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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei jan./abr. 2016

 

Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

 

Science in the feminine: of what is made our writing?

 

Ciencia en el femenino: ¿de lo que se hace nuestra escritura?

 

 

Marília SilveiraI; Josselem ContiII

IProfessora Substituta - Instituto de Psicologia - Departamento de Psicologia Geral e Experimental - UFRJ, Doutoranda em Psicologia - UFF Email: - mariliasilveira.rs@gmail.com
IIPsicóloga, graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense E-mail: - josselemconti@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir de nossas experiências de pesquisa e construção coletiva, narramos a colocação do problema do feminino na ciência, de modo a questionar que lugar é esse que desejamos afirmar. Ao mesmo tempo, deixamos os rastros das conexões que tecemos e nos fizeram pensar. Este artigo é registro desse processo de pesquisar, pensar e escrever e do modo como nos atravessam as questões do feminino e quais possibilidades se constituem para nós a partir dela. Afirmar uma ciência no feminino é um risco que vamos assumir neste artigo.

Palavras-chave: PesquisarCOM, feminino na ciência, metodologia de pesquisa, políticas de escrita.


ABSTRACT

From our research experiences and collective construction, we narrate the placement of female issue in science, to question what this place we want to speak about is. At the same time, we left traces of connections that we weaved and made ​​us think. This article is the record of this process of researching, thinking and writing, the record of how the female issues pass throughout us, and of what possibilities are constituted for us from it. Affirming a science in the female is a risk that we take in this article.

Keywords: Research WITH, feminine in science, research methodology, writing policies.


RESUMEN

Desde nuestras experiencias de investigación y construcción colectiva narramos el desarrollo del problema del femenino en la ciencia, para cuestionar que lugar deseamos afirmar desde ahí. Al mismo tiempo, dejamos las huellas de las conexiones que tejimos y nos ayudaron a pensar. Este artículo es un registro del proceso de investigar, pensar y escribir y de la manera como nos tocan las cuestiones del femenino y cuáles son las posibilidades que se construyen para nosotras a partir de ella. Decir que hay un femenino en la ciencia es un riesgo que asumimos en este artículo.

Palabras-clave: InvestigarCON, femenino en la ciencia, metodología de investigación, políticas de escrita


 

 

Introdução

É chegada a fatídica hora de sentar e escrever. Não sem antes dificultar a tarefa lendo (mais) um texto acadêmico que possa iluminar os caminhos nublados de nossa questão. A folha antes branca e vazia se enche de clichês e será preciso desmontá-los e rasgar a tela para que algum texto se torne possível. "Não se escreve com as próprias neuroses. Escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas" (Deleuze, 1997, p. 12). Ora, mas então com que espécie de matéria escreve o pesquisador sua pesquisa? Ah sim, ele escreve com a experiência. Aquela que Jorge Larrosa Bondía (2002) define como "o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca" (p. 21). É o que nos passa, nos toca, nos acontece. Em última instância é o que me passa, me toca e me acontece. Mas é o que nos passa e nos acontece quando nos colocamos em relação com o campo de pesquisa.

Então, voltamos ao ponto de partida: mas como é que se escreve? E ainda, como se escreve a ciência? Diz Vinciane Despret (2012) que a ciência moderna perdeu seu encanto ao separar a coisa estudada da narrativa que a compõe e a permitiu existir. Diz ainda que o trabalho de pesquisa da ciência contemporânea poderia ser o de reencantar o mundo, devolvendo-lhe as histórias que o fizeram. Teríamos assim de entender que, por exemplo, a ideia de uma ciência que evolui "deixando para trás aquilo de que não mais se ocupa" (Stengers, 1989, p. 428) é uma versão de como contar a história da ciência. Vinciane Despret e Isabelle Stengers (2011) vão se ocupar de contar outras versões de histórias de mulheres cientistas, essas mulheres que não foram reconhecidas no contar da história de glórias da ciência, glórias que terminam por ocultar também as controvérsias de sua constituição.

O modo de reencantar o mundo que temos trabalhado em nossas pesquisas (em 2015 que é quando escrevemos esse artigo, mas desde muito antes1) está intimamente ligado às narrativas. Essas que vamos escrevendo com o que nos passa, nos toca e nos acontece no campo de pesquisa. As narrativas são tratadas como parte do tecido da experiência, uma parte sem a qual a ciência que fazemos não seria possível e por isso tornam-se parte de uma política de pesquisa que desejamos afirmar neste artigo. Decidimos partilhar entre nós, as autoras, e com você, leitor (a), algumas narrativas que fizemos em nossas pesquisas. Para isso pensamos que era preciso lhes avisar de que somos feitas, cada uma e como nos encontramos. Essa breve história vai entrar no texto na primeira pessoa, marcando quem é cada uma e de que lugar falamos. Depois, essa marcação vai sendo diluída no texto, nesse nós que formamos também com o grupo de pesquisa ao qual pertencemos. Um nós que permite partilhar a autoria desse texto sem apagar completamente as singularidades de nossos trabalhos, um nós que permite o trabalho de pensamento a partir do que emerge em nossas pesquisas.

Eu, Marília Silveira, gaúcha, psicóloga, chegada ao Rio de Janeiro há um ano e meio e tendo levado cerca de um ano para constituir um corpo possível para essa aventura carioca, trago as marcas de um lugar, um sotaque e o hábito do chimarrão para compor com um grupo de pesquisa, uma cidade, novos amigos e novos trabalhos. Realizei parte de meu campo de pesquisa de doutorado no Rio Grande do Sul a partir da experiência de disseminação de uma ferramenta, o Guia da Gestão Autônoma da Medicação (Guia GAM2) e sua metodologia3na Política de Saúde Mental do Rio Grande do Sul. De minha experiência em uma pesquisa anterior, coletiva e multicêntrica4,cujo produto, o Guia GAM, ingressa na Política de Saúde Mental de um estado, trago o registro dos encontros com trabalhadores e usuários de saúde mental e atenção básica, em serviços públicos de saúde, bem como os desafios de colocar um elemento novo numa política pública de saúde.

Eu, Josselem Conti, senti no corpo a mudança de uma cidade do interior para a capital quando vim cursar Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Há oito anos no Rio de Janeiro e é esse o tempo em que me enveredo nas inquietações de uma pesquisa. Com a pesquisa Perceber Sem Ver5, orientada pela professora Márcia Moraes, experimentei no cotidiano com pessoas cegas e com baixa visão um modo de fazer pesquisa Com o outro e não sobre o outro. Na relação de estar com o outro experimentei também o fazer da clínica que se dá através da ação do acompanhar, o Acompanhamento Terapêutico. E, numa aposta em práticas e narrativas que permitem problematizar as únicas histórias sobre a cegueira e sobre a loucura, dei início ao mestrado, buscando disseminar, proliferar histórias que se enlaçam e que equivocam o sentido de única história6: produzir aberturas, frestas, naquilo que parece ser dado ou tomado como não problemático e, assim, povoar o mundo com outros pedaços de histórias, outras versões.

Foi no grupo PesquisarCom7, grupo de orientação na Universidade Federal Fluminense, que o nosso encontro aconteceu. Às quartas-feiras pela manhã nos reunimos para discutir um texto, tecer a ele as questões de nossas pesquisas e compartilhar as inquietações. Os temas das pesquisas que compõem o grupo são heterogêneos: saúde, educação, dança, corpo, cuidado, assistência, clínica, cidade, movimentos sociais, praças, o brincar, mediação escolar, mediação em museus. O que existe de comum entre nós é que "gastamos tempo"8 com a política de pesquisa. Cada uma de nós entrou para o mestrado ou doutorado movida por questões diferentes, buscamos o PesquisarCom como método e o que atravessa todos os nossos trabalhos tem relação com as políticas de pesquisas e a escrita. Tomamos o método como um modo de fazer política. Nossos encontros são ocasiões para pensar modos de estar com outros e exercitar certo modo de compor o mundo em que vivemos e de articular o "nós" que sustenta nossa política de pesquisa.

Desse modo, é importante partilhar a tática de escrita que fabricamos. Diante de experiências em campos diferentes, optamos por misturá-los ao texto, pois apostamos que as experiências podem se entrelaçar e construir uma escrita afeita às questões do cotidiano e que criam atravessamentos na prática de pesquisa. As articulações entre as experiências serão tecidas através de um nós feito a cada encontro. É o momento em que compartilhamos uma questão e compartilhamos sua afetação no campo; isso acontece não só com quem está no campo, mas também com quem escuta a narrativa. Essa é uma de nossas apostas, caro (a) leitor(a). As narrativas tecidas no texto apontam uma escolha pelo que é local e pelo que se aceita negociar para fazer novas composições.

 

Criar um problema com o feminino na ciência

Em nosso grupo de orientação temos partilhado uma inquietação quanto às narrativas. Como apresentar narrativas (nossas histórias na relação com nossos campos de investigação) como elementos que compõem a escrita de nossas teses e dissertações? Essa inquietação também se encontrou com o artigo de Isabelle Stengers (1989) sobre o feminino na ciência.

Stengers nos apresenta a ciência de Barbara McClintock, mulher, cientista, singular, e a intervenção que provoca nas ciências com o seu modo de produzir conhecimento. McClintock faz pesquisa com células de milho no campo da embriologia. Stengers (1989) aponta que seu modo de fazer pesquisa é com o milho e não sobre o milho. Num mundo em que fazer ciência era colocado como uma atividade masculina, em que pouco espaço e pouco reconhecimento era dado às mulheres, McClintock tentava ultrapassar a questão de gênero e queria ser reconhecida pelo seu valor como cientista.

Para nós e para Stengers, a questão de gênero não pode ser deixada de lado. Não se trata de fazer uma ciência feminina, não é apenas um adjetivo, mas como fazer ciência no feminino? Como queremos construir essa ciência? McClintock nos dá pistas valiosas a serem seguidas.

Uma ciência no feminino deixa o material (no caso o milho) falar, quer dizer, não coloca a pergunta de partida, mas deixa que o material traga os problemas. Isso indica uma disposição para entrar em relação com o milho. É aquilo que os epistemólogos não querem ouvir falar: não é o pesquisador que coloca o problema, mas sim o material ou o campo. Significa entender que o material ou campo tem uma história para contar e que é preciso aprender a decifrar. Ou ainda, dito de outro modo, que o campo cria o caso, nos interroga, nos oferta uma possibilidade para compor uma história desse encontro.

"Deixar falar o material" é uma pista. O material, no caso os grãos de milho, aparecem em sua singularidade. O aprendizado das boas questões vem de aprender a escutar essas singularidades.

O milho estudado por McClintock é o produto de histórias emaranhadas, a história de sua reprodução, a de seu desenvolvimento, a de seu impulso no campo onde se depara com o sol, o frio, os insetos predadores, etc... Os cientistas têm, a propósito do milho, não que acumular observações neutras, mas que aprender dele que questões indagar-lhe, pois o milho é, como todo ser histórico, um ser singular. (Stengers, 1989, p.429)

McClintock compreende o milho em sua diferença. Cada grão deve ser compreendido em sua singularidade e não como representante "do" milho. Só a partir daí que poderemos definir "princípios de narração" (mais uma pista), permitindo contar histórias também singulares dos grãos de milho.

Barbara McClintock [...] conhecia o milho como se conhece uma pessoa no mundo, e este conhecimento, em vez de abrir o milho a um saber anônimo, de torná-lo acessível a pesquisadores que, idealmente, poderiam ser considerados como intercambiáveis, acentuou sua singularidade: para compreender o fio do raciocínio de McClintock era preciso aceitar o esforço de se interessar pelo milho, de imergir na multidão de problemas que coloca o menor de seus grãos. (Stengers,1989).

O princípio de narração que McClintock nos engaja a pensar é um fio de narrativa que o pesquisador pode puxar. Podemos dizer que são muitos fios que compõem o campo. Sim, são muitos, mas onde queremos interferir? É a partir desta pergunta que puxamos um fio. Na verdade, um fio que se puxa do objeto, mas também, do pesquisador.

Em nossas pesquisas escrevemos diários de campo. São valiosos meios para compartilhar os encontros com a pesquisa;os enviamos por e-mail para o grupo, os lemos em voz alta durante os encontros de orientação. Ao longo das conversas, fomos entendendo que o diário de campo não é apenas uma descrição dos fatos ocorridos, ele inclui a nós, pesquisadoras, apontando o que nos afeta em cada encontro. Entendemos que, ao pesquisar, não ocupamos um lugar neutro e isento de afetações, não somos distantes observadoras. Afetamos e somos afetadas e isso inclui a escrita, tornando-a uma escrita encarnada, local e situada. Essa escrita revela posicionamentos, escolhas do que será escrito e do que não será, naquele momento. A escrita não se encerra na pesquisadora. Ela se faz e se refaz a cada encontro com um novo leitor, a cada leitura feita em grupo, a cada discussão. É uma escrita coletiva. Estar no campo implica estar em uma rede de trocas que coloca a pesquisadora em risco, a repensar suas práticas. São esses encontros que possibilitam o aparecimento de novas questões.

A escrita é uma maneira de experimentar uma prática desse feminino na ciência. Como nossa política de pesquisa, o feminino é o posicionamento que mencionamos acima, o modo como tratamos o que nos acontece em campo. Fazer aparecer as hesitações, as controvérsias, os momentos que poderíamos ter deixado de fora da escrita, mas decidimos incluir. Aqui, experimentamos a abertura de frestas (Conti, 2015) em nossos textos, frestas que nos colocam a pensar principalmente que mundos estamos compondo e queremos produzir com as nossas pesquisas. Em suma, em nossa escrita deixamos aparecer o que importa para essa composição de mundo que desejamos. É com trechos dessas narrativas do que emerge no campo que seguimos o texto, para deixar entrever no próprio texto o modo como viemos construindo esse modo de fazer e escrever ciência.

 

Hesitar com a escrita

Um dos primeiros a chegar naquele dia na Oficina de Experimentação Corporal foi um homem com idade em torno de 36 anos e com baixa visão. Lembrei-me que ele era o mesmo homem que eu vi logo cedo andando de um lado para o outro no corredor, com a cabeça baixa e os olhos colados em um caderno. Era o homem-e-seu-caderno, e dele não largava.

Nós nos apresentamos e logo ouvimos um pedido para que escrevêssemos em seu caderno. Ele pedia que escrevesse os horários e as atividades que realizava na reabilitação do Instituto Benjamin Constant (adiante IBC): "9h natação, 10h Oficina, 12h Almoço, não esquecer o cartão". Escrevi e pedi que ele tirasse o sapato para começarmos a oficina.

Na semana seguinte, ele entrou na sala e repetiu o pedido, e foi assim todas as vezes que chegava e também durante a oficina. Enquanto fazíamos uma atividade como encontrar os apoios do corpo, Riobaldo (assim o chamarei) se levantava e ia até a sua mochila encostada na parede num canto da sala. De lá tirava o seu caderno, que dava um giro de 360 graus diante de seus olhos colados nas folhas. Aproximava-se de mim e perguntava: Escreve pra mim? Eu muitas vezes escrevia; só que isso começou a me fazer pensar. Hesitamos com essa escrita. Será que devemos escrever sempre que ele pede? Para que escrever todos os dias a mesma coisa? Todas as folhas tinham as mesmas anotações só que escritas com letras diferentes. Levei essa questão para a reunião do grupo de pesquisa. Como incluir o caderno na Oficina? Retirar o caderno seria retirá-lo da Oficina. Como estar com Riobaldo e seu caderno? (Conti, 2015, p.59-61).

Hesitar é verbo. O dicionário (Ferreira, 2010) nos alerta que é "ficar em estado de irresolução, incerteza, perplexidade. Exprimir-se com dificuldade; gaguejar, titubear". Para nós é quando ficamos cara a cara com o não saber e é justamente esse momento que pode nos colocar a pensar com a diferença, pois é quando perdemos nossas referências, que podemos nos reinventar. Repensar o pensamento sobre nós, pesquisadores, e sobre eles, pesquisados. É nas hesitações que uma transformação pode acontecer e as questões da pesquisa serem refeitas, agora a partir e com a diferença.

Deixar falar o material, como Stengers (1989) nos engaja a pensar,é fazer perguntas que interessem ao outro. Dito de outro modo, o outro que interrogamos é um expert, nos interroga de volta e faz com que refaçamos todo o nosso percurso. Como articular o homem-e-o-seu-caderno e a Oficina de corpo? Em um primeiro momento era difícil perceber uma articulação possível entre Riobaldo e a Oficina, pois o mesmo parecia não prestar atenção nas atividades propostas. Ele se interessava mais em abrir a mochila e tirar o caderno lá de dentro. Seus olhos folheavam folha por folha e aquilo nos causava angústia por sentir que ele não participava da oficina.

O incômodo que aquele repetido pedido nos causava, a angústia em sentir que Riobaldo parecia não estar atento às propostas da oficina, a hesitação em escrever e, principalmente, o que escrever, nos fez levar essas questões para a reunião e nos colocarmos a pensar as afetações com aquele encontro. Qual era a história entre o homem e seu caderno? Como fazer com que ele participasse de um modo mais atento ao que propúnhamos? Quem escreveria em seu caderno?Começamos a negociar com ele o momento da escrita. Seria ao final da oficina e ele concordou, mas isso não o impedia de, durante as atividades, ir até a sua mochila e pegar o seu caderno e nos fazer o pedido: Escreve pra mim? Passamos a incluir outras narrativas em seu caderno, como por exemplo, como tinha sido a oficina, o que fizemos, que parte ele mais gostou. Em outro momento, Riobaldo passou a pedir a vez para falar na roda de participantes da oficina. Falava das atividades que fazia no IBC e, mais, nos contava que levara a vizinha, já idosa, à igreja, no final de semana, e que naquele dia havia nadado de costas na piscina.

É somente acompanhando as práticas que podemos ver as conexões entre os elementos que participam da cena. "A questão que interessa ao pesquisador passa a ser a de investigar as conexões, sempre parciais e locais, entre tais realidades e objetos: eles ora se coordenam, ora se chocam, ora um se sobrepõem um ao outro" (Moraes & Arendt, 2013).

As conexões se faziam também a partir da memória dos encontros, narrada no grupo de pesquisa. Era no olhar para o que fazíamos que também iam se constituindo as articulações que, às vezes, no campo, eram difíceis de perceber. O homem-e-seu-caderno pareciam não se articular com a oficina, como sentíamos a princípio, e foi narrando o que passava no campo, as sensações dessa ausência de conexão com a oficina, que foi possível entender: não era apenas uma questão de incluir o homem na oficina, mas o conjunto, o "homem-e-seu-caderno" precisavam entrar na oficina para que outras conexões pudessem se fazer visíveis.

Por meio do caderno de Riobaldo, conhecemos sua mãe, uma empregada doméstica que trabalhava todos os dias, e as anotações no caderno permitiam que ela acompanhasse o dia a dia do filho na reabilitação. Soubemos também que ele não sabe ler nem escrever. Ele sabe se escreveram em seu caderno pelo desenho da tinta da caneta na folha. Ele sabe o espaço que os dados que ele narra ocupam na folha.

Quando hesitamos no encontro com Riobaldo e ele nos coloca questões sobre o que estamos fazendo ali, o mundo se torna mais largo. Um mundo agora povoado pela sua mãe, pelas relações que ele vai construindo pelo seu caminho de casa até a Oficina, a relação com o caderno, a experimentação do seu corpo em um espaço afeito a afetações. Há um processo de feitura que se dá no encontro e faz existir um mundo de relações e afetos. As conexões possíveis ficam tanto mais visíveis quanto mais nos interessamos por Riobaldo e seu caderno. Ele nos põe a pensar: Que versões de corpo, de escrita, de deficiência Riobaldo faz existir?

É a partir da articulação e das conexões que nos afetamos por mais diferenças e criamos, ao mesmo tempo, um corpo-pesquisador. Um corpo sensível que registra as articulações e acolhe o processo de construção de mundos, que se interessa em seguir as controvérsias, os impasses, os pontos de bifurcação e de indecisão.

E, nas experimentações do corpo com a escrita, algo que não havíamos nos dado conta aconteceu. Fomos surpreendidas por Riobaldo. Na oficina em que experimentávamos variados modos de andar, ele fez uma descoberta: havia outro caderno ali além do dele. Nós não havíamos considerado isso. Era o caderno em que escrevíamos o diário de campo. E agora, como articular os dois cadernos? O caderno dele só poderia ser escrito no final da Oficina. E o nosso? Não fazemos pesquisa sem o nosso caderno. O caderno era um emaranhado de conexões. O nosso e também o dele. Começamos a pensar o que incluímos na escrita do nosso diário de campo, ou seja, da nossa pesquisa, ao mesmo tempo em que passamos a partilhar o que escrevíamos com Riobaldo e com os outros participantes. No caderno de Riobaldo, as letras se multiplicavam, não era mais apenas uma pessoa que escrevia para ele, outras mãos passaram a preencher as folhas, com cuidado e atenção. O momento de escrever em seu caderno se tornou um espaço potente em que ele nos dizia o que tinha feito no seu dia, o que tinha e o que não tinha gostado. E também era possível conversar com a sua mãe por intermédio do caderno.

Esse encontro coloca uma questão sobre a escrita na pesquisa: O que fazemos existir com a nossa escrita? A oficina se tornou mais heterogênea quando pudemos acolher o homem, o seu caderno e a nossa hesitação.

Entretanto esse não era o único tipo de problema que vivíamos no campo. Houve um momento em que percebemos ainda outro elemento. Era preciso ficar com os problemas que o campo nos trazia. A seguir, contamos outra história, de outro campo de pesquisa que nos ajuda a...

 

Ficar com o problema

Anelise estava sentada no meio do auditório, lotado. Era um fórum de trabalhadores de saúde mental. Apresentávamos ali o Guia da Gestão Autônoma da Medicação (Guia GAM) e sua metodologia, pela primeira vez, a um grande público. Quase quarenta minutos de um monólogo sobre a ferramenta, passo a passo e sua metodologia. Quando termina o monólogo ainda existem insistentes que querem falar (talvez nós mesmas tivéssemos desistido depois de tanto tempo!). Anelise é uma delas; ela se identificou com a GAM. Essa GAM que apresentamos, que fala sobre protagonismo, sobre autonomia, sobre direitos dos usuários. Essas palavras grandes e imponentes de significado duvidoso (viemos a descobrir depois!). Anelise diz: "Eu faço um trabalho parecido com a GAM lá com os meus pacientes. Eles tinham problemas, internavam muito porque não tomavam o remédio direitinho. Aí eu resolvi cuidar deles, botei todos num grupo e a gente conversa e eu ajudo eles a tomar o remédio, dou o remédio na boquinha deles na hora certa. Depois disso ninguém mais internou". A coordenadora de saúde da região nos olha apreensiva, é a primeira vez que nos vemos diante daquela situação e percebemos que era preciso acolher o que havíamos escutado, mas não sabíamos bem como. E assim segue-se o diálogo "Que bacana que você faz um grupo, e entendemos que às vezes em algumas situações é preciso um tanto de tutela no cuidado, mas o que estamos querendo colocar com a GAM é como ajudar essas pessoas que hoje precisam que tu dês o remédio na boca deles e, quem sabe?, adiante eles mesmos possam tomar não é?". E ela insiste: "Mas eu vou pegar o Guia GAM eu gostei dele, eu vi essas perguntas aqui eu vou fazer essas perguntas pra eles".

Talvez os trabalhadores tenham percebido isso que era evidente: a nossa dificuldade de lidar e construir junto com as práticas que não condiziam com a que estávamos ali propondo. O impasse número um era esse: vínhamos de uma experiência de pesquisa na qual nós acompanhamos usuários conduzindo grupos GAM, inventando projetos, pesquisando conosco. Uma experiência com usuários muito autônomos de saúde mental. Mas numa autonomia que havíamos construído juntos em cinco anos de pesquisa (Silveira (2013);Silveira, Palombini & Moraes (2014)). Começar a ofertar a ferramenta para quem nunca tinha ouvido falar da GAM era entrar em contato com essas práticas dos serviços de saúde que desconhecíamos e que pareciam tutelares, duras, prescritivas. O desafio era justamente esse: como fazer para não sermos tutelares, duras e prescritivas na hora de apresentar a GAM?

O trabalho na gestão era incessante e aquele estranhamento ali logo se desfez para outros vinte se atravessarem. A questão é que Anelise insiste e outra vez nos encontra meses depois numa oficina GAM durante um evento.

Eu comecei a fazer as perguntas do GAM pra eles! Eu peguei as perguntas do Guia e comecei a fazer para os pacientes. Alguns demoram para entender, outros não conseguem escrever. Aí eu chego do lado deles e pergunto no ouvido, eles me ditam a resposta e eu escrevo. Eles tão gostando porque eu faço esse grupo que dura a manhã toda e eles sempre perguntam quando vamos ler o livrinho. (Diário de campo, 2013).

Ainda outros meses e, numa roda de conversa sobre a GAM, em que participavam trabalhadores e usuários, nós reencontramos Anelise. Uma roda grande, reunindo vários municípios de uma mesma região carregada de afetos e histórias. Anelise também quer contar a sua.

Nesse dia Anelise aparece no encontro com os usuários participantes do grupo GAM. Diz que pegou o carro da prefeitura, o motorista ignorou a regra do município de que o carro só poderia levar servidores e trouxe os usuários para o encontro. Os usuários, super tímidos, não sabiam bem o que fazer naquela roda tão grande, tão cheia de gente desconhecida. Anelise estava ansiosa para contar sua experiência e começou a contá-la apresentando os usuários pelos seus diagnósticos e pelas suas histórias de internação. Os usuários ao lado em silêncio e eu me sentindo muito mal, vendo suas histórias expostas assim, sem nem lhes perguntarem se queriam falar. Tento interrompê-la e ofertar a palavra aos usuários, que apenas assentem que "sim, é como ela contou". Usuários de outros municípios contam outras histórias e diluem o meu mal estar (Diário de campo, 2013).

No quarto encontro, uma Mostra Regional de Saúde da Atenção Básica, reúne-se outra roda GAM. Lá está Anelise outra vez, ansiosa para apresentar seu trabalho.

Dessa vez ela está sozinha, lamenta não ter conseguido trazer os usuários. Trouxe um Power Point com toda a história do grupo, ilustrada por fotos dos usuários e dos trabalhos que fizeram, especialmente um painel com as caixas dos medicamentos e algumas informações. Anelise apresenta os resultados de seu trabalho, colhidos através de entrevistas com os outros profissionais da equipe e com as falas de alguns usuários. Apresenta sua pesquisa, como uma pesquisadora. Salta aos olhos os principais resultados apontados por ela como efeitos do grupo GAM: a maior adesão dos usuários ao medicamento e o fato de que, desde que iniciaram o grupo, esses usuários não tiveram mais internações (Diário de campo, 2014).

Anelise nos coloca de partida um problema. Aquilo que havíamos construído de uma expertise sobre o que era e como deveria ser um grupo GAM era colocado em xeque a cada novo encontro com pessoas que não conheciam a proposta. E ela insiste em nos reencontrar e fazer pensar mais uma vez em suas questões, a cada vez que apresenta o que vem realizando com a GAM. Quando narramos essas cenas pela primeira vez no grupo de orientação nas quartas-feiras, nos vimos criticando o trabalho de Anelise, numa reprodução quase explícita das reclamações que escutávamos os trabalhadores fazerem sobre os usuários (que não fazem as coisas como o combinado na consulta, que não tomam o remédio direito, que não comparecem aos grupos, que não se engajam no tratamento). Escrevemos com toques ácidos de sarcasmo sobre esses encontros e isso produziu em nossas primeiras leitoras (o grupo PesquisarCOM) um grande estranhamento. Elas perguntaram: o que vocês querem fazer aparecer com essa narrativa? Anelise havia trazido dois problemas, dos grandes: um era de como compor com suas práticas e aliá-las à GAM e a outra era como escrever sobre isso sem soterrar a experiência em nossos preconceitos. Queríamos que aparecessem na narrativa as pequenas variações no seu discurso, como ela vai aprendendo a ser afetada (Saada, 2005; Latour, 2008) e transformando sua prática a cada nova vez que reconta sua experiência. De alguém que dá o remédio na boca até uma pesquisadora que entrevista os colegas para saber que mudanças perceberam a partir do trabalho do grupo. Numa medida e num tempo muito diferente do que havíamos experimentado na pesquisa GAM (Silveira, 2013), ela havia passado pelas mesmas coisas que nós; havia aprendido a se afetar com as histórias dos usuários (ainda que precisasse contar por eles), havia viajado com eles, havia estudado com eles, trouxera outros profissionais para o engajamento no grupo, partilhara sua experiência. Havia se transformado naquele encontro com a ferramenta. Assim como nós havíamos sentido e registrado (Silveira, 2013).Era isso que precisava aparecer. A pergunta que levávamos no início do trabalho era: como cuidar de uma experiência quando ela se coloca em grande escala? Ela fora transformada em outras - "que engajamentos são possíveis com a GAM, a partir de práticas já existentes?"; "quais concepções são necessárias na feitura da GAM como ferramenta de uma política de saúde? - tomando a formulação de Donna Haraway (2014), em sua fala no Simpósio Os Mil Nomes de Gaia9,de que devemos ficar com o problema, levá-lo adiante para que se transforme, para que algum engajamento (por mais estranho que seja) se torne possível. As alianças, como diz Haraway (2014), podem ser as mais estranhas ou não pensadas, elas acontecem "dentro da barriga do monstro", inclusive dentro da política, o que pode torná-la uma prática hegemônica, prescritiva. Mas, ainda assim, dentro dela a agência dos atores é sempre inesperada, eles fazem a GAM fazer coisas que não havíamos pensado e nos obrigam a concessões que não acreditávamos ser interessantes, mas que precisam ser feitas para que o trabalho possa andar. Em suma, nesse processo se criam o que Despret (2012) chama de "versões", que são traduções-traições que os trabalhadores vão fazendo da GAM, assim como fizemos a nossa ao traduzir-trair o material original criado em Montréal no Canadá (Onocko-Campos et al., 2012).

Ficar com o problema não é estagnar a prática diante do que parece impossível, mas é esperar o tempo de ação dos atores, as alianças estranhas que podem fazer e os efeitos que de modo algum podemos controlar. Ficar com o problema é levá-lo adiante, andar com ele, para que se mova, se transforme, recoloque as nossas perguntas, nos recoloque em nossa posição no campo.

 

Criar caso - fazer histórias

Todas as quartas-feiras pela manhã nós nos reunimos para faire histoire. Esta é uma expressão de Despret e Stengers (2011) e é também o título do livro "As fazedoras de histórias". Esse título em francês é marcado por uma ambiguidade: poderia também ser traduzido por "as criadoras de caso" no português coloquial. Inspiradas nessa ambiguidade, seguimos criando caso e fazendo histórias,levando adiante a nossa política de fazer ciência no feminino. Foi nesse fazer histórias nas quartas-feiras que começamos a pensar no tema do feminino e a estudar os textos que citamos neste artigo. Despret e Stengers (2011) retomam o grito de Virgínia Woolf quando diz que as mulheres não deveriam aceitar de bom grado o convite dos homens cultos a integrarem a universidade. Porque sabia que não seria em pé de igualdade que isso ocorreria. Entretanto, Despret, Stengers e muitas de nós, hoje, estamos na universidade e pouco nos ocupamos de pensar se faz diferença ser mulher nas rodas acadêmicas, embora talvez todas nós tenhamos pelo menos uma história para contar sobre isso. É esse o convite que Despret e Stengers (2011) fazem a outras dez mulheres que escrevem no livro As Fazedoras de Histórias. Convite a que nós também nos sentimos convocadas a pensar, com o "pensar nós devemos", que retomamos também dos escritos de Virgínia Woolf. Será que ser mulher é igual a ser homem? E a que ser mulher nos engaja? Vamos também passar pela literatura, a ver se Clarice Lispector pode nos ajudar...

[...] faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos... (Lispector, 1998 p. 14)

Aprendemos de pequena a fazer de conta que ser mulher não tem diferença. Fazemos de conta que é igual a ser homem. Até que crescemos, então muda. Faz de conta que queremos ser pesquisadoras e que ser mulher não faz diferença Embora o corretor ortográfico marque um erro nessa última frase, para que mudemos "pesquisadoras" para "pesquisadores". Faz de conta que ontem brincávamos de carrinho e jogávamos bola, e era bom. Faz de conta que hoje escutamos as dores de outros. Faz de conta que inventamos essa realidade enquanto escrevemos. Faz de conta que nossa curiosidade nos faz pesquisar. Faz de conta que somos mulheres E cientistas.

Para tudo ficar igual, precisa começar diferente. E é nesse ponto que a língua pega, porque no português a voz do neutro é masculina. E nós não podemos escrever artigos científicos no feminino, sob o risco de ser mal interpretadas. Sob o risco de deixar de fora os homens cientistas que nos lerão. Mas os homens ao escreverem no neutro masculino fazem de conta que não excluem as mulheres, leitoras e cientistas.

O problema da língua é um nó. Desses de marinheiro que atam os pulsos das mulheres cientistas, como outrora atavam os pulsos das mulheres escritoras. Entretanto, quando nos reunimos nas quartas-feiras, para fazer histórias, quando hesitamos com nossa escrita, quando ficamos com o problema, quando deixamos o material falar, estamos também criando caso com a ciência dita neutra.

Colocar o problema da língua é considerá-lo um dos fios que compõe isso que vamos definir aqui como modos de narrar a ciência. Um fio de um grande emaranhado, levantado para ser visto. Podemos pensar a partir daí, da linguagem. Com quantos artigos indefinidos se produz um discurso de neutralidade? Quanto será que a linguagem influencia na questão do neutro na ciência? E ainda do neutro profundamente atrelado ao universal? Aqui contamos histórias tecidas no encontro, de duas pesquisadoras, de um grupo que sustenta o trabalho de fazerCOM o campo de pesquisa, que sustenta uma política de pesquisa, marcada pelo feminino.

Consideramos que vivemos nossas experiências de pesquisa no corpo, que somos afetadas pelo nosso campo de pesquisa, que o encontro e conexões entre nós, o grupo de pesquisa, o campo e as teorias que estudamos nos transformam. Com isso nos perguntamos: o quanto a linguagem científica nos ajuda fazer valer e fazer aparecer tudo que afeta nosso corpo quando pesquisamos? A validação da neutralidade encontra-se também na linguagem e, por consequência, um achado neutro facilmente se torna universal. Mas essa é a história que já conhecemos, que as grandes narrativas nos contam sobre a ciência e os homens cientistas. Nós aqui queremos falar de uma ciência feita no singular, marcada pelo feminino. Que tipo de marca seria essa?

O feminino que evocamos aqui não se refere ao gênero mulher, mas muito mais a um modo de estar no campo e se ocupar dele, desse modo que viemos contando em nossas experiências, de hesitar, de ficar com o problema, de deixar o campo trazer as questões. Isso não são apenas as pesquisadoras do gênero feminino que são capazes de fazer e pode não ser feito por pesquisadoras do gênero feminino. O feminino a que nos referimos está próximo daquilo que Deleuze (em seu Abecedário10) chamou de "devir mulher", quando afirma que mesmo uma mulher precisa "devir mulher", considerando o devir como algo minoritário, não óbvio, não dado.

Deleuze e Guattari (1997) vão fazer uma crítica à ciência natural em cima da afirmação de Lévi-Strauss sobre o estruturalismo que organiza os seres numa ligação de origem e evolução que não opera com as variações. Então, seria o mesmo que estamos tentando resgatar aqui: a ciência que produzimos e que trabalha com as variações, as singularidades e o feminino é essa variação, essa singularidade. Porque o padrão já está dado, já é hegemônico, já é um padrão vazio como diz o próprio Deleuze. Para ele todos os devires são minoritários: "as mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir-mulher [...]. As crianças não são crianças por natureza. O homem macho adulto não tem devir porque ele é um padrão vazio".11Deleuze pondera que as pessoas se identificam com esse padrão vazio, talvez o consumam. Por isso ele recoloca o problema: "a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo". Aqui aparece o encontro entre o devir minoritário com o conhecimento situado de Donna Haraway (1995) quando ela diz que este tem o privilégio da perspectiva parcial, porque lá onde está, no contexto, no tempo, na experiência é onde o saber está encarnado e por isso não pode ser generalizado.

Quando Deleuze diz que a minoria é todo mundo, refere- se a cada um; é, pois, da singularidade que se trata. A singularidade é o que aparece quando narramos uma história de nosso campo de pesquisa, quando produzimos uma narrativa encarnada no campo. A narrativa permite que o (a) leitor (a) possa dizer "eu também", possa se reconhecer naquilo, mesmo que não tenha passado nem de perto por aquela situação. Mas se reconhece na estranheza, no gaguejar, no hesitar de nosso fazer. Há um trabalho a fazer que é independente do sexo ou do gênero do pesquisador. O que queremos colocar é uma aposta de um lugar ético comprometido com o que a pesquisa produz.

Do ponto de vista das feministas que adotaram a noção de gênero, é evidente que a ciência se apresenta como neutra. Pois o gênero não designa apenas uma construção sociohistórica, mas uma construção assimétrica. Há um gênero "não marcado", que se apresenta como "normal" e, por contraste, define-se o "gênero marcado". A diferença entre marcado e não marcado se encontra cada vez que uma categoria "invisível", o que ela designa, se torna sinônimo de um parâmetro, permitindo caracterizar o que "marca" aqueles ou aquelas que se afastam da norma. Assim a categoria "homem" é considerada como um universal, tornando invisível o fato dela não designar senão 45% da humanidade. Mas um parâmetro pode esconder outro. Foi o que descobriram as feministas quando "as mulheres de cor" interpelaram suas irmãs "brancas" e contestaram a maneira pela qual elas representavam nos dois sentidos o "gênero mulher". Essas tiveram que aceitar que "branco" era também uma categoria "não marcada" e que sua análise das relações de gênero as situava como "mulheres brancas". (Despret e Stengers, 2011, p. 20).

É preciso insistir que há sim uma marca, que ela faz parte de uma composição daquilo que a(o) pesquisadora(o) é, do que viveu, do que passou. A pesquisadora Elis Teles Caetano Silva (que compõe nosso grupo de pesquisa), ajuda a fomentar essa ideia quando diz que talvez o conceito que melhor exprima isso seja o de objetividade encarnada de Donna Haraway.

Assim, retomamos a questão: "Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?" Provocamos uma atenção aos modos como o conhecer é produzido, ou seja, conhecer implica uma artificialidade, na qual nós pesquisadores nos incluímos. Interferimos naquilo que pretendemos conhecer, nossos mundos forjam nossas lentes e os encontros as ampliam e as transformam. Há na questão de Haraway uma convocação para a responsabilidade de nossos percursos na ciência; deixemos claro que nossas posições não são oriundas de uma identidade com nossos objetos, mas de uma conexão parcial a eles; que evidenciemos a processualidade com a qual construímos conexões parciais e saberes localizados. (Silva, 2015, p. 17)

É preciso dizer que se marcamos um feminino na ciência e não uma ciência feminina é também para marcar uma posição política no meio acadêmico, nesse meio acadêmico que trata sem pestanejar os homens como rigorosos cientistas e nós, contadoras de histórias, como "pesquisadoras sensíveis". As histórias que escrevemos sustentam um mundo que queremos, com o qual nos responsabilizamos. Responsabilizar não no sentido de criar uma lista de obrigações, mas como afirma Haraway (2014): "Não é ser responsável, é mais como cultivar a capacidade de reagir" no tempo e no espaço. Não queremos apagar nossa sensibilidade, mas queremos que nossas narrativas tenham lugar em pé de igualdade na comunidade científica, considerando nossa aposta no fomento de um mundo mais denso, mais complexo e por que não, mais encantado?

 

Considerações finais temporárias

Este texto, assim, é também parte da pesquisa, um modo de pensar com a escrita, com a maneira de narrar essas hesitações, esse gaguejar, os fracassos, deixá-los à vista, nos posicionar com eles, dizer que não sabemos. Apostamos que esses sejam os elementos que trazem a questão do feminino na ciência.

Nem todos os pesquisadores e pesquisadoras, por mais cuidadosos e cuidadosas que sejam no campo, deixam aberto no texto final da pesquisa seus erros, seus tropeços e suas contradições. Isso é algo que inquieta a todas nós e nos faz sustentar uma aposta diferente na formulação da ciência. Mostrar do que somos feitas e em que contexto produzimos conhecimento falam de uma posição que é ética e política. Ética porque engloba uma série de procedimentos de cuidado, porque nos colocamos a fazerCOM o outro e não sobre ele, e política porque estamos sustentando e produzindo com essa posição certa visão de mundo.

As palavras agem, elas performam mundos. Quando deixamos no texto as hesitações de nosso pensamento, os mal-entendidos no campo, nós estamos performando um modo de fazer ciência que é contra-hegemônico porque mostra as falhas e não apenas as glórias de nossa pesquisa.

Nossa escrita e nossa pesquisa são feitas também desses mal-entendidos, de elementos que só vemos no compartilhar com o grupo de pesquisa, ou somente depois que os escrevemos uma primeira vez, como na história com Riobaldo e seu caderno e na história com Anelise. Nossa escrita e nossa pesquisa se fazem com os erros também, com os momentos de não saber, de não conseguir ficar com o problema. Nossa escrita e nossa pesquisa se fazem também com medos e angústias no campo e nos nossos corpos. Deixar essas marcas de como aprendemos a pesquisar a cada vez que pesquisamos, deixar nossos preconceitos e hesitações à mostra no texto e também o fato de como, às vezes, não percebemos questões óbvias no campo é marcar essa experiência no singular, é fazer história, criar caso com as glórias da ciência ou, na proposição de Despret (2012), isso é reencantar o mundo; trazer à tona diferentes versões que tornam o mundo mais denso e mais complexo. Tudo isso compõe o que queremos afirmar como parte importante de nossa política de pesquisa: o feminino na ciência.

 

Referências

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Recebido em 10/12/2015
Aprovado em 30/03/2016

 

 

1 Silveira& Ferreira (2013); Silveira (2013); Conti (2015); Conti, Moraes, Cavalcanti et al. (2014).
2 Guia da Gestão Autônoma da Medicação:http://www.fcm.unicamp.br/fcm/site/default/files/paganex/guia_gam_para_download_com_correcoes.pdf
3 Guia do Moderador: http://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guia_gam_moderador_-_versao_para_download_julho_2014.pdf
4 Onocko-Campos et al. (2012).
5 A pesquisa Perceber Sem Ver, orientada pela professora Marcia Moraes, oferece oficinas de experimentação corporal para pessoas cegas e com baixa visão, matriculadas no setor de reabilitação do Instituto Benjamin Constant (IBC).
6 Únicas histórias são histórias que perdem suas conexões, histórias desconectadas dos lugares onde foram feitas e que produzem os efeitos das definições, categorizam e se tornam universais. Diferente das histórias únicas que são histórias singulares, abertas a novas versões acerca do outro. Neste texto, seguimos a definição de histórias únicas, em detrimento das únicas histórias. Essa proposta é tecida na dissertação Margens entre pesquisar e acompanhar: o que fazemos existir com as histórias que contamos? (Conti, 2015).
7 Grupo PesquisarCom, parte integrante da pós graduação em Psicologia da UFF. Dele fazem parte mestrandas, doutorandas e pós-doutorandas. E as nomeamos: Marcia Moraes, Cristiane Bremenkamp, Marília Gurgel, Luiza Teles, Luciana Franco, Carolina Manso, Amanda Muniz, Raquel Siqueira, Cristiane Moreira, Talita Tibola, Maria Rita Campello Rodrigues, Maria de Fátima Queiroz, Eleonora Prestrelo, Marília Silveira, Elis Teles Caetano Silva, Alessandra Rotemberg, NiraKauffman, Gabrielle Chaves, Camila Alves, Alexandra Justino Simbine, Maria Aparecida dos Santos, Cristiane Knijnik.
8 Usando uma expressão de Cristiane Bremenkamp da Cruz (2014).
9 Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=1x0oxUHOlA8
10 Deleuze, G. Abecedário. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=yu55SONCA28&list=PL9410288DA0B684BA.
11 Deleuze. Ser de esquerda. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_Wer1VGBZi8.

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