sua busca por saúde mental, Iara nos diz que: "Não! Até porque eu não tenho amizade. Ninguém vai na minha casa e eu não vou na casa de ninguém! Nem minha família". Tainá também teve experiências de recolhimento em sua casa que foram semelhantes às relatadas por Iara: "o meu refúgio sempre foi aumentar a medicação. Pra dormir. Por achar que dormindo eu não ia chorar, não ia ver os problemas, enquanto que quando você acorda, tudo pior, né [...] Então eu caí numa cama e aí eu comecei, os antidepressivos não faziam mais nem efeito, eu não queria trabalhar, não queria mais nada, e cama, cama, cama, cama".

Neste recorte do relato das participantes, percebemos modos de lidar com o sofrimento psíquico que revelam signos produzidos em uma maquinaria social específica de nosso tempo. Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 51): "não existe enunciado individual, nunca há. Todo enunciado é o produto de um agenciamento maquínico, quer dizer, de agentes coletivos de enunciação". Desse modo, há acoplamento, captura, dobra subjetiva que constitui a subjetividade, sendo que "cada um de nós é envolvido num tal agenciamento, reproduz o enunciado quando acredita falar em seu nome, ou antes fala em seu nome quando produz o enunciado" (Deleuze & Guattari, 1995, p. 50). Muito do que os participantes falaram diz respeito a organizações molares de nossa sociedade atual, ou seja, reproduzem modos de ser e existir frente ao sofrimento psíquico permeados por elementos da maquinaria psiquiátrica, da maquinaria midiática e da maquinaria social.

As enunciações expressas nos relatos dos participantes da pesquisa nos mostram como se articulam as instituições sociais em um jogo de saber-poder, ora produzindo processos de assujeitamento, ora de singularização. A questão que fica é: como a rede de saúde potencializa o cuidado rompendo com essas barreiras? Conforme apontamentos de Franco (2006), quando são seguidas as diretrizes previstas em portarias e leis da saúde, o cuidado opera com alta potência inventiva. Essas ações são possíveis como consequência da demarcação de um território específico, onde são coordenadas práticas sanitárias democráticas e participativas, considerando o território como algo dinâmico (Portaria n. 4.279, 2010). Segundo o autor:

Em uma UBS ou ESF que tenha o acolhimento como diretriz do processo de trabalho, a equipe de acolhimento faz rizoma com todos os trabalhadores da unidade de saúde, isto é, ela opera múltiplas conexões nas micro-unidades de cuidado, onde há o encontro entre o usuário e o trabalhador, se formam redes com alta capacidade conectiva entre si mesmo e para outras instâncias do amplo cenário de produção (Franco, 2006, p. 462).

Uma das alternativas para a superação de uma lógica de atendimento biomédica, centrada na doença, é realizada a partir do fortalecimento da rede primária de cuidados (Mângia & Muramoto, 2008). O estabelecimento de redes rizomáticas nos serviços se dá através da singularidade, da micropolítica no trabalho, na criação conjunta de espaços potenciais de escuta, autogestão e autoanálise coletiva (Franco, 2006). Esse processo ocorre quando há um "cuidado que cuida" e que estabelece um vínculo cooperativo entre o sujeito-usuário do serviço e os profissionais (Mângia & Muramoto, 2008).

Aspectos estruturais da rede de saúde foram demandados por alguns participantes, em tom de denúncia, mas também de sugestão. Iara relata que: "Quando uma pessoa apresenta, como foi o meu caso, um problema assim e vai e chega a ser internada, passa por uma avaliação psiquiátrica, eu acho que eles deveriam ter um acompanhamento com essa pessoa, tipo ficar mais atento com essa pessoa. E eu vejo que não é isso que acontece. Não foi isso que aconteceu. Não só comigo, mas com várias pessoas". Iara também diz que deveriam existir modalidades diferentes de atendimento para cada caso, pois algumas pessoas, assim como ela, não gostam do atendimento em grupo como os realizados no CAPS de seu município. Uma de suas sugestões foi a criação de atividades ao público nos bairros.

Adentramos territórios existenciais singulares que envolvem multiplicidades e percebemos, como no caso de Iara, sua atuação enquanto sujeito ativo na rede. Assim também se posicionaram Tainá e Moacir, realizando apontamentos sobre suas situações de saúde e internamento. Tainá relata que: "A gente que vem da escola sabe da necessidade das pessoas que não tem esse tipo de atendimento. Eu não acredito muito no CRAS, no CAPS, eu vejo que [o município] tem até um suporte, mas um pouco é a pessoa que não chega até. Mas eu vejo assim, mesmo na igreja, sempre aquela história, todo mundo espera chegar. Mas a gente tem que ir atrás daquela pessoa que está precisando, né. Então tem, até tem. O poder público até fornece algum atendimento, mas você tem que ir atrás. No posto, você tem que estar atrás. Marcar psicólogo, não faltar, e hoje não sei o que falta".

O posicionamento das participantes a respeito dos serviços que frequentaram demonstra um movimento de resistência e contrapoder ao discurso encontrado no corpo social ligado ao "doente mental", pois elas se colocam como protagonistas na construção da rede de que fazem parte. Nesses momentos, produzem-se linhas de fuga e a articulação com o "fora", que, apesar das dificuldades e do sofrimento relatados, impulsionaram as participantes para novos encontros possíveis com seus territórios. Tainá expressa que, apesar de algumas dificuldades, ocupou outros espaços e territórios: "Parece que as pessoas têm vergonha de dizer que são atendidas por psiquiatras, mas eu fui pra essas atividades". Iara também diz que acessou a rede de saúde por conta própria depois de um tempo de sofrimento: "Aí quando eu dei uma melhorada eu pensei ‘não, eu vou procurar ajuda' porque eu vou acabar fazendo coisa que não posso". Há modos, conforme percebemos, de se ligar com um fora-clausura, um fora-doença que foi possibilitado pela rede comunitária do território dessas mulheres.

Alguns participantes relataram que conseguiram "ganhar forças" por meio da religiosidade, como foi o caso de Kauê: "Pois olha, que nem eu tô agora, tô frequentando a igreja com a minha tia, que é a Quadrangular. Tô indo lá. A gente vai, tá procurando ajuda, né". Tainá relata que a religiosidade também auxiliou no seu tratamento: "É, a igreja me ajudou no top do meu, eu procurei igreja católica é, tem o grupo da RCC, que é a Renovação Carismática, então também lá é o lugar enquanto não tinha psicólogo, psiquiatra, família, eu ia lá e lá era totalmente livre e podia chorar. Mas lá eu vejo também pessoas assim que são fundamentalistas na religião e não vão abordar a parte científica do tratamento, né. Mas também ajuda, fiquei bastante, toda semana, toda semana na Renovação". Outro participante afirmou que o que lhe ajudou foram livros de autoajuda: "Outro lugar... Questão religiosa, a igreja. Você mesmo se autoajudar, você mesmo se ajudar. Ter sensatez de se por no lugar do outro, que é muito importante você ter resiliência. Eu li muito livro do Cury que é muito de autoajuda que me ajuda muito, resiliência é muito importante".

Ressaltamos, com esses relatos, a importância da rede comunitária, religiosa e local que se encontra no território dos sujeitos, composta por distintas linhas que se relacionam incessantemente – ora servindo como agentes potencializadores de cuidado, ora como planos estanques de produção de capturas e assujeitamento. Nesse sentido, o itinerário terapêutico é composto por territórios que se modificam, que se interpõem, que se agenciam com processos coletivos e se renovam em fluxo imanente.

A Rede de Saúde e seus Fluxos a partir da Micropolítica

O "papel" descrito por Kauê em seu relato representa a materialização do Sistema Logístico do SUS, preconizado pela Rede de Atenção à Saúde como modo de encaminhamento de pessoas e troca de informações entre os serviços (Portaria n. 4.279, 2010). De acordo com o Art. 4° da Lei da Reforma Psiquiátrica: "A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes" (Lei n. 10.216, 2001). O hospital, dessa forma, é apenas uma parte do tratamento quando outros dispositivos e ações terapêuticas em outros serviços não fornecem suporte ao que é demandado. Para a superação do modelo de atendimento médico centrado e hospitalocêntrico há necessidade, além dos processos de referência e contra referência nos serviços de saúde, de um cuidado que seja integral e permita a articulação da rede.

Para atender a demanda sanitária da população, a Reforma Psiquiátrica tem como fundamento a oferta de distintas formas de tratamento com intuito de operar um atendimento humanizado e centrado nas necessidades dos usuários, possibilitando diferentes estratégias de cuidado com assistência multiprofissional a partir da lógica interdisciplinar (Portaria n. 3.088, 2011). A RAPS, segundo a Portaria n. 3.088 (2011), busca estimular a criação, ampliação e articulação dos pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento psíquico e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas.

Destacamos, entretanto, que algumas contradições podem ser percebidas quando nos atemos ao cotidiano dos serviços de saúde, apesar de existirem princípios que orientam as ações dos profissionais. O encaminhamento, enquanto protocolo de ação, muitas vezes não é suficiente para integrar os serviços e os profissionais. Um encaminhamento, quando não efetivo, como no caso de Iara, que foi direcionada até o CAPS de seu município, mas não se vinculou a esse serviço, permite-nos pensar acerca de como vem se estruturando a rede de saúde.

O acompanhamento de outros profissionais e serviços após o internamento só é possível com a operacionalização de tecnologias leves de cuidado criadas nos encontros existentes entre os usuários e profissionais (Merhy, 2002). Segundo Teixeira (2003), a rede de saúde é rede de conversações, processualismo político radical que produz modos de ser (ou não ser) protagonista. Portanto, o vínculo relacional ocorre a partir do modo como são materializadas as técnicas de diálogo entre profissional e usuário (Teixeira, 2003). Dependendo dos tipos de relações produzidas nestes encontros podem-se criar condições para continuidade do tratamento ou ruptura do vínculo do usuário com a rede formal.

Conforme relato de Iara, o possível encaminhamento mencionado por seu médico no hospital soou mais como uma ameaça do que como possibilidade de acesso a uma terapêutica distinta: "Ele só falou assim, que não era pra eu repetir mais aquilo porque se eu voltasse novamente com o mesmo quadro, ‘com o mesmo quadro', que nem ele falou, ele ia me encaminhar pra Curitiba, lá pra fazer tratamento psiquiátrico, lá naqueles, aí não sei como que diz lá, que ficava internada lá, sabe". Modos "duros" de se lidar com a saúde mental foram enunciados por muitos participantes a respeito do internamento, sendo que nenhum dos participantes relatou uma percepção positiva de sua estadia na ala psiquiátrica do hospital geral. Ou seja, apesar de serem atendidos, não necessariamente se sentiram cuidados. Dessa forma, entendemos que a rede tecnoassistencial se operacionaliza a partir de processos e procedimentos cotidianos, existindo a partir da materialidade de encontros entre os atores sociais presentes nos serviços de saúde (profissionais e usuários) (Teixeira, 2003).

Ferreira Neto (2015) problematiza o risco de leituras que dicotomizem os planos macro e micropolíticos ou que privilegiem algum deles. Nesse sentido, pensamos que as leis e portarias se constituem como condição de possibilidade para agenciamentos serem operados no plano micropolítico, constituindo-se como importantes balizadores no processo de cuidado produzido nos serviços. Ou seja, é necessária a existência de serviços, equipes e profissionais (por isso a importância de leis e portarias) que constituem uma dimensão macropolítica. Mas isso não garante o cuidado humanizado, senão apenas se constitui como uma condição de possibilidade que pode ampliar ou restringir os agenciamentos micropolíticos. De acordo com Franco (2006), a rede básica de saúde do SUS é excessivamente normatizada, com diretrizes que impedem o "trabalho vivo em ato". Nesta mesma direção, Merhy (2002) compreende que a centralização do trabalho em saúde nas técnicas e tecnologias protocolares, seguindo a lógica macropolítica de organização e sem autonomia para criação, não produzirá condições para um cuidado efetivo.

Por outro lado, quando o acolhimento e o encaminhamento são materializados a partir da micropolítica, levando em consideração os desejos, as necessidades e os territórios dos usuários, produz-se uma relação distinta – relação rizomática (Franco, 2006). Semelhante ao conceito de Deleuze e Guattari (1995), rizoma expressa a condição potencial da existência, vida expansiva, aberta a multiplicidades, sem unidade ou centro, micro conectiva através de agenciamentos. Nesses casos, as tecnologias leves de cuidado são utilizadas enquanto exercício de democracia, produzindo uma relação comunicacional que viabiliza a construção de itinerários terapêuticos pelo sujeito que potencializem o tratamento (Teixeira, 2003).

Uma dessas tecnologias que mencionamos é o acolhimento, criando condições para que os usuários falem sobre o que desejam e o que necessitam, potencializando a abertura para novas relações e referências dentro da rede de saúde. De acordo com Teixeira (2003, p. 101): "creditamos a uma dada técnica de conversa ou de relação – designada de acolhimento dialogado... – a competência em manter todos esses espaços interconectados, oferecendo aos usuários as mais amplas possibilidades de trânsito pela rede".

O acolhimento e o encaminhamento democrático descritos pelo autor ressignificam a relação profissional-usuário, pois colocam o sujeito como protagonista de seu tratamento e possibilitam a negociação de suas necessidades (Teixeira, 2003). Integra radicalmente o sujeito que fala, os pontos da rede, os profissionais de saúde e, acima de tudo, muda a relação de saber-poder entre o técnico e o usuário (Teixeira, 2003). Isso impede que o encaminhamento seja feito apenas via protocolos, agenciando o usuário com seu desejo, suas particularidades e potencializando o cuidado nos serviços. Nesse sentido, não basta apenas expandir a atenção básica para dar conta de inspecionar os territórios e monitorar itinerários com o intuito de resolver o problema da centralidade do hospital na rede de saúde, mas operacionalizar as tecnologias leves de cuidado com comprometimento ético-político com os usuários em todos os pontos da rede de saúde (Teixeira, 2003).

 

Considerações Finais

Tomar os itinerários terapêuticos em saúde mental como analisadores possibilitou evidenciar as tensões entre os distintos modelos de atenção em saúde mental, assim como as tensões entre aquilo que é preconizado no âmbito das políticas públicas (macropolítica) e seus modos de apreensão cotidiana (micropolítica) na relação entre usuários e trabalhadores.

Quase todos os participantes adentraram a rede de saúde a partir de um hospital, serviço especializado que deveria ser acionado apenas quando outros pontos da rede não são suficientes. Todos relataram experiências negativas em relação à internação, evidenciando que ser atendido não necessariamente equivale a se sentir cuidado. Em alguns casos, os encaminhamentos não foram efetivos para que os usuários se sentissem participantes em seus tratamentos, mesmo quando envolviam serviços de caráter substitutivo. Isso leva à necessidade de investimento na compreensão da rede de atenção não apenas como um conjunto preestabelecido de pontos e fluxos hierárquicos ou rígidos de atenção, mas enquanto composições possíveis de pontos e fluxos, a partir de cada caso. O encaminhamento de um serviço a outro, longe de ser uma ação unidirecional (do profissional para o usuário), deve constituir-se como objeto a ser trabalhado e pactuado nessa relação. Isso desloca a rede da posição de "algo pronto" para a posição de "algo a ser construído" permanentemente.

O acolhimento e o encaminhamento, no contexto cotidiano dos serviços, são tecnologias leves de cuidado que possibilitam que o sujeito construa seu itinerário terapêutico de modo autônomo, levando em consideração sua demanda e preferências de atendimento. Desse modo, compreendemos que a ressignificação do papel do hospital dentro da rede de saúde é possível por meio da articulação entre os pontos da rede de saúde via tecnologias leves com integração do usuário como corresponsável de seu tratamento e alteração da relação saber-poder entre o técnico e o usuário.

Afirmamos a necessidade de atenção aos modos de operacionalização de tecnologias leves para a construção de itinerários terapêuticos que expressem relações de cuidado, de modo singular e não de modo estanque via fluxogramas, protocolos e a partir da maquinaria burocrática do Estado. Configura-se e se compõe, portanto, por movimentos de resistência e linhas de fugas criadas no interior e na relação entre os serviços nos territórios. A conjuntura política e econômica brasileira pós-2016 apresenta tendência de redução nos investimentos públicos, podendo restringir ainda mais as possibilidades de ofertas das redes de cuidado, sob o viés desinstitucionalizante. Neste contexto, devemos tensionar tal cenário na direção da efetivação de políticas públicas como condição de possibilidade para um cuidado em liberdade, articulado às tecnologias relacionais como potencial de constituição de itinerários singulares do cuidado.

Entre as limitações do estudo, destacamos que o acesso aos participantes ocorreu por um único ponto da rede (uma Unidade de Básica de Saúde), ao qual se pressupõe que os mesmos possuem aderência. Apesar disso, consideramos que a potencialidade da pesquisa está na problematização dos modos de tratamento na Rede de Atenção à Saúde a partir da compreensão singular dos usuários sobre seus itinerários terapêuticos. Com o propósito de ampliar os temas debatidos, sugere-se a abordagem dos itinerários terapêuticos através do acesso a usuários vinculados a outros pontos da RAPS, além da abordagem da perspectiva de outros atores envolvidos no processo de tecitura das redes, como trabalhadores e gestores.

 

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Endereço para correspondência
Pedro Henrique Moraes
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Recebido em: 19/12/2019
Reformulado em: 28/04/2021
Aceito em: 28/04/2021

 

 

Notas

* Psicólogo, graduado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Paraná, PR, Brasil.
** Formado em Psicologia (UFSM), Mestre e Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário da Unicentro.

 

Agradecimentos: agradecemos aos participantes por compartilharem suas vivências e seus itinerários terapêuticos na rede de saúde durante a realização desta pesquisa.

 

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