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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.28 no.1 Goiânia jan./abr. 2022

https://doi.org/10.18065/2022v28n1.12 

ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS

 

Autoconhecimento e mudança pessoal na Analítica do Dasein

 

Self knowledge and personal change in Dasein Analytic

 

Autoconocimiento y cambio personal en la Analítica del Dasein

 

 

Marcelo Vial Roehe

Instituto de Estudos em Saúde e Biológicas da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), Marabá/PA, CEP 68507-590. Email: mvroehe@gmail.com

 

 


RESUMO

Partindo-se da estratégia de apresentação do modo de ser do Dasein em Ser e Tempo e dando atenção específica às noções de Propriedade e Modificação Existencial, propõe-se que a obra de Martin Heidegger, mais do que orientar teoricamente a psicologia e a psicoterapia fenomenológico-existencial, pode servir-lhes como exemplo de como acontecem autoconhecimento e mudança pessoal, além de permitir pensar a possibilidade do sofrimento. Modificação Existencial é a transição da impropriedade para a apropriação de si, cujo ponto inicial é o aparecimento da angústia, que rompe os afazeres e encontros cotidianos. Diante de 'nada', o Dasein deve escolher a si mesmo ou retornar aos encobrimentos cotidianos de si. Quem escolhe e se apropria de si realiza autoconhecimento que é, também, mudança pessoal.

Palavras-chave: Analítica do Dasein; Propriedade; Modificação Existencial; Mudança Pessoal.


ABSTRACT

Starting from Martin Heidegger's strategy to describe Dasein's way of being in Being and Time and paying special attention to the notions of Authenticity and Existentiell Modification it is argued that more than being theoretically influential to existential-phenomenological psychology and psychotherapy, Being and Time is also an example of how self knowledge and personal change happen, in addition to allowing the possibility of suffering to be thought about. Existentiell Modification is the transition from inauthenticity to authenticity whose first moment is the appearance of dread that disrupts daily tasks and encounters. Standing before 'nothing' Dasein must choose itself or return to everyday cover-ups. The one who chooses itself and becomes authentic reaches self knowledge and changes itself.

Keywords: Dasein Analytic; Authenticity; Existentiell Modification; Personal Change.


RESUMEN

Partiendo de la estrategia de Martin Heidegger para describir el modo de ser del Dasein em Ser y Tiempo y prestando especial atención a las nociones de Propiedad y Modificación Existentiva, se argumenta que más que ser teóricamente influyente para la psicología y psicoterapia fenomenológico-existencial, Ser y Tiempo es también un ejemplo de cómo se produce autoconocimiento y cambio personal, además de permitir pensar em la posibilidad del sufrimiento. Modificación Existentiva es la transición de la impropiedad para la propiedad, cuyo primer momento es la emergencia de la angustia, la qual rompe con las tareas y encuentros diarios. Ante la 'nada', el Dasein debe elegir a sí mismo o volver a los encubrimientos cotidianos. El que se elige a sí mismo y se vuelve próprio alcanza el autoconocimiento y se cambia a sí mismo.

Palabras clave: Analítica del Dasein; Propiedad; Modificación Existentiva; Cambio Personal.


 

 

Introdução

A busca por autoconhecimento e a realização de uma mudança pessoal são temas comumente associados à prática da psicoterapia, assim como momentos de ruptura com um modo de vida e instabilidade afetiva (Strijbos & Jongepier, 2018). O artigo procura mostrar como esses temas podem ser pensados a partir da Analítica do Dasein, publicada por Martin Heidegger em Ser e Tempo. O enfoque apresentado é o de que Heidegger, ao escrever a obra, comunica uma mudança pessoal, de modo que, além de ser uma referência teórica para a psicologia fenomenológico-existencial, Ser e Tempo pode ser considerado um exemplo de como autoconhecimento e mudança pessoal acontecem, do ponto de vista existencial.

Autoconhecimento e mudança pessoal são construções do artigo, de um ponto de vista psicológico; não são, portanto, propostos por Heidegger. Tomar Ser e Tempo como um exemplo para processos psicológicos é uma possibilidade de pensamento a partir da obra. Possibilidade esta que o artigo desenvolve, sem atribuir a Heidegger esta mesma intenção.

Em Ser e Tempo (1927/2012), Martin Heidegger apresenta um estudo fenomenológico do ente que nós mesmos somos, a fim de realizar um projeto mais amplo: o questionamento do sentido de 'ser', ou seja, explicitar o que queremos dizer, quando dizemos que algo "é".

A estratégia de Heidegger é iniciar o questionamento de 'ser' pelas condições em que este questionamento é realizado: o ente humano - em seu modo de ser - apresenta a possibilidade de questionamento do ser; então, o filósofo, primeiramente, descreve o modo de ser do ente que pode questionar o ser. A Analítica do Dasein é esta descrição. Dasein1 é o termo que Heidegger emprega para nomear o ente que nós mesmos somos.

Esse ente que somos cada vez nós mesmos e que tem, entre outras possibilidades-de-ser, a possibilidade-de-ser do perguntar, nós o apreendemos terminologicamente como Dasein. Fazer expressamente e de modo transparente a pergunta pelo sentido de ser exige uma adequada exposição prévia de um ente (Dasein) quanto ao seu ser (Heidegger, 1927/2012, p. 47).

É característico de uma exposição fenomenológica, o ponto de vista da 1ª pessoa. A ideia de 'fenômeno' significa que as características daquele que elabora o conhecimento são constituintes desse conhecimento, uma vez que são essas características que possibilitam qualquer conhecimento. Portanto, a apresentação do modo de ser do Dasein é uma possibilidade do próprio Heidegger como Dasein. Lê-se em Ser e Tempo: "o Dasein, de algum modo, e mais ou menos expressamente, entende-se em seu ser" (Heidegger, 1927/2012, p. 59). Fenomenologicamente, a afirmação de Heidegger diz respeito ao seu modo de ser: ele - Heidegger - deve poder entender e expressar algum entendimento sobre seu modo de ser, a fim de poder descrevê-lo como sendo o modo de ser do homem. Em síntese, dizer que Heidegger escreveu Ser e Tempo e dizer que o Dasein escreveu Ser e Tempo, é dizer a mesma coisa.

Assim, Heidegger apresenta sua própria pergunta pelo ser como o início da Analítica. O Dasein é o ente que pode perguntar. Sendo Dasein, Heidegger faz a pergunta, como qualquer um - por ser Dasein - pode fazer. É essa característica da Fenomenologia que permite que se tome a Analítica Ontológica como um exemplo pessoal.

A Analítica inicia apresentando o modo de ser do Dasein em sua "mediana cotidianidade". É a partir desse acesso inicial ao ente que nós mesmos somos que Heidegger apresenta o ser-no-mundo como constituição fundamental do Dasein. Sendo-no-mundo, o ser humano não se mostra como um 'Eu' autossuficiente, substancial, que prescinda dos demais entes para ser. O Dasein se autocompreende a partir das ocupações e das preocupações no-mundo (Heidegger, 1927/2012). Ocupações são as relações do ser humano com entes não humanos e preocupações são suas relações com os outros seres humanos.

 

Ser-no-mundo cotidiano e a ruptura angustiada

No cotidiano ser-no-mundo, o Dasein age conforme modos compartilhados de ocupação e preocupação, de modo que o si mesmo não se sobressai como um 'Eu', como um ponto referencial constante que orienta sua ação:

(...) o Dasein como cotidiano ser-um-com-o-outro está na sujeição aos outros (...) Nisso esses outros não são outros determinados. Ao contrário, cada outro pode representá-los (...) O quem não é este nem aquele (...) nem a soma de todos. O "quem" é o neutro: a-gente (Heidegger, 1927/2012, p. 363-365).

Sendo-no-mundo, o Dasein é em-relação com entes diferentes dele mesmo. O Dasein é estar-junto (ocupações) e estar-com (preocupações) de tal maneira que as relações o absorvem, no modo do a-gente. Identificado com os entes com os quais se relaciona, o Dasein 'se perde' de si mesmo cotidianamente. Por isso, Heidegger chama a atenção para o modo de acesso ao ente que nós mesmos somos: nosso modo de ser está encoberto para nós mesmos, pelo menos parcialmente, uma vez que a cotidianidade mediana, na qual já sempre estamos, assim como mostra também encobre. Mostrar e encobrir dizem respeito à relação que se estabelece, no Dasein como ser-no-mundo, entre si mesmo e mundo. O si mesmo é sempre em-relação; mundo é aquilo com o qual ele se relaciona (entes humanos e não-humanos). Dasein designa este modo de ser não polarizado: "Si mesmo e mundo copertencem-se em um ente, no ser-aí2. Si mesmo e mundo não são dois entes, tal como sujeito e objeto, nem tampouco como eu e tu. Ao contrário, si mesmo e mundo são na unidade da estrutura do ser-no-mundo a determinação fundamental do próprio ser-aí" (Heidegger, 1975/2012, p. 432).

O si mesmo é abertura para o mundo. Abertura que o vincula irrevogavelmente ao mundo, impossibilitando a autossuficiência de um 'Eu'; estendendo, assim, o alcance do ser humano para aquilo ao qual se vincula e possibilitando que ele se identifique com aquilo ao qual está vinculado. De tal maneira identificado com os entes que se mostram no cotidiano, que existe alheio ao seu próprio modo de ser. Uma completa apreensão do modo de ser humano exige que ele mesmo se aproprie de seu ser. A apropriação de si requer um distanciamento das imersões cotidianas, a fim de que o Dasein possa se mostrar para si mesmo. Essa apropriação de si pode ou não acontecer, pois o Dasein "(...) é um possível ser próprio, isto é, na medida em que ele tem a possibilidade de se apropriar de si. Os dois modi-de-ser da propriedade e da impropriedade (...) fundam-se em que Dasein é em geral determinado pelo ser-cada-vez-meu" (Heidegger, 1927/2012, p.141).

O Dasein é cada-vez-meu-no-mundo; não se trata, portanto, de uma presença constante a si. Sendo-no-mundo, o ser humano pode oscilar entre si mesmo e mundo. No cotidiano predomina o mundo, o a-gente, os entendimentos impessoais do existir, logo, predomina a impropriedade ou não apropriação de si. Rompidas as relações cotidianas, predomina o si mesmo e há a possibilidade da propriedade: "Mas por se haver perdido em a-gente o Dasein tem de antes se achar" (Heidegger, 1927/2012, p. 737).

O Dasein, então, somente pode ter acesso à totalidade de seu modo de ser, quando o modo de existir no a-gente é rompido. Para Heidegger, a ruptura com a absorção nos entes do cotidiano não é um ato volitivo, não é uma deliberação racional. O abandono do a-gente é possibilitado por um estado de ânimo ou humor: a angústia.

Angustiado, o Dasein se afasta dos elos cotidianos. A angústia desfaz as significações do a-gente. Os direcionamentos cotidianos, que encobrem o si mesmo, desaparecem, de modo que o Dasein pode "se achar". Heidegger entende que o "diante-de-quê" a angústia se angustia é indeterminado: "não é nada nem em parte alguma" (Heidegger, 1927/2012, p. 523). Sendo um estado de ânimo não relativo a entes específicos, a angústia faz o Dasein oscilar do mundo para o si mesmo ou da impropriedade para a (possibilidade da) propriedade:

A angústia retira, assim, do Dasein a possibilidade de (...) entender-se a partir do "mundo" (...) A angústia isola o Dasein em seu ser-no-mundo mais próprio (...) a angústia manifesta no Dasein o ser para o poder-ser mais próprio, isto é, o ser livre para a liberdade do-a-si mesmo se-escolher e se-possuir" (Heidegger, 1927/2012, p. 525-527).

Em estado de angústia, o Dasein não deixa de ser-no-mundo, ele encontra a si mesmo como ser-no-mundo. A familiaridade tranquila do cotidiano, que Heidegger apresenta como ser em-casa, absorve a ponto de impedir, diga-se assim, que o Dasein veja a casa. Na angústia, o que é familiar se torna estranho. Heidegger observa que a angústia isola o Dasein; ele pode, agora, distanciado do a-gente, ver-se como ser-no-mundo, ver a si como habitando a casa. O Dasein pode, assim, apropriar-se de si, como aquele que é-no-mundo: "A existência própria não é, ao contrário, nada que flutue por sobre a cotidianidade (...) é somente um apreender modificado dessa cotidianidade" (Heidegger, 1927/2012, p. 503). Ressalte-se: a apropriação de si é uma possibilidade do Dasein, não é mandatória.

 

Angústia, Propriedade e Autoconhecimento

O que se tem até aqui: Heidegger apresenta o modo de ser humano, o Dasein, a partir da cotidianidade mediana. Sua constituição fundamental é ser-no-mundo. Sendo-no-mundo, o Dasein, "de início e na maior parte das vezes", existe de acordo com entendimentos impessoais, como a-gente existe. No cotidiano, o ser humano é distanciado de si mesmo, absorvido pelo mundo. Heidegger, porém, alerta que esse modo de existir - não apropriado de si - não é a totalidade do ser do Dasein. É preciso mostrar como o ser humano se apropria de si. Para encontrar a si, o Dasein deve romper com a-gente, retirar-se dos entendimentos cotidianos, a fim de ser-próprio. Conforme Heidegger, é a angústia que conduz o Dasein para diante de si mesmo, pois ela é um estado de ânimo que o isola do a-gente e das ocupações; permite, portanto, que o si mesmo apareça, pois as relações no-mundo, que o encobrem, se tornam insignificantes. A apropriação de si, então, não é um esforço racional, é uma possibilidade que se abre na emergência de um humor.

As observações a respeito da totalidade do ser do Dasein, como cotidiana impropriedade e angustiada propriedade somente podem ser feitas, porque a angústia assaltou o próprio Heidegger. O filósofo descreve o Dasein que ele mesmo é, ainda que, é sabido, Ser e Tempo não seja uma obra voltada para um relato pessoal. Por outro lado, a apresentação do ente que nós mesmos somos diz respeito a como todos nós somos. Sem a ruptura angustiada com o a-gente, Heidegger, ele mesmo, permaneceria alheio ao seu próprio ser e não poderia escrever Ser e Tempo.

A Analítica do Dasein está ancorada no modo de ser que Heidegger entende como sendo seu. Ser e Tempo é a elaboração em texto de uma possibilidade pessoal do Dasein, ou seja, a obra é a demonstração da apropriação de si mesmo realizada pelo próprio Heidegger, como Dasein. Algumas afirmações de Heidegger (1927/2012) que sustentam esse ponto de vista são as seguintes:

É também inerente a essa constituição-de-ser do Dasein que, em seu ser, o Dasein tenha uma relação-de-ser com esse ser (...) É próprio desse ente, com seu ser e por seu ser, o estar aberto para ele mesmo (p. 59).

O ente que temos a tarefa de examinar, nós o somos cada vez nós mesmos. O ser desse ente é cada vez meu. No ser desse ente, ele tem de se haver ele mesmo com seu ser (...) cabe-lhe responder por seu próprio ser (p. 139).

O por em questão o Dasein, conforme o caráter do ser-cada-vez-meu desse ente, deve incluir sempre o pronome pessoal: "eu sou", "tu és" (p. 141).

Ser e Tempo é, então, uma obra pessoal, uma vez que ao Dasein - que é sempre meu, que tem uma relação com seu ser e que está em questão - se aplicam os pronomes pessoais. E essa afirmação não implica em individualismo, solipsismo, 'Eu' interiorizado, vivência única e outras compreensões similares. Não, porque o Dasein é-no-mundo-com-os-outros e qualquer possibilidade de Heidegger, comoDasein, é a possibilidade de qualquer outro, comoDasein.

As ressalvas que o filósofo faz ao que chama de "Dasein primitivo" (Heidegger, 1927/2012, p. 163) reforçam o entendimento de que o filósofo descreve seu próprio modo de ser. Heidegger percebe a dificuldade para abordar um modo de ser que está fora ou que é anterior à História que ele mesmo conhece. Isto é, o filósofo reconhece sua própria facticidade: não pode descrever - fenomenologicamente - um modo de ser pré-histórico.

Partindo-se dessas considerações, pode-se afirmar que a Analítica do Dasein é a elaboração de um autoconhecimento. A exposição do modo de ser do Dasein é, necessariamente, a exposição do modo de ser do autor da obra. Assim, Ser e Tempo é, também, o processo de autoconhecimento de Heidegger como Dasein4. O que é relativo ao ser do homem, diz respeito a qualquer homem. Convém repetir que não se trata de "voltar-se para dentro de si", uma vez que o (auto)conhecimento de si exige o conhecimento do ser-no-mundo. É a partir do esclarecimento do ser-no-mundo cotidiano que o Dasein pode encontrar a si mesmo.

Apropriar-se de si e conhecer a si mesmo como Dasein, é uma possibilidade do Dasein. Essa possibilidade de apropriação de si se apresenta quando a angústia se manifesta no ser humano. Nesse ponto, é preciso assinalar que os estados de ânimo são involuntários. Ninguém decide se angustiar. A angústia apresenta ao Dasein a possibilidade da apropriação de si, porém ainda é preciso escolher: "esse ente em seu ser pode se 'escolher'" (Heidegger, 1927/2012, p. 141). Diante da possibilidade de apropriação de si, aberta pela angústia, o Dasein pode fugir do estranhamento retomando o modo de existir do a-gente, da impropriedade, a qual encobre o conhecimento de sua totalidade ou pode escolher o ser próprio, cuja possibilidade a angústia lhe propiciou.

Isto posto, conclui-se que a apropriação de si mesmo não é, num primeiro momento, uma realização voluntária do Dasein, uma vez que é a involuntária angústia que abre essa possibilidade: " (...) o estado-de-ânimo é um modo-de-ser originário do Dasein, no qual este se abre para ele mesmo antes de todo conhecer e de todo querer (...)" (Heidegger, 1927/2012, p. 389). "O estado-de-ânimo ataca de repente" (Heidegger, 1927/2012, p. 391). Tomado pela angústia, Heidegger escolheu a possibilidade da propriedade. O filósofo chama de "modificação existencial" à transição que se dá do a-gente (impróprio) para o si mesmo (próprio). Essa modificação existencial é o que se propõe como autoconhecimento do Dasein, que está apresentado em Ser e Tempo.

Heidegger, um filósofo, em estado de angústia, desenvolveu (auto)conhecimento a respeito do modo de ser humano. Essa angústia não é exclusiva de Heidegger, ela é um possível estado de ânimo do Dasein. O fenômeno que Heidegger descreve como angústia é potencialmente mobilizador de sofrimento. Além da observação de que a angústia gera estranheza, perda da familiaridade com o cotidiano, o filósofo afirma que para o Dasein angustiado "(...) o ente do-interior-do-mundo em geral não é 'relevante' (...) O mundo tem o caráter da total não-significatividade" (Heidegger, 1927/2012, p. 521) e acrescenta: "O 'mundo' já nada pode oferecer, nem também o Dasein-com com os outros (...) a angústia isola o Dasein (...) (Heidegger, 1927/2012, p. 525).

Heidegger não se refere a sofrimento, porém sua caracterização da angústia é, como que, uma descrição de um estado de sofrimento: entender como irrelevante ou insignificante aquilo que se faz, aquilo com o qual se lida e aqueles com os quais se convive. Em outra publicação, Heidegger (1999) escreve: " a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade (...) nada há em que apoiar-se" (p. 57). O momento de angústia faz pensar em expressões populares como "fiquei sem chão", "o chão se abriu" e o verso "meu mundo caiu" da cantora/compositora Maysa Monjardim (Monjardim, 1958). O aparecimento da angústia implica, então, perda. A perda completa daquilo com o qual se está em relação.

O papel que a angústia desempenha na Analítica do Dasein mostra que somente sou 'eu mesmo', quando tudo aquilo que entendo por 'eu mesmo' desaparece, quer dizer: encontro a mim mesmo, quando a impropriedade cotidiana é rompida pela angústia. Se "o Dasein de pronto e no mais das vezes entende-se a partir de seu mundo" (Heidegger, 1927/2012, p. 347), a emergência da angústia implica a perda da autocompreensão. Ainda que se trate da autocompreensão imprópria, a possibilidade do sofrimento não é menor.

O que se conhece a respeito das atitudes e das consequências do estado de angústia é o trabalho filosófico que Heidegger elaborou: a estranheza diante do que era familiar e a possibilidade da modificação existencial para a apropriação de si, a qual está sendo compreendida como autoconhecimento do Dasein. Admitindo-se a potencial mobilização de sofrimento do estado de angústia, aproximam-se autoconhecimento e sofrimento. Considerando que o Dasein é sempre meu, o que acontece, se a angústia se apresenta, é relativo a quem "encara" essa possibilidade. Conforme quem tem suas atividades e suas relações pessoais rompidas pela angústia, o sofrimento poderá preponderar, desorganizando ou, até, inviabilizando a vida de alguém.

Heidegger não comenta a respeito das causas ou motivos da angústia, ou seja, Heidegger não discute por que a angústia acontece; observa que ela é rara. Também não discute a intensidade desse momento ou sua possível gravidade. A angústia é aquele humor que não é dirigido para 'objeto' algum, então, seguindo-se Heidegger, não se dirá que o Dasein está angustiado por isso ou por aquilo. Porém, é cabível imaginar que alguma circunstância provoque a angústia, isto é, algum evento do mundo afeta o Dasein, de modo que seus vínculos cotidianos se rompem, perdem importância, deixando-o isolado diante de nada. Ou, em outra formulação, o Dasein, por algum motivo, sofre uma mudança em seu estado de ânimo, angustiando-se, de tal maneira que seus engajamentos cotidianos estancam.

Indo adiante na possível circunstância em que a angústia se manifesta, convém retomar o que Heidegger escreve a respeito de estado de ânimo. Para Heidegger (1927/2012), o estado de ânimo não é expressão de uma dinâmica interna. O estado de ânimo é modo de relação do ser-no-mundo:

Não vem nem de 'fora', nem de 'dentro', mas, como modo de ser-no-mundo, vem à tona a partir do ser-no-mundo (...) O estado de ânimo já abriu cada vez o ser-no-mundo como um todo e torna possível pela primeira vez um direcionar-se para... (...) não é nenhum estado interno que de modo enigmático se exterioriza para ir colorir coisas e pessoas lá fora (p. 391).

Sendo assim, os estados de ânimo se referem ao modo como o "afetante pode vir-de-encontro" (Heidegger, 1927/2012, p. 393). Aquilo que afeta o Dasein, como ser-no-mundo, são ocupações e preocupações, estas são, então, afetantes de diversas maneiras, por exemplo, algo entusiasma ou algo decepciona. Um exemplo mais detalhado: a pandemia da Covid-19. Alguém vivia suas cotidianas ocupações e preocupações até que a ocorrência da pandemia, com todas as suas providências e consequências, afeta a pessoa, angustiando-a. A pandemia pode motivar angústia, porque a vida social teve de ser revista, atividades rotineiras foram suspensas ou transformadas, relações pessoais importantes e atividades profissionais foram prejudicadas ou perdidas. E assim o processo descrito por Heidegger é posto em marcha. A pandemia não é o objeto da angústia, ela afetou o Dasein a ponto de provocá-la.

O que se está propondo é como a angústia pode surgir. A angústia não suspende uma ocupação ou uma preocupação. Como estado de ânimo, ela pode aparecer relativamente a uma ocupação ou uma preocupação. Entretanto, sua consequência se estende a todas as ocupações e preocupações. Suspende tudo, deixa nada.

Por que uma alteração pontual repercute em tudo aquilo que vem ao encontro, de tal maneira que - em angústia - nada venha ao encontro? Porque os afazeres e os outros que afetam o Dasein não o fazem com a mesma relevância. Cada um, em seus "modos-de-ser cada vez possíveis" (Heidegger, 1927/2012, p. 141) que o caracteriza, direciona-se para aqueles e aquilo que são importantes para si. Quando algo pessoalmente relevante é afetado, de modo que se inviabiliza, que fique impossibilitado, ainda que brevemente, a relevância da perda amplia seu efeito e atinge todas as ocupações e preocupações.

As implicações da angústia aproximam estar diante de si mesmo e estranhamento: a angústia isola e conduz o Dasein para "diante de si mesmo (...) Na angústia, ele sente-se estranho" (Heidegger, 1927/2012, p. 527). Estranhar a si mesmo compõe o fenômeno da modificação descrito por Heidegger. O Dasein somente encontra a si quando o cotidiano é rompido, de modo que os "apoios" que sustentam a compreensão de quem sou eu desaparecem. O si mesmo que se mostra é, então, um desconhecido. Se o Dasein não se desconhecer, se não romper as identificações impróprias, a modificação existencial não acontece.

 

Mudança Pessoal

A modificação existencial apresentada em Ser e Tempo pode ser compreendida como a elaboração estrutural de um processo de mudança pessoal: vive-se o cotidiano em suas ocupações e preocupações quando, num dado momento, um estado de ânimo específico se manifesta, tornando irrelevantes as ocupações e preocupações. Sem as relações cotidianas, fica-se diante de si mesmo, como quem não mais entende a si. Tem-se, então, a possibilidade de manter-se aberto ao que esse momento revela: que sua história de vida é sua responsabilidade ou sua culpa. Que seus direcionamentos são sempre seus, ainda que se espelhe no a-gente. Que o modo como sua vida está organizada é uma possibilidade entre outras que foram descartadas.

Acrescentando as ideias desenvolvidas até aqui, tem-se que algo afeta angustiando, de modo que os laços cotidianos se desfazem, fica-se diante de si mesmo em estranhamento (e possível sofrimento), abre-se a possibilidade da apropriação de si, que é um autoconhecimento relativo a quem é assim afetado. Este autoconhecimento está unido à uma mudança pessoal. Qual mudança pessoal é apresentada em Ser e Tempo? Heidegger compreende seu próprio ser como Dasein. Ou: o ente que nós mesmos somos (na pessoa de Heidegger) realiza uma possibilidade sua, se compreende como Dasein.

A expressão mudança pessoal é empregada, a fim de evitar uma 'psicologização' da modificação existencial apresentada por Heidegger. Isto é, a expressão do filósofo diz respeito à sua elaboração da transição da impropriedade para a propriedade, sem a qual a Analítica do Dasein não seria viável. Esta transição/modificação, por sua vez, se mostra como estrutura de uma mudança pessoal, possível para qualquer ser humano. Em se tratando de Heidegger, a mudança - que ele próprio descreve, conforme quem ele é - ocorreu em seu contexto profissional, seu trabalho filosófico: Heidegger compreendeu o ser do homem e, portanto, seu próprio ser, como Dasein.

Não há aqui um conjunto articulado de fenômenos que caracteriza a situação de alguém que poderia procurar psicoterapia? Alguém que, ao ser impactado/afetado por algo, não mais reconhece a relevância de seus engajamentos cotidianos, abandone-os, perca o que entendia ser o "rumo da vida"? Alguém que assim se encontre poderá, além de estar sofrendo, querer entender o que lhe aconteceu, poderá querer retomar os direcionamentos que perdeu, poderá querer repensar a vida que vinha vivendo e poderá recorrer a um psicoterapeuta, a fim de construir as respostas que procura.

Mais do que oferecer uma descrição das características existenciais do ser humano, Heidegger apresenta - e simultaneamente exemplifica - a estrutura da mudança que pode ocorrer na vida de alguém. Mudar, pensando-se a partir da Analítica, abrange: ser impactado por algo que altera o estado de ânimo, perder os elos cotidianos, ficar diante de si mesmo como quem encontra um desconhecido, escolher manter-se aberto às possibilidades de autoconhecimento que essa situação apresenta. Entende-se esse manter-se aberto como a manifestação do que Heidegger chama de "querer-ter-consciência"5. Querendo-ter-consciência "o Dasein deixa que o si-mesmo mais-próprio atue nele (...) só assim ele pode vir a ser responsável" (Heidegger, 1927/2012, p. 789). Responsável, ou seja, dar resposta à possibilidade de apropriar-se de si. O desdobramento dessa resposta, com todas as suas possíveis implicações afetivas, ocupacionais e relacionais pode ocorrer ao longo de uma psicoterapia.

A reflexão desenvolvida até aqui tem um ponto fundamental, assim reconhecido pelo próprio Heidegger: a angústia. Sem ela, não ocorre a ruptura com as imersões cotidianas e sem esta não se dá a possibilidade de apropriação de si. Assim, também a modificação existencial não aconteceria. Na seguinte passagem, Heidegger (1927/2012) afirma a relevância da angústia e menciona sua frequência: "A raridade factual do fenômeno da angústia não pode, no entanto, retirar-lhe a aptidão para assumir uma função metódica fundamental na analítica existenciária" (p. 531).

A angústia pouco acontece; essa é a informação que se tem, quanto à frequência do fenômeno. Contudo, como possibilidade, alguém pode angustiar-se algumas vezes ou várias vezes. O Dasein, apropriado de si, passou por um momento de angústia. E se viesse, novamente, a sofrer o impacto da angústia? Heidegger não desenvolve esse tema em Ser e Tempo. Cabe pensar a respeito dessa possibilidade. A modificação existencial já foi realizada, portanto sua função metódica não se repete. Uma vez apropriado de si, o Dasein não pode retornar à impropriedade para, então, novamente, angustiar-se e reapropriar-se de si, como se já não o tivesse feito. Se assim fosse, até que ponto haveria modificação existencial? Como defender seu papel metódico fundamental, se se tratasse de um fenômeno reversível, que se desfaz e se refaz?

Conforme citou-se acima, para Heidegger a apropriação de si é fruto de uma escolha; pode-se pensar, então, que feita a escolha, o Dasein não pode desfazer a escolha de si. Imagine-se: qual a viabilidade de que Heidegger, depois de haver escrito Ser e Tempo e se tornado um filósofo reconhecido, a partir da publicação da obra, e ter se tornado referência e, até, colaborador para o desenvolvimento da psicologia inspirada em sua Analítica6, viesse a desconhecer-se, desapropriar-se de si, como Dasein?

É verdade que o modo de ser do a-gente não desaparece, porém a adesão im-própria a este modo de ser não é mais possível. Como o a-gente não cessa sua influência, o ser humano poderá - propriamente - decidir acompanhá-lo, exercendo uma possibilidade sua, cujo oposto não lhe é desconhecido. Em outras palavras: o Dasein próprio conhece a propriedade e a impropriedade, como possibilidades suas, logo poderá aderir à impropriedade, ao a-gente, deliberadamente, conforme seja afetado pelas situações mundanas.

Este não é ponto de concordância simples, e a quem pensa a respeito compete argumentar levando em consideração que Ser e Tempo não apenas descreve a modificação existencial: a obra relata uma modificação existencial. Ao ser-si-mesmo próprio, portanto existencialmente modificado, Heidegger chama ser-resoluto; seu oposto é ser-irresoluto. O filósofo escreve que "O Dasein já é cada vez - e talvez volte a ser de novo - no ser-irresoluto" (Heidegger, 1927/2012, p. 817). A afirmação pressupõe que houve apropriação de si (resolução), para que seja possível voltar a ser-irresoluto, desapropriar-se de si. Também está presente o advérbio "talvez", o que significa concluir que o Dasein apropriado de si (resoluto) pode permanecer assim. Adiante, em Ser e Tempo, lê-se: " O não-ser-resoluto de a-gente permanece, contudo, dominante, somente já não pode se opor à existência resoluta (Heidegger, 1927/2012, p. 817). O filósofo não está afirmando que o a-gente volta a se impor sobre o Dasein resoluto ou próprio. Não fica excluída, portanto, a possibilidade da adesão voluntária ao a-gente.

A angústia, que permitiu ao Dasein apropriar-se de si e mudar pessoalmente, pode reaparecer, assim como qualquer estado de ânimo pode se repetir. No entanto, novos episódios de angústia não reabrem a apropriação do Dasein, não desempenham sua "função metódica fundamental", apontam, sim, para a diferença entre apropriar-se de si comoDasein e existir numa condição de bem-estar ou de estabilidade afetiva.

Propôs-se que a transição da impropriedade para a propriedade pode ocorrer em meio a sofrimento. A emergência da angústia não está exclusivamente amarrada à possibilidade da modificação existencial do Dasein. A instabilidade do ser-no-mundo deixa em aberto o modo como suas vicissitudes afetarão o ser do homem. A apropriação de si pode ser um evento situado num contexto pessoal mais amplo: se é entendida como uma mudança pessoal, dificuldades e instabilidade afetiva podem se prolongar indefinidamente - dependendo de quem está mudando e de qual mudança está se dando - deixando o Dasein vulnerável ao retorno da angústia.

Como o surgimento da angústia é raro, a apropriação de si, a mudança pessoal, em termos analítico-existenciais, é rara. Contudo, no cotidiano, mudar não se mostra como algo tão incomum, pelo contrário, o que faz pensar em outro tipo de mudança; uma mudança que não envolve apropriação de si, pois não há ruptura com os afazeres e encontros cotidianos. Seria, esta, uma mudança de afazeres e de encontros, uma troca - não uma perda - nas ocupações e preocupações. Nesta, não há presença de angústia; não se ficaria, portanto, diante de si mesmo, tendo em vista que a contínua presença dos entes cotidianos o manteriam encoberto.

Trata-se de uma mudança pessoal im-própria, cuja diferença para a mudança pessoal própria deve repercutir na atenção psicológica fenomenológico-existencial, levando em consideração a distinção entre perder o entendimento de si, desconhecer-se, devido à retração do mundo, e projetar-se em novas realizações (possibilidades) no-mundo, ou seja, a diferença entre ficar diante de nada e continuar compreendendo a si a partir do mundo. O estado de ânimo que propicia a mudança imprópria deve ser relativo a uma insatisfação ou frustração com as realizações cotidianas e a uma curiosidade para com novas possibilidades. Na curiosidade, o Dasein "busca a inquietação e a excitação do sempre novo e a mudança de o-que-vem-de-enconto" (Heidegger, 1927/2012, p. 485). Simplificando, para fins de argumento, a mudança própria exige um momento do tipo 'não há mais um rumo', ao passo que na mudança imprópria o momento é 'há um outro rumo, que é melhor do que este'.

Por outro lado, deve-se considerar que há uma maneira de se apropriar de si mesmo, mudar, sem a intervenção da angústia: estudar a obra Ser e Tempo; do contrário, por que Heidegger se dedicaria à sua elaboração e publicação?7 Poderia falar-se em aprendizagem a respeito de si mesmo - de meu próprio modo de ser - por intermédio do relato de quem realizou uma possibilidade que poucos realizam. Se o estudo da Analítica de Heidegger pode revelar o Dasein para si mesmo, então a relação atenta com o que um outro tem a dizer é uma possibilidade de apropriação de si, de mudança pessoal. É verdade que estudar Ser e Tempo não caracteriza um diálogo, uma relação direta com um outro, no entanto permite vislumbrar o potencial de um diálogo orientado pela Analítica, o qual pode acontecer numa psicoterapia fenomenológico-existencial.

É oportuno observar que a apropriação de si, realizada pela leitura do texto de Heidegger ou por um diálogo terapêutico orientado por seu pensamento, contrasta com a descrição que o filósofo faz da modificação existencial. O momento primeiro da modificação é a incidência da angústia. Este momento é marcado pelo silêncio. O nada que a angústia enseja, a ruptura com as dedicações rotineiras, inclui a suspensão do que Heidegger chama de falatório, isto é, a linguagem do cotidiano. O silêncio para o qual a angústia abre caminho, comunica a ruptura com o a-gente.

O falatório não se restringe ao que é falado: "o falatório não se limita à repetição oral, mas se alastra pelo escrito como 'escrevinhação'" (Heidegger, 1927/2012, p. 475). O escrito implica a leitura, logo ler e dialogar, a princípio, são constituintes da cotidianidade imprópria. Então, Ser e Tempo, como texto, é falatório (escrevinhação) que comunica o papel do silêncio angustiado na modificação existencial. Por consequência, deve-se concluir que o texto de Heidegger, como escrevinhação, estaria a serviço da impropriedade. Porém, tal conclusão parece bastante inadequada.

Mesmo escrevendo, Heidegger encontra um modo de romper com o falatório/escrevinhação ao apresentar uma linguagem inovadora; criando expressões e ressignificando palavras: "se aqui somos obrigados a introduzir expressões pesadonas e talvez nada bonitas, não é brincadeira minha nem preferência especial por uma terminologia própria, mas é a coerção dos próprios fenômenos..." (Heidegger, citado em Safranski, 2000, p. 195). Com certa frequência, não apenas seu pensamento, mas sua prosa é tema de discussão, como no caso de Letteri (2009): " Os escritos de Heidegger frequentemente geram desorientação que, por vezes, chega ao desespero" (p. xiii).

É possível, então, apropriar-se de si, mesmo que o falatório ou a escrevinhação não sejam rompidos pelo silenciamento, ocasionado pela angústia. O empenho de Heidegger para comunicar a apropriação do Dasein por si mesmo, mostra que a mediania do a-gente cotidiano não exaure as possibilidades da linguagem. Embora não caracterize o silenciamento do falatório, que o filósofo descreve como um constituinte do processo instaurado pela angústia, a resistência que o texto impõe ao modo de leitura cotidiano aparece como exemplo de uma maneira de comunicar, cujo estilo afeta certos leitores, instigando-os a enfrentar a dificuldade de compreensão e mostrando que, mesmo no falatório/escrevinhação, há brechas para comunicar a possibilidade da propriedade e da mudança pessoal.

Sendo assim, mantém-se de pé a possibilidade da modificação existencial/mudança pessoal levar a ou se desenrolar ao longo de um procedimento psicoterapêutico com orientação analítico-existencial. Aceitando-se os argumentos aventados em favor de uma linguagem diferenciada, o terapeuta, inspirado no exemplo linguístico de Heidegger em Ser e Tempo, poderá percorrer as brechas do falatório, a fim de que sua fala 'toque' o cliente (afete-o) de modo a desviá-lo da impropriedade, para que ele, a partir de si mesmo, conheça sua própria responsabilidade nos encaminhamentos de sua vida. Quando escreve a respeito do ser-com e da preocupação de um com o outro, Heidegger (1927/2012) considera que

há a possibilidade de uma preocupação-com (...) não para retirar-lhe a preocupação, mas para, ao contrário, restitui-la propriamente com tal. Essa preocupação-com que concerne em essência à preocupação que propriamente o é (...) ajuda o outro a obter transparência em sua preocupação e a se tornar livre para ela (p. 353).

Nesse ponto de Ser e Tempo (Capítulo 4, Parágrafo 26), o filósofo discute o a-gente e o ser-com cotidiano. Por conseguinte, a relação de um com o outro apresentada, não envolve angústia, nem apropriação de si, apesar de Heidegger utilizar o termo "propriamente", o que sugere a confirmação da possibilidade de que há um modo de relação um-com-o-outro que favorece a apropriação de si, sem o silenciamento angustiado. Essa relação pode se dar entre o psicoterapeuta e seu cliente.

 

Considerações Finais

Propôs-se que a transição da impropriedade para a propriedade é o desenrolar estrutural de um processo de mudança pessoal. Um processo que se inicia pela presença de um humor específico (angústia) que rompe os direcionamentos da rotina, de modo que o Dasein não mais se compreende de acordo com suas ocupações e preocupações. Isolado em si mesmo, diante de nada, o Dasein tem a possibilidade de escolher apropriar-se de si, levando adiante um autoconhecimento.

Como o Dasein é "cada-vez-meu" em seus "modos-de-ser cada vez possíveis para ele" (Heidegger, 1927/2012, p. 141), cabe a cada um a atitude para com essa situação. A obra filosófica Ser e Tempo permite que se compreenda, de um ponto de vista psicológico fenomenológico-existencial, a estrutura da mudança pessoal, a qual poderá ser realizada por alguém que venha a procurar atenção psicológica. Para isso, é importante ter claro que se trata de uma leitura psicológica de temas apresentados em Ser e Tempo. Uma leitura que encontra no texto de Heidegger a possibilidade de pensar problemas psicológicos, sem que isso implique confundir a proposta filosófica com a elaboração psicológica. Um modo de relacionar filosofia e psicologia que Heidegger (2001) apoiou.

Para o pensamento fenomenológico-existencial em psicologia, é importante atentar para a dificuldade do encontrar a si mesmo, uma vez que esse encontro é possibilitado por uma perda. A perda dos elos cotidianos que definem quem se entende que se é. Perdas estão, comumente, associadas a sofrimento. Como Heidegger destaca o caráter de possibilidade do ser do homem, será desse possível sofrimento que irão despontar as interrogações, que possibilitam autoconhecimento.

Nesse ponto, é preciso ter em conta a peculiaridade da relação entre autoconhecimento e mudança pessoal, do ponto de vista analítico-existencial: apropriar-se de si, modificar-se existencialmente, é realizar autoconhecimento. Como, no momento da angústia, é preciso escolher a si mesmo, uma vez feita a escolha não é mais possível desfazê-la. Isto é: uma vez apropriado de si, fruto de uma escolha, o Dasein não pode retornar à impropriedade. Logo, a realização de autoconhecimento (propriedade) já é a mudança pessoal (modificação existencial), porque o conhecimento de si não pode ser descartado: o si mesmo - próprio - não pode se desapropriar de si8. Por último, um esclarecimento: não se está afirmando que a impropriedade é um problema, nem que a ação terapêutica deva dar-lhe atenção; se está avançando na possibilidade de apropriação de si, sem manifestação da angústia e sem interrupção do falatório, cujo exemplo inicial, sempre como possibilidade, seria a leitura de Ser e Tempo e, antes disso, afirmou-se que as características do processo de modificação existencial, pelo qual Heidegger mesmo deve ter passado para escrever Ser e Tempo, podem ser concebidas como uma mudança pessoal, que poderia motivar sofrimento e procura por atenção psicológica.

 

Referências

Heidegger, M. (1999). O que é Metafísica. Coleção Os Pensadores (pp. 43-88). São Paulo: Editora Nova Cultural.         [ Links ]

Heidegger, M. (2001). Seminários de Zollikon. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Heidegger, M. (2012). Os problemas fundamentais da fenomenologia. Petrópolis: Vozes. (Originalmente publicado em 1975).         [ Links ]

Heidegger, M. (2012). Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, Campinas: UNICAMP. (Originalmente publicado em 1927).         [ Links ]

Letteri, M. (2009). Heidegger and the question of psychology. Amsterdam: Rodopi.         [ Links ]

Monjardim, M. (1958). Meu mundo caiu. Em Convite para ouvir Maysa Nº 2. RGE, São Paulo/SP.         [ Links ]

Safranski, R. (2000). Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial.         [ Links ]

Strijbos, D. & Jongepier, F. (2018). Self-Knowledge in Psychotherapy: Adopting a Dual Perspective on One's Own Mental States. Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 25(1),45-58. DOI: https://doi.org/10.1353/ppp.2018.0008        [ Links ]

 

 

Recebido em 01.12.2020
Primeira Decisão Editorial em 22.04.2021
Aceito em 08.09.2021

 

 

1 Neste artigo, as expressões 'ser humano' e 'ser do homem' serão utilizadas como sinônimas de Dasein. "O Dasein, isto é, o ser do homem (...)" (Heidegger, 1927/2012, p. 95).
2 O tradutor decidiu-se pela tradução literal do termo Dasein, ou seja, 'Ser-aí'.
3 Os termos Eigentlichkeit e Uneigentlichkeit, traduzidos como Propriedade e Impropriedade, são bastante conhecidos como Autenticidade e Inautenticidade, devido à influência da literatura publicada em Inglês, a qual traduz os termos originais de Heidegger como Authenticity e Inauthenticity.
4 Importante ter claro que conhecer a si mesmo como Dasein (nível ontológico-filosófico do conhecimento) é diferente de conhecer-se como Heidegger ou como uma pessoa específica (nível ôntico-empírico do conhecimento). O modo como, possivelmente, as características do Dasein se manifestam em cada indivíduo não é tema de Ser e Tempo. É tema de interesse da psicologia inspirada em Heidegger.
5 A expressão de Heidegger não tem qualquer relação com consciente e inconsciente psicanalíticos.
6 Heidegger colaborou com Medard Boss para o desenvolvimento da Daseinsanalyse. Esta colaboração aparece em Seminários de Zollikon (Heidegger, 2001).
7 A resposta poderia ser que Ser e Tempo foi publicado, para que Heidegger se qualificasse, a fim de obter uma promoção em sua carreira acadêmica, na Universidade de Marburg (Safranski, 2000). Esta "pressão suave" para que publicasse (Safranski, 2000) não o fez escolher o tema, nem escrever o livro de uma hora para outra. Heidegger já vinha desenvolvendo a obra há algum tempo, logo a ocasião de sua publicação não responde a respeito das motivações do filósofo para comunicar por escrito a maneira como o Dasein pode se apropriar e descrever seu próprio modo de ser.
8 Patologias degenerativas, que afetem a relação consigo mesmo, não fazem parte do fenômeno em questão, pois não envolvem escolha.

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