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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.65 no.3 Rio de Janeiro 2013
Catadores de materiais recicláveis: cadeia produtiva e precariedade*
Recyclable Materials Collector: productive chain and precarious conditions
Colectores de reciclables: cadena productiva y condiciones precarias
Bruno Otávio ArantesI; Livia de Oliveira BorgesII
IDoutorando. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
IIDocente. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte. Estado de Minas Gerais. Brasil
RESUMO
No mercado de trabalho brasileiro, há setores em que persistem condições precárias, como é o caso da catação de materiais recicláveis. Este estudo foi planejado com o objetivo de identificar a cadeia produtiva da reciclagem e os desafios das condições de trabalho, situar a atividade de catação no mercado de trabalho e compreender a atividade de catação, tendo em vista uma agenda de pesquisa contextualizada. Desenvolveram-se pesquisa documental, observação participante e aplicação de questionário sociodemográfico. A partir dos resultados, compreendeu-se que: a cadeia produtiva da reciclagem favorece o achatamento do preço dos materiais e da renda dos sujeitos; o emprego de tecnologias é incipiente; os catadores estão expostos a longas jornadas de trabalho e a riscos para a saúde e entre os catadores predominam baixa escolaridade e baixa renda. Os resultados apontam para um ciclo de manutenção da atividade em condições precárias.
Palavras-chave: Catadores; Material reciclável; Pesquisa documental; Mercado de trabalho.
ABSTRACT
In the Brazilian labor market, there are sectors in which remains a series of precarious jobs including scavenging for recyclables. This research planned to identify the productive chain of recycling and the challenges of those working conditions, to situate the activity of picking in the work market and to understand this activity. The research was developed through documental research, participant observation and a sociodemographic questionnaire was administered as well. Among the results, the following aspects were observed: the recycling supply chain favors the flattening of the materials price and individuals income; there is still a very incipient use of technologies; the pickers are exposed to extended work shifts and to risks to their health; and among the workers predominate low education and income levels. The results point to the maintenance of the cycle of activity in disrepair.
Keywords: Collector´s recyclable materials; Documental research; Work market.
RESUMEN
En el mercado laboral brasileño, hay sectores en los que persisten condiciones precarias, tales como en la recogida de materiales reciclables. Se planeó, entonces, una investigación con el objetivo de identificar la cadena productiva del proceso de reciclar y los desafíos de las condiciones de trabajo, situar la actividad de recolecta en el mercado de trabajo y comprender la actividad de reciclar a fin de proponer una agenda de investigación contextualizada. Se desarrolló investigación documental, observación participante y aplicación de cuestionario socio demográfico. Entre los resultados, se entendió que: la cadena productiva del reciclaje favorece la disminución de los precios de los materiales y la renta de los sujetos; el uso de tecnologías es incipiente; los trabajadores son expuestos a largas jornadas de trabajo y a riesgos para la salud; y entre ellos predominan baja escolaridad y renta. Los resultados indican un ciclo de permanencia de la actividad en condiciones precarias.
Palabras clave: Recolectores; Materiales reciclables; Investigación documental; Mercado de laboral.
A atividade de pessoas sobrevivendo dos restos da sociedade não é recente no Brasil. As primeiras menções foram descritas em obras literárias. Em 1947, Manuel Bandeira escreveu O bicho, denunciando a existência de pessoas que vivem catando comida do lixo (Bandeira, 1965/1993). Na década de 1960, Plínio Marcos (1967/1978) descreve em Homens de papel a história de um sujeito que vivia da catação e os seus conflitos com outros catadores pelo controle do trabalho. Diferenciando as duas descrições, os catadores de Plínio Marcos já comercializavam o material recolhido.
Uma das primeiras experiências de atividade coletiva dos catadores em Belo Horizonte, ocorreu no início da década de 1990 (Velloso, 2005). Atualmente, há em Minas Gerais cerca de 200 organizações similares e algumas tem se reunido em torno de cooperativas de segundo grau. Essa última reúne, em nível regional ou estadual e em uma mesma figura jurídica, diversos empreendimentos, buscando maior representatividade, poder de negociação e escala de produtos fabricados (Aquino, Castilho & Pires, 2009).
O presente artigo relata pesquisa cujo objetivo foi identificar a cadeia produtiva da reciclagem e os desafios postos pelas condições de trabalho, situar a atividade de catação no mercado de trabalho, bem como compreender as atividades dos catadores de materiais recicláveis da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), no estado de Minas Gerais, organizados em Empreendimentos de Economia Solidária (EES), que participam de uma cooperativa de segundo grau. A aproximação da realidade dos catadores deverá incentivar pesquisadores do campo da Psicologia do Trabalho e das Organizações (PT&O) a levantar problemas de pesquisa relevantes para o contexto de vida dos catadores. Sugestões dessa natureza finalizarão o presente artigo.
Estudos sobre este tema surgiram a partir da década de 1990. Dentre as razões para essa demora, é invocado o fato de o número de trabalhadores dedicados a essa atividade ter se tornado numericamente expressivo somente a partir de meados da década de 1980 (Bosi, 2008). Todavia, em relação ao contingente de catadores, não existem estatísticas precisas. As diversas fontes informam números distintos sobre essa população. O Movimento Nacional dos Catadores (2012) estima que existam no Brasil mais de 800 mil trabalhadores que sobrevivem da reciclagem. A organização Compromisso Empresarial pela Reciclagem (2009) calcula 500 mil catadores e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011), entre 300 mil e 1 milhão.
Ainda que não existam estatísticas precisas, pela falta de registro e o caráter itinerante da atividade, entre outros motivos, não se pode desconsiderar tal população. Velloso (2008) argumenta que os resíduos têm sido vistos como algo ameaçador e, por isso, depositados em locais distantes e, originalmente, inabitados. O contato com esse material estigmatiza os trabalhadores. Do mesmo modo, aqueles que sobrevivem do que é descartado pela sociedade são igualmente considerados descartáveis. Segundo Pereira e Teixeira (2011), são notados como vagabundos ou delinquentes. Essa representação possivelmente resulta da falta de interesse em compreender a situação da categoria e, por conseguinte, em modificar tal realidade.
Outra explicação para a demora do surgimento de linhas pesquisas sobre a categoria assenta-se na evolução dos estudos em Psicologia no Brasil. A partir da década de 1990, houve um crescimento dos programas de pós-graduação e o aumento progressivo das publicações (Borges-Andrade & Pagotto, 2010). No campo da PT&O, pesquisas recentes abordam temas como cooperativismo e terceiro setor, embora timidamente: Tonetto, Amazarray, Koller e Gomes (2008) demonstram que apenas 2,25% delas retratam o tema economia solidária e o cooperativismo, entre os anos de 2001 e 2005; Campos, Duarte, Cezar e Pereira (2011), em 116 artigos publicados entre 1989 e 2009, encontraram apenas 1,88% com o tema trabalho comunitário em ONG'S e cooperativas; Borges-Andrade e Pagotto (2010) verificaram que entre 1996 e 2009, em periódicos de administração e psicologia, apenas 7% dos artigos científicos tratavam do terceiro setor. Essas revisões, ainda que parciais, sinalizam que as pesquisas relativas ao terceiro setor e a atuação do psicólogo nesse segmento são ainda incipientes, a despeito da importância do tema tratado.
O trabalho dos catadores
Os catadores exercem sua atividade individual ou coletivamente, recolhendo material que possa ser reaproveitado. Segundo Almeida, Elias, Magalhães e Vieira (2009) e Silva (2007), a maioria deles são mulheres e possuem baixa escolaridade. A atividade exercida pelos catadores tem sido considerada por Bortoli (2009), Carneiro e Correia (2008) e Medeiros e Macedo (2006) como uma alternativa de geração de trabalho e renda. Não obstante, Bosi (2008), Magera (2003), Silva (2007), Castilhos Jr, Ramos, Alves, Forcellini e Graciolli (2013) e Souza (2005) demonstram que esses sujeitos enfrentam extensas jornadas e comercializam a produção a preços simbólicos. Salientam ainda que a atividade exercida com os carrinhos1 torna-se ainda mais penosa, dadas as distâncias a serem percorridas e o excesso de peso transportado. Para Souza (2005) as associações e/ou cooperativas de trabalho têm sido um avanço, pois permitem a mecanização de algumas etapas do processo e eliminam, em parte, a necessidade do uso de carrinhos, ao se considerar que o material passa a ser coletado pelo poder público.
Tais empreendimentos caracterizam-se pela propriedade coletiva dos meios de produção, a democratização das formas de organização do trabalho e a coletivização dos lucros (Kemp, 2001; Singer, 2003). Devido à heterogeneidade das formas de organização nos EES, não existe, entretanto, um consenso para a definição de um empreendimento solidário. Ainda que essas iniciativas busquem a defesa de direitos e o aumento da renda dos catadores, Medeiros e Macedo (2006) advertem que os empreendimentos enfrentam problemas. O primeiro deles é a baixa remuneração. Nas pesquisas de Bosi (2008), Castilhos Jr. et al. (2013) e Silva (2007), os catadores possuíam rendimentos inferiores a um salário mínimo. Na pesquisa de Souza (2005), o rendimento médio dos catadores era de R$ 470,00, o que equivaleria a 1,24 salários mínimos da época. Situação análoga ocorreu na pesquisa de Cockell, Carvalho, Camarotto e Bento (2004), onde o rendimento equivaleria a 1,23 salários mínimos.
Segundo Lima e Oliveira (2008), a baixa rentabilidade tem uma de suas explicações na morosidade do processo de triagem do material conforme sua natureza - plásticos, metais, papéis e vidro. Trata-se de processo com uso intensivo da mão de obra e a produtividade está relacionada mais ao fator humano do que à tecnologia ou à gestão. Uma das possibilidades para aumentar a eficiência no trabalho é a adoção da esteira rolante, minimizando deslocamentos e carregamentos manuais de peso. Mas, os autores advertem que essa tecnologia determina a velocidade e o ritmo da produção, podendo excluir do processo aqueles em idade avançada e/ou com suas capacidades físicas diminuídas. Assim sendo, "obter-se-iam ganhos de produtividade técnica em detrimento da 'produtividade social', que define as associações de catadores desde o seu surgimento" (Lima & Oliveira, 2008, p. 234).
Os EES, devido à baixa lucratividade, não oferecem proteção social a seus associados. Essa também é uma das explicações para a rotatividade apresentada pelas associações/cooperativas. É comum os catadores abandonarem a atividade da reciclagem quando encontram trabalho com "carteira assinada". Não obstante, estes catadores retornam às associações/cooperativas quando são demitidos do emprego (Borges & Kemp, 2008; Moisés, 2009).
Para além dessas dificuldades, Barros e Pinto (2008) consideram que as iniciativas de economia solidária não seriam apenas uma maneira de proteção contra o desemprego, mas também permitiriam uma nova significação da autoimagem dos catadores, melhorando a autoestima e resgatando significados do trabalho. No entanto, Velloso (2008) destaca que os resíduos sólidos adquiriram uma imagem negativa e são comumente associados à miséria, à morte e a doença.
Outro fator considerado na literatura é a saúde dos catadores. Borges e Kemp (2008), Medeiros e Macedo (2006), Porto, Junca, Gonçalves e Filhote (2004) e Castilhos Jr. et al, (2013) ressaltam que a carga física, o trato com o lixo e a rotina de tarefas são fatores predisponentes a doenças relacionadas ao trabalho, como dores corporais, problemas osteoarticulares e hipertensão. Siqueira e Moraes (2009) salientam que esses trabalhadores estão expostos a diversos riscos, dentre eles cortes, perfurações e queimaduras. Dall'Agnol e Fernandes (2007) e Santos e Silva (2008) demonstraram que o trato com os resíduos podem ocasionar diarreias e doenças transmitidas por vetores biológicos2, como a peste bubônica, a leptospirose, a dengue, a febre amarela e a malária. Ainda, Cockell et al., (2004), que analisaram a atividade de triagem, identificaram que os sujeitos negam os riscos de adoecimento, apesar de manusearem material contaminante.
Entretanto, dentro da bibliografia consultada, somente Borges e Kemp (2008) tiveram como objetivo principal a saúde e a segurança no trabalho. Esses autores identificaram que os catadores não associam os acidentes com a ausência do uso dos equipamentos de segurança e que não possuem informações suficientes sobre os riscos de sua ocupação. Lima e Oliveira (2008) abordaram a produtividade técnica e social das associações e sinalizaram para situações de abuso de substâncias e alcoolismo entre os catadores.
Em síntese, a literatura consultada sobre os catadores de materiais recicláveis tem se concentrado em tópicos como: geração de emprego e renda para trabalhadores excluídos do mercado de trabalho; criação de novos sujeitos e saúde dos trabalhadores; e em aspectos ergonômicos/biológicos.
Método
A pesquisa se desenvolveu seguindo três estratégias: observação participante, análise documental e aplicação de questionário sócio demográfico. A primeira consistiu na observação direta das tarefas executadas pelos sujeitos, reuniões e eventos promovidos pelos catadores durante o período de um ano. Buscou-se entender como os sujeitos realizavam suas tarefas, as dificuldades que encontravam e as estratégias que utilizavam para lidar com elas. As observações não seguiram um roteiro pré-elaborado, mas foram realizadas em função da compreensão das atividades principais dos catadores, como a coleta seletiva, a triagem, a compactação do material, a comercialização e as rotinas administrativas.
Considerando que o trabalhador é quem mais conhece seu próprio trabalho, privilegiou-se o contato direto, a escuta de seus depoimentos espontâneos, interferindo-se o mínimo possível nas rotinas de trabalho. Trata-se de uma posição exigida na pesquisa de campo, que solicita do investigador uma atitude em que se abandona a posição de expert, passando a construir um saber sobre a situação de trabalho junto com os próprios trabalhadores e permitindo que o saber do trabalhador se apresente (Lhuilier, 2007).
A segunda estratégia, a pesquisa documental, realizou-se a partir de registro, designados de fontes primárias (Lakatos & Marconi, 1991), abrangendo documentos arquivados na sede da cooperativa de segundo grau e nos empreendimentos: estatutos, regimentos internos, atas de reuniões e notas de comercialização. As análises forma iniciadas pelos estatutos, que contém a finalidade da associação, direitos e deveres dos membros, critérios para entrada e exclusão de catadores, composição do corpo diretivo, periodicidade das assembleias e quórum mínimo. Estes arquivos permitiram compreender a história dos EES. O regimento interno contém a descrição das regras a que se submetem todos os cooperados e as penalidades nos casos de descumprimentos. As atas de reuniões apresentam uma descrição de como os catadores organizam suas atividades de gestão e planejamento. Apenas as associações que possuem membros com nível secundário de escolaridade têm o hábito de redigir algum registro para memória de suas assembleias. A análise e interpretação desses documentos se desenvolveram, portanto, de forma interpretativa, guiando-se pelo objetivo da pesquisa e articulando os conteúdos encontrados com o que se observava e se ouvia dos catadores.
Para compreender o contexto institucional do objeto de pesquisa, foi necessária também a consulta à legislação sobre os resíduos sólidos urbanos e as estatísticas de emprego e desemprego contidos na web site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa fonte apresenta os dados mensalmente, com dois recortes metodológicos distintos e organizaram-se aqui os dados anualmente.
Para identificar o perfil sociodemográfico dos trabalhadores participantes, foi aplicado questionário sociodemográfico individualmente, seguindo os moldes do IBGE, levantando as seguintes informações: nome, documentação, sexo, estado civil, idade, etnia, escolaridade e renda. Na aplicação do questionário, explicavam-se os objetivos, o caráter confidencial e, se o participante confirmasse sua participação voluntária, o primeiro autor do presente artigo lia para o catador de material reciclável cada pergunta e registrava as repostas no formulário. Formou-se uma amostra acidental de 156 catadores, ante uma população de 450 trabalhadores. Os catadores exercem diversas atividades e nem sempre se encontram nos galpões de triagem, onde realizam seu trabalho. Os galpões funcionam também como a sede da organização. O questionário foi aplicado aos presentes ali, na visita dos pesquisadores. A participação foi voluntária e atendia também ao cadastro necessário para o desenvolvimento dos trabalhos da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), parceira dos EES, que necessita dele para regularizar e manter convênios.
Resultados
Os catadores e o mercado de trabalho
A partir dos dados na RMBH disponíveis no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2013a, 2013b), organizaram-se: a Tabela 1 para apresentar a evolução da taxa de desocupação entre os anos de 1991 e 2002, nos meses de janeiro; e a Tabela 2, entre os anos de 2003 e 2012. As taxas de desocupação computam as pessoas sem trabalho (procurando emprego) em relação as Populações Economicamente Ativas (PEA), num determinado período de tempo. Na Tabela 1, os dados são referentes às pessoas com quinze anos ou mais e na Tabela 2, as pessoas com 10 anos ou mais de idade. Segundo o IBGE (2010), a modificação metodológica atende a recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A despeito da modificação nas pesquisas do IBGE, as Tabelas mostram que, entre janeiro de 1991 e janeiro de 1995, houve uma oscilação nos índices, entretanto, a partir de 1996, houve uma tendência de aumento crescente no desemprego até o ano de 2003. A partir daí as taxas assumem uma tendência descendente até a situação atual, quando 4,5% da PEA com dez anos ou mais se encontram desocupadas.
Bortoli (2009), Carneiro e Correia (2008) e Medeiros e Macedo (2006) consideram o trabalho na catação como uma alternativa para sujeitos que não conseguiram se inserir no mercado de trabalho, ou seja, a exclusão do mercado formal teria levado um contingente considerável de trabalhadores do sexo feminino e com baixa escolaridade para a catação.
Não existem estatísticas precisas sobre o número de catadores, apenas a observação de que nos últimos 20 anos esses atores passaram a fazer parte do cenário das grandes cidades e despertaram o interesse dos pesquisadores (Bosi, 2008). Assim, é questionável se os sujeitos assumem tal ocupação exclusivamente pelo desemprego. Em outras palavras, com a diminuição acentuada dos índices de desemprego, a população de catadores não deveria assumir a mesma tendência?
De acordo com a teoria da segmentação do mercado de trabalho (Cain, 1976; Doeringer & Piore, 1971), este estaria dividido em primário dependente, independente e mercado secundário. Os catadores fazem parte deste último, que é caracterizado por Cacciamali (1978), Fernández-Huerga (2010), Moner (2008) e Soria (2008) pelo exercício de atividades que exigem qualificação e treinamento mínimos. O processo produtivo utiliza intensivamente a mão de obra, os salários são baixos, a rotatividade é alta e as mudanças de emprego não correspondem a melhorias salariais.
Os autores também definem o mercado de trabalho primário, que é dividido entre dependente e independente. O primeiro, também denominado rotineiro, é caracterizado por atividades rotineiras e burocráticas. A produtividade nesses empregos é determinada por atributos da mão de obra, como responsabilidade, respeito à hierarquia e aceitação de metas de produção. A qualificação para o exercício da atividade pode ser obtida na própria função, mas exige certo nível instrucional. O segundo, o mercado de trabalho primário independente, exige raciocínio dedutivo e abstrato, liderança, capacidade de tomar decisões e qualificação. A escolaridade exigida geralmente é a universitária.
Uma característica das associações (inclusive na cooperativa estudada) é a alta rotatividade de seus participantes/trabalhadores. Não raro, esses sujeitos abandonam a atividade com a catação quando se inserem no mercado formal e retornam à associação/cooperativa quando esse vínculo se extingue (Borges & Kemp, 2008; Moisés, 2009). Durante a década de 1990, o aumento das taxas de desemprego levou uma parcela dos trabalhadores com baixa escolaridade para a catação. Ainda que o desemprego tenha recrudescido, o perfil da população, engendrado pelo capitalismo no contexto sócio histórico brasileiro, e as oscilações do desempenho dos diferentes setores econômicos não permitem que os catadores tenham constância no mercado formal. O mercado secundário não oferece estabilidade e nem perspectivas de melhoria nas condições de vida e de trabalho.
Cacciamali (1978) sublinha as barreiras que coíbem a mobilidade dos trabalhadores entre os segmentos do mercado de trabalho. A migração do secundário para o primário é mais difícil, sem considerar apenas as exigências de escolarização, pois as atividades são qualitativamente distintas e exigem também características distintas entre si. Autores institucionalistas como, por exemplo, Castells (1999), acentuam, ao contrário de Cacciamali (1978), a interdependência dos diferentes segmentos de mercado, mas corroboram com a observação da tendência de polarização da sociedade. Outra barreira apontada por Santos e Moretto (2011) são as novas exigências intelectuais dos empregos formais, que demandam mais escolaridade e experiência. A catação, então, representa uma alternativa possível para esses sujeitos, considerando a necessidade de uso intenso da mão de obra e a inexistência de exigência de escolaridade.
Na trajetória da atividade, um marco é o reconhecimento oficial do Governo Federal em 2001. Naquele ano, a ocupação passou a ser registrada pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) (Ministério do Trabalho e Emprego, 2002) com as seguintes designações: catador de material reciclável, selecionador de material reciclável e operador de prensa de material reciclável. A primeira ocupação trata do profissional que recolhe o material na comunidade, via coleta seletiva ou através de carrinhos. A segunda é reconhecida como o trabalho na separação do material de acordo com sua natureza, no processo denominado triagem. O operador de prensa é o responsável pela compostagem do material em blocos, denominados fardos, para comercialização com os atravessadores/recicladores. Esse reconhecimento bem como o surgimento de associações e cooperativas contribuiu para ressignificações da atividade a valorizando (Barros & Pinto, 2008).
Portanto, considerando todos esses aspectos, conclui-se que a variação dos índices de desemprego provavelmente tem relação com a extensão da população de catadores, porém, tal relação é complexa e intermediada por outros fenômenos e aspectos da atividade.
A cadeia produtiva e o papel do catador
As observações e a análise documental demonstraram que a cadeia produtiva da reciclagem é formada pelos catadores, sucateiros de pequeno porte, grandes aparistas3 e a indústria. Destes, os catadores são aqueles que menos se beneficiam do processo. O mercado da reciclagem é considerado um mercado oligopsônico4 (Bosi, 2008), caracterizado pelo pequeno número de compradores, que determinam o preço das mercadorias (Figura 1).
A cadeia produtiva da reciclagem inicia-se a partir do papel exercido pelos catadores, que atuam de duas formas. A primeira, como catador não organizado, que coleta seu material diariamente pelas ruas e utiliza como instrumento de trabalho carrinhos, carroças ou mesmo sacos de ráfia. Percorre grandes distâncias para realizar a coleta no comércio varejista ou nas residências, buscando material de maior valor econômico e que ocupe o menor espaço possível. Atualmente, tem preferido o papelão e as latas de alumínio. As embalagens de politereftalato de etileno (PET) têm sido recolhidas com menor frequência, porque exigem grande volume para obtenção de retorno financeiro. Quando finalizam a coleta, esses sujeitos se dirigem a outro ator: os donos de pequenos depósitos, denominados pelos catadores como deposeiros ou sucateiros, que compram o material por preços irrisórios. Um grande aparista paga R$ 0,33 pelo quilo do papelão, em média. Os sucateiros, não chegam a pagar R$ 0,10 por quilo. Os sucateiros enfardam o material e o comercializam posteriormente com o grande aparista.
A segunda forma de atuação dos catadores é por meio de associações ou cooperativas, denominadas de EES, pela forma como são estruturadas. Eles realizam a catação em parceria com o poder público, através da coleta seletiva, que possui níveis de implantação distintos nos municípios. Geralmente, a coleta seletiva é realizada com caminhão, com motorista da prefeitura e com equipe de três ou quatro catadores que trabalham coletando o material nas casas e comércios e arremessando as sacolas no caminhão. Essa equipe é designada de guarnição e em algumas cidades é composta de pessoal da própria prefeitura ou de empresas terceirizadas.
Cada município estipula a forma como esse convênio será estabelecido. Na maioria dos casos, ele tem validade de um ano, sem limites para renovação. Nos contratos de convênio constam rubricas para aluguel de caminhão, remuneração do motorista e outros itens relativos à atividade dos catadores, como: quitação de contas de fornecimento de energia e água, reparo de maquinário e aluguel ou conservação das estruturas físicas.
Sobre esse aspecto, constatou-se que a lei 12.305/2010 (Casa Civil, 2010) permite outra forma de regulação, além do convênio: a remuneração pelos serviços prestados. O artigo 36 dessa lei estabelece a constituição de serviços de coleta seletiva, destinação correta dos resíduos e prioridade de sua realização por associações e cooperativas de catadores, com dispensa de licitação. Em outras palavras, o poder público tem autorização para contratar os catadores para a realização da coleta seletiva, desde que os mesmos possuam infraestrutura para tal. Esse modelo possibilita aos catadores outra renda além daquela advinda da comercialização do material reciclável, flutuante ao longo do ano.
Em se tratando de coleta seletiva, deve ser considerado apenas o material com potencial para reciclagem denominado seco (plásticos, metais, vidros e papéis). O material úmido (restos de alimentos, fraldas, papel higiênico, papel carbono, guardanapos, toalhas de papel, papel laminado, cerâmicas, esponjas de aço, aerossóis, etc.) deve ser encaminhado à coleta convencional e destinado a lixões e/ou aterros.
Na criação e manutenção da coleta seletiva, faz-se necessária a mobilização da comunidade para a correta separação do material. Nas cidades das organizações de catadores deste estudo, esse trabalho é deficitário. Geralmente, acontece no início da coleta pelas equipes vinculadas ao município, sem participação dos catadores. Durante as observações das rotinas de trabalho, verificou-se a quantidade de rejeitos que chega aos galpões. Os rejeitos oneram o processo de triagem, tornam a separação lenta e expõem os catadores a contaminantes, como seringas descartáveis. Além disso, o material orgânico entra em decomposição e passa a atrair vetores (ratos e moscas).
Quando o material chega aos galpões das associações tem início o processo de triagem, em que o mesmo é separado de acordo com sua natureza. A triagem possui duas fases: a pré-triagem e a triagem fina. Na primeira fase, o material é separado em cinco categorias: metais, plásticos, papéis, vidros e rejeitos e, em seguida, acondicionado em bags (sacos de ráfia que comportam até 300 quilos). O peso real varia em função da densidade e do volume ocupado por cada material. Os bags são arrastados até mesas, em que os catadores realizam a fase final do processo, separando cada material de acordo com a necessidade de comercialização. Nessa etapa, a classificação do material reciclável segue a seguinte estrutura de separação: metais (sucata ferrosa, alumínio, cobre), plásticos (plástico bucha, plástico bolha, PEAD, PP, PVC, PET branco, PET verde), papéis (papel branco - tipo I, II, III e IV, papelão ondulado - tipo I, II, III e IV, revistas, jornais, papel misto, papel colorido) e vidros (colorido e branco). Esse fluxo de trabalho está representado na Figura 2.
Após a triagem fina, o material é novamente acondicionado em bags, pesado e direcionado para a prensa, quando será compactado em fardos para a comercialização. Apenas o vidro não é compactado. Esse material passa por um processo de trituração e é armazenado em grandes caçambas para venda. Cada fardo pesa em média 250 quilos. Eles são estocados para composição de uma carga que varia de acordo com o material e o comprador. Geralmente, um grande aparista compra uma carga fechada com aproximadamente 40 fardos. As associações geralmente comercializam com grandes aparistas, mas ainda existem situações de comércio com pequenos atravessadores, principalmente para aquelas que não possuem prensas para o enfardamento do material. A média de preço pago pelo grande aparista é destacada na Tabela 3.
O material que chega ao grande aparista é revendido para a indústria recicladora, que o transforma em matéria-prima para a indústria manufatureira. Um exemplo é o plástico das garrafas PET, que é triturado, gerando flocos, que passam por um processo de extrusão5 que gera novos grãos, que são então comercializados com fabricantes e transformados em diversos produtos, como embalagens, recipientes para uso doméstico, etc. Segundo representantes do MNCR, os aparistas revendem o material para a indústria recicladora por valores 65% superiores aos de compra.
Essa, por sua vez, demanda grandes quantidades de material, que as associações, individualmente, não conseguem produzir. A constituição da cooperativa de segundo grau é uma tentativa de superação desse obstáculo. Através de uma figura jurídica única, as associações objetivam comercializar o material em grande escala e aumentar o valor dos seus produtos. Apesar da cooperativa em estudo ter realizado comercializações conjuntas, ainda encontra dificuldades para revender diretamente para a indústria, pela falta de infraestrutura (caminhões, veículos leves, etc.) e de logística que possa atender a todas as organizações.
Processo de trabalho nos EES
As observações corroboraram a bibliografia consultada, como, por exemplo, Medeiros e Macedo (2006) ; Porto et al.,(2004); Castilhos Jr. et al (2013) em relação às condições penosas de trabalho. Embora possuam alguma estrutura, como galpões, refeitórios, banheiros, maquinário e equipamentos de proteção individual, os catadores seguem expostos a diversos vetores em função da própria qualidade do material. A população, de maneira geral, ainda não realiza a separação adequada entre lixo seco e úmido, segundo os próprios catadores. Os rejeitos, em alguns casos, chegam a 60% do material coletado e aumentam consideravelmente a quantidade de material recolhido e o trabalho de triagem, com consequente baixa no rendimento. O acúmulo do material por longos períodos de tempo também pode atrair vetores, elevando o risco de contaminação.
Em algumas situações, os catadores ainda não possuem mesas adequadas para realizar o processo de triagem e improvisam mesas ou realizam o trabalho no chão, com posturas que geram reclamações diversas de dores musculares e/ou da coluna cervical. Além do fato de, em alguns EES, carregarem o caminhão do comprador manualmente, pela falta de elevadores de carga. São necessários cinco ou seis catadores para elevar a carga até o veículo. Esse fator pode repercutir em dores musculares e de coluna. A hipertensão também tem sido identificada entre os trabalhadores, como registra a literatura a respeito (Porto et al, 2004) . Ainda que não se tenha um levantamento sistematizado, relatos dos catadores corroboram a recorrência de sujeitos com quadros hipertensos.
No que se refere à gestão, um aspecto compartilhado entre os EES que fazem parte da cooperativa de segundo grau é a composição de uma diretoria, para mandato eletivo de dois anos, com os seguintes cargos: presidente (coordenador geral), vice-presidente (vice coordenador), diretor financeiro (tesoureiro), vice-diretor financeiro (segundo tesoureiro), 1º secretário, 2º secretário e conselho fiscal. A diretoria é a responsável legal pelo EES, sendo responsável pela gestão da execução financeira e administrativa. As decisões administrativo-financeiras são tomadas em assembleias.
Em relação à gestão financeira, existem duas formas principais: a primeira é definida pelos catadores como dividir tudo igual, ou seja, o lucro da produção é dividido igualmente entre todos, sendo descontadas apenas as faltas ao trabalho; a segunda é por eles denominada como por produção. Nessa situação, cada catador recebe pela quantidade de material triado e/ou prensado. As decisões referentes à divisão do lucro são tomadas nas assembleias e registradas em atas, regimentos e estatutos, conforme o caso.
A comercialização do material é realizada ora com os atravessadores, ora com grandes aparistas da capital, sendo que estes últimos compram apenas os papéis e os plásticos. Antes da venda do material, os catadores cotam os preços e decidem pelo mais alto, pois os preços sofrem variações entre compradores e ao longo do ano. A Tabela 4 mostra a oscilação no preço do papelão, responsável por 40% do volume comercializado pelas associações. A criação da cooperativa de segundo grau visou facilitar tal processo por meio das comercializações conjuntas em que cada membro (cooperativas primárias e associações) receberia proporcionalmente ao que produziu (lucro dividido por produção).
No caso do papelão e de outros produtos da reciclagem, a diminuição dos valores pagos pelos atravessadores interfere diretamente no rendimento dos catadores. Como consequência, o aumento do volume de material não representa, necessariamente, aumento da renda dos trabalhadores.
Perfil da população de catadores
Na amostra de 156 sujeitos, as mulheres são 77,6% do total de trabalhadores. Em relação ao estado civil, 40,4 % se declara solteiro, 32,7% casado e 26,9% apresenta outras formas de união.
No que se refere à cor da pele, 21,2% se declaram brancos, 28,2% negros e 50,6% pardos. A idade varia de 18 a 77 anos6, com média de 43,41 anos e desvio padrão de 12,96. Na amostra, observa-se que 81,4% possuem 30 anos ou mais.
Em relação à instrução, 14,7% não são alfabetizados, 22,4% são alfabetizados e 39,7% tem o primeiro grau incompleto. Apenas 23,2% possuem escolarização acima do primeiro grau completo. Entretanto, entre os que se declararam alfabetizados e os que declaram possuir o primeiro grau incompleto, pode haver catadores analfabetos funcionais. A atividade usualmente não exige a utilização de habilidades de leitura e escrita, diminuindo a visibilidade da limitação da instrução.
No tocante à renda dos trabalhadores, 67,3% dos catadores afirmaram possuir rendimentos inferiores a um salário mínimo. A menor renda declarada foi de R$ 200 e a maior de R$ 800, com média de R$ 525,44 e desvio padrão de 159,98.
O perfil da população estudada também corresponde ao apontado na revisão bibliográfica (por exemplo, Almeida et al., 2009; Bosi, 2008; Silva, 2007). Em síntese são predominantemente mulheres, casados ou com outras formas de união, pardos e negros, com instrução formal limitada e baixo rendimento. Esse perfil, engendrado pelas características da sociedade brasileira, retrata as exclusões de gênero, cor e educação. Mas sua persistência termina por reproduzir tais processos em um ciclo vicioso. Demanda, portanto, intervenções sociais para seu rompimento.
Considerações finais
Neste artigo buscou-se: compreender as atividades exercidas por estes trabalhadores e a cadeia produtiva da reciclagem; identificar os desafios postos pelas condições de trabalho e situar a atividade de catação no mercado de trabalho. Esses objetivos estão articulados e mantém relações dinâmicas entre si. Dessa forma, identificam-se alguns elementos fundamentais dessas interações.
Em relação ao perfil dos catadores de materiais recicláveis, as transformações históricas da atividade abordadas têm sua culminância no reconhecimento da atividade pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), outorgando-lhes o acesso a recursos destinados pelo Governo Federal e tem favorecido a organização destes trabalhadores. Tal posição também modifica as relações com outros agentes do contexto social mais amplo, como as prefeituras e as Organizações Não Governamentais (ONG's).
Nesse ínterim, a Lei 12.305 prevê a extinção dos lixões, a criação de aterros e estabelece condições para parcerias entre prefeituras e EES para a realização da coleta seletiva, processamento e comercialização do material reciclável. Persistem, entretanto, condições penosas de trabalho. Tal fato pode ser minimizado pelo acesso às linhas de fomento para aquisição de equipamentos. Tome-se, por exemplo, o uso de elevadores de carga ou empilhadeiras. Além da exposição dos catadores a esforço físico desnecessário, a falta desses equipamentos se traduz em perda de produtividade.
Com relação à democratização das tecnologias necessárias para o desenvolvimento de cada EES, observe-se a exigência da concorrência em editais públicos. Os trabalhadores não dispõem de ferramentas que os habilitem a responder aos editais. Assim, sua participação no espaço público subordina-se à mediação das prefeituras e ONG's, responsáveis pela tradução das necessidades e demandas dos catadores. Por fim, os recursos disponibilizados pelos editais para a introdução de novos equipamentos e tecnologias não abarcam todos os empreendimentos. Outro fator impeditivo para a autonomia da categoria é o baixo rendimento. Os recursos advindos de suas atividades são destinados à sobrevivência. Os ganhos não são reinvestidos na aquisição de equipamentos e em melhorias para a infraestrutura.
A separação correta do lixo doméstico é uma prática não generalizada no Brasil. As ações de mobilização para a coleta seletiva do poder público para diminuir a quantidade de rejeitos são ineficientes ou inexistentes. Ao mesmo tempo, a coleta seletiva é executada parcialmente e/ou de forma assistemática, desestimulando os cidadãos em geral. Devido às condições limitadoras como a baixa escolarização, os catadores não possuem condições para realizá-las. Assim, a insuficiência da educação ambiental e desestímulo da população em geral mantém índice excessivo de rejeitos, onerando e atrasando o processo. Do acúmulo desses rejeitos nos galpões decorrem riscos à saúde pela atração de vetores biológicos.
Ainda, a atividade dos catadores é socialmente vinculada ao trato com o lixo, que está associado à ideia de miséria, doença e morte. É frequente que a população se refira a esses trabalhadores como catadores de lixo. Dessa forma, é necessário investigar o impacto desse processo sobre esses sujeitos.
Com base nessas considerações, desvela-se um processo cíclico de manutenção de uma situação de exclusão, agravado por características da cadeia produtiva da reciclagem. Uma delas é a determinação do valor de comercialização dos produtos pelo comprador, ao contrário do que acontece na maioria das relações comerciais. Sem deter o controle sobre o valor do que vendem os catadores não têm garantias de melhoria dos rendimentos, ainda que aumentem sua produtividade.
A comercialização em conjunto, através da constituição da cooperativa de segundo grau é a alternativa de enfrentamento da situação que se apresenta. Novamente, a baixa escolarização e a ausência de infraestrutura são determinantes para as dificuldades encontradas nesta iniciativa. A operação de um sistema dessa natureza exige a estruturação de contratos, a implantação de logística de recolhimento do material em diferentes associações, aquisição de veículos para transporte, construção de planilhas de controle de custos e demais atividades administrativas. Dessa forma, há uma tendência à perpetuação dos problemas das condições de trabalho alusivos aos processos representados pelo ciclo da Figura 3. Esse ciclo permite formular indagações. Anteriormente, argumentou-se que a atividade expõe os trabalhadores a diversos riscos à saúde física, mas também se considera a influência desse ciclo na saúde mental dos sujeitos. Assim, questiona-se: qual a dimensão da influência dessas tensões em seu estado psíquico?
Verificou-se também que a diminuição do desemprego no Brasil supostamente ampliou as alternativas de inclusão no mercado de trabalho para esses sujeitos. A despeito de o fato de persistir na atividade não implicar aumento da renda, os catadores não a abandonam para ingressar em outras, de forma significativa. Não obstante, constatou-se que 81,4% dos catadores possuem 30 anos ou mais, o que pode indicar a menor frequência de entrada de novos sujeitos na ocupação.
Com base nessas considerações, propõem-se uma agenda de investigação com algumas hipóteses norteadoras:
1. As tensões demonstradas (incluídas aquelas referentes aos preconceitos à atividade de catação) têm reflexos sobre os trabalhadores, seja em relação a sintomas psíquicos ou à acentuação dos existentes.
2. A exposição à situações de contaminação biológica e riscos ergonômicos afetam a saúde física dos trabalhadores.
3. O pertencimento ao grupo é um fator decisivo para a manutenção da atividade nos EES.
4. Os catadores que permanecem, atribuem um sentido positivo às suas atividades, o que permite sua manutenção apesar das características do trabalho e do preconceito. Ainda assim, o número de novos catadores tem diminuído.
A partir das hipóteses formuladas, propõe-se uma agenda de pesquisa, com os seguintes objetivos:
• Compreender a percepção dos sujeitos em relação às condições de trabalho, verificando se tais condições são avaliadas como penosas;
• Compreender o impacto da atividade sobre a saúde mental dos trabalhadores, através da identificação e descrição de sintomas percebidos, diagnósticos clínicos e uso de medicamentos;
• Compreender os processos associativos dos catadores a partir dos sentimentos de pertença ao empreendimento;
• Compreender os sentidos atribuídos ao trabalho, como este estrutura a vida dos sujeitos e como eles se reconhecem no papel de catador.
Diante deste quadro, além das hipóteses, questões e objetivos de pesquisa, propõem-se ainda como agenda de trabalho, o desenvolvimento de pesquisa-ação (Thiollent, 1988) na busca de novas estratégias para estabelecer parcerias que possam aumentar a quantidade e qualidade do material reciclável que chega aos catadores, a aquisição de equipamentos e a logística de comercialização. Estas parcerias podem ser realizadas com grandes empresas, supermercados, condomínios, etc. Também se sugerem ações que possam valorizar o papel do catador, como estratégia de enfrentamento dos preconceitos descritos anteriormente, dentro das linhas de ação propostas pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Levanta-se, por fim, que na interface do campo da Psicologia do Consumidor, da Psicologia do Trabalho e das Organizações (PT&O), entre outros campos do saber, se poderia pesquisar e atuar tendo em vista o fortalecimento da educação ambiental da população.
1 Pequeno carro de quatro rodas, com grades laterais onde o material é armazenado. Possui alça na parte posterior, utilizado para puxá-lo.
2 O termo vetor, neste artigo, é utilizado no mesmo sentido atribuído pelas ciências biológicas, ou seja, de veiculo ou intermediário que transmite um parasita ou germe entre dois hospedeiros.
3 Grandes compradores, principalmente de papéis. O nome tem origem no papel prensado, que em algumas localidades é denominado pelos catadores de "apara" de papel. Podem ser denominados também como grandes atravessadores.
4 Como oligopsônico entende-se um mercado marcado pelo pequeno número de compradores (indústria recicladora, pequenos e grandes atravessadores), em comparação ao grande numero de vendedores (catadores avulsos e aqueles vinculados à associações/cooperativas).
5 Processo industrial de aquecimento através de resistências elétricas, em que material é comprimido e projetado em filetes através de orifícios de uma matriz montada no cabeçote do equipamento, sendo resfriado em seguida, quando segue para outro equipamento onde é cortado.
6 O trabalho de menores de 18 anos é estritamente proibido pelas regras das associações.
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Endereço para correspondência:
Bruno Otávio Arantes
boarantes@yahoo.com.br
Livia de Oliveira Borges
liviadeoliveira@gmail.com
Submetido em: 05/07/2013
Revisto em: 24/11/2013
Aceito em: 26/11/2013
*A pesquisa foi realizada com o apoio do CNPq, na forma de Bolsa de Produtividade em Pesquisa, e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
1 Pequeno carro de quatro rodas, com grades laterais onde o material é armazenado. Possui alça na parte posterior, utilizado para puxá-lo.
2 O termo vetor, neste artigo, é utilizado no mesmo sentido atribuído pelas ciências biológicas, ou seja, de veiculo ou intermediário que transmite um parasita ou germe entre dois hospedeiros.
3 Grandes compradores, principalmente de papéis. O nome tem origem no papel prensado, que em algumas localidades é denominado pelos catadores de apara de papel. Podem ser denominados também como grandes atravessadores.
4 Como oligopsônico entende-se um mercado marcado pelo pequeno número de compradores (indústria recicladora, pequenos e grandes atravessadores), em comparação ao grande numero de vendedores (catadores avulsos e aqueles vinculados à associações/cooperativas).
5 Processo industrial de aquecimento através de resistências elétricas, em que material é comprimido e projetado em filetes através de orifícios de uma matriz montada no cabeçote do equipamento, sendo resfriado em seguida, quando segue para outro equipamento onde é cortado.
6 O trabalho de menores de 18 anos é estritamente proibido pelas regras das associações.