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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.61 n.2 Rio de Janeiro ago. 2009
ARTIGO
Reviravoltas do saber nas vias sombrias do desejo
Turnovers of knowledge along the shady paths of desire
Francisco Ramos de FariasI; Rita Maria Manso de BarrosII
IUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, Brasil
IIUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
A criança subverte a condição que veio ao mundo ascendendo à posição bípede e cai sob o logos da razão pela transformação decorrente do aperfeiçoamento da visão e pela incidência do recalque nas formas primordiais de comunicação: o olfato e o reconhecimento da voz materna. Essa nova aparelhagem engaja a criança em uma atividade investigativa acerca do sexo: a curiosidade sexual da infância transforma-se em vontade de saber, percurso mediado pelo desejo. O saber é mistério a ser desvendado, na trajetória pela qual o sujeito escreve a sua história. Tarefa acionada pelo desejo concorre para a constituição da subjetividade ante o encontro com a falta captada no Outro.
Palavras-chave: Saber; Desejo; Curiosidade sexual; Pulsão epistemofílica; Subjetividade.
ABSTRACT
The child subverts the condition in which he comes into the world when ascending to a biped posture and falls under the logos of reason by the transformation resulting from sight improvement and by the incidence of repression in the primordial forms of communication: smell and recognition of the maternal voice. This new apparatus engages the child in an investigative activity regarding sex: sexual curiosity of infancy transforms itself into a craving for knowledge; a journey guided by desire. Knowledge is a mystery to be revealed along the paths chosen by the subject to write his history. An assignment driven by desire contributes to the constitution of subjectivity, brought on by the encounter with the absence captured in the Other.
Keywords: Knowledge; Desire; Sexual curiosity; Epistemofilic drive; Subjectivity.
SITUANDO A QUESTÃO
O saber traz consigo enigmas desde as épocas mais remotas. Imagine o quanto aumenta o grau de complexidade quando não é equiparado ao conhecimento e sim com aquilo que concerne à verdade em uma articulação ao desejo. Lançando mão do saber como interrogante e do desejo enquanto exigência contínua de realização, tenta-se pensar a travessia da cria humana, na constituição de sua subjetividade, no trilhar da seara aberta pelo saber diante do desejo.
Articular saber e desejo, além de ser uma questão espinhosa, requer atravessar sendas difíceis, pois, no tocante ao desejo, sabe-se que há, como ponto de partida, um objeto irremediavelmente perdido, mas que se coloca como uma exigência constante de trabalho psíquico.
Entender o desejo como campo da existência humana no qual se dispõem os seres sexuados requer refletir que estamos no campo da linguagem. Por isso, o desejo faz com que o ''homem demande o absoluto do amor e faz todo objeto outorgado parecer possivelmente perdido'' (KAUFMAN, 1996, p. 114).
Em se tratando do saber, existem outros complicadores visto que, a princípio, o homem somente pode ser movido pelo saber, embora não haja verdade que se apresente como saber: no máximo, a verdade seria da ordem de um saber não sabido, o que faz o saber comportar um enigma. Em segundo lugar, qualquer saber a que o sujeito tenha acesso traz consigo a insígnia de se referir ao desejo do Outro, tratando-se, pois, de algo da ordem do impossível alcançar. Eis o objetivo que pretendemos: esboçar as sinuosas linhas que a cria humana traça em sua existência, em decorrência de sua submissão ao saber, na tentativa de descortinar o emaranhado de enigmas suscitado pelo desejo.
A criança subverte a condição que veio ao mundo ascendendo à posição bípede e cai sob o logos da razão pela transformação decorrente do aperfeiçoamento da visão e pela incidência do recalque nas formas primordiais de comunicação: o olfato, a audição e a sensação tátil. Aliás, a ''própria ideia de que o inconsciente é constituído pelo recalque originário, está relacionada com a ideia de que, para o próprio advento da espécie humana operou outro recalque: o recalque orgânico'' (COUTINHO JORGE, 2000, p. 29). Essa operação recalcadora é atribuída à posição ereta e à substituição do olfato pela visão. Seria, por assim dizer, a perda do olfato a essência do processo de recalque. No que tange ao relacionamento da criança com a mãe, por intermédio do olfato, constata-se que sofre um significativo declínio ''após a criança ter sido afastada das referências sexuais. Durante essa fase de anseio, formam-se as fantasias e a masturbação é praticada, depois cedendo lugar ao recalcamento'' (FREUD, 1897-1986, p. 276).
A nova aparelhagem descortina outro horizonte e engaja a criança em uma atividade que tem o olhar como meio de acesso às coisas do mundo além do que se autoriza a uma tarefa investigativa acerca do sexo: a criança quer saber sobre o sexo, mas pela visão do nu no corpo do adulto. Essa curiosidade sexual, tão pregnante na infância, transforma-se em decorrência do recalque em vontade de saber, constituindo um percurso mediado pelo desejo. Sendo assim, o saber é mistério a ser desvendado na trajetória pela qual o sujeito escreve a sua história. Tarefa acionada pelo desejo concorre para a constituição da subjetividade ante o encontro com a falta captada no Outro.
Saber e Gozo
No que tange ao saber, cabe ao sujeito posicionar-se de duas maneiras: tomá-lo como já sabido ou, então, como um interrogante acerca do impossível. No primeiro caso, tem-se uma relação de corte, visto colocar o saber como algo que em si mesmo apresenta um fim; enquanto no segundo caso, compreende-se que o saber comporta algo da ordem de um enigma que, ao invés de algo terminado, é apenas uma condição de possibilidade de acesso ao insondável e ao obscuro. Nessa vertente, o saber comporta um mistério.
Seja por uma via ou por outra, a relação do sujeito com o saber é sempre problemática. Para começar, pelo fato de que mesmo considerado um ponto de corte, o saber abre o pórtico do saber-fazer ou, na melhor das hipóteses, se o saber é tornado acessível, o que o sujeito deve fazer nessa circunstância? Um curioso paradoxo encerra-se nessas duas possibilidades. Quando o sujeito encontra-se na posição de possuidor do saber, não pode deixar de experimentar a impossibilidade própria ao desejo de possessão. Eis o encontro com o impossível que a trama do saber abre para a cria humana. Por outro lado, enveredar pela trilha tortuosa que lança o saber no campo do impossível é uma tarefa que comporta uma parcela de gozo.
A cria humana é um ser de gozo inscrito no campo da língua, ou seja, o suporte do gozo é a linguagem. Não obstante, o gozo é aquilo que é visado na busca incessante do objeto perdido, mas que se produz em um esforço de reencontro, sendo que qualquer objeto encontrado assinala o logro da perda. Quer dizer, é o indício de uma falha que resvala o objeto perdido desde sua origem. Articulado ao saber, pode-se afirmar que temos nisso uma espécie de renúncia ao gozo. Quer dizer, o saber é o ponto que faz uma junção com o gozo por intermédio do objeto perdido do desejo, pois é pela ''renúncia ao gozo que começamos a saber um pouquinho. A partir do saber, percebe-se, enfim, que o gozo se ordena'' (LACAN, 2008, p. 40).
Quando pensamos em ordenação, não podemos deixar de fazer alusão a uma espécie de perda de gozo. E, por isso, o saber encontra-se articulado pelas necessidades da escrita, indicando que da vivência de gozo, o sujeito sempre sai de mãos vazias, pois se o saber é ''meio de gozo que se produz o trabalho que tem um sentido obscuro que é a verdade'' (LACAN, 1992, p. 48). Mas esse pórtico que se abre ao vazio não é sugestivo de um momento de realização em termos do impossível? Basta que para isso busquemos a origem etimológica de saber - ''sapere'' - para constatar que é a mesma de sabor, de modo que o saber é aquilo que tem tal ou qual sabor.
Recalque e Verdade
Do empreendimento socrático ao ensinamento freudiano forja-se um trânsito que tem, em um extremo, a ignorância e, em outro, a formulação de uma espécie de vazio próprio da operação do recalque originário, incluindo aquilo que ronda as duas modalidades de diferenças irredutíveis: a diferença de gerações e o mistério acerca da existência, nos falantes, de homens e mulheres. Circundar o abismo existente entre essas diferenças faz com que o sujeito lance mão de seu desejo para inventar-se e consequentemente inventar o seu viver, mas às custas da produção de saber. Sendo assim, partilhamos a ideia de que quem duvida sabe de alguma coisa; da mesma forma que o curioso sustenta sua curiosidade em razão também de saber algo. Igualmente sabemos que o sujeito sabe algo, mas vacila em não querer saber aquilo que sabe. Nessas circunstâncias, adota a posição de se recostar na cômoda ignorância, mas obviamente jamais na estupidez, mesmo porque não podemos sequer pensar a ignorância como o contrário do saber, visto que aquilo que faz antípoda ao saber é a impossível verdade.
Da mesma forma que o saber, a verdade apresenta a mesma característica: nunca é possível ser dita, a não ser pela metade, ou seja, a verdade só é acessível por um ''semi-dizer, não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer'' (LACAN, 1992, p. 49). Por isso a verdade parece estranha à própria vontade do homem, sendo inseparável dos efeitos da linguagem, vinculada ao recalque como condição que habilita a cria humana à condição de ser falante.
A verdade é certamente aquilo que se insinua como um vazio cada vez que o saber é produzido. Em certo sentido, a verdade sempre deixa o sujeito de mãos vazias, especialmente se tomarmos como ilustração o mito de Édipo que, diante da verdade a qual não admitia saber, tomou duas decisões radicais quando fez a escolha pelo seu esquecimento, ao decretar o seu não sepultamento: privar-se da visão e, anular sua própria existência. A passagem de Sófocles é bastante elucidativa ''quanto a mim, não queiras que a Tebas de meu pai seja constrangida a me ter como habitante, deixa-me ir para as montanhas do Cíteron, minha triste pátria'' (SÓFOCLES, 2004, p. 74). Que outro vetor o teria levado a tomar essa decisão senão o saber? Mas o que o saber revelou, senão uma filigrana da verdade, que é sempre da ordem do impossível, ou seja, aquilo que teria sido banido pela operação do recalque e que o sujeito deveria declinar de saber?
Impossível porque concerne à operação fundadora do recalque originário. Eis um conteúdo para o qual não podemos pensar um levantamento do recalque, visto concernir à ordem da estrutura, ou seja, ''o recalcamento real que se encontra na origem que mantém a ex-sistência para um sujeito que se encontra ligado à linguagem'' (MELMAN, 1992, p. 163). Se essa operação do recalque funda a estrutura e, por isso mesmo, produz um vazio no tocante ao saber, temos suas consequências e seus efeitos em termos de produção de sentido. Assim, compreendemos toda a dissolução de Édipo, seja de si próprio ou de seus quatro filhos que foram impedidos de dar continuidade ao nome em razão da colagem de gerações decorrentes do incesto e do descortinar do véu proibido do saber.
Disso se deduz que o recalque originário cria uma franja de ignorância nas bandas do saber. Mas, certamente, quando situamos o recalque propriamente dito, estamos diante da possibilidade de um retorno que desfaça o véu que serve de fachada na sustentação do estado de ignorância. Então temos de pensar uma espécie de saber absoluto que seria dado ao homem, caso o material decorrente do recalque originário fosse passível de retorno, e um saber parcial que se produz mediante o retorno daquilo que fora afastado da consciência em um tempo posterior ao recalque originário, que tem valor de ser uma operação de cunho mítico. Sendo assim, no universo da linguagem que produz a cria humana, a produção de saber encontra limites, visto que, ao mesmo tempo que as operações da linguagem têm lugar, instaura-se o processo de nomeação, próprio do recalque propriamente dito, ocultando aquilo que é da ordem do indizível, do inominável decorrente do recalque originário.
Assim, compreendemos que para que o sujeito nomeie as coisas do mundo, valendo-se das andanças pela produção de saber, faz-se necessário que algo permaneça no âmbito do inominável. A existência do inominável possibilita ao homem nomear as coisas que são inscritas no seio demarcado pelo muro da linguagem. Eis, pois, as duas posições do sujeito no que tange ao saber: sustentar a crença de que é possível sabê-lo e confrontar-se com o mistério de sua própria constituição em função da operação do recalque originário. Isso quer dizer que o ser falante, na sua travessia, ao tentar nomear as coisas do mundo, engaja-se em um projeto ideal de que seria possível a tudo nomear. A partir disso não pode escapar ao engodo que essa intenção lhe ocasiona. Mas, tampouco, pode abrir mão dessa empreitada, pois assim estaria abdicando de sua condição desejante. Difícil encruzilhada que se complica a cada direção tomada: o homem nunca conseguirá dar por terminada a tarefa referente ao processo de nomeação das coisas, mas também não desistirá de seguir seus intentos de realizá-lo.
Momento delicado: a ciência de que há algo que não pode ser dito. Nessas circunstâncias, o que fazer? Tudo indica que a escolha aventada consiste em dar continuidade ao processo direcionado ao tudo dizer. Eis o confronto crucial com as duas vias sinuosas abertas pelo acesso ao saber: por uma trilha o sujeito tem a sensação de posse do saber, enquanto que por outra, não consegue evitar a impotência em não conseguir terminar o processo de nomeação das coisas. Como se portar perante tal dilema, pois é a impossibilidade que mantém, no sujeito, a vontade de saber, seja diante do vazio traçado pelo mais profundo silêncio, seja por meio dos ruídos emanados das palavras no processo de nomeação. Não ter acesso ao saber equivaleria a pensar na possibilidade de deixar o corpo reduzido à sua condição de própria carne, não inscrevê-lo no âmbito da cultura na negativização decorrente do processo de nomeação de suas partes. Então, de quais alternativas o sujeito dispõe em se tratando das andanças no âmbito do saber possível e do saber impossível?
Tanto em um caso quanto em outro temos uma condição perante a qual o sujeito é obrigado a fazer uma escolha. Tomar o saber como algo já dado seria uma condição e erigi-lo em um interrogante seria outra. Em ambas constata-se uma não entrega do sujeito, visto que uma e outra constituem caminhos que trazem a expressão da matriz do desejo, remontando, certamente, ao momento das priscas eras que fizeram o homem ascender à posição bípede e cair de quatro sob o logos,em virtude da perplexidade e espanto experimentados ao entrar em contato com o mundo munido da nova aparelhagem de que dispunha: a visão. A ereção da cria humana na verticalidade a introduziu no universo da falta de objeto e, portanto, no âmbito da linguagem representativa.
Essa ficção postula que ''na origem dos tempos, um período no qual a existência do homem primitivo era regida pelas necessidades biológicas imediatas e em que o instinto sexual era regido por uma periodicidade orgânica'' (REY-FLAUD, 2002, p. 30). Eis a configuração de um estágio evolutivo que pode ser pensado como o equivalente a uma era anal da humanidade em virtude do predomínio do primado do olfato. Outro estágio, na escala evolutiva, teve seu início quando o homem passou de quadrúpede para bípede, modificando sua postura decisivamente, pois destituiu da comunicação olfativa por uma modalidade pautada no olhar.
A Pulsão Escópica
A dinâmica referida ao olfato muito cedo dá lugar à visão enquanto elemento primordial de atração sexual. Em termos comparativos, podemos refletir que enquanto o olfato, no âmbito da vida animal, desempenha o papel de funcionamento ligado a uma espécie de automatismo, a visão assume o primeiro plano, na esfera da experiência humana, vinculando a sexualidade não mais a ciclos periódicos e, sim, passando a ser uma função de todo o percurso de vida.
O aparelhamento da visão propicia um tipo de relacionamento que não se calca na presença imediata do objeto, como acontece no relacionamento mediado pela comunicação olfativa, pois o que está em cena é a ausência do objeto, visto ser próprio da dinâmica escópica buscar aquilo que não se encontra mais no lugar de sua aparição. Em suma, se em um primeiro tempo da existência a cria humana tem o olfato como mediação de sua relação como o mundo, isto requer um tipo de contato que somente se firma na presença do objeto. Essa forma rudimentar de comunicação é objeto do recalque orgânico (FREUD, 1906-1976). Por outro lado, com a entrada em cena da visão é possível buscar o objeto na sua ausência, do que resultaria não mais uma relação imediata e, sim, permanente. Isso quer dizer que a utilização da visão, na mediação do sujeito com o mundo, fez com que entrasse em ação algo da ordem da falta. Daí podemos, ironicamente, afirmar que, depois desse momento, somente restou ao sujeito a experiência de, perante o saber, ter como a única alternativa possível sair de mãos vazias, especialmente quando se confrontou com a região genital da mulher e comparou-a com a do homem. Entender essa diferença somente foi possível pela construção do saber, movido pelo desejo de aceder ao inacessível encoberto de véus sombrios e mistérios inexplicáveis.
A condição necessária como garantia para o desejo é a de que o saber comporta sempre a dimensão do vazio, o que nos propicia entender que, para a cria humana, a única possibilidade de que dispõe como meio de realização diante do pleno impossível é o vazio que, como exigência, leva à produção de saber. Mas se o saber comporta tal ordem de vazio é porque o homem não abre mão de seu projeto assaz ambicioso de tocar o mistério do sexo, sendo essa aspiração a que primeiro faz parte do universo de preocupação da criança: o que é o sexo?
A criança quer saber; o aprendente quer saber; o analisante quer saber e, enfim, move-se o homem sempre tentando, a duras penas, colocar o seu projeto de produção e transmissão do saber. Pode-se até pensar que a ignorância, como o outro extremo de um contínuo, sendo o contrário do saber, é o ponto de partida que faz do sujeito o curioso desejante de saber, visto que ''nenhuma criança - pelo menos nenhuma que seja mentalmente normal e menos ainda as bem dotadas intelectualmente - pode evitar o interesse pelos problemas do sexo nos anos anteriores à puberdade'' (FREUD, 1908-1993, p. 188). Podemos compreender a sexualidade infantil como uma teoria sobre o não sabido acerca do sexo, isto é, de como a sexualidade vivida por intermédio do complexo de Édipo sucumbe ao recalque (FREUD, 1905-1976). Comecemos primeiro pela ideia de uma amnésia infantil. O que vem a ser isto? Por que deixamos de saber o que aprendemos a duras penas na passagem do Complexo de Édipo? O que ele nos ensina? O complexo de Édipo é uma história de amor, um amor que termina em tragédia. É uma história sobre a origem e sobre o Destino. Essa história dará origem a um marco daquilo que não deve ser lembrado, a saber, o supereu.Como herdeiro do complexo de Édipo, o supereu é guardião do não sabido que um dia foi intensamente vivido. Em muitas circunstâncias, como no adoecimento psíquico, por exemplo, esse não sabido, porque sucumbiu ao recalque, retorna com força total. O supereu encarrega-se tanto da cobrança da realização do desejo como legisla negando essa satisfação, o que poderá redundar na formação sintomática (MANSO DE BARROS; OLIVEIRA, 2004).
Se há uma pressão que arranca o sujeito da condição de ignorância, ela se dá certamente em função da busca de uma verdade, o que é a condição do desejo. Não obstante, a verdade procurada toca a ordem do impossível uma vez que se assenta no interrogante sempre enigmático do por que existem dois sexos, ou melhor, o que há entre um e outro que faz a diferença. Ora, saber que é em um nada existente que encontramos aquilo que faz a marca do que há entre um homem e uma mulher é o que podemos nomear como sendo um abismo. Abismo, mistério e impossibilidade: eis os três pontos aos quais o saber leva o sujeito quando ele se dispõe à tarefa de querer entender o enigma que se refere ao sexo. Mas se o sexual põe o sujeito diante do impossível, isso o força a produzir, mesmo tendo evidências de que nunca o tudo será produzido.
Difícil caminhada pelas veredas do saber. O homem teria em seus sonhos a pretensão de alcançar a totalidade do saber para assim realizar seu desejo maior, o de dominar o universo. Mas seu acesso ao saber ocorre sempre de forma parcial. Melhor dizendo: quanto mais obscuro é o enigma, maior o interesse em desvendá-lo, pois certamente o desejo não é movido por coisas que são possíveis na realidade. Sendo assim, a verdade buscada por cada um é sempre aquilo que se oculta por um véu, de modo que toda conquista pelo acesso ao saber envolve sempre um padecer. A princípio, porque fica desfeito o lastro da ignorância, o que, sem dúvida, é vivido pelo sujeito como uma perda, ainda que de inocência, e, em segundo lugar, o saber alcançado deixa sempre um excesso que não é açambarcado por qualquer operação relativa à verdade, esta sempre impossível.
Se o saber é aquilo que o sujeito mais deseja, não é diferente de sua maior intenção de dizer a verdade. Mas o que o sujeito provavelmente desconhece é que resiste com força imperiosa à verdade que busca saber. O que há de tão temido nessa verdade a ponto de o sujeito desejar muito sabê-la e criar enredos para nunca alcançá-la? Talvez cada um não tenha mais vocação para repetir o drama vivido pelo personagem que conhecemos como Édipo Rei, que depois de ter acesso à verdade teve de arrancar os olhos para doravante ver somente nas trevas:
[...] e se eu soubesse como silenciar os sons em meus ouvidos, eu vedaria por completo esse miserável corpo, para que nada mais pudesse ver, nem ouvir, pois há de ser um alívio estar incomunicável com este mundo de dores. (SÓFOCLES, 2004, p. 73).
Havia em Édipo o desejo de saber e a esperança de alcançar a verdade. Fala-se depois de tragédia porque Édipo, em seu ser, conseguiu fazer convergir o saber com a verdade, embora isso tenha tido um alto custo subjetivo: seu desejo. Todo seu padecimento adveio do fato de que seu desejo foi desejo de saber, sem o que não seria possível qualquer tragédia, ou seja, o que faz de Édipo um herói trágico é o fato de ter querido saber. Dilema interessante: quanto mais o sujeito se move para ter acesso ao saber mais teria de ficar na condição de ignorância. Mas como o desejo não é nada condescendente com o sujeito, o faz por impulsioná-lo, de forma inevitável, ao precipício do desfiladeiro que marca sua trajetória no fenômeno chamado vida, em que lhe é dada a alternativa de se inventar e, ao mesmo tempo, inventar o mundo a sua volta, sendo o artífice da escrita de uma história em que são deixadas em filigranas as pegadas causadas pelo desejo.
Assim, confluímos para a tríade mais delicada para o sujeito. A ignorância tem de ser mantida para que se procure saber alguma coisa, pois se não há ignorância tampouco há ação em direção ao saber. O acesso ao saber é sempre marcado por uma reviravolta que desfaz os alicerces nos quais o sujeito assenta sua ignorância, mas, nem por isso, deixa de ser a maior das conquistas possíveis. A verdade sempre que é produzida leva ao padecimento, pois o desejo não se cansa de assinalar que existe nisso um logro: a verdade é sempre impossível visto estar remetida ao indizível do sexo. Então, o que resta? Desejar, buscar o saber e alimentar a ilusão de ter alcançado um meio para solucionar os impasses oriundos de fontes diversas. O grande equívoco é, sem sombra de dúvida, a crença do sujeito de ter encontrado a verdade. Bela encruzilhada, pois é pelo equívoco que há sempre um refazer do caminho de busca do saber uma vez que ''o impossível da verdade é a razão de querer ter a razão'' (SZPILKA, 1979, p. 47).
Inquietante questão que toca em cheio a relação do desejo com o saber e que se mostra ser o interrogante possível para rastrear algumas ideias. Referimo-nos à clássica indagação que fez tantos estudiosos ocuparem-se do empreendimento de encontrar uma resposta: há o desejo de saber, visto que ''o saber faz com que a vida se detenha em um certo limite em direção ao gozo''? (LACAN, 1992, p. 16).
Desejo e Verdade
Para adentrarmos em tão complexa seara, teríamos, a princípio, de partir de uma suposição necessária no que concerne ao desejo, uma vez que este somente pode ser definido em função daquilo que dele resulta, ou seja: daquilo que se aproxima do ponto que tangencia a articulação entre saber e verdade. Desejo de saber e vocação para a verdade são vetores que acompanham o sujeito desde o momento em que faz parte da teia constituída pela linguagem. Certamente temos os dois esteios que dão ao sujeito os indicativos próprios da condição humana. Isto pelo fato de que, se atentarmos para a formulação kantiana sobre o processo do tornar-se humano, depreendemos que o homem em função da condição em que vem ao mundo é o único ser que, para sobreviver, precisa ser educado (KANT, 1996). O que deduzimos de tal assertiva? Sem sombra de dúvida, concluímos que, em se tratando do animal, este ao nascer já é teoricamente tudo aquilo que pode ser em razão de uma dotação pelo instinto, de modo que poderíamos mesmo afirmar que todo animal é o que é ao nascer, enquanto o homem é apenas uma indicação do que poderá ou não vir a ser. Se o animal traz em si uma dotação é porque uma razão exterior já se encarregou de traçar uma trilha a ser quase que devidamente seguida, salvo alguns acidentes.
O homem, ao contrário, deve servir-se de sua própria razão, uma vez que, na origem, não é, por si próprio, ainda nada, de modo que tem de se engajar em uma trajetória para realizar a grande conquista do tornar-se o que deve ser. Em um tom de certa ironia, podemos pensar que a natureza acabou todas as suas obras, mas entregou o homem a si mesmo para que traçasse as linhas inevitáveis de seu destino. Isto só é possível, certamente, pelo fato de que ''o homem sobrevive por nascer em um mundo humano, preexistente, que já é estruturado'' (CHARLOT, 2000, p. 52). Se, de um lado, o homem encontra-se submerso em um topos estruturado pela linguagem que o pode amparar, do outro, apresenta-se em sua principal característica que é o estado de desamparo, completamente dependente do Outro.
Eis o que entendemos pelo estado de inacabamento peculiar à cria humana que, embora porte uma grande fragilidade, parece ser recompensada pela grande plasticidade, o que é decisivo em termos da escrita de uma história em um mundo estruturado que lhe preexiste, onde há um legado que lhe é constantemente transmitido. Isso nos faz pensar que o determinante de peso da condição humana não seja o seu equipamento genético e sim algo que se encontra fora dele em relação ao que ocupa uma posição excêntrica. Nesse sentido, podemos admitir que a humanidade (o tornar-se humano) em oposição à animalidade (viver em adequação com o topos natureza) não é uma doação da natureza em cada ser isolado, sendo certamente o resultado da incidência de uma história que concerne à tessitura social em que se encontra. Sendo assim, a condição humana não é apenas a ausência de ser na cria humana em seu estado de desamparo, mas, certamente, o ingresso em um topos em que o humano existe sob a forma de pactos com outros, de modo a aludir ao patrimônio que se estende em direção à ancestralidade, patrimônio esse que será, via de regra, parcialmente apropriado pelo saber em uma relação de excentricidade.
Em razão da peculiaridade do homem, em princípio nada saber de si nem do mundo, ele é, ao nascer, aquilo que poderíamos denominar um ausente em si. Essa ausência faz parte de sua estrutura e será a marca que acompanhará o seu ser como aquilo que será a mola de toda e qualquer realização possível, já que essa ausência configura-se sob a forma de desejo, desejo que é sempre, no fundo, o desejo de ir à busca de algo que se apresenta no registro da falta, mas que jamais seria realizado, uma vez que isso representaria o perigo de aniquilar o homem enquanto humano.
Da mesma forma que o homem é ausência em si, pela sua condição de ser falante, é também uma presença fora de si uma vez que se constituiu a partir do Outro e que dirige o que faz para esse Outro na busca de reconhecimento. Ausência de si e ao mesmo tempo presença fora de si são os aspectos que caracterizam a condição humana, pois esta é a matriz da dinâmica do desejo, o que marca o engajamento de um corpo em um contexto em que é assinalada a necessária e incessante luta pela sobrevivência, que exige constantemente a incursão no campo do saber. Desse modo, nascer é ingressar em uma história maior que é a história da humanidade e construir, pelas próprias mãos, uma história singular, o que somente é possível pelas andanças nas trilhas sempre intermináveis do saber, visto que somente podemos pensar que o sujeito emerge quando situamos o saber. Nesse sentido, o sujeito é aquilo que se produz na relação com o saber, sendo este o momento em que se formula a relação com o mundo e consigo mesmo. Estamos assim postulando que o sujeito se estrutura na relação com o saber por causa da sua condição de ausente em si mesmo, voltado para uma exterioridade excêntrica. A vereda que se estrutura por essa via constitui o que denominamos desejo de saber, o que não implica necessariamente a relação direta com a verdade, visto que a vocação para a verdade tampouco implica a relação com algum saber. O desejo de saber se assenta no terreno da impossibilidade e a verdade, às vezes, cega, certamente pelo fato de que ''poderia cegar a quem a contemple em sua nudez, porém ter querido saber supõe não o olhar, senão os olhos que buscam, os olhos que quiseram ver. São estes olhos, a causa do desejo'' (SALAFIA, 1995, p. 24).
Saber e verdade não se recobrem um ao outro embora tenham um ponto comum que é o desejo, aquilo que coloca o sujeito diante do pórtico indicado pela palavra Destino. Em relação a tal nuança da condição humana, definida desde os gregos como o trágico, sabemos tratar-se do desejo de saber. Se há algo de trágico no sujeito é, sem dúvida, o desejo de saber que o obriga a empreender-se na árdua tarefa de busca de sua verdade.
Somente há verdade quando o sujeito, pelo desejo de saber, faz ato. Melhor, somente há verdade quando o sujeito dispõe-se a querer saber alguma coisa. Sob este prisma, o ato heróico que faz do sujeito um ser digno da virtude e também aquilo que é a razão maior de sua condenação, é o fato de um dia ter querido saber alguma coisa, conforme encontramos no célebre ensaio freudiano sobre as teorias sexuais formuladas pelas crianças, a indicação de que a criança, na mais tenra idade, encarrega-se da tarefa de realizar descobertas na posição de querer saber, mesmo que seja por intermédio do ver, o que conhecemos como a chamada curiosidade sexual (FREUD, 1908-1993), embora a Psicanálise se distinga, entre todos os discursos, por ser justamente aquele que denota o quanto o sujeito fala sem saber, dizendo sempre mais do que sabe. Sendo assim, compreendemos que o sujeito fala sem saber, pois ''fala com seu corpo, e isto sem saber, quer dizer o sujeito diz mais do que sabe (LACAN, 1985, p. 161). Isso quer dizer que o inconsciente não pode ser pensado como um ser que pense, embora haja pensamentos inconscientes, mas que o ser, falando, goza. Mas há nisso um logro, visto que a fundação do saber pressupõe um gozo, mas o saber está no Outro.
A partir dessa peculiaridade, própria da condição humana, tem lugar o processo que acompanha o sujeito em toda a sua trajetória de vida, sendo a marca princeps de sua constituição. Referimo-nos à inclinação para o saber e para a busca de conhecimento que tem lugar em decorrência da curiosidade sexual transformada em desejo de saber. São diversos os caminhos que o desejo de saber trilha para o sujeito. Em princípio, há uma modalidade de saber sobre a qual o sujeito nada quer saber, colocando-se na posição de inocente. De qual saber estamos falando, senão daquele que traça as marcas que delimitam as posições subjetivas de masculino e feminino? Certamente, se o sujeito nada quer saber sobre isso é porque não há representação no inconsciente do que seja a diferença de sexos. A referida impossibilidade de representação é algo que fica para sempre sob a égide do recalque, sendo que ''o recalcado é a impossibilidade de representação da diferença, que é um efeito'' (MAGALHÃES, 1995, p. 33). Uma vez recalcada a impossibilidade de representação da diferença no inconsciente, ao sujeito resta apenas operar com pares de opostos (atividade-passividade, fálico-castrado e masculino-feminino), que se afiguram no lugar dessa falta. Em segundo lugar, há o saber que se sabe e que, por causa do acesso do sujeito, se reveste de uma máscara. A esta modalidade de saber o sujeito tem a atitude de recusa, mas que aparece em disfarces conforme evidenciam as formações do inconsciente. Trata-se de um saber que coloca para o sujeito o impasse do confronto com a castração. Enfim, a terceira modalidade é a do saber impossível de ser sabido como aquele que põe em jogo um excesso que não é capturável pela rede significante, sendo por isso uma forma de gozo.
Qualquer uma das modalidades de saber tem como mola a falta com a qual a cria humana se depara não em si, mas diante do encontro com a nudez no corpo da mulher. Eis o momento que evidencia para a criança o enigma referido à distinção anatômica entre os sexos. Na tentativa de produzir uma solução para tal enigma, a criança formula as seguintes indagações: a) qual a origem das crianças? e b)qual o lugar do pai na procriação? Estas são as incômodas questões que incitam o pensamento da criança no empreendimento de solucionar tais enigmas, fontes de angústia.
A primeira teorização acerca do sexo é a produção de uma modalidade de saber que se enuncia em termos da possibilidade de existência de igualdade entre os seres. Trata-se de um tipo de saber que nega qualquer indício referente à diferença sexual. Esta construção ficcional coloca um obstáculo à verdade, forçando a criança a produzir soluções para o que disso se desdobra. Na condição de saber, é formulado pela criança sobre a concepção do coito de natureza sádica e a origem anal excrementícia da criança. Neste processo de investigação, a criança se encontra diante do impacto conflitivo de duas realidades opostas. Por um lado, tem a cosmovisão baseada na atribuição de um falo a todos os seres vivos, inclusive às mulheres. Por outro, há um conjunto de evidências que desmente tal suposição imaginária. Em outras palavras: o conhecimento originário da criança articula-se diretamente ao complexo de castração. A consequência desse enganche de um complexo no outro é que para apreender a realidade, a criança deverá abrir mão de sua concepção narcísica e substituí-la pela simbolização, processo representacional produzido a partir da captação da diferença. Isso quer dizer que a criança, pelo complexo de castração, é obrigada a admitir o estatuto da falta no Outro e aceitar todas as consequências que decorrem dessa evidência, inclusive a condição de ser também um ser que quer saber, estruturado pela falta. Mas quando a criança constata que há falta no corpo da mulher, cientifica-se também de que o Outro deseja. A falta captada no Outro é vista como ameaça e exige do sujeito uma posição, o que geralmente é decidido pela produção de saber.
Ao querer saber, o sujeito não pode mais evitar experimentar uma perda e tampouco se esquivar das consequências decorrentes do acesso ao saber. Dito de outro modo, somente há perda quando se quer saber alguma coisa, pois é nesse momento que o homem se depara com um dos impossíveis que toca o saber: o saber jamais será todo sabido. Só há produção de saber porque sempre algo escapará de ser produzido enquanto saber. Isso quer dizer que se sabe alguma coisa porque há algo que será para sempre insondável.
Por que então há a perda quando se quer saber alguma coisa? Primeiro, pelo fato de que, ao querer saber, a posição do sujeito é a de posse. Eis o grande engodo: o saber não é algo a ser possuído! Em segundo lugar, o sujeito se acosta ao saber, produzindo algum tipo de saber ao se debruçar na zona constituída pelo impossível de se chegar a uma totalidade. Além do mais, teríamos de acrescentar que também a verdade é, na sua face mais transparente, aquilo que causa a cegueira irreversível, conforme nos ensinou Sófocles, no mito de Édipo que se negou a ver, quando contemplou a evidência maior da verdade que se afigurava diante de si. Fez a opção por arrancar os olhos ante o terror que a verdade lhe trouxe afirmando, em um tom de quem estaria de alguma forma recompensado por algo que doravante verá nas trevas. Desse ensinamento concluímos que o desvelar da verdade que o sujeito sabe na zona de não saber pode ser o horror inevitável a ser vivido.
Tirar o véu traz consequências. Quanto a esse tema, podemos encontrar apoio na famosa passagem bíblica do manto de Noé (JULIEN, 1997), ocasião em que um de seus filhos, para não se confrontar com a nudez do pai embriagado, decide cobri-lo com um manto, visto que a posição de um filho diante da nudez do pai seria algo demasiadamente traumático. A decisão do filho de Noé, de se encarregar de encobrir a nudez de seu pai, corresponde à posição de quem sabe alguma coisa, mas que este saber está endereçado a outrem ou faz parte de um espaço que deve ser mantido na ordem do não sabido. Mas sabemos o desfecho dessa história: Noé amaldiçoou aquele que cobriu sua nudez talvez exatamente por, na condição de pai, constatar que seu filho estava querendo saber alguma coisa, ou que já a sabia, o que é pior.
O ter querido saber supõe algo que se estrutura para além do olhar, e isto a criança, na sua posição de cientista, muito nos ensina quando levanta as incômodas indagações dirigidas ao adulto, no momento que se confronta com a visão dos órgãos genitais.
Sabemos que a criança não quer apenas ver para contemplar a cena captada, uma vez que seu objetivo maior é orientado pelo querer saber. O saber buscado, pela criança pela mediação do olhar, encontra-se em um lugar encoberto por um véu.
O olhar então exerce a função de fazer a travessia do véu, daquilo que lhe obscurece a visão interna. Como realização, o ver apresenta-se, assim, como a fonte de inesgotável prazer, pois ''o prazer de ver e a pulsão de saber frequentemente se enlaçam para conduzir ao campo do prazer o gozo de avançar desde o limite'' (SALIBA, 1990, p. 249).
O olhar que busca é aquele que se mostra e se oculta na aparência das coisas; é o tipo de olhar que quer alcançar aquilo que, de forma visível, não se mostra jamais. Assim temos duas operações do olhar: aquele olhar que vê aquilo que é evidente e aquele que busca captar algo onde nada pode ser desvelado. Essas duas modalidades de olhar atreladas ao saber são os meios de acesso do sujeito ao mundo que se estruturam pelo desejo de saber, que emerge na criança com o prazer de ver, próprio da curiosidade infantil. Se o não saber coincide com aquilo que é encenado para não ser visto, o que é sabido, por remeter ao desvelar de uma verdade, é algo que deixa sempre um ponto obscuro a ser sondado, sendo esse o ponto de disjunção entre a verdade e o saber.
O que pode ser sabido e o que não pode? Para tentar enveredar na busca de uma pista para pensarmos esta complexa questão, teríamos de nos remeter à distinção platônica sobre os três estados que incidem sobre o homem e que estão intimamente articulados ao saber.
No primeiro, o estado de prazer organiza-se em torno de um saber cingido sobre o que seja da ordem dos caminhos que conduzem à satisfação e também a própria satisfação em si. Já no estado de dor, temos a inquietude como a sensação que faz o sujeito querer encontrar um meio, por intermédio do saber, para o processo de fuga. Enfim, no estado neutro, o saber é estruturado naquilo que se apresentaria para o sujeito como harmonia e este tipo de saber, no entender de Platão (1975), seria o único capaz de ser elevado à categoria de virtude, pois a dor dissolve a harmonia enquanto que o prazer incitaria o ser à realização de movimentos para buscá-la. Se, por um caminho, temos um saber traduzido pela ruptura, por outro, temos o saber que se traduz pela busca. Cabe salientar que a harmonia somente é aspirada quando teria sido irremediavelmente perdida, pois se o sujeito não experimenta a dor nem o prazer tampouco lhe interessa pensar em quietude, de modo que nenhum tipo de saber teria lugar. Dito em outras palavras, a harmonia só é pensada no interstício entre a ausência de dor e o tão esperado início de satisfação. Eis uma modalidade de saber referida ao mesmo tempo à perda e à busca.
Uma vez que o homem tenha experimentado a dor e a satisfação e, tendo se livrado desses sentimentos perturbadores, então poderia se encaminhar para a realização de tarefas mais nobres, pois estaria na via que abriria o pórtico para o estado neutro, de modo a alcançar o tipo de vida que seria, no entendimento de Platão, a mais divina de todas. Isso faria cessar a busca imediata do saber para soluções das perturbações vividas e assim haveria o conhecimento do prazer puro, dissociado e isento da lembrança da dor, o que se traduziria no Bem. O prazer produzido pelo saber construído a partir da experiência de dor é certo estorvo, enquanto que o prazer que se obtém pelo desejo de saber, sem que seja formulada já uma finalidade, é um estado de pureza que resulta de nenhum sofrimento e tampouco de qualquer falta dolorosa, como também não poderia estar atrelado ao alívio vivido quando do desaparecimento da dor.
Seria, pois algo que se estrutura em torno da modalidade de saber chamada sapiência: saber sem dor, mas todo sabor possível (BARTHES, 1978). O que não quer dizer que a experiência do sábio esteja desvinculada do desejo visto que a atitude de sapiência visa ao Bem e também à verdade. Em outras palavras: podemos pensar uma modalidade de saber que seja o resultado de um movimento outro que não o causado pela experiência de dor ou pela experiência de prazer. Certamente essa modalidade de saber é aquilo que entendemos como o que se estrutura em decorrência das andanças realizadas pelo sujeito que têm como causa o desejo.
Eis a modalidade desejante que aciona o sujeito na direção a uma descoberta cujo alvo é a construção de esteios para as incertezas que advêm do terreno sombrio que se estende a sua frente, o que popularmente é referido como o ''dia de amanhã'' e não como aquilo que se volta para o imediato. Seria, pois, o desejo que sobrevém sempre da inclinação do sujeito a si ou do amor de si, sendo esta a via gloriosa que levaria ao saber. Situamos assim, um pórtico que leva o sujeito ao saber não imediato. Neste lugar opera o desejo de desejar como condição do desejo de saber. Isso nos faz pensar na ocorrência de uma série de processos desencadeados na aventura do sujeito para a garantia de sua existência. Em princípio, temos o desejo, o ato de desejar e ainda a coisa desejada como aquilo que se encontra em um para além do ato de desejar. Esse para além é o que se apresenta na injunção daquilo que se constrói em torno do impossível referido ao saber. Eis os modos de o sujeito se relacionar com o saber. Os sábios viam nessa modalidade a douta ignorância. Ou seja, trata-se de uma ignorância que faz o sujeito mobilizar-se no sentido de ocupar a posição de inventar. Isso significa admitir que há, no sujeito, o momento de perplexidade ante as coisas do mundo. O que é decisivo para que se encarregue da tarefa de inventá-las e para isso o único recurso de que dispõe é o saber. Quando situamos a posição de perplexidade não estamos querendo propor um desconhecimento, mas um modo de ser, cujo ponto de partida é a posição de não saber para que tenha lugar a produção do que é possível em relação ao saber.
O não saber como ponto de partida é uma espécie de saber que mobiliza o sujeito à ação. Ao agir, o sujeito acumula saber, não como algo definido e acabado, mas como uma estrutura sempre aberta que incita a construção do ponto último para se alcançar o fechamento.
Convém, a título de esclarecimento, relembrar a clássica distinção entre informação, conhecimento e saber.
A informação é um dado exterior ao sujeito que pode ser estocada sob a primazia da objetividade.
O conhecimento é o resultado de uma experiência pessoal ligada à atividade de um sujeito, sendo por isso mesmo intransmissível, visto encontrar-se sob a primazia da subjetividade. Assim como a informação, o saber está, de certo modo, no âmbito de certa objetividade, mas é uma informação da qual o sujeito se apropria, sendo por isso mesmo conhecimento que se produz no confronto das trajetórias que se cruzam quando um sujeito vai ao encontro de seu semelhante.
Assim temos algo que encerra uma dimensão mítica por apelar para o desejo do Outro, de modo que poderíamos afirmar que, diferentemente da informação e do conhecimento, somente há saber para um sujeito, o que nos leva a pensar que não há saber organizado fora do âmbito da tessitura social. Sendo assim, a ideia de saber, naquilo que toca o desejo, implica necessariamente a ideia de sujeito, tanto a ideia de relação do sujeito consigo mesmo, quanto a ideia de sujeito na relação com o mundo e com os representantes de sua espécie.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O saber, na equivalência ao conhecimento, distancia-se da verdade, pois se o conhecimento é algo que pode ser alcançado, a verdade seria o bem maior que o sujeito vislumbra encontrar. A busca da verdade aciona o sujeito e o faz ter esperanças de encontrar aquilo que sirva para preencher seu vazio originário.
A verdade é, assim, o que há de mais importante para o homem, visto que é pelo acesso à verdade que o sujeito espera encontrar o que responde pela falha constitutiva ôntica devido ao fato de ter se inscrito no universo simbólico. Se a verdade é o centro de maior interesse do ser, podemos dizer que há uma profunda relação entre verdade e ser, de modo que o sujeito nada é senão todo o esforço empreendido para alcançá-la na expectativa de que assim seja produzida uma solução para o vazio estrutural próprio de seu ser, o qual não se preenche com qualquer modalidade de conhecimento possível.
Eis o tipo de saber que se forja quando o homem levanta para si mesmo a famosa indagação: ''O que sou?'', resultado da revolução que teve lugar quando se encarregou de mudar o estado natural de coisas e ascendeu à posição bípede, o que conhecemos como a condição de homo erectus.
Mas, se por um lado, houve a subversão do estado original de coisas, por outro, houve a sujeição à razão quando se deparou com o horizonte a sua frente, na condição de fonte inesgotável de enigmas, sombras e mistérios.
O homem não teve alternativas senão a de indagar: o que é isto? Questão bastante inquietante que o direcionou a um novo estado, o de homo sapiens. Na tentativa de produzir soluções para essas enigmáticas questões, ele construiu o chamado saber textual, como a conditio sine qua non de toda a experiência humana. Ao realizar a trajetória sugerida por essa experiência, há a construção de um tipo de saber que caberia muito bem ser denominado de saber pessoal, passível de ser enunciado e transmitido uma vez que traz as marcas do patrimônio cultural, entendido como o legado deixado por intermédio das pegadas com as quais o homem se livra das amarras que o aproximaria do que seja um ser sem história e sem participação efetiva na transformação do entorno a sua volta e também daquilo que é próprio da relação com o semelhante.
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Endereço para correspondência:
Francisco Ramos de Farias
E-mail:frfarias@uol.com.br
Rita Maria Manso de Barros
E-mail:ritamanso@globo.com
Recebido em: 24/09/2008
Aprovado em: 28/07/2009
Revisado em: 28/06/2009