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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. v.61 n.3 Rio de Janeiro dez. 2009
ARTIGO
A questão do suicídio: algumas possibilidades de discussão em Durkheim e na Psicanálise
Suicide: A discussion in Durkheim and in Psychoanalysis
Liliane M. A. SilvaI; Luis Flavio CoutoII
IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
RESUMO
Este trabalho apresenta algumas possibilidades de aproximação entre as ideias de Durkheim e a Psicanálise quanto ao suicídio. Os conceitos de sujeito e de laço social são discutidos em cada uma dessas teorias, com ênfase nas semelhanças e divergências entre elas. Discute-se a possibilidade de estudar o suicídio como ato particular e imprevisível sem perder sua perspectiva como fenômeno social.
Palavras-chave: Psicanálise; Suicídio; Durkheim; Corrente suicidógena; Laço social.
ABSTRACT
Some possibilities of approaching suicide through the ideas of Durkheim and those of Psychoanalysis are brought forward. The concepts of subject and social tie are discussed in these theories, with emphasis on similarities end differences between them. We discuss the possibility of studying suicide as an unpredictable individual act without losing its perspective as a social phenomenon.
Keywords: Psychoanalysis ; Suicide ; Durkheim ; Suicidal current ; Social entail.
INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe-se a discutir alguns pontos de encontro e de desencontro entre a concepção psicanalítica e a durkheimiana sobre o suicídio. São teorias surgidas em um mesmo período histórico, fim do século XIX, e apesar de constituírem um mesmo objeto de estudo os homens em seus enlaçamentos sociais, se mantiveram como campos divergentes e tidos como irreconciliáveis até pouco tempo.
Para o sociólogo (DURKHEIM, 1897/2000), o suicídio é um fenômeno social e constitui um dos elementos de mecanismos de restabelecimento do laço social que se utilizam de rituais de punição ao crime para alcançar seus objetivos. Um fenômeno estatístico regular e característico para cada sociedade. Já a Psicanálise pensa o suicídio como um ato particular e endereçado ao campo social. É importante lembrar que a morte, compreendida como uma pulsão, é uma presença silenciosa no laço social.
Ao longo do texto aparecerão os desdobramentos que colocarão, sob nosso ponto de vista, o que cada teoria produz acerca do suicídio.
SUICÍDIO E LAÇO SOCIAL: DURKHEIM
Em 1897 Durkheim publicou o livro O Suicídio estudo sociológico. Neste texto, ele apresenta o conceito de corrente suicidógena, que se traduz em "cada povo ter, coletivamente, uma tendência ao suicídio que lhe é própria e da qual depende a importância do tributo que ele paga à morte voluntária" (DURKHEIM, 1897/2000, p. 392). A necessidade social de uma cota de sacrifício na forma da morte voluntária adviria da função que esta desempenha nos mecanismos de harmonização social.
Para este autor, a sociedade resulta de forças morais reguladoras externas ao indivíduo. No entanto, "do fato de que as crenças e práticas morais nos penetram a partir do exterior, não se segue que as recebamos passivamente e sem lhes imprimir modificação" (DURKHEIM, 1893/1999, p. 155). Deste modo, a produção de subjetividade implica a singularização do indivíduo.
A corrente suicidógena é uma dessas forças sociais externas. Manifesta-se de três formas, e cada uma é um tipo de patologia do vínculo social:
Egoísta: desamparado do laço social, o indivíduo deve dar sentido à sua existência por si mesmo, o que lhe é motivo de um sofrimento insuportável.
Altruísta: submetido em excesso a uma consciência coletiva, o indivíduo não possui valor por si mesmo, mas apenas à medida que puder ser útil ao seu grupo social. O grupo tem absoluta prioridade sobre quaisquer desejos do sujeito de estar vivo ou morto.
Anômico: uma mudança súbita de lugar social faz com que a realidade psíquica, até então contida pelas normas sociais, transborde. Essa realidade é tida por Durkheim como sem fundo e representa um grande perigo ao indivíduo e à sociedade, já que o coloca sob o jugo de necessidades insaciáveis. Imerso no caos, o indivíduo se mata.
De que modo o indivíduo é capturado pela corrente suicidógena em cada um desses tipos de vínculo social?
O conceito durkheimiano de indivíduo (DURKHEIM, 1897/2000; 1893/1999; 1895/2003 permite vislumbrar o modo como se articula este ato particular, o suicídio, a uma necessidade social do indivíduo social-individual. Para o autor (DURKHEIM, 1893/1999; 1897/2000), além do indivíduo que resulta da ação educativa da sociedade, há uma esfera psíquica que escapa a toda regulação social, o indivíduo social-individual (SILVA, 2007). Essa esfera psíquica permanece como um limbo entre o que é da constituição orgânica e o que é adquirido socialmente, por meio da educação formal ou informal.
Durkheim propõe que a consciência individual possuiria um caráter inesgotável, demandando incessantemente a satisfação de necessidades particulares, ainda que em detrimento da coletividade. O transbordamento desta realidade interna poderá produzir um esgarçamento mortífero do laço social, algo que seria perigoso tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. Deste modo é fundamental que as normas sociais não percam seu poder de conter a consciência individual. O autor considera que estes fatores, o caráter inesgotável da consciência individual e o poder das normas sociais em contê-la, são significativos para compreender os diversos tipos de suicídio, ainda que sua teoria privilegie pensá-lo como fenômeno social.
Durkheim estabelece um ponto de tangência entre:
Um mal-estar cultural, com a crise das normas de um grupo e um mal-estar do indivíduo;
O transbordamento de sua realidade psíquica caótica e insaciável;
A necessidade para a sociedade e para o indivíduo tanto da manutenção de um funcionamento ótimo das normas quanto do restabelecimento de seu poder de coerção sobre o indivíduo.
Ora, a Sociologia durkheimiana não é a única teoria a apontar a existência de um conflito entre as exigências psíquicas individuais e as possibilidades reais no campo social para que estas se concretizem, bem como a apontar os efeitos desse conflito para a sociedade como um todo. Entre outras teorias, a Psicanálise também o faz, resguardando a radicalidade a que Freud e Lacan levam o conceito de sujeito do inconsciente ao pensar a relação entre este e a cultura. Tanto para Durkheim quanto para a Psicanálise, os desencontros entre os interesses do indivíduo e da sociedade são matéria-prima para compreender os fenômenos sociais, entre eles, o suicídio.
O presente texto se propôs a perguntar quão interessante poderia ser, na busca de melhor compreender o ato suicida, tomar esta noção de indivíduo durkheimiano e o seu conceito de corrente suicidógena e discutir se estes poderiam ser aproximados, em algum grau, do que a teoria psicanálitica teria a dizer acerca do ato suicida, a partir da ideia do laço social constituindo-se no jogo das forças pulsionais de vida e de morte.
UM SUJEITO PULSIONAL X UM INDIVÍDUO ABISSAL: UMA SOCIEDADE SUICIDA?
A existência de uma pulsão de morte, tanto no campo do sujeito quanto no campo da cultura, é apresentada por Freud. Mesmo com as diferenças e as divergências epistemológicas que impedem a transfusão de conceitos entre a Psicanálise e a Sociologia de Durkheim, observou-se na seção anterior que no bojo de sua teoria positivista ele terminou por demarcar uma instância no sujeito para além dos limites de qualquer coerção cultural. Isto tem efeitos em sua hipótese sobre o suicídio. Há dois fatores que permitem pensar o crime e, segundo Durkheim, também o suicídio, como um fator de saúde pública. O primeiro é que uma ação que transgrida as regras de uma sociedade pode significar progresso para o próprio grupo. O segundo é que a punição do crime e, portanto, da morte voluntária, é um ritual no qual se reatualiza, em cada integrante do grupo, o poder das normas sociais como mecanismo de coerção do indivíduo social-individual (COLLINS, 1992 apud MAGALHÃES, 2003).
Diante desta questão, a Psicanálise pode e deve ser convocada? Esta pergunta aparece ao considerar que para a Psicanálise o laço social não pode ser pensado fora de uma ambiguidade pulsional, causadora de um mal-estar social não solucionável. Seriam semelhantes em algum ponto a teoria de laço social no texto freudiano e a proposta de uma corrente pessimista de Durkheim? Para este último, a força social não seria capaz de, sozinha, capturar os indivíduos; seria necessário que estes se aproximassem em demasia da corrente suicidógena. De que modo um sujeito e não outro poderia ser capturado por esta corrente suicidógena? Quanto à teoria psicanalítica, o ato suicida precisa ser considerado como ato particular, ainda que se entrelace a algo da ordem do mal-estar social. Deste modo, poder-se-ia pensar que em ambas as teorias surge a ideia de algo singular no ato suicida, ainda que entrelaçado a uma questão do campo social.
Segundo a teoria lacaniana (LACAN, 1966/2003), há uma distinção entre o "homem da ciência" e o "sujeito da ciência", pois não é na certeza que o sujeito da ciência se funda, mas, antes, na dúvida. Deste modo, "não há ciência do homem, o que nos convém entender no mesmo tom do 'não existem pequenas economias'. Não há ciência do homem porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito." (LACAN, 1966, p. 873). Segundo ele "o sujeito sobre quem operamos em Psicanálise só pode ser o sujeito da ciência" (LACAN, 1966, p. 873).
Já o indivíduo durkheimiano é o homem da ciência, sem dúvida. Entretanto, esse homem da ciência presente no indivíduo durkheimiano se divide em dois: o social-coletivo (consciência resultante da coerção social) e o social-individual (esfera que escapa de qualquer normatização social). Somente o primeiro poderia coincidir com o homem da ciência. O indivíduo social-individual, segundo o próprio sociólogo, não deveria ser motivo de atenção da Sociologia, pois esta esfera psíquica pertenceria ao campo da Psicologia.
Entretanto, é a Psicanálise que irá não apenas tomar como objeto de estudo o sujeito que está fora do campo da consciência transparente e integradora, mas também sustentar os desdobramentos disto em uma clínica do singular, que é capaz de ir do particular ao universal.
Por outro lado, a partir da perspectiva psicanalítica os transbordamentos de uma realidade psíquica que está para além do que as normas sociais conseguem conter do sujeito não resultam de momentos episódicos em que a cultura perde o seu poder de coerção. Tratar-se-ia de manifestações cotidianas do inconsciente, não necessariamente patológicas. Ou seja, também para a Psicanálise há uma ameaça constante de dissolução da civilização e a fonte desta ameaça é a hostilidade inerente ao sujeito. Há, ainda, outra diferença. Na teoria psicanalítica a domesticação dos impulsos hostis do sujeito não se encontra apenas sob a responsabilidade da cultura; há algo na estrutura psíquica do sujeito que estabelece as condições para a instauração desta barra interditora.
É possível, portanto, aproximar as ideias de que há uma realidade psíquica que ultrapassa a capacidade da civilização de normatização e que esta instância é uma ameaça constante aos projetos sociais de progresso e harmonia. Também é ponto comum a hipótese de que o mal-estar social advindo deste conflito entre sujeito e cultura é inerente ao vínculo social.
Foi dito há pouco: é o indivíduo durkheimiano não possuir uma inscrição definitiva da barra social que o torna imprescindível à reatualização periódica da norma social em cada um. Poder-se-ia dizer que esse indivíduo seria para sempre e desde sempre fluido? Não haveria nenhum ponto de estofo a partir do qual este sujeito pudesse se enlaçar ao campo social de modo singular? Toda e qualquer singularidade no indivíduo durkheimiano (DURKHEIM, 1893/1999) que o empurre para a corrente suicidógena deve ser pensada como efeito de um grau específico de tensão do laço social? Quais os efeitos na teorização sobre o suicídio de levar às últimas consequências a presença de uma singularidade no indivíduo durkheimiano? Segundo o autor, não basta a ação da corrente suicidógena para que alguns sujeitos se matem; e isto seria coerente com a ideia de um sujeito capturado à sua revelia pelas forças sociais externas. Ser capturado pela rede de mortes voluntárias exige que o sujeito se aproxime em demasia da corrente suicidógena. Portanto, há na teoria durkheimiana um ponto que distingue o seu indivíduo social-coletivo instituído pelas normas sociais externas do indivíduo social-individual para além do que as normas sociais podem coibir no homem.
O indivíduo social-individual termina por impedir um encontro completo entre o homem durkheimiano e o homem da ciência. Mas este desencontro talvez aproxime esse indivíduo social-individual do sujeito da ciência, tal como propõe a Psicanálise (LACAN, 1966). Há algo neste sujeito de Durkheim (1893/1999) que o encaminha, e não encaminha outro qualquer, a ser capturado pela corrente suicidógena. A captura deste sujeito não é efeito apenas de um grau de tensão específico do vínculo social, mas de uma intercessão entre esta situação e algo no sujeito que o empurra exageradamente em direção à corrente suicidógena.
Neste caso seria crível dizer que na corrente suicidógena qualquer indivíduo poderia ser capturado, mas não um indivíduo qualquer. Na singularidade do indivíduo social-individual há algo que não pode ser resultado apenas do grau de tensão do laço social, pois isto faria com que todos os participantes de um grupo estivessem exatamente da mesma maneira expostos aos efeitos da corrente suicidógena, e não é isto que Durkheim (DURKHEIM, 1897/2000) afirma. Resta saber até que ponto este sujeito que irrompe na teoria do sociólogo poderia se aproximar do sujeito da Psicanálise, do mesmo modo que este se aproxima do sujeito cartesiano.
Se for levada às últimas consequências a existência da singularidade no indivíduo social-individual, isso implicaria, necessariamente, afirmar que há um sujeito-suicida a priori? Caso isto se dê, então a dissimetria entre o indivíduo social-individual, em sua realidade abismal, e o sujeito da Psicanálise se manteria no mesmo nível da que existe entre o indivíduo social-coletivo e o sujeito da Psicanálise. Para a Psicanálise, a hipótese de um sujeito suicida em sua estrutura psíquica não se sustenta.
NO LAÇO SOCIAL, A MORTE
Se a morte voluntária é algo que pode originar-se dos efeitos de uma lógica universal ou também vir a produzir efeitos no campo universal, não pode, por este motivo, ser retirada do campo particular.
A Psicanálise, assim como a Sociologia de Durkheim, afirmaria que não apenas o sujeito é atravessado por um ponto abissal e mortífero, mas que a cultura também o seria? A incidência da pulsão de morte no laço social estabeleceria uma ameaça constante de dissolução da civilização? A teoria freudiana sobre as pulsões de morte e de vida e os modos como estas, desde o início, estabelecem um modo particular de cada sujeito se haver com a realidade social, e as renúncias pulsionais que esta lhe impinge são fundamentais para pensar, na Psicanálise, certo enlaçamento entre mal-estar social e o ato suicida. No texto "O problema econômico do masoquismo" (1924/1976) Freud aponta que a pulsão de morte precisará ser endereçada a algum objeto exterior ao sujeito, entretanto restará algo circulando no funcionamento psíquico e produzindo efeitos de sofrimento (e de prazer, ou de satisfação libidinal). Esse resto de pulsão de morte que permanece circulando em torno do próprio sujeito como objeto nomeou-se masoquismo. Seriam possíveis três formatações para o masoquismo: erógeno, feminino, moral. Os dois primeiros estariam atrelados a uma base erótico-corporal e o masoquismo moral seria aquele que funcionaria como um empuxo a praticar atos considerados criminosos e que colocam o sujeito na condição de ser punido por uma consciência sádica. O masoquista moral não conhece limites e buscará toda situação em que possa encontrar o sofrimento, porque é no encontro com este que ele também encontrará prazer. O ponto de encontro das pulsões de vida e de morte pode se dar de tal modo que, segundo Freud, nesse mesmo texto, nem mesmo o encontro com a morte real pode ser pensado isento da obtenção de prazer.
Há um aspecto do laço social na teoria psicanalítica que não foi abordado até aqui de modo mais detalhado e que pode lançar luzes sobre esta discussão, em especial sobre o ato suicida altruísta durkheimiano. Trata-se da função do líder na constituição e sustentação do vínculo social. Ao discutir esse tema, Freud (1921/1976) acrescenta a identificação com o líder e entre os integrantes do grupo como novo elemento entre os fatores que promovem o enlaçamento social.
A teoria de Durkheim (1897/2000) diz que é por muito amar o grupo e não possuir autonomia consciencial perante a sociedade que o indivíduo não distingue um valor para a sua vida distinto do valor da existência do grupo a que pertence. Para a teoria freudiana (FREUD, 1921/1976), o sujeito poderá em nome deste amor ao pai/líder assumir como ideal de ego de modo indistinto o que esse pai lhe outorga, e não há limites para os sacrifícios que isto pode lhe exigir. Tanto na Sociologia quanto na Psicanálise é um excesso no laço libidinal que retira do sujeito a possibilidade de se perceber como possuindo valor em si e não apenas na imersão em uma realidade psíquica/social coletiva.
A ideia freudiana de um mal-estar na cultura se manifestando das mais variadas formas é sustentada na teoria lacaniana (LACAN, 1970/1992) na discussão sobre a circulação de gozo na cultura. O gozo, compreendido na articulação entre as pulsões de vida e de morte freudianas, permearia a relação do sujeito com o mundo e neste sentido o laço social não escaparia de seus efeitos. Na sociedade capitalista este circuito mortífero possui características inéditas e produz efeitos de foraclusão do sujeito. Há no laço social do discurso capitalista um recurso de captura do sujeito que é a lógica da quantificação, utilizada inclusive no tratamento social dado ao suicídio na atualidade. Sobre o gozo, afirma-se que se trata de uma instância negativa, aquilo que não serve para nada (LACAN, 1972/2003). Sem transformar as duas pulsões em uma, a teoria lacaniana, no entanto, aposta em uma antinomia interna à pulsão, na qual satisfação e sofrimento estão em um nó indissolúvel; "com a palavra gozo, Lacan oferece-nos uma só palavra para as duas satisfações. E torna-se a central questão do sadismo e do masoquismo" (MILLER, 1993, p. 375).
Rodopiando em uma circulação da pulsão de morte que não encontra barra, o laço social contemporâneo é um paradoxo na impossibilidade do discurso capitalista de fazer laço e "se hoje nos sentimos tão melancolicamente livres, é que nos falta tinta vermelha, falta-nos linguagem para formular a verdade relativa à nossa ausência de liberdade." (TEIXEIRA, 1999 p. 39).
O trecho anterior é uma referência a uma anedota em que um rapaz que viaja para a Sibéria e sabedor da censura que sua correspondência sofreria combina com os amigos escrever as boas notícias em azul e as ruins em vermelho. Os amigos recebem uma carta em azul contando de quão maravilhosa e livre era a Sibéria e que tudo seria perfeito se não faltasse tinta vermelha.
Quanto ao encontro do sujeito com o campo social atravessado por este circuito mortífero, a culpa é o fundamento da ação social, na medida em que o sujeito se sente responsável por algo, se não realizado ao menos desejado em seu inconsciente (MILLER, 1993). É a responsabilidade em uma manifestação de singularidade incondicional já que não se trata aqui de responder por uma materialização desse sujeito no plano social, mas de um comprometimento deste com o seu próprio desejo no que ele nem mesmo sabe sobre isto.
Esta questão faz pensar que a afirmativa de Durkheim (1897/2000) sobre a existência da corrente suicidógena no bojo de uma corrente pessimista não é suficiente para definir a questão principal, que é sobre o modo como um sujeito pode ser capturado por essa corrente. Assim não bastaria visualizar que existe uma "corrente pessimista", nem mesmo para manter a discussão no campo do universal, pois se um sujeito é capturado nesta corrente não o é sem algum comprometimento deste com o seu próprio desejo.
Por outro lado, há análise do suicídio como uma passagem ao ato, como recusa irredutível ao outro e ruptura radical do laço social. É este o ponto final do que é possível dizer sobre o suicídio na contemporaneidade pela Psicanálise? Palavras como kamikaze, terroristas, homens bombas, fanáticos, loucos, auto-homicidas já são conhecidas do público leigo e dos psicanalistas, como se nestas definições já se houvesse explicado do que se trata.
Compreender de que modo o ato suicida é pensado na Psicanálise é a condição última neste trabalho para analisar se as articulações realizadas até aqui entre a corrente suicidógena e a circulação da pulsão de morte na cultura são pertinentes. Em Freud há alguns pressupostos essenciais na teorização sobre o suicídio que são os conceitos de melancolia, de inexistência da representação da morte no inconsciente, de passagem ao ato, de masoquismo moral e, é claro, o pressuposto relacionado ao jogo entre a pulsão de vida e a de morte que acontece em cada uma destas experiências.
A melancolia na teoria freudiana (FREUD, 1917/1976) é um estado relacionado a uma perda objetal inconsciente. Nesta condição o sujeito não é capaz de localizar o quê de si foi perdido naquele objeto que já não mais possui. Ao identificar-se com esse objeto perdido, o sujeito passa a desviar para si as recriminações endereçadas a esse objeto amado. Nesse mesmo texto, Freud também nos faz vislumbrar o sujeito que se avizinha, que é inundado por este nada, que realiza um mesmo trabalho de escansão, mas para quem isto não é mortal.
A questão que se coloca é se um encontro com o horror do real seria inapelavelmente letal. A resposta a isto é negativa, pois há, por exemplo, a possibilidade de sucesso na sublimação da pulsão de morte.
Entretanto, encontramos no texto "Os arruinados pelo êxito" (FREUD, 1914/1976) a ideia de que o sentimento de culpa impede o sujeito de se comprazer com um sucesso longamente almejado e que a origem desse sentimento é relacionada à experiência edípica. A Psicanálise, longe de estabelecer determinismos a qualquer sujeito, pressupõe e defende a possibilidade do recomeço a partir de qualquer ponto. O sujeito poderá retomar um percurso em que a pulsão de vida seja mais pujante, inclusive na produção de um sintoma que lhe traga um gozo de punição em cujo bojo se dê a satisfação do sentimento inconsciente de culpa que impinge o masoquista a transformar o sofrimento em seu bem mais precioso.
Há um exemplo literário que tanto pode ser lido a partir da Psicanálise quanto da Sociologia. Pode ser utilizado para explicitar as formas que o masoquismo moral pode tomar na vida do sujeito e, também, serve de material para uma interpretação durkheimiana. Trata-se do romance Crime e castigo de F. Dostoievski de 1866.
As agruras pelas quais o personagem Raskolnikof passa o localizariam na teoria durkheimiana na categoria de indivíduo egoísta. Ou seja, aquele que se encontra em um vínculo social frouxo e está desamparado socialmente para produzir um sentido para a sua existência. Por outro lado, a novela russa é um exemplo de como, algumas vezes, o masoquismo moral, apesar de arremessar o sujeito a uma situação desesperadora, o poupa do ato suicida. Esta possibilidade de o sujeito se dirigir ao sofrimento, mas nem por isto se matar, torna ainda mais enigmática a ideia de Durkheim de uma aproximação excessiva da corrente suicidógena. Afinal, qual seria o limite para esta incursão? A resposta que a Psicanálise fornece é a de que não há recursos teóricos suficientes para estabelecer tais limites. O sujeito sempre faz uma aposta e os efeitos disto são imprevisíveis.
Se Raskolnikof e Sônia, sua namorada, não chegam ao suicídio, também não se descolam do sofrimento no qual gozam o castigo do crime cometido. Caso o tivessem feito, isto não traria maiores reflexões, pois o assassinato cometido parece justificar o sentimento de culpa que os personagens apresentam.
Entretanto, não se pode esquecer (FREUD, 1896/1976; 1901/1976) do alerta sobre os mecanismos nos quais um desejo inconsciente de autopunição pode se conjugar a uma situação da realidade objetiva de modo que o sujeito obtenha da vida, ou da morte, a justificativa plausível para a sua mortificação. Segundo a teoria psicanalítica, isto se manifesta desde atos corriqueiros, em que o sujeito sofre pequenas dores, até o ato suicida em si, seja ele consciente ou não. Durkheim (1893/1999; 1895/2003; 1897/2000), à medida que exclui o indivíduo de suas discussões, não pode oferecer referências sobre o assunto. O máximo que se pode obter de sua teoria é que o sujeito se aproxima excessivamente da corrente suicidógena e que a manifestação da sua realidade psíquica abissal é motivo de um sofrimento atroz. Teria sido interessante, já que o ato suicida esteve como uma possibilidade real ao longo de todo o livro, ler os comentários de Durkheim para realizar aqui um confronto entre as suas hipóteses e as da Psicanálise.
Na passagem ao ato o sujeito se coloca como enigma ao Outro, o sujeito é arremessado no real, isto é, para fora do encadeamento semiótico, de toda representação possível, e a ausência de substância ou de qualidade do sujeito é experienciada em sua forma nua. Já no acting-out o sujeito transforma a cena em palco para uma mostração de sua relação específica com algo que é para ele um objeto pequeno a, o que o sujeito quer é se mostrar de outro modo, como outro, e na intenção de velar a ficção deste objeto pequeno a ele termina por deixá-la ainda mais visível. Há uma petrificação no campo da ficção do sujeito no que ele concebe como sendo o Outro, e ele sabe muito bem o que há aí. A teoria lacaniana (LACAN, 1963/2003) identifica um posicionamento distinto do sujeito em relação ao objeto pequeno a e ao Outro na distinção entre o que é a passagem ao ato e o acting-out. Segundo ele, a marca da passagem ao ato é um "deixar cair" tal como extraído por Freud (1920/1976) da tentativa de suicídio da Jovem Homossexual.
O que aparece neste deixar "cair" é a defenestração do campo da cena para o da construção do sujeito por ele mesmo, ou seja, para o campo que possui estrutura de ficção, no fantasma de cada um.
O conceito de ato permite aproximar e estabelecer zonas de interseção entre os conceitos de masoquismo moral, pulsão de morte, melancolia e gozo. Isolados, esses conceitos permanecem explicando apenas o encontro e a permanência do sujeito com o sofrimento como recurso para um namoro com o prazer. Mas não elucidam como o sujeito se mata ao atravessar e subverter o adiamento que a pulsão de vida submete à pulsão de morte. A pulsão de vida sustenta a permanência da cadeia significante. Ela se coloca, assim, como uma espécie de anteparo para o ato suicida. Nesta direção, encontramos Miller (1993) afirmando não haver surpresa que ao ideal racional o que se oponha seja o ato suicida. Entretanto, isto não significa que se poderia concordar com a hipótese de uma espécie de prevenção educativa para o ato suicida. Na medida em que ele se relaciona a uma responsabilização do sujeito apenas no tratamento do sujeito do inconsciente é que algo da ordem de certa prevenção poderia ocorrer.
Contrapondo-se a esta tentação do Bem, em que a política da prevenção pode incorrer, a Psicanálise vem afirmar que este algo do sujeito em desacordo com as intenções da cultura, a pulsão de morte, não é inofensivo; e que sua manifestação traz necessariamente um quê de destruição não avaliável previamente. Ou seja, não é apenas um retorno pacífico e passivo ao inanimado. O sujeito não é regido por querer o seu próprio bem, e o que ele quer Freud (1929/1976) acredita não ter qualquer relação com o que a civilização está disposta a lhe oferecer. Há no ato que o sujeito produz uma vontade de Outra-coisa. O ato em Lacan deve ser entendido como "aquele que aponta ao coração do ser: o gozo. É o suicídio" (MILLER, 1993, p. 44). No ato suicida há a oposição máxima à lógica ingênua da confluência entre o pensamento e a ação. O suicídio escancara a estrutura do ato, da passagem ao ato, pois nele se abandonou por completo o equívoco da palavra, a possibilidade do furo do simbólico.
Durkheim (1897/2000), coerente ao sujeito com o qual escolhe trabalhar para pensar o suicídio, pareia a sua proposta à da lógica científica e aposta na possibilidade de os mecanismos sociais manterem o poder de coerção da norma social sobre a realidade psíquica do sujeito. No entanto, é levado a se defrontar com algo que escapa a esta pedagogia social, que é o indivíduo social-individual.
Pensar o suicídio como um elemento de coesão social, tal qual Durkheim (1897/2000) propõe, exige compreendê-lo a partir não do sujeito que se mata, pois este desaparece, mas sim a partir dos efeitos que esta morte possa vir a produzir no campo social. E por isto, mesmo na passagem ao ato, na qual há uma desistência do endereçamento feito ao Outro, uma recusa radical a ele, o ato suicida talvez pudesse ser vinculado ao que Durkheim (1897/2000) nomeia corrente suicidógena, que é a cota de sacrifícios através da morte voluntária. Porque para além de uma intenção do sujeito que se mata com este gesto, o que se deve colocar em pauta na discussão com Durkheim é uma possível apropriação que a cultura faz deste ato. Na teoria dele não é o sujeito que se mata para restabelecer o laço social, mas a cultura que viria a se utilizar desta morte com tal finalidade. Para tanto seria necessário considerar como válida a hipótese de Durkheim (1897/2000) da necessidade do crime e de sua punição como mecanismo de coesão social.
ALINHAVANDO UMA CONCLUSÃO: O QUE FOI POSSÍVEL ATÉ AQUI
O laço social e o gozo. Estes elementos se encontram entrançados tanto na Psicanálise quanto em Durkheim (1895/2003; 1897/2000). Seriam estas duas modalidades do ato dois instantes em que o sujeito se aproximaria demais da corrente suicidógena? Esta aproximação excessiva é a condição registrada por Durkheim (1897/2000) para a captura do indivíduo na rede de mortes voluntárias. Um obstáculo teórico na Psicanálise para acolher este conceito durkheimiano como uma questão é que ele pressupõe que o sujeito seria capturado à sua revelia.. Para solucionar isto, seria preciso considerar que há sujeitos suicidas em sua estrutura. Nem uma solução nem outra são plausíveis para a Psicanálise.
Entretanto, caso seja possível utilizar o conceito de ato, tal como é trabalhado na teoria psicanalítica, para analisar o conceito de corrente suicidógena de Durkheim, esta ideia de uma cota de morte voluntária em toda sociedade e da função que isto desempenha na harmonia social se tornaria mais clara.
O efeito original desta interlocução é que com o conceito de ato os dois obstáculos poderiam ser superados: nem o sujeito seria capturado à sua revelia e nem possuiria em si algo que o impelisse, desde sempre, ao suicídio. Tanto a passagem ao ato quanto o acting-out são possíveis a qualquer sujeito, e isto quer dizer que todos estariam de um mesmo modo suscetíveis a serem capturados na rede mortífera. No ato, este "qualquer um" não é mais "um qualquer" em relação ao que seria um ponto em que, ao mesmo tempo, tanto a vitalidade da sociedade se esvai nas diversas formas de manifestação do mal-estar quanto sustenta um esforço de fortalecer o laço social.
Foi dito que o suicídio acontece em uma passagem ao ato ou em um acting-out bem-sucedido, e em ambos não se escapa do que abruptamente emerge: o sujeito é lançado no real. Isto parece bem distinto dos atentados terroristas que têm se tornado cada vez mais recorrentes na atualidade. Mas não se deve esquecer que Freud (1901/1976) analisa que mesmo os suicídios premeditados, mesmo as situações políticas de um suicídio, não estão isentas de terem sido escolhidas por um desejo inconsciente de um sujeito que se aliou a essa situação política, enxergando aí uma oportunidade preciosa para a sua manifestação.
Já em 1921 ele pensa em um poderoso laço libidinal entre os integrantes de um grupo entre si e com o seu líder, o que viabiliza uma discussão sobre os atos terroristas que têm no suicídio, individual ou coletivo, o principal armamento. Também é possível pensar que os atentados terroristas suicidas resultam da potencialização do sacrifício exigido aos irmãos como prova do amor ao pai, da honra devida ao Nome-do-Pai (ROLDÁN, 1996).
Tanto para Durkheim quanto para a Psicanálise o acaso não é colocado como possível explicação para o terrorismo suicida e, principalmente, porque foi este o sujeito e não outro que se matou em nome de uma causa. Há em ambas a noção de que é por um laço afetivo levado às últimas consequências que o sujeito se auto-imola. Na Sociologia isto é nomeado como uma grande influência da consciência coletiva sobre o indivíduo e, além disto, o fato de que foi este sujeito quem se aproximou mais do que o devido da corrente suicidógena.
Na Psicanálise entende-se que esse laço é o da identificação com o líder que visa tamponar a falta do Outro e que o sujeito não é fisgado ao acaso por esse tipo de identificação; mecanismos como o masoquismo moral, a melancolia, o gozo, a inexistência da morte no inconsciente, passagem ao ato e acting-out se articularão em um jogo mortífero e produzirão as condições necessárias para que, tanto no campo do particular quanto no campo do universal, o ato suicida seja engendrado.
Pensa-se que o caminho percorrido até aqui foi suficiente para algumas conclusões, ainda que não se tenha esgotado a discussão possível. O objetivo foi dar visibilidade aos conceitos que permitem especificar o ato suicida no campo do singular e do universal. Na medida em que se trata de um sujeito o legítimo proprietário de sua passagem ao ato, ou de seu acting-out, é do singular que se trata no suicídio. Mas, por outro lado, na medida em que a passagem ao ato, ou ainda o acting-out, são desdobramentos das maneiras como este sujeito se relaciona com o Outro e o objeto pequeno a, isto implica na localização do ato suicida também no campo do universal.
A conclusão de que é possível aproximar o sujeito de Durkheim, no seu indivíduo social-individual, do sujeito da Psicanálise, e de que tanto em uma teoria quanto na outra o laço social é percebido como inextricavelmente entrançado a algo mortífero em Durkheim nomeado corrente pessimista e na Psicanálise. pulsão de morte, ou gozo por si já abre um novo campo de discussão sobre o suicídio.
A conjunção proposta pela Psicanálise entre laço social e pulsão de morte, já na própria fundação da civilização e na continuidade deste amálgama como ponto de conflito insolúvel na relação entre o sujeito e a cultura, pode vir a tornar mais consistente e claro aquilo que Durkheim (1897/2000) sugere na sua hipótese da existência de uma corrente pessimista e na impossibilidade de o ato suicida desaparecer, ainda que o tratamento social ortopédico e educativo desta questão obtenha completo sucesso.
Para Durkheim é a função social que torna o suicídio um fenômeno necessário a toda cultura. Para a Psicanálise é a realidade da pulsão de morte no sujeito e no laço social que torna impraticável imaginar que acontecimentos tais como o suicídio, e outros, venham a desaparecer um dia. Mas não há na Psicanálise a ideia de que a própria pulsão de morte, ou gozo, e suas manifestações tenham uma função e por isto não possam ser extintas. Novas investigações sobre o ato suicida articulando os dois campos de saber talvez possam lançar novas luzes sobre a questão.
Finalmente é possível afirmar a possibilidade de alguma interlocução entre a Sociologia de Durkheim e a Psicanálise e que isto seja uma contribuição interessante aos que têm se debruçado sobre a questão de por que alguns sujeitos, e não se sabe quem a priori, no encontro com o horror do real "deixam-se cair" ou então "deixam cair" o ponto a partir do qual poderiam recomeçar.
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Endereço para correspondência
Liliane M. A. Silva
E-mail: lilianemas@gmail.com
Luis Flavio Couto
E-mail: luisflaviocouto@terra.com.br
Submetido em: 11/12/2009
Revisto em: 21/07/2009
Aceito em: 04/09/2009