SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número1Como é ser um morcego? (1974)"Carl Rogers no Brasil",2012 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.19 no.1 Goiânia jul. 2013

 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

A última fase da fenomenologia de Husserl: exposição e crítica (1941) 1

 

 

Maximilian Beck (1941)

(Yale University)

 

 

1. Relatório

1. Sobre as bases dos tempos modernos, sua filosofia e ciência. O último artigo de Husserl publicado antes de sua morte chama-se "The Crisis of European Science and Transcendental Phenomenology: An Introduction to Phenomenological Philosophy"2.

Para Husserl, a crise que predomina atualmente na humanidade parece ser causada, basicamente, por uma interpretação equivocada da razão, contribuindo para a crise nas ciências Europeias, o ceticismo, irracionalismo e, consequentemente, o domínio da desumanidade3. Com o sacrifício da razão, entretanto, a humanidade e a moderna cultura europeia encontram-se em perigo ainda maior de completa destruição, pois os homens e as culturas contemporâneos são determinados por uma oposição consciente ao tradicionalismo da Idade Média que, na opinião de Husserl, era cego e obediente4. Por outro lado, em tempos modernos, a humanidade tem sido forçada a moldar seus entornos e a si mesma pela livre razão, segundo sua própria percepção5. Para a moderna humanidade, entretanto, o sacrifício da razão equivale à destruição de suas bases e ao cerceamento de todas as fontes de sua força6.

Porém, é preciso lembrar que a essência do homem enquanto animal rationale deve existir livremente sob as condições determinadas pela razão, fato que por si só pode fornecer a base para maior valoração da cultura Europeia, visto que a unidade universal e o senso comum são essenciais à razão. Esta universalidade da razão, como princípio da moderna cultura europeia, possibilita a Europeização da humanidade não europeia. A livre formação através da universalidade da razão chama-se entelecheia, a ideia "inata" do Europeu moderno que, se abandonar a concretização da entelecheia, será reduzido a um tipo antropológico-empírico como o Chinês ou o Indiano. Assim, o drama da europeização de todas as raças não significará nada além de uma tolice histórica7.

2. Equívocos da razão através da filosofia e das ciências da Europa moderna. Sobre o que está fundamentado o equívoco da razão? Num primeiro momento, sobre o fato de que a sua concepção está atrelada à matemática, cujo significado original perdeu-se há muito tempo.

A filosofia e as ciências modernas pressupõem leis de validade universal no mundo real8. Isto significa que essas leis estão fundamentadas em relações numéricas e mensurações realmente existentes com relação ao espaço e tempo, movimento e forma. Também as qualidades sensuais são reduzidas a movimentos e formas passíveis de serem calculadas matematicamente9.

Porém, a matemática e, especialmente, seu protótipo, a geometria de Euclides eram, em princípio, apenas um meio empírico de aferição! Isto significa que a geometria também não encontra objetos matemáticos no mundo real, mas tão somente os constrói por meio da imaginação, a fim de governar a natureza de modo prático e organizá-la sobre uma base amplamente válida através de mensuração10.

Por essa razão, identidades matemáticas e invariabilidades detinham, originalmente, apenas um mero significado metodológico. Porém, o significado metodológico original, particularmente aquele dos objetos euclidianos, tem sido mal interpretado pela ciência e pela filosofia modernas como uma coisa objetivamente existente. Além disso, a criação dessa imaginação tem sido pressuposta como sendo uma realidade objetiva do mundo físico11 (Husserl obviamente chegou a esta opinião através da tentativa de justificar a matemática moderna que, de fato, é um meio prático para calcular e dominar a natureza12, o que o fez também abandonar o significado do conhecimento objetivo da matemática clássica, particularmente a euclidiana, em função de seu significado presumidamente prático. Assim, absurdos são descartados, resultado da opinião de que um campo de equivalentes objetivos corresponde à matemática moderna não perceptível. É preciso lembrar que essa matemática contradiz o antigo e a si mesma se entendida como asserções acerca da realidade. Existem, por exemplo, várias geometrias).

Também a física moderna não é mais do que a mera matemática aplicada e seus objetos são, também, totalmente não perceptíveis. Husserl nega que a física seja o conhecimento de uma realidade objetiva e reforça seu significado prático. Assim, o dualismo intolerável entre a realidade sensível e perceptível e o mundo no qual vivemos de um lado e, o mundo totalmente abstrato da física moderna de outro, acaba sendo eliminado. Esse dualismo torna-se ainda mais intolerável ao declarar que o mundo sensível-perceptível existe meramente na aparência, enquanto o mundo não perceptível da física é entendido como sendo objetivamente real13.

Falando assim, no entanto, já teremos ido muito além da causa dos equívocos da razão matemática. Esse segundo mal entendido da razão, de acordo com Husserl, é o fato de que a realidade objetiva não é urgente apenas para os objetos matemáticos, mas também para o mundo no qual a razão matemática é aplicada. Este segundo mal entendido consiste na garantia da objetividade do mundo como algo independente da subjetividade que o produz14. "Mundo, "natureza", seriam então suprimidos da consciência que os produz, visto que são entendidos como realmente existentes, um "in sich abgeschlossene Körperwelt", "abgekapselt", "além da consciência - aparência que por si só os traz para o campo do conhecimento15. A falta de razão dessa proposição não é visível. Ela consiste em falar da existência objetiva das coisas, além das aparências pelas quais elas se manifestam para a consciência. De acordo com Husserl, a essência das coisas é a sua realização por meio das "matizes" (Abschattungen); as coisas existem somente por meio da certeza de serem meras imagens mentais (Bewusstseinserscheinungen).

Husserl afirma também que a geometria das coisas, assim como seu movimento, não são dados objetivamente em si mesmas, mas apenas na sucessão de suas perspectivas, relativamente a certos pontos de vista (mesmo Deus seria incapaz de ver qualquer coisa - um globo, por exemplo - como uma figura completa e absoluta sem perspectiva, ou seja, não seria possível visualizar o objeto de frente e de costas simultaneamente)16

O equívoco referente à existência das coisas e do mundo, como algo além de consciências-aparências, gera consequências graves e conduz ao ceticismo radicalista. Desse equívoco, compreende-se que a realidade é divida em duas partes com valores completamente diferentes: de um lado está a realidade objetiva das coisas físicas. Esta realidade é tomada para se revelar ao conhecimento simplesmente como a realidade de um objeto e movimentos no espaço-tempo; de outro lado está a realidade da consciência, ou da alma, ou da subjetividade como totalidade, algo que não existe em si objetivamente, mas apenas "subjetivamente".

Isso sem mencionar que se tenta sempre coordenar esses dois polos. Dentro do campo de pesquisa de uma ciência em particular, como no caso da psicologia, é possível também relacionar realidade e subjetividade. Porém, essa realidade física (res cogitans) é sujeitada a métodos de pesquisa físicos (more geometrico), ignorando-se qualquer outra concepção de realidade que não seja física (res extensa)17.

Tal divisão entre um ser objetivamente real e outro "meramente" subjetivo leva a contradições inerentes. O mero reconhecimento de uma entidade objetivamente real pertence à esfera subjetiva da consciência da alma18. Quando o homem começou a desenvolver um ponto de vista sobre o mundo físico, ele certamente esperava ser capaz de avançar gradualmente em direção à verdadeira realidade, constante e objetiva, separando o subjetivo do mensurável e objetivamente determinável19.

Mas, o que tinha sido admitido como firme e objetivo num primeiro momento, foi também descoberto como sendo subjetivo através de contínuas pesquisas, como por exemplo, espaço, tempo, massa, causalidade20. Entretanto, à parte as tentativas de compreensão de uma realidade objetiva além de toda subjetividade, não havia outro significado para o conhecimento científico e filosófico em vista; por isso a ciência e a razão parecem ter sido abandonadas (ceticismo de Hume)21.

A separação entre subjetividade e realidade objetiva tem ainda outra consequência. Muitos problemas importantes de grande interesse para o homem, como questões sobre o sentido e o valor do mundo, do próprio homem como ser e o seu semelhante tem ficado, desde o início, fora do campo de pesquisa científica. Essas perguntas e respostas se originam em interesses particulares do homem, na subjetividade banida da esfera da ciência. É justamente por isso que a ciência objetiva está condenada a perder importância. Ao mesmo tempo, o antagonismo entre a realidade e a razão está declarada22; pois os objetivos e valores da realidade estão reduzidos a ilusões.

3. Os objetivos da fenomenologia da Husserl. Husserl chama o ensaio analisado aqui de "Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental" ao qual adiciona ainda o subtítulo "Uma Introdução à Filosofia Fenomenológica", por acreditar que sua fenomenologia seria capaz de acabar com a crise das ciências europeias. O que é esta fenomenologia?

Ela é, primeiramente, a base da razão e da ciência inteligível, visto que descobre e emprega as origens da razão e da ciência, ao invés da tradição cega e das lembranças de experiências reais anteriores23.

Em segundo lugar, a fenomenologia mostra o que realmente significa a "existência verdadeira", "verdade", "existência objetiva", "realidade"; e, também, o que razão e ciência não significam, ou seja, mostra que as coisas não existem independentes do pensamento, tendendo a ele por meio das cogitationes. Para a fenomenologia, a razão é a síntese universal de cogitações pela concordância de que uma entidade objetivamente verdadeira é realizada como realidade idêntica ao mundo, válida para todos os seres pensantes24.

Fica claro, portanto, o porquê de a filosofia buscar ser sempre sistemática; e o verdadeiro significado do método progressivo infinito das modernas ciências europeias fica igualmente claro. Para uma ideia de um sistema filosófico, como o progresso infinito da ciência gera equívocos em relação ao horizonte e harmonia infinitos da experiência, como correspondentes a uma realidade que exista igualmente infinita e objetiva em si mesma25.

Num terceiro momento, entretanto, a fenomenologia tenta descobrir o sistema de normas e leis da razão, em virtude das quais normas válidas universalmente e uma realidade consonante poderiam ser estabelecidas para todos os homens que concordassem uns com os outros26. Assim, a fenomenologia desmascara a razão científica como derivada de uma razão prática precedente fundada sobre a subjetividade27.

Porém, o verdadeiro significado da razão, sua autonomia e a liberdade de se auto determinar, deve servir à subjetividade prática por meios de razão livre28. Os antigos ideais da filosofia grega reforçaram radicalmente e tornaram-se o impulso da ciência e da filosofia europeia moderna: autodeterminação do homem através do conhecimento do qual é a verdade final o que, no entanto, é reconhecidamente subjetividade29. E, essa penetração da subjetividade que afeta o significado de uma validade e de uma realidade objetivas é apenas a origem de uma "objetividade" erroneamente entendida como científica (Wissenschaftlichkeit)30.

4. O método fenomenológico. É o método da eliminação radical ("Ausschaltung") de todas as asserções sobre a realidade ou o método da suspensão (como a "epoché" do ceticismo grego). O que isso significa?

Husserl enfatiza o que constitui essencialmente a "epoché" feita por Descartes: este, a fim de obter uma base absolutamente sólida para o filosofar, começa suas Meditationes através de uma dúvida metodológica para a realidade das coisas, visto que poderiam não passar de sonhos. Pelo simples fato de duvidar, ele descobre, como evidência e verdade absolutamente concreta, que a dúvida em si, o "ato" de duvidar, enquanto forma de pensamento (cogitatio) não pode ser simplesmente sonhado. A dúvida é, ela "existe" em si mesma. Mas o que é pensado não existe? O cogitatum existe apenas como pensamento, qua cogitatum, mesmo se for apenas sonhado.

No entanto, Descartes confunde o cogitatio evidente com o cogitatio do ego individual real e afirma que a realidade deste ego é assegurada pela dúvida metodológica. Descartes confunde também o pensamento ou cogitatum qua cogitatum como uma parte integrante do ego, uma realidade psíquica. Husserl, pelo contrário, enfatiza que este ego individual empírico constrói sua existência somente através da consciência, juntamente com a concretização de coisas externas, notadamente por certa síntese e sucessão de cogitationes. Por essa razão, somente tais cogitationes são imediatamente evidentes. A realidade do meu próprio ego é tão duvidosa quanto a realidade do mundo físico exterior. Portanto, a verdadeira dúvida, conforme o método fenomenológico de Husserl consiste na suspensão radical ("epoché") da manutenção de toda a realidade. O fenomenologista descarta a realidade ("schaltet aus") não apenas do mundo exterior, como também do próprio ego fenomenologizado, como sendo realmente uma individualidade. Em vez de cooperar com a manutenção da realidade, o fenomenologista analisa os atos dessa manutenção; assim, portanto, o fenomenologista não vive ingenuamente na realidade, mas a torna objeto de pesquisa, obtido através da "epoché" e "Ausschaltung", chamado por Husserl de "consciência transcendentalmente purificada". Essa é a única base original e imediatamente evidente que Descartes buscava31.

 

2. Nota

A incoerência da crítica que se segue pode ser explicada pela minha intenção de resumir não apenas algumas objeções contra o artigo sob análise, mas também contra a filosofia posterior de Husserl. Quando jovem fui libertado por Husserl daquele mesmo subjetivismo ao qual eu o encontrei debruçado quando de suas bases filosóficas posteriores. Isto talvez ajude a explicar a acidez da minha crítica. Mas quero também enfatizar minha enorme gratidão para com o autor de Logische Untersuchungen, cujo jeito de filosofar tenta sustentar as asserções apenas sobre a experiência imediata. Convém lembrar que o método fenomenológico, adequadamente praticado, difere de sua explanação e justificação teórica. Mesmo os resultados desse método apropriadamente praticado podem ser diferentes de acordo com diferentes pressuposições teóricas.

Em minha opinião, Husserl conseguiu chegar ao subjetivismo somente através de sua identificação com a consciência e a intencionalidade, como tentei demonstrar na minha Psychologie32 que, por razões de espaço, não será abordada aqui.

 

3. Crítica

(1) O método de Husserl pretende ser um começo original, sem quaisquer premissas, mas assume as regras da lógica. Não é o que pretende ser, uma mera descrição da cogitata qua cogitata, pois requer também o exercício do julgamento, conclusões prévias e o uso da razão. Certamente, o método seria incapaz de fazer qualquer asserção sem, por exemplo, pressupor a validade da lei da identidade.

Além disso, o método supõe conexões entre ideias muitas abrangentes como, por exemplo, de que toda ação, pensamento ou dúvida é impossível sem um sujeito que age, pensa ou duvida. O próprio Husserl chama seus questionamentos de "egológicos". Assim, ele também pressupõe um "ego" como sujeito da "consciência transcendentalmente purificada" que diga-se, não corresponde ao ego real e individual de Descartes. Porém, o ego geral, em Husserl, não é também um cogitatum qua cogitatum; ele é apenas um a priori aceito como uma premissa necessária de qualquer pensamento.

(2) Além disso, Husserl é incapaz de descartar, ainda que metodologicamente, a existência transcendental desse ego. Mesmo que sua existência fosse descartada em favor de uma subjetividade imanente da consciência fenomenológica, ainda seria incompreensível o porquê de a sucessão e a teleologia do fenômeno da consciência estarem além do livre arbítrio de toda subjetividade.

Em Ideen zu einer reinen Phänomenologie (p. 111, Jahrbuch de Husserl, Halle, 1913), Husserl supôs, como "causa da factualidade de uma consciência constitucional correspondente", um Deus criativo e transcendente ao mundo e a uma consciência absoluta, mas neste artigo, Husserl fala de uma "razão inata" ou "entelecheia uma humanidade racional"33. Porém, palavras como "inata" e "entelecheia" não devem nos levar a sobrepor à transcendência dessas pressuposições de Husserl.

A mera factualidade da seleção e sucessão de fenômenos presentes na consciência, não deve ser descartada, eliminando-se o significado da realidade objetiva de sua síntese. O fluxo da consciência, na qual a convicção da realidade de um mundo real objetivo é formada, falta à necessidade lógica. Esse fluxo existe apenas enquanto está presente. É óbvio, no entanto, que esse fluxo existe, pois não há como negar o fato de que eu tenha consciência dos fenômenos (cogitata qua cogitata). Porém, a imediata auto-evidência da existência de uma certa consciência é radicalmente diferente da auto-evidência da razão auto-evidente.

(3)É preciso também fazer uma distinção entre a lógica da percepção imediata e a lógica da compreensão através da razão. Somente a lógica racional pertence à esfera da razão, enquanto o método perceptível, empregado pela fenomenologia, independe completamente de compreensão racional. Ele apenas mostra 'o que' e 'como' é consciente, como um sucede o outro e como está conectado a ele [método]; em outras palavras, ele afirma apenas o que é. Sua certeza lógica imediata é apenas a certeza do conhecimento factual, visto que não mostra as razões necessárias para a conexão dos fenômenos da consciência. Portanto, seria um erro sugerir que o método fenomenológico é capaz de esclarecer e estabelecer a auto compreensão da razão. A fenomenologia seria, nesse sentido, apenas a ciência dos fatos, uma ciência "positivista" apesar de toda supressão metodológica da realidade.

Husserl, na verdade, se esforça para alcançar o mesmo que Kant já havia buscado. Ele quer mostrar que a razão é um organismo autônomo em relação a estruturas e funções da consciência, um tipo de textura física na qual cada um teria necessariamente que pensar a verdade e a realidade-mundo, se pensasse de fato. Entretanto, em vez de mostrar a necessidade dessa textura física, Husserl atesta o contrário da necessidade ao falar de um estilo-causal-universal34 como se estivesse se referindo a um estilo barroco ou clássico na história da arte. Husserl identifica uma objetividade idêntica e não relativa com validade de medida intersubjetiva35; ele interpreta ideias como polos invariáveis e inatingíveis em direção à experiência que tende a se completar e se aperfeiçoar de forma constante36. Porém, esta forma de interpretação é típica do empirismo que é completamente falho para conceber a razão e a necessidade.

(4)De fato, Husserl chegou ao modo empírico de filosofar contra o qual ele já havia lutado bravamente e, por isso, acaba cometendo os mesmos erros que censurou em seus opositores quando escreveu seu primeiro trabalho, Logische Untersuchungen, no qual mostrava que os universais já haviam sido supostos por aqueles que argumentavam contra ele. Ele sustenta, por exemplo, que os universais são fundamentados sobre a experiência de muitas coisas reais as quais são similares entre si. Um universal pode ser obtido abstraindo-se suas próprias diferenças. Husserl, entretanto, opôs-se corretamente: se eu entendesse o universal como idêntico, em coisas similares, eu não saberia nem em que aspecto essas coisas são diferentes e nem quais aspectos eu teria que abstrair. Toda similaridade já pressupõe o universal, partindo-se da perspectiva de que as coisas são similares entre si.

Em seu último ensaio Husserl comete os mesmos erros típicos dos nominalistas ao lidar com conceitos de "prática do aperfeiçoamento", "aproximação", "semelhança típica", "repetição" e "costume". Destes, Husserl explica como resulta o significado idêntico e invariante de figuras geométricas, embora tais figuras não existam objetivamente. Porém, todos esses conceitos supõem apenas aquelas figuras determinadas como objetivos e alvos idênticos e invariantes das experiências de "aperfeiçoamento", "aproximação", "repetição", "costume" e "semelhança típica"37. É impossível, por exemplo, mirar ou aproximar um movimento num determinado espaço sem que se saiba previamente onde mirar ou ao que se aproximar. Não existe o ato de mirar ou aproximar sem ter um objetivo. Sem conteúdos distintos, que possam servir como objetivo para prescrever onde e em qual direção o movimento deve acontecer, é impossível falar de regras fixas de movimento ou determinar métodos para controlá-los. E, estes conteúdos, no entanto, são figuras geométricas.

(5) Eu também não posso admitir que sejamos incapazes de uma intuição plena e adequada das figuras geométricas simultaneamente e sem uma perspectiva distorcida. Apesar de todas as teorias, é fato que percebemos, por exemplo, retângulos e cubos de forma retangular e não inclinada, correspondendo a sua perspectiva de distorção. Normalmente percebemos os retângulos de nossas casas ou mobília através da perspectiva de sua aparência. Perceber as distorções exige dos desenhistas e artistas, como todos sabem, muita prática e treinamento.

(6) Porém, as experiências empíricas de visualizar o objeto real através de sua aparência distorcida não se aplicam apenas às figuras geométricas, mas também às coisas reais em si mesmas. Esta penetrante característica (Mehr-schichtigkeit) das experiências perceptivas contradiz radicalmente a descrição de Husserl. É verdade que a realidade objetiva de um objeto idêntico significa apenas certa concordância de aspectos que se sucedem uns aos outros num fluxo de consciência contínuo; no entanto, no que diz respeito a aspectos individuais, separadamente, as coisas se manifestam como certas e idênticas, através de vários aspectos. Elas se manifestam como diferentes tanto em seu aspecto único como no totalizante.

(7) De acordo com Husserl, as peculiaridades ou especificidades da coisa material são físicas e geradas pela subjetividade humana38. Porém, todos distinguem peculiaridades psíquicas e físicas como qualidades. Não se pode diferenciá-las entre si apenas aplicando-as ao objeto ou ao ego individual. Existem diferenças essenciais entre o físico e psíquico, excluindo-se a priori, por exemplo, a cor vermelha de se tornar atributo de uma pessoa ou o sentimento de alegria como atributo da coisa material.

Dessa maneira, o objeto material, como o açúcar por exemplo, não significa somente uma realidade objetiva formal ou uma identidade ou um acordo de aparências, pois tudo é também uma entidade determinada como certo quid. Resumindo: as diferenças entre a coisa física e o ego psíquico são determinadas muito antes de qualquer fenômeno de realização, enquanto a essência geral do objeto refuta todos os métodos de pesquisa oriundos do mundo das coisas físicas da subjetividade humana, contraditória a priori.

(8) Mas isso não é tudo. Não se poderia concordar, ao que me parece, com a hipótese fundamental da teoria e do método de Husserl de que apenas o físico é esboçado pelas aparências, enquanto o psíquico não. Toda a teoria de Husserl da evidência imanente da consciência permanece ou é revogada com esta tese. De fato, a teoria cai por terra, pois o psíquico se descreve, se delineia por si só e (re)aparece em outro fenômeno também psíquico. Por exemplo, o sujeito psíquico, eu mesmo, enquanto certa essência individual39 se manifesta em seus atos exatamente como uma coisa inanimada em função de suas peculiaridades. Existe uma ciência muito antiga e complexa relativa a estes fenômenos que é a dos psicólogos práticos, dos grandes poetas e moralistas, dos teólogos e filósofos, capaz de apreender o ser físico de maneira constante através de muitos fenômenos físicos distintos. A hipótese de Husserl de que o psíquico não se esboça40, não passa de uma invenção teórica e contraditória em relação à experiência.

(9) Husserl quer verdadeiramente descrever a consciência de uma realidade objetiva do mundo. Mas sua análise contradiz a convicção do senso comum, distorcendo-o por completo. Todos tem ciência de que tudo tem um lado oposto; sabe-se disso a priori através da evidência da natureza comum de uma coisa material enquanto esta se prolonga no espaço. Por essa razão, Husserl espera que, ao movimentar o objeto, ele consiga ver esse outro lado, seu avesso, seu oposto.

Husserl, entretanto, converte esse fato nisso: através da continuidade da experiência consentida relativa à descrição das coisas, estou sempre esperando o lado reverso desse objeto. Se essa expectativa puder ser comprovada, ela marca uma experiência consensual racional e que adquire significado através da realidade objetiva das coisas; não é uma coisa real existindo de forma independente de suas experiências, mas apenas a continuidade e a harmonia dessas.

Isso contradiz radicalmente o senso comum ao acreditar que a subjetividade produz ("leistet") o mundo. Todos sabem que o mundo é pré-determinado a todas as suas percepções. Esse mundo produzido pela subjetividade humana não seria chamado de realidade, objetividade ou verdade pelo senso comum, mas sim de ilusão, decepção!

(10) É verdade que um objeto material sempre é visto a partir de uma perspectiva, fragmentado e nunca completo de uma só vez. Husserl afirma que esse objeto é necessariamente fundado na natureza básica de um objeto material, não como existindo real e objetivamente em si mesmo, mas tão somente como sucessão e síntese de aparências para a consciência. Porém, o fato de que coisas tornam-se realidade para nós, através da sucessão de aparências unilaterais, as chamadas perspectivas ("Abschattungen") não prova a subjetividade das coisas. Isso é apenas consequência das nossas próprias finitudes. Nosso intelecto, enquanto elo corporal é compelido a perceber as coisas materiais de um único ponto de vista apenas, que é aquele do nosso próprio corpo. Por essa razão, podemos logicamente ver apenas os lados do objeto que, de maneira objetiva, se voltam ao nosso campo de visão. Devido ao fato de as coisas materiais existirem real e objetivamente em si mesmas, elas expõem muitos dos seus lados a diferentes perspectivas. A correlação entre determinados pontos de vista de percepção do objeto e suas faces é prova de que a realidade objetiva de uma coisa material é pré-determinado ao fato de ser percebida. A legalidade dessa correlação, desprovida de todo livre arbítrio, é suficiente para contradizer a subjetividade da percepção.

Interpretar o fato de que as coisas aparecem para nós conforme a natureza básica do objeto material em si, bem como afirmar a impossibilidade de outros modos de percepção do objeto não pode ser aceito. O intelecto onipresente de Deus pode, certamente, ser tido como capaz de perceber para além de todos os pontos de vista específicos. Essa é uma consequência lógica da Sua onipresença, o fato de Ele perceber objetos materiais em sua forma completa, ao invés de ter apenas um único lado.

Por essa razão, a sucessão e a síntese das aparências unilaterais não podem ser consideradas também como, necessariamente, constituintes do senso comum, regulando a percepção das coisas.

(11) É certo que as nossas experiências e interesses geram o mundo das nossas percepções41. Não deveríamos encontrar nesse mundo coisas como casas, ruas, roupas, livros, etc, se fossemos meros intelectos sem desejos materiais e/ou práticos. Os homens do passado certamente consideraram os velhos instrumentos em nossos museus de uma maneira completamente diferente da nossa. Da mesma forma é verdade que o mundo das percepções humanas está sempre sendo envolvido em uma mudança histórica como mostraram Hegel e seus seguidores (incluindo Dilthey).

Tudo isso parece comprovar a hipótese de Husserl de que o mundo objetivo é, na verdade, apenas causado pela subjetividade humana. Mas, ainda assim ele está errado. Por quê? Porque a subjetividade (enquanto função do ego psíquico) e a consciência (enquanto função do intelecto percipiente) são diferentes.

A evidência dessa posição, juntamente com uma explicação do conceito de intencionalidade de Husserl, são analisados por mim no meu Psychologie. Como resultado desse trabalho, pode-se mencionar que a subjetividade humana também existe de modo real e subjetivo para o intelecto percipiente da mesma forma como existe na aparência do ambiente criado pela subjetividade. Na Psychologie trabalho com a tese do "perspectivismo realista"42 que afirma que as aparências também existem de forma real e que são criadas pela subjetividade, ao invés de estruturadas pelo intelecto como resultado da percepção, pois são estruturadas e objetivamente pré-determinadas pelo intelecto, a partir de um certo ponto de vista objetivo.

(12) A crítica mais importante contra as afirmações de Husserl é o seu conceito equivocado sobre a razão. Ele a descreve como, primeiro, estruturando-se de forma autônoma ao construir (e não preceder) a experiência real43.

Anteriormente, Husserl estava no caminho certo sobre a concepção da razão quando, em suas Logische Untersuchungen ele se distanciou das interpretações equivocadas dos fenômenos universais existentes "idealmente". Somente no curso do assim chamado "Platonismo" (hoje completamente mal interpretado como fábula sobre coisas misteriosas além da experiência) o problema da razão pode ser resolvido, reconhecidamente, como fenômeno de relações necessárias e evidentes entre o "o que" e os "quais" das coisas existentes, enquanto uma abstração é feita dos casos particulares presentes aqui e agora.

Mais tarde, entretanto, o próprio Husserl interpretou equivocadamente o fenômeno como existência "ideal" e "irreal" construindo a experiência na qual casos reais únicos são aproximadamente iguais e repetidos de maneira invariável. Enquanto fenômeno vivenciado, de um único caso, ele se tornou novamente fenômeno da experiência relativa à realidade, ao invés de fenômeno relativo a experiência das ideias.

Convém repetirmos: a realidade e a factualidade desta experiência não podem ser descartadas eliminando seu significado como algo objetivamente existente para além da consciência. Mesmo a "consciência transcendentalmente purificada" de Husserl preserva a factualidade e a realidade do "fluxo de consciência", dentro do qual todas as afirmações fenomenológicas são construídas. A evidência da razão é completamente diferente da evidência de qualquer fato vivenciado originalmente e de forma imediata.

A auto-evidência da razão é completamente diferente da auto-evidência de toda facticidade imediata e originalmente experienciada. A auto-evidência da razão é a evidência da compreensão do porque sob as mesmas circunstâncias, determinada coisa necessariamente se move em direção a outra no mesmo caminho. A razão para esta necessidade, entretanto, é vista no o que e como das coisas, que determinam este comportamento em direção a um outro objeto. O mesmo o que e como, entretanto, podem se repetir em um número infinito de casos reais isolados. Assim estruturados, esse o que e como exprimem o que o Platonismo significa quando fala sobre as "ideias", entendidas como indiferentes em relação a sua realização aqui e agora, onde e quando. A princípio, entretanto, é igualmente importante falar sobre ideias individuais44, intencionadas como conteúdos, e não como generalizações, partindo da perspectiva de casos individuais.

Husserl, entretanto, fundamenta tais generalizações sobre uma relação presumida destas com sua realização em casos individuais. Ele entende a validade apodítica das generalizações como constituídas a partir de uma experiência indutiva pela qual casos reais individuais são, apenas e aproximadamente, repetidos de maneira igual e invariante45. Dessa maneira, o fenômeno das ideias (assim como o fenômeno da razão) torna-se para Husserl um problema exclusivamente da factualidade de casos individuais reais46.

 

Nota Biográfica

Maximilian Beck (1887-1950), discípulo de Alexander Pfänder, fez parte do grupo fenomenológico de Munich, onde desenvolveu trabalhos sobre estética no seu livro Wesen und Wert (1925).

Tradução: Profa. Dra. Silvana Ayub Polchlopek (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)

Revisão Técnica: Adriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)

1 Título original: "The Last Phase of Husserl's Phenomenology: An Exposition and a Criticism", publicado na Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 1, No. 4 (Jun., 1941), pp. 479-491.         [ Links ] Revista editada pela International Phenomenological Society. As notas do autor foram aqui mantidas, na mesma ordem e numeração do texto original. As notas explicativas acrescidas pelo Editor estão em formato alfabético, para não interferir no texto original.
2 Publicado em Philosophia, vol. I (1936).
3 Páginas 85-86.
4 Página 84.
5 Página 141.
6 Páginas 88-92.
7 Página 92.
8 Página 128.
9 Páginas 108-113, 136.
10 Páginas 103, 126, 127.
11 Páginas 103, 126, 127.
12 Páginas 119, 121. Cf. meu artigo "Geiz als Wurzel der faustisch -dynamischen Kultur", Philosophische Hefte, vol. III (1931), p. 15.
13 Página 129.
14 Página 137.
15 Página 135.
16 As análises formais de Husserl, especialmente Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Forschung, p. 315, estão pressupostas aqui.
17 Páginas 136, 138, 139.
18 Páginas 142, 143.
19 Página 141.
20 Página 162.
21 Página 163, 171.
22 Páginas 82, 83, 85.
23 Página 94; Ideen, pp. 43, 121, 147.
24 Páginas 174, 151, 157.
25 Páginas 96-97.
26 Páginas 86, 92.
27 Páginas 101-102.
28 Página 92.
29 Páginas 90, 92, 174.
30 Página 83.
31 Páginas 152-157.
32 Leiden (Netherlands), 1938. Cf. especialmente pp. 46ff, onde o §37 das Ideen de Husserl é discutido.
33 Páginas 91-92.
34 Página 103.
35 Página 102.
36 Página 100.
37 Páginas 99, 100, 105.
38 Páginas 165, 171-2, 157.
39 Isto, obviamente, não pode ser confundido com o que Husserl chama, de acordo com sua teoria, o sujetito psíquico individual.
40 Cf. Ideen, p. 77.
41 Página 144.
42 Cf. meu artigo, "Neue Problemlage der Erkenntnistheorie", em Deutsche Vierteljahrsschrift für Literaturwissenschraft und Geis tesgeschichte, (1928), p. 183.
43 Páginas 144, 171-4.
44 Não é por acaso que a separação da fenomenologia realista por Husserl, principiou com a redescoberta da "essência individual" (Individual-wesen). Não me parece que existe uma conexão necessária entre esta tese e o fortalecimento da tendência realista sobre universais. Pois desta forma o conteúdo das idéias sozinho, e não a sua generalidade, é enfatizada como uma questão decisiva, como distinto de sua existência. Se a realidade não é mais idêntica à individualidade, então a realidade não pode ser opor também à idealidade como a generalização de casos individuais reais.
45 Páginas 100, 105, etc., 111, 115, 117, 124, 126.
46 Concernente ao Platonismo, cf. meus artigos, "L'Irrationalisme actuel, sa nature, ses origines, et le moyen de le surmonter", na Revue de Metaphysique et de Morale (1934), e "Kants Ablehnung der traditionellen Ideenlehre", emPhilosophischer Anzeiger, vol. IV (1930), no. 3, e "Ideelle Existenz".