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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.1 São João del-Rei jun. 2015

 

ARTIGOS

 

A fonte que nunca seca: o trabalho cotidiano de mulheres com a água no Semiárido

 

The source that never dries: women's daily work with water in the Semiarid

 

La fuente que nunca se agota: el trabajo femenino con el agua en lo Semiárido

 

 

Maria Inácia D'Ávila NetoI; Gabriel de Sena JardimII

IProfessora de Pós-Graduação, Programa EICOS/UFRJ Cátedra UNESCO de Desenvolvimento Durável, UFRJ/EICOS Coordenadora do grupo de pesquisas Laboratório de Imagens (Diretório CNPq) Endereço: inadavila@gmail.com
IIDoutor em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, integrante do grupo de pesquisas Laboratório de Imagens Endereço: gabrielsenajardim@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho constitui uma reflexão sobre metodologias participativas aplicadas a famílias beneficiadas por projetos relativos a políticas públicas de desenvolvimento, em regiões onde há escassez de água. O estudo tem foco nas mulheres do interior da Paraíba, estado do Nordeste brasileiro, numa região do semiárido. A abordagem foi elaborada a partir dos questionamentos da metodologia participativa feminista, levando em consideração as questões de gênero na utilização da água, apoiando-se nos estudos culturais do cotidiano e na crítica que se funda na "colonialidade" da dimensão do desenvolvimento, que, muitas vezes, não contempla o trabalho feminino, mantidas as tarefas tradicionais, consideradas "naturais" para a mulher.

Palavras-chave: Gênero e Água; Participação e Desenvolvimento; Trabalho Feminino; Técnicas corporais; Políticas Públicas.


ABSTRACT

The present article constitutes in a contribution on participatory methodologies applied to families benefited by projects related to public policies on the development in regions where there is water scarcity. The study has focus on women from the interior of Paraíba state, in the Semi-arid region of the northeastern Brazil. The conceptual framework is based on feminist participatory methodology issues, considering gender aspects in water use, relying on the cultural studies of the daily life and on the criticism founded on the "coloniality" of the development dimension, which often do not include female labor, maintaining traditional tasks considered "natural" for women.

Keywords: Gender and Water; Participation and Development; Feminine Labor; Body Techniques; Public Policies.


RESUMEN

Este artículo presenta una reflexión sobre metodologías participativas aplicadas a las familias beneficiadas por proyectos relacionados con el desarrollo de políticas públicas en areas donde hay escasez de agua. El estudio se centra en las mujeres del interior del estado de Paraíba, en el nordeste del Brasil en la región semiárida. El enfoque fue desarrollado con base en la metodología participativa feminista, teniendo en cuenta las cuestiones de género en el uso del agua, basándose en los estudios de la vida cotidiana y en la crítica cultural que se funda en la "colonialidad" de la dimensión de desarrollo que a menudo no incluyen la mano de obra femenina, el mantenimiento de las tareas tradicionales consideradas "naturales" para las mujeres.

Palabras clave: Género y Agua; Participación y Desarrollo; Trabajo Femenino; Técnicas Corporales; Políticas Públicas.


 

 

Introdução a um velho desafio

A literatura sobre a ecologia política feminista e os relatórios das agências internacionais para o desenvolvimento não cessam de apontar que as mulheres são mais vulneráveis aos riscos ambientais do que os homens (Braidotti, Charkiewicz, Hausler & Wieringa, 1994; Buckingham-Hatfield, 2000; Marcondes, 2010; Nunan & Satterthwaite, 1999; Rocheleau, Thomas-Slayter & Wangari, 1996; Shiva, 1993).

O conceito de vulnerabilidade permite enfatizar que a pobreza está ligada a um contexto específico e a um ciclo de vida. É o resultado de diversos fatores relacionados entre si no indivíduo, na família e na comunidade. As mulheres são mais vulneráveis aos riscos ambientais do que os homens por duas razões. A primeira está relacionada às diferenças biológicas, incluindo o fato de terem filhos. A segunda está relacionada ao gênero, ou seja, ao seu papel social e econômico, conforme determinado pelo contexto social, econômico e político1 (Buckingham-Hatfield, 2000, p. 121).

A vulnerabilidade das mulheres resulta, ao mesmo tempo, não só de suas condições de pobreza, status econômico da família que constituem, como das próprias barreiras socioculturais que lhe são impostas pelos impedimentos à sua participação plena nas sociedades da qual fazem parte.

Uma parte da vulnerabilidade feminina é resultado de uma construção social, envolvendo obstáculos à plena participação das mulheres na sociedade. A maior exposição das mulheres e crianças aos riscos se explica principalmente pela sua maior pobreza [...]. Este último ponto é também explicado pelo fato de que muitas vezes elas têm menos acesso facilitado aos recursos disponibilizados em situações de emergência e reconstrução. Além disso, seu papel no interior da família limita severamente sua mobilidade. Se uma mulher deve cuidar da sua família (pais ou filhos) dificilmente ela pode migrar para prevenir um desastre (a seca, por exemplo)2 (Walter, 2003, s.n.).

Associando, por exemplo, a vulnerabilidade das mulheres à escassez de água, provocada por desastres ecológicos, mudanças climáticas, ou às próprias condições regionais sazonais, as agências internacionais têm se ocupado insistentemente da questão, visando integrar a dimensão de gênero às políticas hídricas para o desenvolvimento.3

Entretanto, as críticas a essa integração têm sido inúmeras, não pelo seu princípio, mas pela sua homogeneização instrumental, sem maiores avaliações e discussões. De um modo geral, encontramos uma "essencialização tecnológica" das mulheres, como apontam autores como Braidotti, Charkiewicz, Hausler & Wieringa (1994), referindo-se aos projetos de desenvolvimento:

[] a maioria das agências para o desenvolvimento introduziram avaliações de impactos ambientais e femininos separados, com parte dos seus procedimentos em projetos com pouco sucesso atualizável. Estas avaliações de impactos às vezes simplesmente cruzam procedimentos de planejamento e avaliação sem alterar significativamente a natureza particular dos projetos4 (p. 88).

Compreendemos que o uso das abordagens preconizadas não implica numa reformulação dos paradigmas do desenvolvimento social. O que vários referenciais feministas indicam, por exemplo, Braidotti (2000), Fraser (2001, 2007), Vargas (2003), é que essas abordagens não têm o poder de influenciar nem os processos econômicos globais nem as estruturas patriarcais e sua divisão sexual de trabalho. Nos processos participativos, as comunidades não podem ser consideradas blocos homogêneos. Entrelaçadas às relações de gênero existem as "dispersões de poder", já indicadas por Stuart Hall (2003), comentando Gramsci, que perpassam também os grupos desfavorecidos e que devem ser consideradas nas questões de raça, idade, status socioprofissionais e localização geográfica, por exemplo, (D'Ávila Neto, 2004, 2005). Hall (2003) observa que Gramsci se recusava inteiramente à ideia de um sujeito ideológico unificado e pré-determinado como "o proletariado com seus pensamentos revolucionários corretos" ou "os negros com sua consciência geral antirracista garantida a priori" (p. 324). Diríamos que as contradições são importantes para clarificar a consciência coletiva, pois o poder de dominação, observado na opressão de classes, por exemplo, não é necessariamente o mesmo da opressão de gênero, ou seja, o trabalhador oprimido pode perpetuar uma relação despótica e assimétrica no âmbito doméstico-familiar.

A crise no meio ambiente global, o crescimento da pobreza em áreas rurais e urbanas, e as continuidades nas relações desiguais de gênero indicam a necessidade de uma abordagem diferente na governança, nos usos e no gerenciamento dos recursos hídricos. A água utilizada na higienização da casa e nos afazeres domésticos - o que tende a ser uma responsabilidade das mulheres - deve ser incorporada dentro da avaliação dos valores econômicos dos usos da água. Frequentemente, as mulheres não têm direitos à terra e à água, por isso, os esforços para o desenvolvimento podem afetar negativamente sua subsistência - vemos surgir a feminização da pobreza. No Brasil, o 5º Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio indica que a porcentagem da população com acesso à água aumentou, passando de 70,1%, em 1990; para 85,5%, em 2012. Independentemente da desigualdade regional, que poderíamos observar analisando os dados, vemos que o acesso à água está também associado a discriminações de gênero e raça, importantes na configuração de um cenário cada vez mais hierarquizado (IPEA, 2014).

O projeto político feminista pretende que se renunciem aos hábitos do pensamento historicamente estabelecidos, que proporcionam a visão naturalizadora e essencialista da subjetividade humana, em particular das mulheres. A figuração da subjetividade humana defendida por Braidotti (2000) sugere que o corpo feminino deve ser compreendido como um ponto em superposição entre o físico, o simbólico e o sociológico a diferença sexual como "projeto político nômade" , como ela denomina, significando uma complexidade mutável, fluida e não rígida ou estática nessa definição. Importante notar a preocupação com a dimensão da materialização do reconhecimento, esboçada por Axel Honneth (2006), por meio do corpo e do espaço, para uma melhor compreensão da questão:

[...] Uma atenção particular à materialidade do reconhecimento é necessária se eu pretendo analisar a sociedade como uma organização de formas sociais de reconhecimento[...]. Eu creio que o reconhecimento é também uma materialidade, uma materialidade social coagulada, e que esse espaço material do reconhecimento é largamente ligado à corporeidade do ser humano e à corporeidade da interação social (p. 165).5

Como observar essa dimensão de corporeidade no cotidiano? Nossa proposta foi a de trabalhar com a observação e análise de técnicas corporais, compreendidas na "invenção do cotidiano" de mulheres, voltando nossa atenção para uma região do semiárido do nordeste brasileiro. No que se refere às técnicas, podemos entender que elas podem indicar aspectos sincrônicos e diacrônicos, ou seja, a materialização do tempo, sua história e sua dimensão espacial. O espaço do trabalho intra e extra doméstico contém "técnicas, não só de trabalho, mas autorizações para fazer isto ou aquilo, desta ou daquela forma, neste ou naquele ritmo, segundo esta ou outra sucessão" (Silva, 2012, p. 6). A reflexão sobre trabalho cotidiano, no qual o corpo é o principal instrumento técnico, permite observar os eixos das sucessões - diacronia e das coexistências sincronia. Como já indicara Milton Santos (2004), analisando a natureza do espaço:

[...] em cada lugar, os sistemas sucessivos do acontecer social distinguem períodos diferentes, permitindo falar de hoje e de ontem. Este é o eixo das sucessões. [...] Já no viver comum de cada instante, os eventos não são sucessivos, mas concomitantes. Temos aqui o eixo das coexistências" (p. 159).

Assim, cada lugar é marcado pela existência de técnicas, que dimensionam e materializam o tempo e indicam o modo como cada ator vivencia o tempo social.

O que se observa é que existe um hiato na utilização de metodologias capazes de identificar essas questões, embora a metodologia feminista venha tentando superar as dificuldades. Entrevistar mulheres e, ao mesmo tempo, observar sua linguagem corporal e gestual, em relação à utilização da água, permitiu-nos resgatar informações sobre suas técnicas corporais e sobre o tempo passado, que nelas se inscrevem. A esse respeito, David le Breton (1988), fiel à tradição de Marcel Mauss, afirma:

[...] a memória de uma coletividade não reside somente nos mitos e lendas, nos ritos e nos arquivos escritos, ela também se inscreve no efêmero do gesto, nas fibras das técnicas do corpo que desenvolvem esses homens e essas mulheres. [...] Hoje é ainda possível descobrir, por meio desta ação, a memória viva que permanece inscrita nos gestos de um ancião. A memória de uma sociedade é também aquela dos gestos. [] (p. 86)

O corpo é memória viva e é também uma linguagem. Trata-se, aqui, de uma perspectiva que enfatiza o contexto social e cultural. A hipótese, já anunciada anteriormente, supõe que os gestos devem ser compreendidos em função de um contexto. Birdwhistell (1970) insiste sobre esse problema em seu livro Kinesics and Context.

O aprendizado social das técnicas corporais obedece a uma razão prática coletiva adaptada à realidade individual; são faculdades que se repetem cotidianamente (MAUSS, 2003, p. 215). Michel de Certeau (1980/2002), por sua vez, auxilia na compreensão dos gestos que compõem as técnicas:

O gesto se decompõe numa sequência ordenada de ações elementares, coordenadas em sequência de duração variável segundo a intensidade do esforço exigido, organizada segundo um modelo aprendido de outra pessoa por imitação (alguém me mostrou como fazer), reconstituída de memória (eu a vi fazer assim), ou estabelecida por ensaios e erros a partir de ações vizinhas (acabei descobrindo como fazer). [...] o gesto é antes de tudo uma técnica do corpo; (Certeau, Girard & Mayol, 2000, p. 273).

A cultura ordinária é tomada por invenções técnicas e criativas, são diversas maneiras de fazer que configuram a teoria das práticas e estas revelam um encadeamento harmonioso de técnicas corporais. Os movimentos exercidos por mulheres no cumprimento de suas atividades cotidianas funcionam como táticas locais na luta pela sobrevivência e são também esquemas táticos de politização de práticas cotidianas femininas.

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada (Certeau, Giard & Mayol, 2000, p. 31).

 

Mulheres, desenvolvimento, participação: em busca de metodologias dos fazeres e saberes cotidianos

A questão da mulher está dentro desse contexto como um tema transversal a todas as disciplinas ou à própria compreensão cultural do mundo, ou seja, não pode ser tratada como uma temática dissociada de questões como raça, classe, status socioeconômico, etc.

Se estamos falando de pesquisa participativa com mulheres, ancorada numa metodologia de conscientização ou "emancipatória", ela deve ser um meio privilegiado para nos conduzir a uma resposta de como os estudos feministas podem contribuir para um melhor processo de desenvolvimento social. Em primeiro lugar, os estudos sobre as mulheres dos países menos desenvolvidos constituem uma fonte importante de reflexão e crítica sobre as condições às quais as mulheres são submetidas. Em segundo lugar, os estudos mostram as assimetrias sociais entre o Norte e o Sul, produzindo também uma crítica sobre a hegemonia do feminismo ocidental em relação às mulheres dos países em desenvolvimento e, sobretudo, em relação às latino-americanas. Como observa Vandana Shiva (1993): "A participação insuficiente das mulheres não é a causa do subdesenvolvimento crescente das mulheres, ela é a consequência de sua participação forçada e assimétrica em um processo onde elas pagaram o preço, mas não receberam os benefícios" (p. 41).

Quando falamos de pesquisa participativa não nos referimos apenas às orientações psicossociológicas; há também, atualmente, uma orientação antropológica influente que trabalha com histórias de vida, ou seja, como o grupo objeto de pesquisa construiu sua história e como elas são "traduzidas" pelos pesquisadores (Behar, 1985). Muitos pesquisadores, alinhados com a educação popular feminista, seguem a tradição inspirada por Paulo Freire, como é o exemplo de Maria Mies, socióloga e feminista ativista alemã. No artigo Ciência, Violência e Responsabilidade, reproduzido no livro Ecofeminismo, publicado em conjunto com Vandana Shiva (1993), ela aponta as linhas de força desse tipo de pesquisa que aqui resumimos: 1. Deve haver uma identificação parcial entre os objetos de pesquisa, não deve haver mais a pesquisa asséptica nem a pesquisa sem noção de valores; 2. Visão de baixo para cima e não somente de cima para baixo. A visão acadêmica deve levar em conta a realidade dos sujeitos e, sobretudo, como os sujeitos veem sua própria realidade; 3. Ela indica o fim do conhecimento puramente teórico no sentido contemplativo. Ela diz não a Max Weber separando a ciência e a política da práxis; 4. A pesquisa deve promover a conscientização da opressão, inspirada em Paulo Freire (educação popular); 5. A pesquisa deve ir além da apropriação da "história individual e social da mulher: as mulheres não podem se apropriar de sua história individual a menos que se apropriem de suas próprias experiências" (p. 55-61). Quando examinamos a questão das mulheres latino-americanas, observamos nos trabalhos sobre a autoridade patriarcal no Brasil que as mudanças não são sincrônicas, ao contrário, as mulheres latino-americanas se tornaram modernas sem abandonar a tradição.

Isso implica na necessidade de um aprofundamento sobre o cotidiano, ao modo como se dá a (re)invenção dos seus saberes, fazeres e artes, funcionando como táticas de resistência cultural e reconhecimento social, dentro de uma perspectiva psicossociológica, com base em estudos culturais e pós-coloniais.

Na reconfiguração do popular, proposta por esses estudos, nos quais temos A Invenção do Cotidiano, de Michel de Certeau (1980/2002, 2000), como uma das obras de referência, ressalta-se a importância das práticas populares, como nas propostas latino-americanas "mestiças" de Martín-Barbero (1990) ou "híbridas" de Néstor Canclini (2008), entre outros: "São essas 'esquecidas' formas de participação na vida cotidiana que contribuem tanto para preservar as identidades culturais como para adaptá-las às demandas modernas" (Escosteguy, 2010, p. 166).

Estamos aí observando que há uma convergência entre diversos autores que indicam a necessidade de se traduzir, por meio dos corpos e experiências, a enunciação dos grupos minoritários ou subalternos (Braidotti, 2000; Francis, 2002; D'Ávila Neto & Baptista, 2007). Não se trata de trocar enunciados verbais por gestuais, é mais do que isso. Trata-se de buscar novas formas de enunciados, mais fluidos, mais híbridos, mais próximos das utopias emancipatórias, conforme preconizou Boaventura Santos (2006) na metáfora do conceito de fronteira:

Usei o conceito de fronteira mais no sentido de extremidade (frontier) do que no sentido de zona de contacto (borderland), mas, em todo o caso, procurei com o conceito de fronteira significar a deslocação do discurso e das práticas do centro para as margens. Propus uma fenomenologia da marginalidade assente no uso seletivo e instrumental das tradições; na invenção de novas formas de sociabilidade [...] (p. 241).

Tais enunciados constituem a chamada epistemologia das fronteiras (D'Ávila & Cavas, 2014), que vem sendo traçada pelo pensamento pós-colonial latino-americano, por autores como Escobar & Harcourt (2005), Mignolo (2007), Grosfoguel & Mignolo (2008), Anzaldúa (1987) entre inúmeros outros, que buscam a "descolonização do feminismo" e das mulheres: "Uma das ilações é que as diferentes formas de democracia, os direitos civis e a emancipação das mulheres só podem surgir das respostas criativas de epistemologias locais subalternas" (Grosfoguel, 2006, p. 40). Busca-se aqui uma crítica epistêmica dessas questões, o que vamos encontrar na valorização dos "saberes locais", como uma importante formulação para a transformação social (Montero, 2006; Morin, 2004). Como expressa Gloria Anzaldúa (1987), "As identidades de fronteira não somente confrontam as tradições culturais mas a própria maneira em que se define 'a tradição'"6 (p. 81).

A proposta de Michel de Certeau (1980/2002) sobre suas "Artes de fazer", também na mesma direção crítica, analisando a "invenção do cotidiano", está apoiada na observação do que ele chamou as "invenções silenciosas" dos indígenas do "Novo Mundo", como comenta Armand Mattelart (2007): "[...] Face à coerção dos poderes para explicar as táticas da antidisciplina secretadas pelos fracos e dominados através da história" (p. 74). Certeau põe à prova essas táticas nas práticas cotidianas contemporâneas do "homem comum" em suas "artes de ler, falar, caminhar, habitar, cozinhar ou ver" (p. 75).

A observação, portanto, das diferentes técnicas corporais empregadas pelas mulheres em seu cotidiano de trabalho pode nos indicar os elementos de temporalidade na divisão sexual do trabalho, permitindo uma reflexão sobre a essencialização das tarefas e do trabalho feminino e as formas novas ou tradicionais de encarar esse trabalho. Entendemos aqui as técnicas empregadas como negociações contínuas das mulheres no seu espaço, revelando o panorama das táticas cotidianas também como expressão de resistências, como propõem Certeau, Giard & Mayol (2000).

 

Uma pesquisa no semiárido brasileiro: uma (re)aprendizagem sobre água e gênero

Descreveremos, sucintamente, os resultados de uma pesquisa apoiada numa metodologia participativa, sobre o cotidiano de mulheres, habitantes de zonas sofrendo com a escassez de água, com a intenção de pesquisar as relações delas com a água, mapeando as discussões em torno das tarefas diárias. Adotamos, nessa abordagem, um deslocamento do foco usual de perguntas sobre os projetos de desenvolvimento e a exploração de suas representações pelos beneficiários, que resultam em discursos, por vezes, abstratos e distantes das práticas, efetivamente exercidas, para refletir, com a participação delas, sobre as diferentes técnicas corporais que são experimentadas em seus cotidianos, artes ou maneiras de fazer (Certeau,1980/2002, 2000).

A coleta de dados sobre as relações cotidianas com a água partiu de um estudo piloto7 a partir de dois procedimentos para coleta de dados: entrevistas qualitativas conduzidas com o auxílio de roteiro semiestruturado e construção de um corpus de análise qualitativa, a partir da coleção de técnicas corporais observadas sobre a relação das mulheres com a água em seus cotidianos. O registro de ambos os procedimentos contou com o auxílio do registro audiovisual, possibilitando o retorno à discussão de testemunhos, narrativas orais/gestuais, além de movimentos do corpo.

A escolha das participantes obedeceu a critérios de disponibilidade e livre consentimento, sendo previamente consultadas pela equipe do Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas às Comunidades (PATAC), em parceria com o Coletivo Regional das Organizações da Agricultura Familiar do Cariri, Seridó e Curimataú Paraibano (COLETIVO), instituições recomendadas pela Associação do Semiárido da Paraíba. As participantes concordaram em ceder os direitos sobre seus depoimentos e imagens, compreendendo que o material integrava um estudo em curso sobre a relação das mulheres com a água em seus cotidianos. No total, onze mulheres participaram do estudo que buscou dar visibilidade à diversidade de técnicas corporais executadas como artes do fazer (Certeau, 1980/2002, 2000) no acesso, uso, controle e gerenciamento da água, examinando a participação das mulheres na implementação de tecnologias sociais dos programas "Um milhão de Cisternas" e "Uma Terra e Duas Águas". A escolha do campo considerou regiões prioritárias no processo de implementação de tecnologias sociais para o "desenvolvimento" comunitário, notadamente naquelas comunidades onde estivesse sendo implementado o "Programa Uma Terra e Duas Águas" (P1+2), cujo objetivo está voltado ao fornecimento de água para a produção de alimentos. O critério se justifica na medida em que consideramos que tais comunidades já tiveram o apoio do "Programa Um Milhão de Cisternas" (P1MC), sendo possível contrastar realidades anteriores às "novas tecnologias" sociais implementadas e, ao mesmo tempo, observar a participação das mulheres nos referidos programas, concluídos e em fase de desenvolvimento.

No Brasil, o problema da escassez de água é também recorrente no chamado "Polígono das Secas", hoje denominado "Semiárido brasileiro", lugar onde a água é considerada assunto estratégico para o desenvolvimento. Embora o Brasil seja considerado um país privilegiado no que diz respeito à quantidade de água doce, entre 12% e 16% do volume total de "recursos hídricos" do planeta Terra, sua distribuição é desigual e concentrada, ou seja, os volumes de água per capita variam bastante, considerando-se a sua distribuição, a densidade populacional e fatores socioeconômicos diversos (Clarke & King, 2005). A Articulação Semiárido Paraibano (ASA Paraíba) recomendou a zona rural do município de Soledade8 para a execução da pesquisa. Foram identificadas diferentes técnicas corporais nesse cotidiano, relacionadas com a água: 1. "Botar Água"; 2. "Tratar a Água"; 3. "Cozinhar"; 4. "Lavar as Louças"; 5. "Lavar as Roupas"; 6. "Limpar a Casa"; 7. "Água para a Higiene Pessoal"; 8. "Reutilizar Águas Servidas"; 9. "Regar as Plantas"; 10. "Dessedentar Animais".

Cada uma dessas técnicas foi explorada por meio de descrições das participantes e registros visuais, que nos permitiram retornar sobre as imagens delas próprias, ampliando a visão do próprio pesquisador, dentro de uma perspectiva crítica do fazer cotidiano. Devido aos limites do escopo deste trabalho, para exposição detalhada de cada uma das técnicas, limitamo-nos aqui a uma descrição geral mais conclusiva, apontando para as temporalidades da divisão de trabalho e das táticas empregadas nas estratégias cotidianas.

Pelo descritivo das entrevistas, podemos observar que as técnicas corporais identificadas são cíclicas e entrelaçadas: depois de "botar" (1) e "tratar" (2) a água, as mulheres devem "cozinhar" (3) para alimentar toda a família; elas limpam e organizam tudo, então elas (re)começam a (4) "lavar as louças", que pode ser concomitante com o "arrumar a casa" (6). O armazenamento de água também serve à "higiene pessoal" (7). Associada ao ato de lavar está "a lavagem de roupas" (5). Frequentemente, essas mulheres não têm torneira em casa, então elas utilizam duas bacias plásticas; em uma elas ensaboam, na outra elas enxáguam. Isso possibilita economizar água, "reutilizar águas servidas" (8), reduzindo o tempo gasto buscando água, em longas caminhadas, procurando por uma fonte. Em vez de jogá-la fora, elas a reutilizam "regando a plantação" (9) ou "dessedentando animais" (10).

O exercício cíclico revela também temporalidades simultâneas, como ocorre com a maior parte das tarefas: enquanto elas tomam conta da panela de pressão no fogão à lenha, elas estão também cuidando das crianças e lavando roupas. Quando elas terminam, mais uma vez é hora de reutilizar a água limpando suas casas. Frequentemente, elas também reutilizam a água para a descarga do banheiro, deixando a água para higiene pessoal dentro do banheiro para toda a família. As técnicas selecionadas são apenas uma parte de um todo, compreendendo-as como significantes para uma análise sobre a relação mulheres e água.

Para as entrevistadas, a tarefa mais importante é "botar água" em casa. Claro que isso marca o início do ciclo das técnicas. As participantes explicam que a água é a base material para tudo que elas precisam fazer em seus cotidianos. Isso significa que a água possibilita que ela comece a sua jornada. Antes do amanhecer, elas são as primeiras a levantar e caminhar em torno de 250 metros com um carrinho de mão e dois baldes até a cisterna comunitária. A rota, considerando o peso, é sempre longa. Primeiramente, é necessário coletar um pouco de água para beber e cozinhar, mas durante o dia é comum elas caminharem até diferentes fontes de água com diversas finalidades de uso.

Os baldes, as latas, carrinhos de mão, ancoretas, cordas, e até mesmo o uso de animais, são instrumentos secundários operados pelo corpo feminino em uma sucessão de movimentos e gestos entrelaçados, ações coordenadas que configuram a técnica de "botar água": suspender, caminhar, empurrar, puxar, encher, esvaziar, etc.

Aqui era um sufoco, um sofrimento triste. [...] quando não tinha essas cisterna, e nem tinha barreiro, era tudo numa seca danada [...]. A gente pegava água lá [em Paulina] num jumento eu saia daqui de madrugada com os menino [e uns] barril pra ir buscar água [...]. Quando chegava lá a cacimba tava seca, eu deixava os barris [...] pros morador encher pra eu ir buscar [...] não sei que hora, e a água não era boa, era muito barrenta, que era água de [...], de poço. Quando chegava aqui era quatro barrilzinho pra passar a semana. E eu acho que eu já tinha bem uns sete ou oito menino, e ali era pra tudo, ali a água de dar banho em um dava em tudinho. Porque tinha que ser assim.

O movimento realizado para "botar água" descreve uma trajetória circular entre os meios intra e extra domésticos. O exercício conveniente das técnicas registra configurações de espaço dentro e fora da casa.

O trabalho das mulheres do campo não é realizado apenas em casa e nos seus arredores, muitas vezes elas cruzam os limites de suas propriedades em busca de água e lenha. Ao chegarem em casa, exaustas, elas são ainda responsáveis pelo acondicionamento da água e pela manutenção dos reservatórios: na cozinha, a água tratada é conservada em potes de barro,9 reservada para beber e para o preparo dos alimentos; na despensa ou na área externa (por vezes, também na cozinha), a água imprópria para o consumo direto é guardada em um tambor, de serventia para a limpeza da casa, para lavar louças e roupas, dessedentar animais domésticos e regar plantas; no banheiro, também em um tambor, a água para higiene pessoal é facilitada para toda a família. A abrangência da técnica "botar água" atravessa limites físicos - a água coletada fora é armazenada dentro de casa - e sociais - a água não serve apenas às mulheres, ou ao seu trabalho, mas para toda a família.

A implementação de tecnologias sociais, a exemplo das cisternas, com captação de água das chuvas, propicia o acesso à água próximo à casa, atendendo a uma primeira necessidade - água para beber e cozinhar. As distâncias diminuem, o espaço/tempo sofre com pressão, e podemos observar aspectos da globalização trazidos pelos programas e projetos para o "desenvolvimento" comunitário. Acessórios como geladeiras e outros eletrodomésticos são introduzidos. O fogão à lenha, entretanto, não é dispensado.

O que as "novas" tecnologias não mudam é o trabalho da mulher; ao contrário, elas ganham uma nova responsabilidade: a limpeza e manutenção periódica das cisternas.

Aqui temos outro aspecto temporal: as técnicas corporais se perpetuam, têm durabilidade, porque permanece a divisão do trabalho, que faz com que as mulheres sejam as tradicionais responsáveis pela limpeza e manutenção. Se a cisterna diminuiu as distâncias a serem percorridas diariamente, não se questiona que o local de armazenar a água seja administrado pelas mulheres, especialmente no tocante à sua limpeza.

Tudo que a gente vai fazer de dona de casa carece d`água. Olhe! De manhã quando eu me levanto eu preciso da água. Me banhar, fazer minha necessidade, né?! Aí depois vem o café, aí depois vem as plantas que todo dia eu converso com essas plantinhas assim aguando. A força, até chegar o dia de, de muita água pra gente ter abundante, né?! Tem as plantinhas. Aí depois vem os animais, que tem que ter água pra galinha, tem que ter água pra o porco, que eu crio, né?! O gato, cachorro, tudo tem que ter água. [...] Tudo eu só posso trabalhar com água. Os serviços, o primeiro serviço que eu faço aqui. Pra vaca, tem que ter água. Às vezes, eu quero varrer isso aqui, mas eu quero dar uma 'aguadinha', que é muito seco, tem que ter água.

No cotidiano, há um contato acentuado das mulheres com a água, enquanto "os homens usam apenas para tomar banho e matar a sede". As mulheres, com todo o serviço doméstico a fazer cozinhar, lavar louças e roupas, passar pano, etc. - não contam com a ajuda dos companheiros: "os homens não ajudam porque não gostam de fazer o serviço de casa, só quer achar pronto pra comer..."

Algumas entrevistas foram seguidas de perto pelos maridos, em geral, preocupados em justificar a carga de trabalho das mulheres. Um deles chegou a responder pela mulher quando se indagou o que havia mudado após a chegada das cisternas: "O trabalho das mulheres..." Afirmação que gerou contestação: "É o trabalho da mulher [...] É... continua na mesma coisa. [...] É a mesma coisa até no dia que Deus quiser [...]".

A melhor explicação para a não participação dos homens no serviço da casa é sintetizada por uma delas: "O problema está na 'cabeça do homem'. [...] Tem homem que não [ajuda] e diz: 'isso é serviço de mulher, eu vou lá fazer isso?'. Mas não tem problema nenhum ele ajudar, né?!"

O tema gera, muitas vezes, discussões, já que as mulheres participam ativamente do trabalho no roçado e nos currais, mas poucos homens ajudam no trabalho doméstico familiar: "[...] o meu mesmo [referindo-se ao companheiro] não ajuda nem botar café da garrafa na xícara pra ele tomar. [...] A única coisa que ele me ajuda quando ele tá em casa é lavar os baldes de comer pra o chiqueiro dos porcos. [...] Tem muita obrigação que é da parte do homem e eu faço".

Mesmo considerando que as mulheres estão imbuídas do caráter de obrigatoriedade moral de suas tarefas, podemos observar interessantes perspectivas nessa discussão: "Tu vai me ajudar porque quer", diz o marido de uma delas, ouvindo como resposta: "Mas eu vou lhe ajudar porque eu tenho pena de você trabalhar só".

O acréscimo da ajuda em tarefas que seriam destinadas ao homem quase nunca é reconhecido. A antecipação de trabalhos da casa para que possam participar de reuniões comunitárias, previstas nos projetos, também não tem valorização especial. Deixar tudo pronto não é nenhum mérito, reclamam algumas, é visto como obrigação das mulheres. A participação das mulheres implica que elas tenham de acordar ainda mais cedo e, não raramente, dormir ainda mais tarde, assumindo compromissos na comunidade. Na associação, as reuniões têm papel consultivo e deliberativo na aplicação de programas para o desenvolvimento comunitário. Mas o que é o desenvolvimento? ''Desenvolvimento eu acho que é o sítio, né?! [...] Porque planta de tudo. [...] É crescem, a gente vê crescendo, aí depois colhe, depois come, né?!'', responde uma delas.

Durante a fase de construção das cisternas, muitas mulheres participam virando a massa ou carregando tijolos como serventes da obra; algumas são também "cisterneiras", passando por curso de capacitação e atuando como pedreiras. Muitas mulheres ajudam principalmente na cozinha, preparando as refeições para os operários e para toda a família.

Olhe quando começou essa cisterna, eu pensei que a coisa era fácil, mas que fácil que nada meu filho. Quando esses trabalhador começaram a chegar no primeiro dia, eu digo: "Ô xente vai terminar logo!". Meu filho: comecei a cozinhar o almoço... lá vem o lanche... lá vem a água carregando pros trabalhador [...] Traz uma aguinha aí, traz um cafezinho...". Aí eu deixava aquela obrigação pra ir atender aqueles meninos só pra não deixar eles, precisar de alguma coisa e não ter quem levar [...] Cuidava do almoço, primeiro o lanche das oito horas. Era cuscuz com ovos, com charque, café, leite, rapadura, bolacha, o que tinha ali eu enchia a mesa. Pra comer mesmo pra valer. Tudo bem... lá vinha o almoço [...] duas horas lá um cafezinho, só um cafezinho eles pediam, 3 horas a bolacha, o café, a rapadura e a água, isso era o rojão [...] Uma luta que foi grande, viu?!

A cozinha permite a observação das técnicas corporais associadas a ela que são bastante elucidativas para a compreensão do cotidiano doméstico. Certeau realizou uma pesquisa com Luce Giard (2000) sobre o cozinhar entre franceses e suas conclusões são pertinentes para entendermos as atividades e técnicas da cozinha em diferentes culturas. Eles indicam que o cozinhar falamos aqui do domínio doméstico é uma atividade feminina, enfatizando que a demanda corporal é constante:

Quer se efetue por meio de um instrumento (cortar a cebola com uma faquinha) ou simplesmente pela mão (fazer a massa do pão), exige toda uma mobilização do corpo, traduzida pelo movimento da mão, do braço, às vezes de todo o corpo que balança cadenciado pelo ritmo dos esforços sucessivos requeridos pela tarefa a executar (Certeau, Giard & Mayol, 2000, p. 272).

A temporalidade do cozinhar, entretanto, não está marcada somente pelos gestos do corpo que vão transformando os ingredientes em cozidos, guisados, assados, bolos de milho, doces de frutas. O trabalho para cozinhar é precedido de inúmeras atividades para que se produza o que comer. Como indica uma das entrevistadas que "sem água, nem se come, nem se cozinha", como primeiro passo, é preciso regar e tratar da horta e do roçado, garantir a água e o alimento para os animais na engorda para serem consumidos. O cozinhar envolve também tarefas posteriores como lavar a louça, organizar a cozinha.

O fogão a gás ainda não substituiu inteiramente o fogão à lenha, que é uma forma tradicional de cozinhar, embora algumas famílias possuam os dois tipos de fogão. Na maior parte das vezes, o fogão a gás é usado só para ferver a água do café, ou para esquentar alguma comida. O fogão à lenha exige, muitas vezes, que a mulher disponibilize seu tempo para abastecê-lo, na provisão da lenha.

A simultaneidade de tarefas é facilmente observada na cozinha, pois enquanto o feijão cozinha, elas estão lavando roupas e, por vezes, cuidando dos filhos. Diariamente, e mais de uma vez ao dia, as mulheres estão ocupadas no preparo da alimentação para a família. Mesmo nos fins de semana e feriados as mulheres trabalham, especialmente quando há visitas. A sazonalidade das estações, por sua vez, implica em regimes diferenciados de trabalho: no período das chuvas sempre há fartura, é quando os alimentos são colhidos no próprio roçado. Durante as secas, são as mulheres quem vão comprar os mantimentos na feira da cidade, o que exige decifrar etiquetas, comparar preço e qualidade, cabendo a elas organizar e acondicionar os alimentos na geladeira e na despensa.

Na cozinha, embora variem os modos de fazer, a responsabilidade é sempre das mulheres. Responsabilidade que pode ser melhor traduzida como "obrigação", palavra frequentemente enunciada pelas participantes.

Os eletrodomésticos trouxeram mudanças consideráveis. Os refrigeradores, por exemplo, auxiliam na conservação dos alimentos, por meio do congelamento e estocagem. No passado, a carne seca ao sol, ou salgada, estava entre os principais métodos de conservação, que ainda permanecem como tradição cultural em toda a região nordeste. As batedeiras e liquidificadores, embora ainda não façam parte dos utensílios de todas as participantes da pesquisa, agilizam o trabalho na cozinha. A relação instrumental é modificada, o que não muda é o primeiro instrumento necessário ao cumprimento das atividades cotidianas - o corpo feminino.

Certeau e Giard (2000) chamam a atenção para o abandono dos gestos tradicionais, substituídos por novos gestos, uma exigência da introdução de novos aparatos na cozinha:

Os gestos antigos não foram relegados simplesmente por causa da entrada dos aparelhos eletrodomésticos na cozinha, mas por causa da transformação de uma cultura material e da economia de subsistência que lhe é solidária. Quando a natureza das provisões muda, os gestos de preparação culinária fazem o mesmo: [...] Quando os gestos se apagam, as receitas que lhes estavam ligadas também desaparecem e em breve o que subsiste é apenas a lembrança interiorizada de sabores bem antigos [...] (p. 274).

No conjunto de nossas pesquisadas, entretanto, coexistem dois tipos de cultura material: a tradicional, com seus tachos, peneiras, coadores de pano, raladores rudimentares, o fogão a lenha, o pilão, o moedor manual; e a contemporânea, introduzida por eletrodomésticos como panela de pressão, geladeira. Máquinas de lavar roupa ou louça ainda não entraram ou entram devagar no universo de nossas pesquisadas. Em nenhum outro lugar se pode observar tantos gestos, ao mesmo tempo, característicos do tradicional e do contemporâneo como na cozinha.

Complementando esse conjunto interligado de atividades que giram em torno da água, temos ainda:

- O tratamento da água também associa técnicas tradicionais a fervura com técnicas mais recentes o cloro, bastante difundido no meio rural;

- A lavagem de roupas, embora facilitada pelas máquinas, ainda obedece ao sistema de colocar as roupas ao sol para tirar o encardido, antes de enxaguá-las definitivamente. A lavagem é feita com auxílio de bacias e escova. A lavagem de roupas tem também uma atividade que a prolonga: passar a roupa. Aqui os pesados ferros a carvão são substituídos pelos elétricos, mais leves, mas exigindo um ritmo gestual repetitivo e cuidadoso. As mulheres se incumbem de toda a roupa utilizada na casa, dos lençóis e toalhas até as roupas pessoais, dela e de toda a família. A água pode ser reaproveitada na limpeza da casa ou para a descarga do sanitário;

- A Água para a higiene pessoal é, muito frequentemente, disponibilizada pelas mulheres. As casas equipadas com bombas-d'água são raras. A tarefa consiste em "botar água" em tambores dentro dos banheiros, armazenando a água para a higiene pessoal de toda a família. Como a capacidade das caixas é reduzida para o consumo familiar, algumas vezes, as donas de casa preferem deixar a água das caixas para descarga dos sanitários reservada para as visitas, mesmo que isso acrescente um novo esforço manual para carregar e despejar água a cada uso dos vasos sanitários;

- A reutilização das águas servidas consiste em reservar a água administrada em uma determinada tarefa para a execução de outra atividade. A técnica é habitualmente empregada no espaço doméstico da casa e dos seus arredores, por isso, é predominantemente associada às mulheres. Quando está chovendo, calhas especialmente colocadas que vão dar em bacias ou pequenos reservatórios armazenam a água da chuva. No período das secas, muitas mulheres reutilizam as águas servidas para regar algumas plantas, com auxílio de baldes, latas, regadores; para a horta a água deve ser sempre limpa. O serviço pode começar de madrugada.

- E, por fim, "dessedentar animais", técnica que consiste em "botar água" em cochos para saciar a sede dos animais. Os carrinhos de mão, baldes e latas, são novamente instrumentos secundários utilizados para o transporte da água. No período de estiagens, quando os reservatórios e açudes secam, muitas mulheres levam o gado até o barreiro mais próximo. O trabalho cotidiano de matar a sede dos animais não reserva folgas; mesmo aos domingos, quando boa parte da família se desloca para a cidade, muitas mulheres precisam ficar em casa e se ocupar da ração e da água para os animais nos currais.

O que podemos observar é que, apesar dos esforços na integração de gênero nas políticas públicas para o desenvolvimento comunitário, como nos projetos examinados, as novas tecnologias sociais não significam qualquer mudança nas estruturas patriarcais e na divisão sexual do trabalho - as mulheres continuam responsáveis pelas mesmas tarefas anteriores às tecnologias sociais, acrescidas de outras que implicam na "participação comunitária" e na limpeza das cisternas.

 

Mulheres: as fontes que não se esgotam?

Associados à perpetuação de atividades tradicionalmente tidas como próprias das mulheres, os acréscimos que observamos nas tarefas cotidianas não deveriam ser ignorados. O tempo livre das mulheres é cada vez mais curto, ou inexistente, e isso é uma crítica constante na análise dos projetos de desenvolvimento, em muitas partes do mundo. A aplicação de metodologias participativas feministas - que se apoiam na corporeidade das tarefas atribuídas às mulheres - permite refletir sobre as invisibilidades sociais, implícitas na proposição que reforça a "naturalização" das mulheres e, consequentemente, das tarefas que lhes são atribuídas.

Talvez a maior dessas invisibilidades sociais se refira ao trabalho doméstico, discussão persistente nos movimentos feministas de diferentes tendências. De fato, o discurso da homogeneização em torno do trabalho das mulheres parece ter tido mais força, porque ele se funda sobre a "natureza" da mulher, ou seja, no que seria sua "essência", mesmo se admitirmos que se trata de uma "natureza" engenhosamente construída, privilegiando o papel de geradora e cuidadora para as mulheres.

Na obra A sociedade do risco, Ulrich Beck (1986/2001) chama a atenção para o fato de que a sociedade industrial trouxe a contra-modernidade no seio da própria modernidade, o que se reflete no trabalho atribuído às mulheres, invisível, mas indispensável à manutenção e ao funcionamento da sociedade industrial. Um fato como esse marca os limites entre o masculino e o feminino, dentro da família nuclear, a partir do momento em que o exercício da atividade profissional masculina se apoia diretamente sobre o trabalho doméstico feminino. Enquanto a produção segue as leis do mercado, nas quais as relações de trabalho são de natureza contratual, na esfera doméstica, as relações são chamadas por Beck de "comunitarismo coletivo e familiar do casal". Segundo ele, uma reivindicação por igualdade é impossível, a partir do momento em que as estruturas socioeconômicas dispõem de uma base desigual como condição sine qua non de sua existência (D'Ávila Neto &Nazareth, 2005).

Importante ressaltar que a conotação dada às atividades domésticas das mulheres, como naturais ou próprias da natureza feminina, não pode ser somente explicada pela sua descrição materializada. Quando os homens cozinham, que seja como lazer ou profissão, eles podem se tornar grandes chefes, sem que uma etiqueta de atividade feminina lhes seja dada. Quando as mulheres executam as mesmas tarefas, fora do contexto de uma atividade profissional, tendo por objetivo a subsistência do lar, o cuidar de crianças, ou de pessoas idosas, essas atividades têm uma característica peculiar "natural" para as mulheres. Não há qualquer prestígio associado à realização de tais tarefas, mas, ao contrário, o fato de constatar sua ausência ou sua má realização, torna-se uma "questão moral" de desaprovação social. Isso significa que as técnicas corporais podem delimitar a temporalidade, configurar os espaços, mas não podem ser analisadas dissociadas de seus atores sociais.

A mulher continua sendo considerada como alguém que deve ser a cuidadora e é essa característica que lhe confere o caráter "natural" de suas tarefas. Subverter essa ordem é ainda um longo caminho a ser percorrido.

 

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Recebido em: 30/06/2014
Reformulado em: 22/01/2015
Aprovado em: 23/03/2015

 

 

1 Tradução dos autores.
2 Tradução dos autores.
3 O Relatório "Gender and Water" - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - analisa a importância dessa integração. O documento destaca os processos e métodos participativos, reconhecendo as desigualdades e diferenças de gênero (PNUD, 2006).
4 Tradução dos autores.
5 Tradução dos autores.
6 Tradução dos autores.
7 O estudo piloto fazia parte de um amplo projeto denominado Mulheres em Movimento: Hibridismo e Identidade Diaspórica em Deslocamentos Femininos - Contribuição ao Estudo de Gênero, Migração e Pobreza realizado pela autora, com mulheres nordestinas, de 2008 a 2013, no Rio de Janeiro e interior do estado da Paraíba, tendo gerado diversos trabalhos, apresentados em congressos nacionais e internacionais e duas teses de doutorado, das quais faz parte a presente pesquisa (Jardim, 2014).
8 O município está localizado a 165km de distância da capital João Pessoa. Atualmente, a população do município, estimada em 13.739 habitantes, sendo 6.770 homens e 6.969 mulheres, ocupa área de 560 km, resultando em densidade populacional de 24,53 hab/km. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) é de 0,616, colocando Soledade em 42º lugar entre os 223 municípios do estado da Paraíba e em 3.771º lugar entre os 5.565 municípios brasileiros. Apesar de apresentar índice considerado médio, Soledade está entre os municípios com IDHM mais baixos (IBGE, 2010).
9 O pote de barro faz parte dos utensílios que compõem a cozinha das famílias de comunidades rurais do nordeste, próprio para armazenar a água e mantê-la fresca, pronta para o consumo direto.

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