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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro 2010
ARTIGOS
Subject, Society and Speech
Gilberto Braga PereiraI; Isabelle Paiva SanchisII; Lecy Rodrigues MoreiraII
IDoutorando. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Minas Gerais.Brasil
IIDoutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais. (UFMG). Belo Horizonte. Minas Gerais.Brasil
RESUMO
Este artigo se inscreve no âmbito das teorias do discurso desenvolvidas por Laclau e Mouffe e por Bakhtin e Volochínov. O objetivo é o de expor conceitos e concepções desses autores que auxiliem a reflexão sobre possíveis aproximações e distanciamentos entre as duas posições, principalmente em relação à questão da linguagem na constituição do sujeito e do social, considerando a origem marxista comum. Pretende-se contribuir para uma discussão ampla a respeito das categorias que buscam dar conta das relações entre o individual e o social. A perspectiva de Laclau e Mouffe aponta para as posições de sujeito no interior de uma estrutura discursiva. A abordagem de Bakhtin e Volochínov tende para uma visão totalizante da realidade a partir de uma síntese dialética entre sujeito e sociedade.
Palavras-chave: Laclau e Mouffe; Bakhtin e Volochínov; linguagem; sujeito; sociedade.
ABSTRACT
This work inscribes itself in the scope of the theories of speech developed by Laclau and Mouffe, and by Bakhtin and Volochínov. The objective is to bring concepts and conceptions of the authors that can assist the reflection of possible approaches and distances between the two positions, especially about the matter of the language in the constitution of the subject and the society, since they have a common marxist origin. It is intended to contribute for a ampler quarrel regarding the categories that try to explain the relations between the individual and the social, or between the particular and the universal. The perspective of Laclau and Mouffe brings the positions of subject inside a discursive structure, and the approach of Bakhtin and Volochínov tends towards a totalizing vision of the reality, from a dialectic synthesis between subject and society.
Keywords: Laclau and Mouffe; Bakhtin and Volochínov; language; subject; society.
Introdução
O artigo se inscreve, epistemologicamente, no âmbito das Teorias do Discurso desenvolvidas por Laclau e Mouffe e por Bakhtin e Volochínov. O propósito é o de expor conceitos e concepções que auxiliem a discutir as aproximações possíveis e os distanciamentos prováveis entre as suas posições, considerando a origem marxista em comum das mesmas. Serão apresentadas as contribuições dos autores que mais diretamente se vinculam à questão da linguagem na constituição do sujeito e do social, sobretudo as ideias contidas em Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia (LACLAU; MOUFFE, 1987) e em Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 1992).
Para a construção desse diálogo, partimos de alguns pressupostos: 1) Bakhtin é reconhecidamente um dos precursores da(s) Teoria(s) do Discurso, e sua obra é fonte para diversos autores; 2) Supostamente, ambas as perspectivas tomam para si uma origem filosófico-epistemológica comum, o marxismo, ainda que guardadas as devidas distâncias assumidas posteriormente; 3) As considerações que se somam na sequência partem de formulações e argumentos relativos às funções da linguagem na constituição do sujeito e do social, ainda que, para os autores, tanto o conceito de discurso quanto o daquelas categorias sejam díspares.
As propostas e os momentos históricos de cada dupla remetem a horizontes perceptuais e direcionamentos bastante distintos. É-nos de especial interesse o divórcio explícito de Laclau e Mouffe com alguns dos pressupostos centrais do marxismo, fato que os leva a se auto- definirem; como pós-marxistas; ao contrário da orientaçãomarxiana; da abordagem bakhtiniana do discurso, que, não obstante, é crítica ao marxismo vulgar.
Assim, algumas questões delicadas se impõem: quais as interlocuções possíveis entre essas duas vertentes a propósito da formação discursiva e do papel da linguagem no âmbito da constituição do sujeito e da sociedade? Que implicações cada orientação traz para a compreensão do individual e do social? Os antecedentes históricos comuns serão capazes de sustentar suficientemente alguma interlocução possível entre essas posições? A proposta é a de buscar indicadores que nos auxiliem a responder a essas questões.
Hegemonia, práticas articulatórias e discurso sob a perspectiva de Laclau e Mouffe
Laclau e Mouffe (1987) se propõem a um debate teórico e político que envolve três pontos: “crítica ao essencialismo filosófico, o novo papel atribuído à linguagem na estruturação das relações sociais e a desconstrução da categoria ‘sujeito’ no que diz respeito à constituição das identidades coletivas” (p.3)1. Nosso esforço dirige-se, prioritariamente, ao aprofundamento da noção de discurso; e a como os autores avaliam o papel da linguagem na geração dos vínculos sociopolíticos.
De antemão, Laclau e Mouffe advertem que, ao mesmo tempo em que observamos a generalização do modelo linguístico, crescem as dúvidas acerca dos limites da linguagem; é nesse contexto que o conceito de discurso é formulado. Para eles não há um discurso e nem um sistema de categorias a partir do qual o real falaria sem mediações; não há discursos universais e totalizados. A impossibilidade dos sentidos de um discurso se “fecharem” completamente é justificada pela presença do antagonismo e pelo próprio funcionamento auto-referencial das estruturas discursivas (MENDONÇA, 2002). A pluralidade do social demanda o desvelamento da intertextualidade discursiva. Assim, o discurso emancipatório acabado do marxismo clássico perde representatividade, “uma vez que identifica o proletariado como a classe oprimida e universal pronta para emancipar-se das amarras da dominação burguesa” (p.2). Mesmo porque o ato revolucionário, como corte radical que configura um antes e um depois, não se efetivou tal como se previa (Ibidem, p. 2). Seguindo esse discurso unificado não nos é possível explicar a pluralidade de antagonismos que tomam lugar no terreno das massas, ou na dimensão macro-sociológica, nem tampouco sustentar a classe operária como a força hegemônica e representativa de “novas” identidades coletivas que insurgiram, decorrentes das noções de gênero, etnia etc.
As principais teses dos autores se sustentam na concepção de discurso, mas outras, tais como as de práticas articulatórias, cadeia de equivalência, antagonismo, sujeito e significante vazio, são fundamentais e servem de substrato à discussão dos conceitos de hegemonia, política e do político. O discurso está em relação estreita com elemento, momento e prática articulatória:
chamaremos articulação qualquer prática que estabelece uma relação entre os elementos de tal forma que sua identidade é modificada como resultado dessa prática. A totalidade estruturada resultante da prática articulatória chamada de discurso. Chamaremos momentos às posições diferenciais que aparecem como articuladas dentro de um discurso. Chamaremos, ao contrário, elemento a toda diferença que não se articula discursivamente (p. 176-177).
Nessa medida, a prática articulatória constitui as relações sociais, ou seja, a realidade não se restringe a uma forma de mediação. A articulação, como mecanismo de totalização transitória e contingente, pode subverter tanto os elementos como o próprio conteúdo do discurso que articula. Para o completo entendimento dessas distinções, é relevante considerar: 1) a que se refere o tipo de coerência específica presente em uma formação discursiva; 2) quais as dimensões do discursivo; e 3) a abertura ou o fechamento que uma formação discursiva apresenta.
Quanto à coerência, os autores consideram a proposiçãofoucaultiana; de formação discursiva, compreendida como uma regularidade na dispersão e que recusa como princípio unificante tanto a referência a um mesmo objeto quanto a presença de um estilo comum na produção de enunciados e, ainda, a constância dos conceitos e a referência a um tema comum. Mas reafirmam que o princípio de unidade está na própria dispersão, pois que ela é governada por regras de formação e por um complexo de condições de existência dos elementos dispersos. Ser governada por regras implica primeiro percebermos que ela exige a determinação de um ponto a partir do qual os elementos são vistos como dispersos.
No caso de Foucault [...] só se fala em dispersão com referência ao tipo de unidade ausente constituída em torno do objeto comum, do estilo, dos conceitos e do tema. Mas a formação discursiva pode ser vista também da perspectiva da regularidade na dispersão e em tal sentido ser pensada como um conjunto de posições diferenciadas. Este conjunto de posições diferenciadas não é a expressão de nenhum princípio subjacente exterior a si mesmo [...], mas constitui uma configuração que, em certos contextos de exterioridade, pode ser significado como totalidade(1987, p.177-178).
Ao se interessarem pelas práticas articulatórias, os autores reforçam a necessidade de nos concentrarmos na regularidade na dispersão. Sob esse enfoque, toda identidade é tida como relacional, e as relações em questão assumem um caráter necessário. Mas nenhuma formação discursiva é uma totalidade suturada, e a fixação dos elementos em momentos nunca é completa. A necessidade, no caso, se deriva da regularidade de um sistema de posições estruturais, e nenhuma relação pode ser contingente ou de exterioridade, visto que pensar uma relação como contingente condiciona-se à especificação da identidade de seus elementos intervenientes. Numa formação discursivo-estrutural, “a prática da articulação é impossível, pois ela supõe operar sobre elementos, embora nos encontremos aqui com momentos de uma totalidade fechada e plenamente constituída no que todo movimento é subsumido de antemão sob o princípio da repetição” (p.179). A noção de totalidade estruturada é entendida como decorrente de uma prática articulatória. Como todo momento é contingente, a totalidade é sempre uma contingência estruturada. Definindo discurso como totalidade estruturada pela prática articulatória, temos a assunção de suas precariedade e provisoriedade. Mas, por outro lado, a prática articulatória segue sempre o intento de dominar o campo da discursividade.
Os autores afirmam não distinguir práticas discursivas de não discursivas, na medida em que todo objeto se constitui como objeto de discurso e não se dá à margem da superfície discursiva. Além do que a distinção entre aspectos linguísticos e práticas sociais ou é incorreta ou se dá como diferenciação interna na produção social de sentido. Para eles, uma estrutura discursiva não é uma entidade meramente cognoscitiva ou contemplativa, mas uma prática articulatória que tanto constitui quanto organiza as relações sociais. Essa não distinção acarreta alterações no conceito de discurso, em relação à concepção de Foucault. Um ponto crucial está no próprio conceito de formação discursiva. Se o que a caracteriza é a regularidade na dispersão, como configurar, então, os seus limites?
Os fenômenos naturais em suas existências concretas e materiais desvinculam-se dessa discussão acerca do caráter discursivo de todo objeto. Entretanto, o que eles negam não é a existência exterior do objeto, mas, antes, a afirmação de que ele pode constituir-se como objeto à margem de toda condição discursiva emergente. Por conseguinte, há que se recusar o discurso como uma produção mental e não material. As propriedades materiais dos objetos e a ideia do objeto, ou seja, o linguístico e o não linguístico, não são apenas elementos justapostos, mas um sistema estruturado de posições diferenciadas, um discurso de fato. Não há um sentido preexistente e exato, nem uma finalidade precisa para sequências relacionais; a presença de algumas regularidades, per si, é o bastante para a formação discursiva.
Assim, a unidade da experiência ou a consciência de um sujeito fundante não é o que dá materialidade ao discurso, na medida em que ele se constitui objetivamente a partir das diversas posições de sujeito internamente à formação discursiva. Por outro lado, a articulação entendida como uma fixação e, a um só tempo, como um deslocamento de um sistema de diferenças, não se resume a um mero fenômeno linguístico. Ela perpassa toda a espessura material de instituições, rituais, práticas de diversas ordens que, igualmente, fazem parte da formação discursiva. Portanto, os autores rejeitam todas as formas de essencialismos a partir das quais é tratada, por exemplo, a emancipação, na medida em que estas pressupõem a existência de um sujeito unificado e transparente em sua constituição como ser e como pertencente a uma unidade apriorística.
Além de conceberem todo objeto como objeto de discurso e de defenderem a indistinção entre o discursivo e o não discursivo, os autores também analisam o sentido e a produtividade de uma centralidade da categoria discurso. A resposta aparece de imediato: através da formação discursiva se tornam possíveis uma ampliação do campo da objetividade e a criação de condições para se pensar as múltiplas possibilidades de compreensão do campo sociopolítico. Se partirmos do princípio de que as relações sociais se constituem discursivamente, abrimos alternativas para a presença das contradições entre dois ou mais objetos de discurso; sem falar no fato de que, ao rompermos com a dicotomia discursivo/não discursivo, divorciamo-nos da oposição pensamento/realidade.
Enfim, o que defendem é que tudo isso concorre para que se amplie o campo das categorias que podem dar conta das relações sociais. As categorias antes delimitadas como pertencentes exclusivamente a um ou outro fator assumem uma dimensão que destaca a interpenetração. A natureza aberta e incompleta permite a toda identidade social articular-se a diferentes formações histórico-discursivas. Além disso, a identidade mesma da força articulatória constitui-se no campo geral da discursividade, o que elimina toda referência a um sujeito transcendental ou originário, trazendo, em decorrência, solução para antinomias diversas contidas no conceito de hegemonia. Outra consideração relevante para eles diz respeito ao fato de que
a transição à totalidade relacional que temos denominado ‘discurso’ dificilmente solucionaria nossos problemas iniciais se a lógica relacional e diferencial da totalidade discursiva se impuser sem limitação alguma. Em tal caso, iríamos nos deparar com relações de pura necessidade [em que] a articulação seria impossível, já que todo ‘elemento’ seria ex definictione ‘momento (p.187-188).
Esses autores afirmam que nunca há uma positividade simplesmente dada e delimitada na totalidade discursiva. A lógica relacional é sempre incompleta e perpassada pela contingência, e a transição dos ‘elementos’ em ‘momentos’ nunca se realiza totalmente. Deste modo, se cria uma “terra de ninguém”, onde a prática articulatória se torna possível e na qual nenhuma identidade social consegue se constituir plenamente, haja vista a natureza puramente relacional destas últimas.
O ponto crucial da discussão está na defesa da inoperância e da inadequação de se tomar a categoria sociedade como uma totalidade suturada e autodefinida, e como objeto legítimo de discurso. O que equivale a dizer que não há um princípio subjacente único capaz de fixar e constituir um conjunto das diferenças e que toda prática social tem como condição a tensão interioridade/exterioridade. É impossível, pois, fixarmos significados definitivos e um sentido exterior ao fluxo das diferenças.
Nem a fixação absoluta nem a não fixação absoluta são, portanto, possíveis. [...] Falamos de 'discurso' como um sistema de identidades diferenciadas, ou seja, momentos. Mas vemos que um sistema tal existe somente como um limite parcial de um ‘excesso de sentido’, que o subverte. Este ‘excesso’, na medida em que é inerente a qualquer situação de discurso, é o terreno necessário à constituição de qualquer prática social. O designaremos como campo da discursividade, numa tentativa de chamar a atenção com este termo para a forma de sua relação com todo discurso concreto (...) (Idem, p. 189-190).
A negação da concepção de estrutura e de um centro em sua constituição é apropriada por eles a partir das ideias de Derrida, para generalizar o conceito de discurso: “dada a ausência de um centro ou origem, tudo passou a ser discurso – na medida em que concordemos com esta palavra –, ou seja, um sistema no qual o significado central, o significado originário ou transcendental, não está nunca absolutamente presente para além de um sistema de diferenças” (apud LACLAU; MOUFFE, 1987, p. 190-191).
Nessa perspectiva, há que se avançar na compreensão da questão: se o social não se fixa nas formas instituídas e inteligíveis de uma sociedade, ele só existe como esforço para produzir esse objeto impossível, o que exige pelo menos algum tipo de fixação, mesmo que em caráter parcial. Nesse ponto, Laclau e Mouffe se referem ao discurso como a tentativa de constituir um centro aglutinador, a partir de pontos discursivos privilegiados de uma fixação parcial, os quais denominam pontos nodais. Considerando esses pontos nodais, circunscrevem o conceito de articulação: construção de pontos nodais que fixam parcialmente o sentido. Assim, o caráter parcial decorre da abertura do social, que, por sua vez, resulta dos desdobramentos constantes dos discursos ante a abundância infinita presente no campo da discursividade. Para eles, o tempo todo o discurso é subvertido e desdobrado. A transição dos elementos em momentos nunca é completa, e aqueles assumem significados flutuantes incapazes de serem articulados numa cadeia discursiva. Ademais, esse caráter flutuante perpassa toda identidade social ou discursiva, denotando transitoriedade, fragmentação e esgarçarmentodo sujeito. É exatamente a exacerbação de significados, a polissemia que desarticula a estrutura discursiva. Nessa medida, o social é uma articulação que não contém essência, a “sociedade” é uma impossibilidade.
Para delimitar o estatuto preciso da categoria sujeito, os autores salientam dois aspectos importantes. O primeiro relaciona-se à natureza discursiva ou pré-discursiva do sujeito. O outro diz respeito às relações existentes entre as diferentes posições de sujeito. Temos, então, a própria discussão da constitutividade; do indivíduo humano; como origem e fundamento das relações sociais e uma crítica à concepção de sujeito como agente racional e transparente a si mesmo, e, também, o questionamento das supostas unidade e homogeneidade entre o conjunto das posições que ele ocupa. Portanto, sempre que se referem a sujeito, fazem-no no sentido de posições de sujeito no interior de uma estrutura discursiva. Não o tomam, ressalte-se, como a origem das relações sociais nem tampouco como ente detentor de faculdades ou atributos que permitam a experiência, pois esta também depende de condições discursivas precisas.
Observamos, então, o descentramento do sujeito moderno, que vê deslocado de seu lugar no mundo sociocultural. Como sujeito fragmentado, está composto por infinitas possibilidades de constituir identidades que podem, inclusive, ser antagônicas entre si. Trata-se, antes, de uma identidade formada historicamente, que se transforma pelas representações nos sistemas culturais, do que de uma identidade totalizada e fixa. Assumimos diferentes identidades, historicamente contingentes, em momentos distintos em que observamos o deslocamento e a substituição de nosso centro. É assim que, na contemporaneidade, a diferença produz distintas posições de sujeitos, resultados de complexas construções políticas, que só se unificam provisoriamente através da articulação e da referência a um outro, um elemento externo constitutivo.
Ainda que presente, não é apenas a lógica da diferença que governa as relações sociais e que se constitui como necessária para a consolidação do respeito à diversidade e à diferença, mas também a lógica da equivalência. A multiplicidade de posições de sujeito configura o agente da ação social, que pode assumir uma condição de antagonista ou de agonista2. A constituição do sujeito se dá na interseção de uma multiplicidade de posições subjetivas, desconstruindo a ideia de uma posição identitária prioritária, sendo que a articulação resulta de práticas hegemônicas contingentes. Temos, então, a presença de pelo menos duas lógicas na construção do discurso. A da diferença, que explicita a existência de um efeito discursivo, e a da equivalência, com o pressuposto de que dois termos somente podem ser equivalentes se diferentes entre si, sendo que através dela buscamos a anulação do sentido, que nunca se completa.
Os autores acrescentam que, em meio a essas duas lógicas, uma terceira se configura, a do antagonismo. Esta constitui o limite de toda objetividade. A noção de antagonismo é fundamental e central ao fato de que a relação antagônica expressa a precariedade do momento e da identidade. Igualmente, a de que ela tem lugar no campo da discursividade, visto ser nele que se assiste ao rompimento das dicotomias real/ideal e material/ideológico. Sendo assim, a categoria sujeito não se estabelece através da absolutização de uma dispersão de posições de sujeito nem tampouco pela unificação absoluta em torno de um sujeito transcendental. Como a categoria sociedade, a categoria sujeito assume um caráter polissêmico, ambíguo, incompleto e não suturado:
Por essa mesma falta de sutura última que tampouco a dispersão das posições se constitui uma solução: pelo mesmo fato de que nenhuma delas consolida-se como posição separada, há um jogo de sobredeterminações entre as mesmas que reintroduz o horizonte de uma totalidade impossível. É este jogo que torna possível a articulação hegemônica (Idem, p. 208).
A constituição de identidades e de sujeitos obedece à mesma prática articulatória de qualquer discurso. É sempre incompleta e precária e ameaçada pelo antagonismo, ou seja, pela subjetividade. Então, o sucesso de um discurso hegemônico, visando à construção de equivalências, não se liga à habilidade pessoal de um sujeito ou de qualquer grupo majoritário ou minoritário, mas ao grau de necessidade e ao somatório de conteúdos fixos que um dado discurso pode impor. Para os autores, a hegemonia sempre aponta para uma ausência de totalidade e para uma diversidade de esforços de articulação na busca de positividade. A positividade nunca é dada a priori, mas é sim uma construção. Com isso temos uma indeterminação muito mais ampla. Ao final, há de se supor que se confirma a impossibilidade de uma emancipação absoluta; ela anularia a prática articulatória como possibilidade, visto que seria o fim da contingência.
Hegemonia, linguagem, dialogismo, sujeito e sociedade em Bakhtin e Volochínov
Para uma série de autores identificados com a tradição marxista, há uma inexorável relação entre sujeito e sociedade, visto que só existe sujeito porque constituído em contextos sociais e que estes últimos são resultado da ação concreta de homens que coletivamente se organizam. Na perspectiva sócio-histórica que demarca esse conjunto de teóricos, a constituição do psiquismo humano é tema central, na medida em que procura explicar como o ser humano se constitui, constitui o social e é constituído por ele. Nem as explicações materialistas mecanicistas nem tampouco as subjetivistas satisfazem à dimensão histórico-social, pois ambas não permitem uma explicação não dicotômica da relação sujeito-sociedade.
O pensamento filosófico-linguístico de Bakhtin aponta para a direção sócio-histórica e ideológica da linguagem, além da sua natureza eminentemente interativa. A produção intelectual do autor, referida à linguagem, está perpassada por uma concepção dialógica da mesma, da vida e dos sujeitos. Ela lida com um rico arsenal de categorias e conceitos que compõem uma arquitetura complexa dos fenômenos semióticos situados nos contextos sociais, culturais e históricos. O centro organizador e formador localiza-se no meio social e está condicionado pela situação social imediata. Assim, o horizonte social determina a criação ideológica.
Brait (2005) afirma que tanto Bakhtin como seu círculo se viram às voltas com um enfrentamento da linguagem na construção de uma arquitetura fortemente ancorada na noção dialógica. Uma coletânea de verbetes como ato, atividade, evento, ética, estilo, polifonia, enunciado, gêneros discursivos etc., insere-se na reflexão da autora, a fim de “projetá-los num mundo da verificação analítica e interpretativa” (p. 9). São lugares teóricos/pilares que conformam o todo e demarcam a linguagem, a vida e os sujeitos constituintes e constituídos nesse conjunto. Se não podemos falar de essencialismo na perspectiva de Laclau e Mouffe (1987), em Bakhtin e Volochínov (1992), o dialogismo é a essência de toda interação verbal. Para eles, “[...] pode-se compreender a palavra diálogo num sentido mais amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (p.123).
Interessam-nos as concepções de Bakhtin relacionadas à linguagem e, mais especificamente, à interação verbal e ao dialogismo, assim como sua visão totalizante da realidade, que propõe uma síntese dialética entre sujeito e objeto, ambos imersos na cultura e na história. Portanto, sua abordagem de natureza dialética ratifica o caráter ideológico do signo linguístico e a consciência como igualmente ideológica e semioticamente constituída. Sua teoria da linguagem está posta, sobretudo, na obra Marxismo e filosofia da linguagem, em que salienta tanto a heterogeneidade quanto a complexidade polifônica das manifestações de linguagem nas situações sociais concretas, considerando a linguagem como central na constituição do ser social. Nessa medida, esquiva-se de visões que a circunscrevem em um sistema abstrato, privilegiando-a como criação coletiva decorrente de uma relação cumulativa dialógica entre os sujeitos (eus; e outros).
A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua construção como sujeito, bem como na construção “negociada” do sentido, leva Bakhtin a recusar tanto um sujeito infenso à sua inserção social, sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte do sentido como um sujeito assujeitado. A proposta é a de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição da inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsível,que lhe dá sentido (BRAIT, 2005, p. 22).
Assim, os elementos linguísticos adquirem significados que se renovam graças aos contextos concretos em que são enunciados, o que tem implicações importantes quando se pensa na constituição dos sujeitos pela assimilação das palavras e dos discursos dos outros e pela própria enunciação. O sujeito, além de inacabado, está imbricado no meio social e se constitui a partir dos discursos que o circundam, caracterizando-se como híbrido e como lugar de conflito e confrontação dos vários discursos. Vale afirmar que esse confronto conforma uma luta hegemônica.
Não há nada na composição do sentido que possa colocar-se acima da evolução, que seja independente do alargamento dialético do horizonte social. A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 1992, p. 97).
A interação verbal surge como alternativa dialética de superação de posições dicotômicas, as quais nomeiam subjetivismo idealista e objetivismo abstrato3. Para eles, “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (Idem, p.41). Em outro momento, salientam: “[...] a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados.(...). A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais” (Idem, p.41).
Quando assumimos a linguagem e a interação como condições precípuas de constituição da consciência e como palco de batalhas ideológicas, pressupomos um sujeito constituído na e por meio da alteridade, na medida em que só nos tornamos euentre outros eus. Os papéis que assumimos, ou que nos são outorgados pelo social, estão irremediavelmente impregnados de uma polissemia discursiva. É através do discurso que podemos entender a extensão de nossa participação nas múltiplas esferas da vida social e verificar o quanto ele determina nossa identidade relativa aos outros. Nesse amplo espectro, estamos falando de um processo de (re)significações e (re)definições de identidades, no qual as ideologias contidas em nossos discursos tanto quanto nos discursos de outrem estão influenciadas por nossas participações em comunidades de prática. O confronto e o conflito entre as várias identidades encontram no diálogo a possibilidade de reconstrução. Temos um inacabamento, uma transitoriedade e provisoriedade identitária. Assim, é da nossa participação nas práticas de diferentes comunidades que construímos nossa identidade em relação a essas mesmas comunidades. Bakhtin refuta a ideia de decisões morais que existam independentemente do processo concreto dessa decisão e do caráter situado do sujeito. Isso, no entanto, não nega os elementos repetíveis, constantes, da estrutura processual dos atos humanos, base da possibilidade de generalização a partir do específico [...]” (BRAIT, 2005, p. 23).
Não se pode perder de vista que, além de denotar uma maneira clássica de comunicação verbal face a face, o diálogo pode ser apreendido numa dimensão mais ampla, como a tentativa, presente neste ensaio, de diálogo entre autores, ou entre discursos. Para Bakhtin e Volochínov (1992) nenhum discurso é adâmico4; em sua formação estão em jogo a intersubjetividade e elementos culturais e pessoais (crença, valores, ideologias, intenções etc.) que o precedem. Na interação, não há sobreposição de um interlocutor sobre o outro, mas os sujeitos se instauram a partir de uma atitude responsiva ativa. Então, a intersubjetividade antecede a subjetividade, visto que a nossa constituição como sujeitos dialógicos é de natureza eminentemente interativa e se liga a um outro, igualmente sujeito como nós. O mundo objetivo pré-existe aos sujeitos.
Entretanto, no universo bakhtiniano, os atos de fala e seu produto, a enunciação, pressupõem muito mais do que as condições psicofisiológicas do sujeito que fala. Por ser de natureza social, a enunciação só se dá na interação, caracterizando-se como a realidade fundamental da língua. Está sempre dirigida a um interlocutor real e, nessa medida, está sempre condicionada a ele. Daí não ser concebível um interlocutor abstrato, pois que não teríamos linguagem, nem no sentido figurado.
Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata. Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor (Ibidem, p. 112).
O diálogo é, então, uma das mais relevantes formas de interação verbal, mas a enunciação seria somente uma pequena fração da comunicação verbal, que tem lugar no cotidiano, na literatura, na ciência, na política etc. Contudo, a comunicação verbal refere-se a um momento na evolução contínua e pluridirecional de um determinado grupo social. É a partir da comunicação concreta que a língua evolui historicamente, ocupando espaço privilegiado na totalidade integrada da vida humana. Da comunicação entre os diferentes povos é que a língua se forma sob a égide de imperativos econômicos - no sentido da produção e da reprodução da própria vida –, caracterizando-se como um subproduto da comunicação social. Além dos aspectos linguísticos, a comunicação concreta pressupõe o contextual, configurando-se como um objeto multifacetado em sua dialogicidade.
A partir da categoria dialogismo, os autores estudam o discurso interior, o monólogo, a comunicação diária, os vários gêneros de discurso, a literatura, e diversas outras formas de manifestação cultural. Sua perspectiva aborda o dito dentro e como réplica do já-dito. Eles propõem uma abordagem para o discurso que vai além do linguístico, referindo-se ao estudo da própria enunciação concreta, que é determinada pela situação social imediata e num sentido mais amplo. Nesse caso, a enunciação é o resultado, além de ser orientada em função da interação entre sujeitos; e, mesmo que um deles possa ser representado por um interlocutor ideal, ele “não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas” (Idem, p. 112). A interação verbal está condicionada sempre por um locutor e um interlocutor. Portanto, fundamentada no dialogismo, temos uma maneira de ver a pluralidade e a diversidade dos fenômenos em movimento. O eu é dinâmico em interação com outros eus, configurando homem e vida humana. Ante este caráter imprescindível do outro para a constituição de si mesmo, a peculiaridade humana está na alteridade. “Na vida agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o que é transcendente à nossa própria consciência: assim levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem [...]” (Idem, p. 35-36).
Em síntese, o dialogismo é a condição precípua do discurso e cabe distinguir duas de suas formas, a saber: diálogo entre interlocutores e diálogo entre discursos. No primeiro caso, temos o princípio fundador da linguagem, que consiste na produção dos sentidos à medida que a produção e interpretação dos textos acontecem entre os sujeitos da interação. Assim, a intersubjetividade é anterior à subjetividade e resulta da polifonia das muitas vozes sociais recebidas e reelaboradas pelo indivíduo, uma vez que “o ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 1992, p.46). Entretanto, cada um de nós ocupa um espaço e um tempo determinados e, como agentes, assumimos uma participatividade e uma responsibilidade5 por nossas atividades, as quais se dão na fronteira entre o eu e o outro:
Ato para Bakhtin não se restringe portanto nem ao Akt (ato puro e simples) nem a Tat (ação) [...] embora ele use Akt [...] para designar ato/atividade [...] e embora por vezes use [...] ato e ação como sinônimos (mas sempre no sentido de “façanha, feito”). O ato-efeito tem tal importância em sua filosofia que ele define a vida como um evento unicorrente (porque há apenas uma vida no mundo humano) de realização ininterrupta de atos-feitos: os atos e experiências que vivo são momentos constituintes de minha vida, que é assim uma sucessão ininterrupta de atos [...] (BRAIT, 2005, p. 21-22).
A propósito da relação Ato/Linguagem em Bakhtin, em conformidade com Sobral (2005), o caráter complexo do conceito do primeiro implica na consideração de “uma teoria do conhecimento, uma teoria da relação entre experiência imediata no mundo natural e sua representação em linguagem no mundo humano [...]” (p. 12). Mais adiante, ao referir-se à concentração ulterior de Bakhtin na prosa e não na poesia, explicita que tal aspecto decorre “do fato de, nela, a representação do agir verbal no mundo se mostrar mais evidente [...]. Parece-nos natural pressupor que para Bakhtin a linguagem é expressão e forma de representação, mas é em si um agir verbal.” (Idem, p.12).
O enunciado é sempre dirigido a alguém, voltado para um destinatário. Em face desse caráter social, o discurso nunca é individual, não só por ser construído na interlocução de seres sociais, como por ser construído como um diálogo entre discursos, ou seja, sempre está relacionado a outros discursos. Os sujeitos, pois,
instauram discursos a partir de seus enunciados concretos, de suas formas de enunciação, que fazem história e são a ela submetidos. Assim, a singularidade estará necessariamente em diálogo com o coletivo em que textos, verbais, visuais ou verbo-visuais, deixam ver, em seu conjunto, os demais participantes da interação em que se inserem e que, por força da dialogicidade, incide sobre o passado e o futuro (BRAIT, 2005, p. 98).
Como uma construção híbrida, o enunciado tem origem na concorrência entre vozes e sentidos em conflito. E o dialogismo é o diálogo permanente entre os diversos discursos que configuram uma sociedade, uma cultura, uma comunidade. Contudo, o enunciado não é mera repetição do pré-existente, há sempre algo de novo e irreprodutível nele, não obstante essa criação não ter ocorrido a partir do nada. O dado se transforma no criado, desconfigurando um sujeito assujeitado, próprio a outras correntes de pensamento. De toda forma, o eu só pode ser realizado no discurso, apoiando-se no nós, conforme Bakhtin e Volochínov (1992): “[...] o centro organizador e formador não se situa no interior, mas no exterior. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação” (p. 112).
A orientação social da atividade mental não está livre de considerações quanto ao grau singular dessa experiência; contudo, sem a orientação social apreciativa, a atividade mental torna-se impossível. Não é a partir de dentro, do centro da personalidade, que deriva a consciência do próprio valor, e sim a partir do exterior.
Assim, a personalidade que se exprime, apreendida, por assim dizer, do interior, revela-se um produto total da inter-relação social. A atividade mental do sujeito constitui, da mesma forma que a expressão exterior, um território social. Em conseqüência, todo o itinerário que leva da atividade mental (o "conteúdo a exprimir") à sua objetivação externa (a "enunciação") situa-se completamente em território social. (Idem, p.81-82).
Bakhtin e Volochínov (1992) desenvolvem, então, o conceito de "índice de valor social", que afeta não somente a escolha de temas, mas, sobretudo, as práticas assumidas pelos atores e suas manifestações simbólicas e verbais: "não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes, senão aquilo que adquiriu um valor social" (Idem, p. 26). Temos, desse modo, uma integração entre consciência individual e relações sociais, sendo o sujeito individual agente ativo influenciado e influenciador. Enquanto a interioridade não é considerada de forma subjetiva, a exterioridade é objetivamente reconhecida, porém sempre como uma construção social. Tanto os sujeitos quanto as representações sociais somente terão condição de assumir uma ação política na medida em que apresentem valor social dado pela interindividualidade, e não pela consciência individual.
Por fim, é possível identificar algumas semelhanças entre o pensamento de Gramsci e o de Bakhtin e Volochínov (1992) no que diz respeito à relação estabelecida entre linguagem, hegemonia e ideologia (ZACCHI, 2003). Não é nosso propósito enveredar por esse caminho, porém alguns pontos merecem ser mencionados, sobretudo porque Laclau e Mouffe (1987) criticam, mas também se rendem a algumas propostas de Gramsci.
Zacchi (2003) discute a questão da hegemonia em Gramsci e em Bakhtin. Um primeiro argumento se refere ao fato de que ambos delimitam um sujeito dinâmico, contraditório e inacabado, permeado por tensões que tomam lugar na interação viva das forças sociais, o que podemos estender para Laclau e Mouffe (1987), salientando apenas que eles banem as categorias sujeito e sociedade.
[...] para Gramsci, o núcleo de toda articulação hegemônica continua sendo uma classe social fundamental. É aqui justamente onde a realidade das sociedades industriais avançadas – ou pós-industriais – nos obriga a ir além de Gramsci e a desconstruir a noção mesma de “classe social”. E isto porque a noção tradicional de “classe” suporia a unidade das posições de sujeito dos diversos agentes, enquanto nas condições do capitalismo maduro, a dita unidade é sempre precária e submetida a um processo constante de rearticulação hegemônica (LACLAU; MOUFFE, 1987, p. 5, tradução nossa).
Especialmente para Bakhtin e Volochínov (1992), é através do discurso que se revelam as contradições e que se renova continuamente a “síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico, entre a vida interior e a vida exterior” (p. 66). Eles afastam o positivismo em linguística, aproximando-se de teorias estéticas para as quais uma língua representa uma visão de mundo. Bakhtin interessa-se por questões anti-hegemônicas, enquanto Gramsci centra-se na contra-hegemonia, conforme atesta Brandist6 (1996, apud ZACCHI, 2003). Dizendo de outro modo, Bakhtin estava interessado em resistir à imposição de uma ideologia top-down.
Ao recorrermos à sua concepção dialógica, fica mais fácil compreender a relação estabelecida entre linguagem e hegemonia. Como a significação não está na palavra, e sim no efeito da interação do falante com o ouvinte, todo enunciado é um elo na corrente de outros enunciados, o que torna a linguagem aberta a novas enunciações capazes de construir novas significações. A existência de uma língua única ou padronizada, por exemplo, não seria possível a não ser a partir de intervenção cultural opressiva. Forças centrípetas7 unificadoras podem concorrer para erradicar a diversidade, suprimir ou marginalizar outras forças culturais e linguísticas (centrífugas), que, por sua vez, entram em confronto com as primeiras. Essas forças centrífugas evidenciam o que chamou de heteroglossia8, corroborando a ideia de que mesmo a cultura ou a língua mais unificada e padronizada é perpassada pela alteridade e pela relatividade histórica. O conceito de heteroglossia cunhado por Bakhtin apreende o movimento contínuo da língua, recusando a hegemonia de uma linguagem única, visto que há sempre uma relatividade presente entre a mente e o objeto (ZACCHI, 2003). Para o autor, a eficácia política depende da capacidade que alguns teriam de orquestrar outros discursos em oposição ao discurso autoritário:
Em essência, para a consciência individual, a linguagem enquanto concreção socioideológica viva e enquanto opinião plurilíngue, coloca-se nos limites de seu território e nos limites do território de outrem. A palavra da língua é uma palavra semialheia. Ela só se torna “própria” quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-a familiar com a sua orientação semântica e expressiva (BAKHTIN, 1988, p. 100).
Assim, a autoria do discurso se dá pela personificação do discurso alheio, que pode acontecer primeiramente pela criação de um discurso persuasivo interno. Ao tomarmos a palavra do outro, a reelaboramos internamente tornando-a parcialmente nossa, num processo dialógico com outros discursos com os quais estivemos em contato em outros momentos. Nesse sentido, o discurso interno aberto e inacabado condiciona-se às relações sociais e materiais nas quais se insere. Por não sermos possuidores diretos de discursos, e para evitar que sejamos falados pelos discursos de outrem, cabe a nós, sujeitos, orquestrar tanto as vozes às quais estamos expostos, quanto os discursos persuasivos internos.
Considerações
As concepções de Laclau e Mouffe e de Bakhtin e Volochínov até aqui expostas nos pareceram bastante próximas em um dado momento, para, no seguinte, se desviarem ou se distanciarem de modo abissal. Fica evidenciado que em Bakhtin e Volochínov a questão das relações dialógicas entre consciência individual e mundo se destaca como central, além de assumir uma configuração trans-dialética entre polaridades denotativas de fixidez e fluxo: singular/universal, mundo sensível/mundo inteligível, eu/outro etc. A consciência é, portanto, ideológica e semioticamente constituída a partir de situações sociais concretas.
Bakhtin permanece ancorado em uma visão monista, em que se estabelece uma relação de mútua constituição e imbricamento como solução para as antinomias. Há, por assim dizer, uma integração e interpenetração entre o sujeito e o social ou entre a consciência individual e as relações sociais. Sua proposição está ancorada em um ponto de vista totalizante, uma síntese dialética sujeito-objeto em que ambos estão imersos na cultura e na história. O eu está na dependência precípua de outros eus, assumindo, contudo, um papel de responsibilidade. Apesar de individual, o sujeito não é tomado como ser subjetivo; e o mundo é objetivo, mas sempre construído sócio-historicamente a partir das ações da coletividade humana. Mantém-se, enfim, no plano concreto da interação dialógica e da polifonia da formação discursiva. Há, então, uma possibilidade de completude para o sujeito, a qual se dá através da sua responsividade aos demais e às diferentes situações vividas, mesmo que esteja fadada ao contexto sócio-histórico. Contudo, os autores excluem o dialogismo da dimensão em que o sujeito se encontra isolado, o que permite algumas críticas.
Laclau e Mouffe reconhecem, igualmente, a natureza relacional da formação identitária e advogam a regularidade na dispersão como alternativa para a formação de totalidades sempre transitoriamente configuradas. Rejeitam as categorias sujeito e sociedade, na medida em que rejeitam a distinção relativa entre o discursivo e o não discursivo. Neste caso, falar de identidade pessoal ou individual perde sentido, o que nos parece perigoso e problemático. Enquanto Bakhtin e Volochínov tratam de ato/atividade/ação, Laclau e Mouffe introduzem o discurso das práticas articulatórias, deixando entrever certa fragilidade argumentativa no tocante ao lugar e à concretude da ação social. Tudo é, então, discurso entendido como totalidade estruturada pela prática articulatória, que organiza as relações sociais. Não há espaço para uma positividade ou objetividade dada, implicando uma total falta de sutura e esgarçamento do sujeito e do social. Os autores recorrem a ideia de um antagonismo primário ao se referirem especificamente à relação sujeito-objeto.
Encontramos em Borges (2009) algumas indicações muito esclarecedoras, quando distingue três visões para a questão da identidade:
Hall (2000) parte da premissa de que as identidades estão cada vez mais fragmentadas na modernidade tardia, que "elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo dos discursos, práticas e posições que podem cruzar ou ser antagônicos" (p. 108). [...] Bauman (2005) [...] ao defender que a identidade está fragmentada e forçosamente obrigada a se construir como falsa identidade, na medida em que "somos incessantemente forçados a torcer e moldar nossas identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas" (p. 97), acaba caindo em um saudosismo épico, sem saída, próximo do descrito por Horkheimer e Adorno (1985) em sua dialética negativa, recusando e atribuindo um caráter negativo a toda evolução tecnológica da atualidade, denotando uma sujeição a priori [...]. Já Ciampa, mais otimista, (apresenta a) sua ideia de que a identidade sempre é metamorfose [...] que as identidades não estariam cada vez mais fragmentadas [...], mas sempre seriam a expressão de uma infinidade de personagens, irredutíveis aos papéis impostos socialmente, estando aí sua força e sua possibilidade de transformação [...] (p.5).
Finalizando, nos parece que, enquanto Laclau e Mouffe optam por uma perspectiva mais próxima à de Hall (2000) ou à de Bauman (2005), Bakhtin e Volochínov comungam no entendimento da identidade como metamorfose, como desenvolvimento do concreto, como o alterizar-se, como história.
Referências
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BAKHTIN, M (V.N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. [ Links ]
BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. [ Links ]
BORGES, R.R. Identidade Social. Portal Renato Borges. Disponível em: http://www.professorrenato.com/index.php?option=com_contenteview=articleeid=129%3Aidentidade-socialecatid=35%3AsociologiaeItemid=65elimitstart=4. Acesso: julho de 2009. [ Links ]
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LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista. Hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI España, 1987. [ Links ]
HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T.T. (Ed.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000, p.103-133. [ Links ]
HORN, S.R.N. Heteroglossia bakhtiniana: estratégias discursivas no texto para crianças. Rio de Janeiro: UERJ, s.d. Disponível em: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno05-13.html. Acesso em junho de 2009. [ Links ]
MENDONÇA, D. A impossibilidade da emancipação: notas para uma política democrática radical. XIII Congresso Brasileiro de Sociologia. Recife (PE): UFPE, Disponível em:http://www.sbsociologia.com.br/congresso_v02/papers/GT10%20Estado,%20Cidadania%20e%20Identidade/A%20impossibilidade%20da%20emancipa%C3%A7%C3%A3o%20notas%20para%20uma%20pol%C3%ADtica.pdf. Acesso em junho de 2009. [ Links ]
ZACCHI, V.J. Discurso, poder e hegemonia: dilemas do professor de língua inglesa. 2003. Dissertação de mestrado. UNICAMP, São Paulo. Disponível em: http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000294461. Acesso em junho/2009. [ Links ]
Endereço para correspondência
Gilberto Braga Pereira
E-mail:gilberto@nucleorh.com.br
Isabelle Paiva Sanchis
E-mail:isabellesanchis@yahoo.com.br
Lecy Rodrigues Moreira
E-mail:lecymoreira@hotmail.com
Recebido em: 17/03/2010
Revisto em: 14/06/2010
Aceito em: 09/07/2010
1 Deste ponto em diante, todas as citações foram de tradução dos autores do texto.
2 Para Laclau e Mouffe (1987), nas relações antagônicas o esforço é concentrado para eliminar o inimigo, enquanto no agonismo há disputa por hegemonia com um adversário que se reconhece legítimo.
3 Posições dicotômicas que impedem uma apreensão totalizante da linguagem, pois o "subjetivismo idealista" reduz a linguagem à enunciação monológica isolada e o "objetivismo abstrato" a reduz a um sistema abstrato de formas.
4 Primeiro ato ou ato fundador.
5 Neologismo proposto por Brait (2005, p. 20) que consiste em uma tentativa de reunir responsabilidade (responder pelos próprios atos) e a responsividade (responder a alguém ou a alguma coisa). "O objetivo é designar por meio de uma só palavra tanto o aspecto responsivo como o da assunção de responsabilidade do agente pelo seu ato, um responder responsável que envolve necessariamente um compromisso ético do agente."
6 BRANDIST, C. Bakhtin, Gramsci and the semiotics of hegemony. New left review, London, n. 216, p. 94-109, 1996.
7 As forças centrípetas buscam subordinar o sujeito em suas constantes lutas pela manutenção da hegemonia e seus valores, enquanto as centrífugas resistem a essa subordinação e buscam a afirmação da diversidade de valores, caracterizando uma constante batalha entre diferentes posições ideológicas pela conquista e/ou manutenção da hegemonia, portanto uma situação de permanente instabilidade.
8 "Bakhtin descreve a heteroglossia ou o próprio conceito de voz como a interação de múltiplas perspectivas individuais e sociais, representando uma estratificação e aleatoriedade da linguagem; mostrando-nos o quanto não somos autores das palavras que proferimos" (HORN, s.d., n.p.).