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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.62 no.2 Rio de Janeiro 2010
ARTIGOS
O caldo cultural das identificações contemporâneas
The cultural way of the contemporary identifications
Elizabete Regina Almeida de SiqueiraI; Edilene Freire de QueirozII
IDoutoranda -Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Recife. Pernambuco. Brasil
IIDocente- Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Recife. Pernambuco. Brasil
RESUMO
No contexto do culto hedonista do corpo e da ascensão do subjetivismo da vontade ao topo da escala de valores dos sujeitos contemporâneos, tem-se detectado a existência de uma forma de identificação com aqueles que têm os mesmos traços de gozo, como, por exemplo, entre aqueles que marcam o corpo. Os estudos dos autores que abordamos demonstram que houve uma mutação na estrutura do Outro, mutação esta responsável por tais identificações horizontais sem referência a uma tradição ou a um ideal. Nesta reflexão sobre a realidade contemporânea, buscamos deixar claro de que caldo cultural emergem tais identificações, nesse tempo marcado pela fluidez do Outro.
Palavras-chave: Identificação; Fluidez; Mutação; Outro; Gozo.
ABSTRACT
In the context of the hedonistic cult of the body and the rise of subjectivism will to the values top range of the contemporary subjects, we have detected the existence of an identification form with those which have the same traits of enjoyment, for example, among those that mark the body. The studies of authors with whom we lave an approached show that there was a change in the structure of the Other. This change (mutation) is responsible for these horizontal identifications without reference to a tradition or an ideal. In this reflection about the contemporary reality, we lave tried to make it clear in order to now from what cultural way emerges such identifications in this moment marked by the fluidity of the Other.
Keywords: Identification; Fluidity; Change; Other; Enjoyment.
Propomos, neste artigo, apresentar algumas ideias sobre quatro versões do contemporâneo que consideramos relevantes para situar de que caldo cultural as identificações atuais emergem. Refletindo sobre como se pensa a realidade contemporânea, pode-se compreender o que inspirou Miller (2005) a formular a tese da “inexistência do Outro”, um conceito essencial quando se pretende interrogar qual o estatuto contemporâneo das identificações em sujeitos que se submetem a alterações corporais radicais, com perfurações e retalhações. Trata-se de um estudo que vimos desenvolvendo no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, da Universidade Católica de Pernambuco, desde o Mestrado e que continua no Doutorado, considerando a hipótese de que marcar o corpo pode ser uma tentativa de nomeação pela via de um nome inscrito na carne, sob o império do gozo1. Na primeira fase desta pesquisa, analisamos a relação entre as marcas corporais e o estatuto das identificações na contemporaneidade, com base nos depoimentos de jovens que compulsivamente marcam seus corpos com tatuagens, com introdução de piercings e outros objetos.
Embora a prática de marcar o corpo seja habitual em várias culturas, tal fenômeno tem sido objeto de vários estudos, justamente por tornar-se moda entre os jovens e, sobretudo, pelo seu traço compulsivo e por vezes devastador. Considerando que todo sintoma é, antes de tudo, social, neste artigo dirigimos nosso olhar para a cultura. Quem embarca no pensamento de Baudelaire, de Debord, de Bauman ou de Lipovetsky vê que “o mundo inteiro mudou de rosto”, comenta Novaes (2008, p. 9). Logo, há necessidade de refletir sobre o estado de mutação que caracteriza o homem contemporâneo. Se o inconsciente tem a ver com o discurso do Outro (LACAN, 1998), ele muda de acordo com a mudança do Outro. Se entendemos o Outro como o lugar do código, da cultura, temos que, forçosamente, entender qual o lugar do homem na nova configuração do mundo e o efeito desta sobre aquele. Isso significa dizer que, quando uma nova realidade se apresenta, a psicanálise, como qualquer outra ciência, mobiliza-se para pensá-la, compreendê-la e interpretá-la. Não com fins de veicular um panorama pessimista ou catastrófico – que alguns autores expressam quando interpretam a contemporaneidade –, mas para, sendo conhecedor dessa realidade, situar e pensar sobre as novas configurações subjetivas armadas pelos sujeitos que, vivendo nesse tempo, criam-nas para não se desorganizarem e enfrentarem os desafios advindos com novas formas de inclusão e reconhecimento.
No estudo que se segue, tentamos realçar que, no contexto da contemporaneidade, a tendência das identificações tem sido a de ligar-se aos traços de gozo na linha da horizontalidade, ou seja, dos sujeitos entre si, sem referência a uma tradição ou a um ideal. Recorremos a quatro versões da contemporaneidade nas quais o corpo aparece como lugar central e cenário privilegiado para revelação de conflitos. Há, de certo modo, intensificação do sensível e culto ao hedonismo. Essa estruturação da contemporaneidade é favorável à perda da predominância de identificações no eixo da verticalidade e ao aumento vertiginoso das identificações entre pares e, como já citamos acima, entre aqueles que detêm o mesmo traço de gozo.
O valor mercantil como padrão
Charles Baudelaire (2001) retrata a modernidade como um momento específico de hegemonização da ideologia individualista de secularização dos costumes e laicização do conhecimento. No projeto sociocultural iniciado no século XVI e consolidado no século XVIII, o indivíduo é o modo hegemônico de organização da subjetividade: o homem é o centro e fundamento do mundo.
Tudo começou no século XVI com o Renascimento, que defendeu a descentralização das referências de poder com a libertação da escravidão feudal. O ideário renascentista é a universalização da liberdade e da igualdade, bem como um modo de produção capitalista. Comentam Forbes et al. (2005, p. 27) que essa orientação de nuance grandiosa teve sérias consequências. Fez com que os chamados “universais concretos” – o rei e deus – de imensa importância na formação social começassem a perder sua função de personificação do poder político. O resultado foi o enfraquecimento das instituições correspondentes, entre as quais a religião como princípio unificador para a sociedade.
A reforma protestante (1517) de Lutero aboliu os rituais católicos e restringiu a mediação da igreja para a salvação. Propôs uma religião mais simples e mais pessoal, fundada sobre a leitura da bíblia. Ele organizou uma nova igreja antipapista, que suprimiu o culto à Virgem e aos santos, uma vez que somente a fé poderia salvar. Com Lutero e sua reforma, ocorreu a intensificação da experiência individualizada, bem como o aprofundamento da solidão interna do indivíduo. O protestantismo apregoa que o êxito econômico é sinal da graça divina.
Os séculos XVI e XVII testemunharam o nascimento da ciência moderna (MEYER, 1985), na qual a racionalidade estabeleceu novas relações entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Houve uma cisão na esfera da subjetividade - a criação de um sujeito epistêmico - pelo controle científico. A proposta cartesiana rompeu com o saber aristotélico medieval e propôs o sujeito autoconsciente e capaz de autocontrole. Espírito científico e sujeito autoconsciente (DESCARTES, 1983) foram os fundamentos da modernidade. Descartes trouxe de sua capacidade de pensante o seu “cogito”, que tinha por agente um ser desprovido de atributos qualitativos, de uma alma transcendente. O sujeito cartesiano é pura existência pensante, sem referência a um eterno e necessário, ou seja, a uma alma eterna e perfeita.
O século XVIII ficou para a história como o século das luzes e teve por fenômeno maior o intelectual. Nele, deu-se a cisão definitiva entre o privado e o público, sendo o indivíduo o centro microscópico do mundo. Sua bandeira política foi o liberalismo que tinha como preceitos:
• a liberdade de ação em relação ao coletivo, o direito de escolha, a liberdade de ação e participação;
• a igualdade dos direitos públicos;
• a consciência individual: razão própria, emoções e sentimentos singulares e únicos;
• o entendimento do homem como sendo a célula básica da sociedade.
Em suma, o liberalismo do século das luzes defendia que personalidades soberanas e identidades delimitadas eram os fundamentos primeiros do homem. Os universais concretos, que eram elementos agregadores, tornaram-se difíceis de serem encontrados, e foram substituídos pelo subjetivismo da vontade.
No século XIX, houve uma revisão do liberalismo que ampliou os direitos políticos aos não-proprietários e propôs uma redefinição do Estado que permitisse como modelo econômico o capitalismo monopolista. Este último foi o sucessor do capitalismo concorrencial vigente e defendia o uso do público com objetivos privados. Como consequência, ocorreu a invasão do público pelo privado, ou seja, a privacidade passou a ser o juiz e organizador da vida pública.
O capitalismo liberal e organizado do século XIX conheceu seu apogeu já no século XX, após a 2ª Guerra Mundial. Capitalismo monopolista sustentou-se na concentração de capital e ampliação do mercado. No plano simbólico e cultural, assistiu-se à especialização e diferenciação funcional dos diversos campos da racionalidade humana. Nasceu a indústria do lazer que vende gozo programado, passivo e individual, em um espaço urbano desagregador e atomizado. A sujeição à produção e ao consumo e soluções institucionais como resposta ao medo das transgressões vieram para ficar.
Nos anos 1960, instaurou-se a terceira etapa do capitalismo que todos nós conhecemos como neoliberalismo. A equação representante do espírito neoliberal é: tem valor porque vende. Trata-se do capitalismo financeiro, desorganizado, ou seja, capitalismo monopolista de Estado. O Estado passou de Estado providência a Estado planificador. Este emitia crítica implacável aos direitos sociais e aos ganhos de produtividade das classes trabalhadoras. Seu princípio básico: o mercado coloniza Estado e sociedade.
Pelo exposto, fica óbvio que esse estado de coisas não poderia deixar de ter efeitos na subjetividade. O primeiro e mais importante foi o surgimento de um novo homem: o homo economicus (MANCEBO, 2002, p. 24), que é o homem pós-moderno. É o homem consumidor que introjeta o valor mercantil como padrão dominante de interpretação do mundo. A lógica de mercado produz homens utilitarista-individualistas que têm no ganho pessoal a força que os motiva e orienta. Há valorização do autoinvestimento e da interioridade, produzindo homens desligados do mundo e desinteressados. Tendo o autointeresse como guia, devem seguir seus próprios valores e preferências. Os objetivos privados devem ser soberanos e não devem submeter-se ao diferente. Ratifica-se a precedência do privado sobre o público e desloca-se o simbólico como ordenador do social. Os problemas éticos são deixados a cargo de cada um, e os fins sociais limitam-se às coincidências que porventura venham a ocorrer entre os objetivos individuais. Há uma busca atomizada e autista pela própria felicidade.
O sucesso a qualquer preço promove a hipertrofia da liberdade individual, o refluxo dos direitos à cidadania social e o rebaixamento dos princípios comunitários, coletivos e sociais. O individualismo exacerbado do homo economicus, fruto da intimização hipertrofiada, pratica a disciplina dos corpos, o aumento das relações de dominação e o pessimismo, ou seja, indivíduos indiferentes, desinteressados, buscam no consumo uma saída, mas dão de cara com a boca aberta do crocodilo (LACAN, 1995), cujo único desejo é reintegrar seu objeto.
A espetacularização do mundo
A prevalência do mercado e do consumo é também realçada por Guy Debord (1992), ao considerar que houve desencadeamento da perda de qualidade ligada à forma-mercadoria e à proletarização do mundo. Segundo o autor, o mercado desejoso de unificação consegue transformar-se em mercado mundial, falsificado e garantido pelo espetáculo. Debord (1992), com base no que Feuerbach preconiza, observa que, nos tempos atuais, prefere-se a imagem à coisa, o parecer ao ser e a representação à realidade. Ele apresenta uma teoria crítica, nomeada “teoria do espetáculo”, definindo as condições gerais de um período histórico que tem seu ápice em maio de 1968, na França.
A sua primeira tese diz o seguinte: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (DEBORD, 1992, p. 13). Tem-se a autonomia da imagem, responsável pela falsa consciência, produto do olhar iludido. Mais precisamente, o espetáculo não é mero conjunto de imagens, mas relação social entre pessoas, mediada pelas imagens, e tem a ver com o não vivo.
O espetáculo, então, inverte o real, fazendo com que seja invadido pela sua contemplação, retomando-o sobre si, em uma adesão maciça. A realidade surgiria, portanto, do espetáculo, tornando-o real. Essa alienação recíproca seria a essência e a base da sociedade existente – produto e projeto da sociedade de consumo, sinal da produção reinante e sua finalidade última.
Debord (1992, p. 14) radicaliza sua proposição quando afirma que o espetáculo é uma Weltanschaung, uma visão de mundo que se materializa e se traduz nas formas particulares de produção em massa, tais como: informações, propagandas, publicidade, consumo de lazer; em outras palavras, é o modelo atual da vida dominante em sociedade. Como afirmação da aparência, exige aceitação passiva, sem réplica, e advoga que o que é bom aparece e, aparecendo, é bom. Tem, portanto, um caráter tautológico por falta de substituto transcendente e, como tal, seus meios são seu fim: “é o sol que nunca se põe no império da passividade moderna” (DEBORD, 1992, p. 17), que não deseja nada para além de si mesmo. Por ser sem finalidade, esgota-se no desenrolar, demandando, por isso, um recomeço incessante e esgotante.
A espetacularização do mundo representa a dominação da economia sobre a vida social, acarretando evidente mutação do ser para o ter. Nesse momento em que a prevalência é dos resultados acumulados, tal deslizamento para o ter e o parecer é inevitável. A partir disso, o prestígio já não está no ser do indivíduo, mas no ter e no parecer. O que vale é o que se tem e o que se aparenta ser e ter. Não basta ser; é preciso parecer ser. Vale mais parecer honesto do que sê-lo de fato.
A tendência é o dar a ver, por diferentes meios, como testemunham muito bem as campanhas políticas. É preciso hipnotizar os eleitores, dando a ver o espetáculo de projeto que nada garante que será realizado, mas alimenta o desejo de seguir dormindo, de não despertar, dos indivíduos contemporâneos. A separação generalizada do trabalhador daquilo que ele produz demanda modos disfarçados, lights, de cisão e dominação.
Debord (1992, p. 24) afirma que “quanto mais contempla menos vive” e quanto mais se aliena nas necessidades fabricadas, mais se afasta do desejo singular. Isso corresponde à fabricação concreta da alienação.
A dinâmica do sistema econômico processa-se de forma a gerar uma produção circular, mas de isolamento. O isolamento é o fundamento da técnica e, tautologicamente, o processo técnico isola. Debord (1992) lembra-nos que se passou do automóvel à televisão, da televisão ao computador, do computador ao iPod, e por aí adiante. Então, os bens são as armas do sistema espetacular-consumista, visando o reforço constante à tendência atual de isolamento das “multidões solitárias” (DEBORD, 1992, p. 23). Comentam Forbes et al. (2005) que a sociedade hoje é o próprio espetáculo, e que ela nos deixa a angústia de sentir, que reside em cada um, a responsabilidade de dar um sentido à vida.
O obscuro labirinto do vazio
Vimos, conforme Baudelaire, que a marca registrada da nossa sociedade é o individualismo e o império do mercado. Já segundo Debord, a lógica mercantilista transformou o espaço social em espaço de contemplação no qual o sujeito se aliena na imagem, no brilho da mercadoria, e ele mesmo se insere nesse cenário como objeto a ser também contemplado.
Lipovetsky (2002, p. 5) considera tratar-se de “uma nova fase na história do individualismo ocidental”, de mutação histórica em processamento, na qual se instalaram valores hedonistas, permissivos e psicologistas que se iniciaram, lentamente, na década de 1950. Em outras palavras, segunda revolução individualista sucedeu à primeira, moderna, iniciada no século XVI, estando esta última associada à privatização ampliada, à erosão das identidades sociais e desestabilização das personalidades. O autor esclarece que, na primeira revolução, nasceu o direito dos homens com a democracia que os acompanhou; porém, naquele tempo, os ideais coletivos ainda tinham espaço dentro do universo de interesses individuais.
Já nessa segunda revolução, ocorreu a democratização da sociedade, que se organizou sob a égide da personalização hedonista. Tal processo foi fruto da ruptura com tudo o que havia de rigor, de disciplina e de coerção na fase inaugural das sociedades modernas. Lipovetsky (2005) destaca que, outrora, nunca houvera uma sociedade individualista, exceto a moderna, ocidental, diferente de outras civilizações que extraíam suas leis do exterior, do divino, e foram sempre hierárquicas e, como tal, reconheciam como natural a desigualdade entre os indivíduos.
Na ideologia individualista, o indivíduo é obrigado a uma escolha forçada, de autoengendramento, tudo depende dele mesmo. É a lei do “Vire-se!”, ou seja, o indivíduo é o único responsável pelo seu bem ou pelo seu mal, com todo peso que isso acarreta. A busca de significado para a vida, segundo Reale Júnior et al. (2005), é um projeto eminentemente pessoal, porque não mais existe moral heterônoma, posto que o social perdeu a capacidade de trazer realizações no plano pessoal. As soluções e as responsabilidades coletivas perderam-se ao longo dos anos. Tudo isso agora é processado segundo valores hedonistas, culto à liberdade e à livre expressão. É obsoleta a submissão e a referência ao Outro e ao coletivo.
Segundo Lipovetsky (2002), passou-se da sociedade disciplinar à tirania do gozo. Nesse meio tempo, viveu-se um tempo de oposição aos valores da tradição, à sociedade disciplinar; de apologia à razão e à opinião esclarecida, consideradas como ideais da modernidade. Tempo que deu partida à lógica do mercado, à eficácia técnica e ao individualismo.
No fim dos anos 1970, o predomínio era do individual sobre o universal, do psicológico sobre o ideológico, da comunicação sobre a politização, do permissivo sobre o coercitivo. Lipovetsky (2002) chama esse tempo de “pós-modernidade” e o compreende como um qualificativo do novo estado cultural das sociedades desenvolvidas. Esse conceito destaca uma mudança crucial, a reorganização profunda do modo de funcionamento econômico e social das sociedades democráticas avançadas.
Na pós-modernidade, já não se trata de acumular, mas de usufruir. A preocupação maior não é garantir o futuro, mas o aqui e agora, guiados pela miragem da eterna juventude. Para o autor em questão (LIPOVETSKY, 2002), há mesmo um encolhimento do tempo: os indivíduos são destinados a consumir o mais rápido possível, cada vez mais, objetos, informações, esportes, viagens, relacionamentos e cuidados médicos. Há uma espécie de apoteose do consumo, cuja extensão chega ao ego, que é interpelado a se confrontar com seu destino de obsolescência acelerada, de errância e desestabilização.
Trata-se de uma sociedade sem ídolos nem tabus, sem pontos cardeais ou fios condutores, na qual tudo é personalizado e sob medida. A cultura pós-moderna é personalista, descentrada, heteróclita, materialista e vacilante. Isso faz com que a coisa pública perca importância, já que as cargas libidinais antes investidas no espaço público, agora, voltam-se para o privado, porém um privado que se exterioriza pela exigência imperativa de mostrar-se, como tivemos oportunidade de ver em Debord. A indiferença é sua cria; sua marca registrada, o narcisismo. Lipovetsky (2002) cita Nietzsche e Heidegger para lembrar que o niilismo é o fim da ascendência dos valores sobre os indivíduos. Segundo essa visão de mundo, só restam “eu” e meus interesses, “mais preciosos até que a vida dos outros” (LIPOVETSKY, 2005, p. 76).
O curioso, no entanto, é que tal modalidade narcísica não é de todo associal e despolitizada. Pelo contrário, ela produz um tipo particular de entusiasmo: o das associações, dos grupos de ajuda mútua hiperespecializados, reponsáveis pela solidariedade dos microgrupos dos iguais que se ajudam na busca de solução dos problemas íntimos. Essa modalidade narcísica de relacionamento com os iguais representa liberação da influência do Outro, ruptura, bem como liquefação da identidade consistente do Eu e da suspensão do primado da referência ao Outro. Afinal, nem sempre a ascendência do Outro sobre os indivíduos produziu sociedades sadias e solidárias: a história está marcada de exemplos catastróficos de ditadores e tiranos que, guiados por ideais totalitários, subjugaram e dizimaram indivíduos.
A modalidade narcísica nomeada pelo autor (LIPOVETSKY, 2002, p. 51) de “neonarcisismo” define-se pela tendência à desunião, a rachaduras na personalidade, e pelo enfeitiçamento do ser pelo parecer, o que resulta na mutação da representação pessoal e social no corpo. Sobre isso, um grupo de analistas da Associação Mundial de Psicanálise reuniu-se em Cannes, em 1999 (MILLER, 2004), para discutir sobre as neoformas de psicoses que não seguem o padrão tradicional de desencadeamento – mas caracterizam-se, basicamente, por modalidades mortíferas de gozo, mesmo na ausência de fenômenos alucinatórios clássicos e formações delirantes – e que são nomeadas de neoconversões, neodesencadeamento e neotransferências de matiz psicótico.
A dimensão do conceito lipovetskiano de neonarcismo indica algo que fala de um mais além do que foi estabelecido por Freud (1979) no estudo sobre o narcisismo, ou seja, de psicopatologias que não se ancoram no discurso, e sim no corpo, e, de certo modo, já aponta em direção do que viria a ser a tese milleriana (MILLER, 2005): o Outro que não existe. Tais pontos de convergências entre os autores aqui estudados nos levam à percepção mais clara do pano de fundo das patologias da identificação como consequente declínio de identificações verticais a um traço do Outro e proliferação de identificações horizontais de verve narcísica.
A inversão narcisista do corpo e a obsessão pela saúde, pelo consumo de produtos farmacêuticos e pela sua alteração deliberada fazem o corpo falar – na verdade, gritar – seus mal-estares, expressão da generalização da crise subjetiva. O corpo, disponível a qualquer coisa, passou a ser palco de encenações que nem sempre trabalham a seu favor. Hoje, é comum ver que o corpo capturado na engrenagem do excesso, das compulsões, dos esportes radicais fala da escalada paroxística do sempre mais, conforme se verifica em alguns sujeitos que marcam seus corpos compulsivamente.
Segundo Lipovetsky (2004), tudo se passou muito rápido; mal se anunciava o nascimento do pós-moderno, já se esboçava algo ainda mais radical: a hipermodernização do mundo. Nessa nova modalidade de organização da sociedade, impera o hipercapitalismo, a hiperpotência, o hipermercado e, como não poderia deixar de ser, o hiperindividualismo. Na hipermodernidade, mundializa-se o liberalismo e comercializa-se tudo, até os modos de vida. A razão instrumental é a grande ferramenta, e a eficácia técnica, a meta final. No mundo hipermoderno, embora haja um hiperindividualismo, este não vem acompanhado pelo incremento das forças interiores do indivíduo. Ao contrário, o que se apresenta é o declínio generalizado de tais forças e a elevação de sintomas psicossomáticos.
O entendimento de Lipovetsky (2004) coincide com as ideias propostas por Bauman (2001) sobre modernidade líquida. Este desenvolve a tese da liquefação e da precariedade das parcerias humanas, em virtude da grande dificuldade que existe quando se trata de generalizar experiências que só contam com o entusiasmo e a dedicação dos atores. A junção da ética hedonista com o utilitarismo gera a convivência com a desubstancialização e a lógica do vazio, com a impossibilidade de sentir. Então, o efeito iatrogênico desse neonarcisismo é o esvaziamento do Eu e de sua identidade, paradoxalmente, por hiperinvestimento, e o sentir precisa ter consistência física, razão pela qual se elevam os sintomas psicossomáticos. A solidão do Um é o produto, e maior é o número dos que se sentem infelizes, sem nem mesmo saberem por que o são, ou seja, não chegam ao estágio de conseguir nomear as razões de sua infelicidade. Para Lipovetsky (2002), o narciso contemporâneo é deprimido e nômade.
O mal-estar na modernidade líquida
Bauman (2001) considera a fluidez a principal metáfora para o estágio atual da era moderna. Lembra que mobilidade e inconstância são as principais características dos fluidos. Segundo esse autor, por modernidade líquida se deve entender o tempo que começa “quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes” (BAUMAN, 2001, p. 15), quando há brusca ruptura na trama do tempo, descontinuidade entre o antes e o depois, gerando a instalação de ordem radicalmente diferente, de rupturas e descontinuidades, na qual o que parece se perder é o fluir do tempo. Na modernidade líquida, o tempo passou a depender da tecnologia e dos meios de transporte. Nela, todos os limites existentes podem ser elastecidos segundo a vontade de cada um. O céu passou a ser o limite; e a modernidade, um esforço contínuo, rápido e irrefreável para alcançá-lo, em interminável carreira em busca da mais nova e supersônica forma de conquistar novos espaços, territórios por explorar, às pressas, visando adquirir algo, para, mais rapidamente, eliminar e recomeçar.
O que mais caracteriza a modernidade líquida (BAUMAN, 2001) é a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta “modernização”, a opressiva e insaciável sede de destruição criativa ou criatividade destrutiva, de limpeza em nome de melhores projetos e maiores capacidades de produtividade e competitividade. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo; ter uma identidade que só pode existir como projeto não realizado.
Sua marca registrada é o hiperconsumo de satisfação instantânea e o individualismo radical. Esclarece o referido autor (BAUMAN, 2007) que a instabilidade dos desejos, a insaciabilidade das necessidades e a tendência ao consumismo instantâneo estão em perfeita sintonia com o novo e moderno entorno líquido que deseja satisfação sem a mínima postergação. É o tempo de cultura hedonista e psicologista, em que as diferenças individuais são sacralizadas e contempladas como direito inalienável, mas que têm por rebote o esvaziamento dos princípios reguladores sociais. É de fato um tempo que se pode chamar de personalista, que traz em seu cerne o paradoxo: a abulia individual, o superinvestimento do utilitarismo e a total ausência de vontade, “de sujeitos mal criados pelo facilismo do mercado de consumo, que promete fazer de cada escolha uma transação segura e única, que não gera obrigações futuras” (BAUMAN, 2007, p. 30).
A modernidade líquida constitui um momento histórico em que todos os freios institucionais desapareceram e foram trocados pela autoestima e pelos desejos singulares. Sua marca registrada é o fracasso do poder regulador das tradições, a profanação do sagrado, o repúdio do passado e destronamento da tradição. Assiste-se à decomposição das utopias e à pane nas representações do futuro. Em troca, tomaram espaço fenômenos totalmente indiferentes ao passado e ao futuro. Época de narcisos corroídos pela inquietação, na qual sucesso ou fracasso pesam sobre seus ombros, em virtude da liquefação dos padrões de dependência, obrigando-os à vigilância ininterrupta, em que a incerteza está destinada a ser a “desagradável mosca na sopa da livre escolha” (BAUMAN, 2001, p. 103). Nela, o medo se impôs ao gozo, e a angústia, à liberação.
Nessa sociedade sinóptica em que muitos observam poucos, os espetáculos, as tentações e as seduções, disfarçadas de livre-arbítrio, substituíram a coerção. Viciados em comprar (BAUMAN, 2001, p. 104), os sujeitos são coagidos a não desviar o olhar de vitrines que os capturam e os fazem ser olhados pelos objetos. A ubiquidade desse olhar é mais uma causa de angústia. Eles são instados, empurrados e obrigados a se promover com todas as armas ao seu alcance, para acrescentar valor de mercado ao que têm para vender, que são eles mesmos. Assim, ficam destinados à interminável tarefa de ser e continuar sendo um artigo vendável, tornando-os, ao mesmo tempo, consumidores e mercadorias. E mais: precisam ser clientes de primeira categoria, gastadores contumazes; do contrário, serão descartados do jogo de socialização chamado mercado. Vive-se o tempo dos call centers, onde não há um Outro a quem se dirigir, pois é mister manter os inimigos do consumo à distância e condená-los ao esquecimento. É este o novo espírito do capitalismo globalizado: só existo se compro (BAUMAN, 2007).
Logo, fluidez e liquidez são metáforas adequadas para indicar o modo de relação dos sujeitos. Bauman (2004) lembra que os fluidos se movem, escorrem, esvaem-se; não são facilmente contidos, são leves. Mobilidade e inconstância são, portanto, suas principais características. O produto subjetivo é perda de solidez da identidade que flutua no ar. Sua busca é tarefa intimidadora, porque se assemelha ao prometeico trabalho de produzir crosta sobre larva vulcânica – tarefa a ser realizada vezes e vezes, sem conta.
Em Identidade (BAUMAN, 2005a), afirma ele, estamos perdendo a capacidade de estabelecer interações espontâneas com pessoas reais. Ele se refere à ascensão das relações virtuais, que são incompetentes na tarefa de substituir a boa conversa tête-à-tête. Ao contrário, “elas tornam mais difícil para a pessoa chegar a um acordo com o próprio eu” (BAUMAN, 2005a, p. 31). O autor afirma que flutuar em espaço pouco definido se torna, em longo prazo, enervante e produtor de angústia. Sabemos que o permanente estado de ansiedade produz a tendência de buscar vias de escoamento. Daí a tendência à segregação, ao pânico moral e aos acessos de paranoia coletiva. Os inimigos públicos comuns tornam-se necessários, contra os quais os indivíduos fragmentados e zelosos de sua privacidade e especularmente desconfiados podem descarregar seu ódio e sua agressividade. Assim, a vida se liquefaz de forma defensiva, na tentativa de extrair, “numa vida mortal, tudo aquilo que a eternidade poderia oferecer” (BAUMAN, 2005b, p. 15).
A palavra de ordem de uma vida líquido-moderna é não ficar para trás e acompanhar o movimento frenético que se processa em velocidade supersônica. Entretanto, o efeito desagregador é tornar impossível a consolidação de hábitos, rotinas e formas de agir apaziguadores, uma vez que o que caracteriza essa estrutura é, justamente, a desregulação e desrotinização da conduta humana, diretamente proporcional ao colapso dos vínculos humanos (BAUMAN, 2007). O modelo de indivíduo produzido pelo mundo líquido e moderno é o do herói sem qualidade, como o personagem Ulrich, de Robert Musil, no romance Der Mann ohne Eigenschaften. Segundo Bauman (2007, p. 7), tal personagem, não tendo herdado qualquer qualidade, foi obrigado a produzi-las por conta própria, porém nenhuma delas tinha a garantia de perdurar em um mundo cheio de sinais confusos e mutantes. Por não possuir vínculos estáveis, o herói do citado livro é obrigado a se amarrar ao outro por iniciativa, habilidade e dedicação próprias. No entanto, nenhuma ligação autoengendrada tem garantia de permanência. Esse é “um retrato definitivo do homem moderno” (BAUMAN, 2004, p. 8).
Os indivíduos contemporâneos conseguem, mal e mal, construir vínculos frágeis, frouxos e errantes, geradores de angústia e insegurança. São desesperados, abandonados à própria sorte, ansiosos de algo que lhes dê a sensação de ancoragem mais consistente, mas, ao mesmo tempo, a presença do semelhante lhes é incômoda. O mais que suportam é a presença dos que compartilham com eles a mesma forma de gozar a vida ou um inimigo comum. O relacionamento inter-humano é alvo de profundo desejo e imenso temor. Logo, o relacionamento inter-humano é ambivalente e fonte de conflito, tendo como um dos seus efeitos mais dramáticos a incapacidade de relacionar-se. Os amores são nômades, sem compromissos ou obrigações, de “lastro zero” (BAUMAN, 2007, p. 22), que passam e se multiplicam em uma velocidade vertiginosa, signos de precariedades identificatórias, responsáveis pela busca alucinante de novas e fluidas parcerias que não cessam de deslizar, deixando os sujeitos no vazio do intercâmbio amoroso e “órfãos de Eros”. Comenta Bauman (2004, p. 57):
Eros com certeza não está morto. Mas, exilado de seu domínio hereditário – tal como Ahaspher, o Judeu Errante –, ele foi condenado a perambular pelas ruas numa infindável e eternamente vã procura de abrigo. Eros agora pode ser encontrado em toda parte, mas não permanecerá por muito tempo em lugar nenhum. Ele não tem endereço fixo: se você quiser encontrá-lo escreva para a posta-restante e mantenha a esperança.
Esses sujeitos de lastro zero são os considerados ideais para serem contratados como empregados no Vale do Silício, coração da revolução informática, nos Estados Unidos. Os empregadores desejam empregados sem laços afetivos, compromissos ou qualquer vínculo emocional. Desejam alguém disposto a aceitar qualquer tarefa, a se mudar e redirigir seus interesses instantaneamente, surfistas capazes de deslizar na crista de qualquer onda, mal ela apareça, ou seja, alguém que deixe a empresa, sem queixas nem litígios, quando já não for útil; que deixe para trás as experiências ali vivenciadas. Sennett (2008) entende que só um tipo específico de indivíduo é capaz de tal façanha: a individualidade voltada para o curto prazo, para o descartável, para as validades efêmeras. Esse empregado ideal se assemelha ao consumidor sempre ávido por novidades, que descarta, com frio desapego, qualquer bem que já tenha sido usado não mais do que uma vez. No fundo, alguém que tenha a fluidez e o nomadismo como ideal do eu e desloque o centro de gravidade do ideal para o objeto.
O produto final disso tudo é a conspiração contra a confiança em um projeto de vida duradouro, ancorado em projetos que entusiasmem e que funcionem como verdadeiros antídotos à estrutural fragilidade humana. Não é à toa que a depressão é considerada o mal-estar contemporâneo por excelência. A solidão e o isolamento deixam como saldo a perda da alegria de viver, e essa tem sido a queixa nos consultórios.
É sempre difícil abandonar o tom pessimista sobre o contemporâneo pintado pelos autores citados, pois ainda não entendemos esse processo de mutação contínua e globalizada na qual estamos inseridos. Tendemos a aplicar a lógica aristotélica quando o estado de mutação a subverte. Sabemos, por ora, que a economia de gozo não se regula pelo coletivo, e sim pela vontade individual, e que, da mesma forma, deslocou-se do transcendente para o aparente, culminando com o usufruto do próprio corpo. Nessa lógica, consome-se de gozo. Logo, julgar como bom ou mau é manter-se em uma ética que, a princípio, não é a mesma da psicanálise. Convém saber.
Visão lacaniana da contemporaneidade: o sucesso do discurso capitalista
Ora, a sociedade atual, tiranizada pelo imediato, perde a prescrição de procrastinar. Seu lema do tudo e agora é o oposto do que nos ensina Lacan com Freud, ou seja, que a consequência de sermos falantes é a perda do imediato da satisfação total oferecida pela mãe. A castração é essa renúncia ao imediato. Porém, renunciando ou não, tem-se uma dívida a saldar, mesmo que impropriamente. Rio Teixeira (1997) entende que, se a posse do objeto de consumo é, para o sujeito, uma forma de obturar sua falta, e se o interdito moral que o impedia de obtê-lo por meios ilícitos é cada vez mais débil por causa do declínio do seu alicerce simbólico, então, não é surpreendente que o sujeito tente obtê-lo, a todo custo. A delinquência experimenta, portanto, crescimento em todos os estratos sociais.
Rio Teixeira (1997) destaca que, na nossa cultura, o objeto parece ser percebido pelo sujeito não como perdido, mas como roubado. Se o outro, o semelhante, o possui e eu não possuo, é porque ele o roubou de mim; logo, eu também posso roubá-lo de volta. Longe de favorecer a sociabilidade fraterna, essa pseudodemocracia do objeto ao alcance de todos tem provocado tensão excessiva nas relações sociais. Portanto, podemos concluir, os tempos atuais são tempos de sucesso do discurso capitalista, que substitui o significante pelo objeto. O objeto do discurso capitalista é um objeto que contém gozo; objeto da técnica que se realiza sem pensamento, sem discurso e sem ética. Ora, tal mudança de paradigma produz uma mudança de axioma: a clínica mudou, não é a mesma dos tempos de Freud.
Nessa mesma linha de reflexão, Lacan (2003) elabora o quinto discurso, o do capitalista, baseado em Marx. Segundo ele, todo vínculo entre as pessoas está pautado em um discurso. Ele define quatro: o do mestre, o da histérica, o do analista e o da universidade. E propõe uma notação para cada discurso, considerando a posição ocupada por quatro elementos – o S¹ (significante mestre, índice de comando da palavra), o S² (rede dos significantes, o saber), o a (objeto perdido, causa de desejo) e o $ (que designa o sujeito barrado) –, no matema formado por quatro lugares:
Agente Outro
Verdade Produção
Em qualquer dos giros no posicionamento das letras no matema, há sempre uma disjunção entre o sujeito ($) e o objeto (a), o que não irá acontecer com o discurso capitalista. Na proposição do quinto discurso, o do capitalista, ele se inspirou em Marx.
O que interessa a Lacan (1992) na teoria da mais-valia é que ela descreve, em nível social, a renúncia necessária ao gozo. O trabalhador não pode gozar da integralidade do que ele produz. Seu salário corresponde somente ao que é necessário para reproduzir sua força de trabalho. Essa mais-valia, esse excesso, destina-se ao capitalista, que a priori deveria reinvestir a maior parte a fim de que o sistema continuasse a produzir. Para a explicação da lógica desse discurso, Lacan baseia-se em Aristóteles, para quem o mestre antigo comandava o saber e o saber-fazer do escravo com o intuito de fazê-lo produzir; a mais-valia estaria perdida para o escravo, pois o fruto do seu trabalho se destinaria ao bolso do mestre. Deve-se notar que o mestre se dava esse direito, porque arriscara sua vida nos campos de batalha, expondo-se na luta até a morte. Então, S¹ (um mestre) faz S² (um escravo) produzir a (um objeto) ao qual nenhum sujeito $ (sujeito barrado) poderia ter acesso.
O discurso do mestre ou do inconsciente é o que regia ou rege as relações do sujeito com seu objeto na vigência do Nome do Pai. Esse era o caso no tempo de Freud: um mundo onde circulavam representações brandas do objeto, as quais não eram objetos da produção em massa nem da troca semelhante à de nossas mercadorias. Ilustravam o discurso libertino ou contestador, às vezes com valor de obra de arte. As representações fálicas eram testemunhas por seu estilo de que elas também participavam daquele mundo onde a linguagem diferenciava aquilo a que o homem podia ter acesso relativamente direto (o que ele consumia) daquilo a que ele não podia referir-se, senão por alusão ou metáfora (CHEMAMA, 1997, p. 32). O que isso quer dizer em termos psicanalíticos? Pelo fato de que o homem fala, ele não tem acesso direto a seus objetos; ele encontra, de preferência, sua satisfação nas entrelinhas, na própria cadeia significante, nos lapsos, atos falhos, sonhos.
No discurso do mestre, ou do inconsciente, o que se acha excluído é o acesso direto ao objeto – isso é castração. Em outras palavras, para o sujeito constituído pela linguagem, há objetos que não podem ser adquiridos ou consumidos. O paradigma dessa impossibilidade é que o seio como objeto está perdido.
A princípio, Lacan (1992) viu no discurso do mestre aquilo que estruturava o capitalismo nascente. Entretanto, em 1972, em Milão, ele propôs um quinto discurso – o capitalista – ao constatar que o discurso do mestre já não dava conta das formas do capitalismo contemporâneo nem do que determina o que é o sujeito hoje. Em outras palavras, o discurso do mestre que foi válido desde a Antiguidade se debilitara, e outra coisa vinha ocupar seu lugar. No discurso do mestre, o sujeito estava representado por um significante do Outro. Esse significante, como lembra Miller (2005), foi chamado por Lacan de significante-mestre para indicar o valor representativo do sujeito perante o próximo, seu valor representativo no social. É também aquele que faz a conjunção, por um lado, com o sujeito e, por outro, com o conjunto dos significantes, ou seja, o mediador entre o sujeito e o conjunto dos significantes, uma vez que é aquilo mediante o qual o sujeito se representa como tendo um valor no discurso universal, e o que ordena, o que enquadra a ordem dos significantes.
O fundamental a destacar, em tal discurso, é que, diferentemente do discurso do mestre, não há disjunção entre $ (sujeito) e a (objeto). Esse discurso revela uma enunciação complicada: a separação entre sujeito e objeto é evitada. Isso não ocorre sem consequência: o sujeito diretamente comandado pelo objeto. Lembremos que o objeto representa o lado pulsional do “falasser”. A pulsão é acéfala e só quer gozar; mesmo que à custa do sujeito, como se pode verificar nos casos divulgados pela imprensa, falada e escrita, de sujeitos que morrem por overdose.
O discurso capitalista é uma mutação do discurso do mestre (LACAN, 2003), algo doidamente astucioso, mas insustentável, porque funciona rápido demais. Dafunchio (2008) sublinha que mutação é um conceito extraído da genética, que possui a particularidade de realizar a mudança de código a ser transmitida à geração posterior. Que subjetividade produz esse discurso? O $ não é o da histeria, que diria: “Olhem como sofro, venham trabalhar para mim”. Em outra linha, o sujeito do discurso capitalista é um sujeito movido imediatamente, pelo querer imediato, um sellf-made man, construtor de dinastias e impérios, que se autoriza do que vai acumular sem jamais estar satisfeito. O neoliberalismo que preconiza o laissez-faire sugere a prevalência do imediato e da satisfação total, faz crer que não há impossível.
Segundo Soueix (1997, p. 47), comentando Lacan, “isso se consome, se consome tão bem que se consuma”. Na esfera das relações interpessoais, como na da troca econômica, o ideal consumista se prevalece da crença em um objeto direto sempre disponível, com a condição de poder comprá-lo, em gozo sem interdito. Esse objeto sempre acessível é o objeto do toxicômano (lato sensu), as drogas de todas as espécies que nossa época multiplica e diversifica. De um objeto de gozo que não é metaforizado, nem substituído pelo significante, fica-se escravo, melhor dizendo, fica-se adicto. Aliás, esse é o sentido do termo latino addictus, que significa entregar-se a alguém como escravo. Ele também tem o sentido de alguém perder sua identidade anterior e passar a adotar identidade imprópria para saldar uma dívida.
Lebrun e Volckrick (2005) acreditam que essa lógica produziu mutação nos regimes de simbolização que se caracterizaria, principalmente, pelo modo de funcionamento que se apresenta como um regime completo e, por conseguinte, inconsistente, ou seja, com contradição em sua lógica interna. Isso faz com que a organização social não mais se estruture em torno do lugar da exceção, que organizaria o sistema, mas de forma tal que toda e qualquer exceção seria vista como negativa e desaconselhável.
O mesmo autor (LEBRUN, 2004) parte da hipótese de que foi a eflorescência do discurso da ciência que subverteu, de forma surpreendente e inesperada, o equilíbrio que se mantinha e mantinha as famílias, lugar princeps de elaboração da realidade psíquica, que nada mais é do que a instalação de um aparelho capaz de processar a falta, promovendo, por seu intermédio, a aptidão para simbolizar. Lebrun (2004) defende que essa pseudodemocracia, preconizada pelo discurso da ciência, que não suporta a disparidade estruturante dos lugares, essencial para a organização da estrutura subjetiva, tornou bastante difícil a função paterna. Chega ao ponto de afirmar que “a sobrevinda do discurso da ciência subverteu a possibilidade do exercício da função paterna” (LEBRUN, 2004, p. 53).
Ora, adverte-nos Lebrun (2004, p. 68), esse modo de funcionamento gera o totalitarismo pragmático, preconizador da autonomia que se organiza em torno de uma lógica que pretende dar conta racionalmente de tudo, a tal ponto de não mais deixar lugar para o sujeito e para o que é sua marca primeira: a enunciação – dimensão do discurso na qual o sujeito diz de si mesmo. O que passa a ter vigência e valor não é mais quem enuncia, mas a coerência interna de enunciados, cada vez mais totalitários e fechados.
O que se nega são, então, a palavra e sua violência estrutural de matar a coisa, a imediatez, a urgência, necessárias ao processo de humanização (LEBRUN, 2008). Reconhecer a diferença dos lugares e seus limites é simbolígeno. A deslegitimação da autoridade paterna e da autoridade da palavra promove a prevalência do registro das provas e a consequente vacilação da autoridade sustentada na enunciação para uma autoridade legitimada pelo conhecimento.
O autor (LEBRUN, 2008) sublinha que o abalo de referências suscitado pela colocação da ciência com seu discurso totalizante e de recusa da falta, oferecendo-se como substituto legítimo do Nome do Pai, em posição de domínio não poderia ficar sem consequências. Citamos algumas observadas na própria prática clínica: aumento da angústia; expansão da mania e de sua contraface, a depressão; as patologias do ato e as situações de urgências subjetivas. Explicando melhor, a expressão forjada por Lebrun (2008, p. 146) “órfãos da legitimidade” nomeia muito bem esses sujeitos que batem às portas de nossos consultórios.
Como esclarece o mesmo autor (LEBRUN, 2004), não se trata de saudosismo, mas de reconhecer os efeitos desse declínio nos processos de simbolização e, a partir deste reconhecimento, propor saídas. A ciência, não conseguindo recobrir toda função paterna, já que esta se faz de enunciação e não só de enunciados, deixa sem respaldo tudo o que diz respeito à terceridade necessária à condição humana. Lebrun propõe, então, como antídoto a essa mutação simbólica, promovida pelo discurso da ciência, que algo da enunciação seja resgatado no seio mesmo do maciço dos enunciados. Sem dúvida, existem várias formas de operacionalizar tal proposição: uma delas é que, ao menos, um não se acanhe de ocupar o lugar da exceção, do Terceiro, e, desse lugar e por ocupar esse lugar que lhe garante a linguagem, coloque o filhote do humano sob as insígnias da lei que o humaniza e o subjetiva, submetendo-o ao regime do desejo. Ao menos um não se envergonhe de ser Pai e, como tal, pela via do amor, inste em seu filho o consentimento essencial na direção do pensamento, do descontínuo, do mediato, enfim, da palavra – consentimento essencial à sua inclusão no conjunto finito dos seres falantes.
Concluímos, destacando, então, que se passou do quadro da sociedade organizada pelos ideais comunitários para a da autoafirmação dos indivíduos, na qual o foco está voltado para o direito sagrado de cada um escolher, à vontade, seus próprios modelos de felicidade e modo de gozar a vida. O que se observa é a expansão identificatória horizontal e a decadência da identificação vertical ao líder, da era freudiana. Como não há mais líderes, não há identificação vertical, forte. No mundo dos indivíduos, há apenas outros indivíduos e identificações horizontais frágeis com os que mantêm o mesmo traço de gozo – frágeis na medida em que são adotadas como estratégia para temperar a angústia. Na verdade, tais identificações são incapazes de domar a angústia – marca registrada de que a conexão ao Outro está feita não por meio dos significantes, mas dos objetos de gozo – e a tirania do superego que demanda incessantemente mais e mais. Portanto, o rebote da inconsistência do Outro é o imperativo superegoico de gozo, que invade por todos os lados, sem limite de tempo e espaço, gerando exigências de fruições patológicas, como as toxicomanias, a busca de riscos em esportes radicais e em exigências ao corpo de efeitos devastadores que chegam à beira do limite, tal como observamos nas alterações corporais fabricadas por algumas comunidades alternativas. Nesse mundo de multiplicidades identificatórias, sustentadas pela multiplicação dos significantes mestres, o que se constata é uma obediência em direção ao senhor absoluto: a morte (LACAN, 1983, p. 175), ou seja, apesar de toda essa proliferação, os sujeitos sentem-se cada vez mais doentes, carentes e inseguros; perderam seus ideais e a angústia fustiga-os sem parar.
O indivíduo expressa-se pelas suas posses, atualizando, dessa maneira, o formato atual do narcisismo, mas a identificação aos objetos do mercado não produz sujeitos singulares; produz consumidores vorazes, devorados em seus corpos manipulados e invadidos pelo gozo. A palavra de ordem da contemporaneidade é gozar ao máximo, quebrar as normas e superar todos os padrões. A satisfação é momentânea e produto de esforço sem fim; não há descanso, mas um estado de ansiedade permanente.
Em uma vida líquida, a identidade perdeu a solidez, pois já não há Outro no horizonte que balize a economia do gozo e assegure ao ser representação estável. A consequência disso é que o sujeito passa a se representar nos objetos de gozo propostos pelo discurso da ciência no lugar do Outro – em vez de no significante do Outro. Esses objetos se mostram incapazes de estabilizar a ordem imaginária, que requer também o Ideal do eu, ou seja, um Outro que se interponha e bascule os excessos narcísicos do caos imaginário, de essência alienante.
Miller (2005) destaca que a identificação simbólica I (A), referida ao Ideal do eu, tem função essencialmente pacificadora das relações do sujeito com o Outro, ao passo que as identificações imaginárias não formam jamais um conjunto coerente no sujeito, mas um caos, uma miscelânea de identificações pouco organizadas que ficam à mercê das flutuações de significantes mestres ditados pela contemporaneidade que mudam de forma tão rápida, a ponto de produzir indivíduos desacomodados, atirados ao nomadismo, ao movimento incessante.
Nessa sociedade multicultural, o produto final é a mutação do laço social, algumas vezes entendida como patologias do laço social, pois, para os padrões anteriores, é débil; outras vezes, como novas modalidades identificatórias, a debilidade generalizada, conforme indica Miller (2005, p. 39), aponta em duas direções: na do sujeito e na do Outro. E ser generalizada é o traço que caracteriza as identificações na contemporaneidade, as quais são mutáveis como o mercado, especularizáveis no imediato e no aparente da imagem física, do corporal, e líquidas, pois adquirem a forma da conveniência. Por tais razões, na dimensão clínica, a queixa é de desamparo e prepondera com ela a angústia vivida no real do corpo.
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Endereço para correspondência
Elizabete Regina Almeida de Siqueira
E-mail:bete_siqueira@oi.com.br
Recebido em: 28/02/2010
Revisto em: 09/06/2010
Aceito em: 15/06/2010
1 Gozo está sendo usado no sentido que lhe dá a psicanálise de orientação lacaniana, para designar o sentido de excesso intolerável de prazer ou manifestação no corpo mais próxima da tensão extrema, da dor e do sofrimento.