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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei jul./set. 2021

 

Hanseníase e envelhecimento: representações sociais dos moradores de um hospital colônia

 

Hansen's Disease and Aging: Social Representations of the Residents of a Colony Hospital

 

Hanseníasis y envejecimiento: representaciones sociales de los habitantes de un hospital colonia

 

 

Ádilo Lages Vieira PassosI; Ludgleydson Fernandes de AraújoII; Raquel Pereira BeloIII

IMestre em Psicologia. Universidade Federal do Piauí. adilolp@hotmil.com
IIDoutor em Psicologia. Universidade Federal do Piauí. ludgleydson@yahoo.com
IIIDoutora em Psicologia Social Universidade Federal do Piauí. rbelo@ufpi.edu.br

 

 


RESUMO

Este estudo teve o objetivo de identificar e analisar as representações sociais dos moradores de um hospital colônia sobre a hanseníase, sobre o envelhecimento, bem como sobre a própria instituição. O estudo contou com a participação de 16 pessoas, com idade entre 48 e 85 anos (M = 67,0 anos; DP = 9,7). Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário sociodemográfico e o Teste de Associação Livre de Palavras. Os resultados indicaram que o estímulo hanseníase associou-se a elementos negativos que remetem à representação social da lepra. O estímulo envelhecimento ancorou-se em um esquema conceitual associado à fase da velhice e à figura do velho. Já o estímulo hospital colônia ancorou-se mais em componentes positivos, dentre os quais se destacam a comunidade e a família. Almeja-se que este estudo contribua para uma mudança nos elementos associados à representação da hanseníase e do envelhecimento.

Palavras chave: Representações sociais. Hanseníase. Envelhecimento. Hospital colônia.


ABSTRACT

This study aimed to identify and analyze the social representations of the residents of a colony hospital about the Hansen's disease, about aging, as well as about the institution itself. There was a participation of 16 people, aged between 48 and 85 years (M = 67.0 years, SD = 9.7). For a data collection, we used a sociodemographic questionnaire and the Free Word Association Test. The results indicated that the Hansen's disease stimulus is associated with negative elements that refer to the social representation of leprosy. The aging stimulus was anchored in a conceptual scheme associated with the old age phase and the figure of the old. On the other hand, the stimulus Colony Hospital was more anchored in positive components, among which, community and family stand out. It is hoped that this study will contribute to a change in the elements associated to the representation of Hansen's disease and aging.

Keywords: Social representations. Hansen's disease. Aging. Colony hospital.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo identificar y analizar las representaciones sociales de los habitantes de un hospital colonia sobre la hanseníasis, sobre el envejecimiento, así como sobre la propia institución. Se contó con una participación de 16 personas, con edad entre 48 a 85 años (M = 67,0 años, DP = 9,7). Para una recolección de datos, se utilizó un cuestionario sociodemográfico y la Prueba de Asociación Libre de Palabras. Los resultados indicaron que el estímulo hanseníasis se asociaba a elementos negativos que remiten a la representación social de la lepra. El estímulo envejecimiento se ancló en un esquema conceptual asociado a la fase de la vejez y la figura del viejo. El estímulo Hospital Colonia, se ancló más en componentes positivos, entre los cuales, comunidad y familia. Se espera que este estudio contribuya a un cambio en los elementos asociados a la representación de la lepra y del envejecimiento.

Palabras clave: Representaciones sociales. Hanseníasis. Envejecimiento. Hospital colonia.


 

 

Introdução

A hanseníase é considerada um grave problema de saúde pública no contexto brasileiro (Martins & Caponi, 2010; Silva et al., 2016), o que significa dizer que o país ainda não conseguiu atingir a meta da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2016), no que se refere ao registro de menos de um caso por 10.000 habitantes. Cabe ressaltar, também, que no cenário internacional, em 2015, o Brasil ocupava a segunda posição no número de novos casos de hanseníase - atrás apenas da Índia -, com registro de 26.395 casos, o que corresponde a 13% do total de novas notificações (World Health Organization [WHO], 2016).

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa, não hereditária, curável e controlável, causada pelo bacilo Mycobacterium leprae (Morano, Morano, Paredes, & Iribas, 2016). O tratamento da afecção segue um esquema-padrão proposto pela OMS, em 1982, e baseia-se na administração de três drogas: Rifampicina, Dapsona e Clofazimina (Ministério da Saúde, 2014). No entanto, essa realidade nem sempre foi assim, uma vez que durante grande parte da história da humanidade o tratamento do hanseniano foi baseado na exclusão e no isolamento (Leandro, 2013).

Símbolo marcante desse paradigma terapêutico é a existência dos antigos hospitais colônias, onde o isolamento dos hansenianos era praticado sob um discurso de tratamento, fato que acarretou o rompimento e/ou a fragilização dos laços familiares e comunitários dessas pessoas, sendo isso a principal razão de muitas delas ainda se encontrarem vivendo nessas instituições, mesmo após o diagnóstico da cura (Souza & Sena, 2014).

Desse modo, pode-se afirmar que a hanseníase é uma doença que apresenta sérios impactos físicos, psíquicos e sociais. Dentre as consequências físicas, destacam-se as lesões nos nervos periféricos, que podem acarretar o comprometimento dos troncos nervosos e ramos sensitivos, principais responsáveis por distúrbios sensório-motores e pelo surgimento de úlceras cutâneas (Araújo, Brito, Santana, Soares, & Soares, 2016).

Já em relação às repercussões psicossociais, pode-se destacar a vivência do preconceito e da discriminação, que, entre outras coisas, contribui para o retraimento social e para o comportamento sigiloso em relação à doença, fazendo com que, muitas vezes, nem mesmo os familiares e amigos sejam informados sobre o diagnóstico da hanseníase (Leite, Sampaio, & Caldeira, 2015; Silveira, Coelho, Rodrigues, Soares, & Camillo, 2014). Vale lembrar que esses impactos são potencializados quando se trata de idosos diagnosticados com hanseníase ou que convivem com suas sequelas, pois esses sujeitos tendem a empreender duas batalhas com a sociedade, uma devido ao preconceito em relação à idade, e a outra em decorrência do acometimento por uma doença que, além de maltratar o corpo, ainda segrega e estigmatiza (Souza & Sena, 2014).

Ao se falar sobre envelhecimento, cabe mencionar que esse fenômeno já vem sendo observado na realidade de muitos países, inclusive daqueles em desenvolvimento, como o Brasil (Fundo de População das Nações Unidas [UNFPA], 2012). De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílios (Pnad), em 2017, a população brasileira era de 207,1 milhões de pessoas, sendo que a participação dos idosos, pessoas com 60 anos ou mais, foi de 14,6% da população, o que compreende mais de 30 milhões de habitantes (IBGE, 2018). Esse número, conforme as projeções, sofrerá um aumento significativo e, em 2030, chegará à soma de 40,5 milhões de idosos, representando 110,1 idosos para cada 100 jovens (Fundação Oswaldo Cruz, 2013).

Ao considerar que os participantes desta pesquisa não necessariamente são todos idosos, é pertinente destacar a diferença entre envelhecimento e velhice. O envelhecimento é um processo inerente à vida e ao existir do ser humano, perdurando da concepção até a morte, sendo influenciado pela história de vida do sujeito e por sua cultura (Farina, Lopes, & Argimon, 2016; Souza, 2017). A velhice, por sua vez, é considerada a última fase do ciclo vital, é aquilo que se encontra no horizonte do ser humano e normalmente é marcada por algumas perdas, tais como, da força física, do trabalho e de familiares (Fernandes, Costa, & Andrade, 2017; Papalia & Feldman, 2013).

Para compreender a realidade das pessoas que vivenciaram o adoecimento por hanseníase, bem como entender como convivem com as respectivas sequelas da doença no processo de envelhecimento, adotou-se um enfoque psicossocial, pois essa perspectiva possibilita a articulação da experiência individual às constantes trocas simbólicas empreendidas no ambiente das relações sociais e institucionais. Nesse sentido, considerou-se pertinente a utilização do arcabouço teórico-metodológico da Teoria das Representações Sociais (TRS).

Cabe mencionar que a concepção de Representações Sociais (RS), ora adotada, não diz respeito a um saber abstrato e distante da realidade, mas a "uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social" (Jodelet, 2001, p. 22). Destaca-se, assim, que para a elaboração das RS concorrem dois mecanismos sociognitivos, a saber, a ancoragem e a objetivação, de modo que o primeiro corresponde à transformação de algo estranho em familiar e o segundo à materialização de um pensamento abstrato em uma realidade concreta (Chaves & Silva, 2011).

Dessa compreensão, depreende-se que as RS surgem sempre em um contexto social e histórico, bem como cumprem algumas funções essenciais, entre as quais: de conhecimento, identitária, de orientação e justificadora (Chaves & Silva, 2011). A função de conhecimento torna o mundo inteligível aos indivíduos e facilita a comunicação social; a função identitária lança mão da comparação social para a emergência da identidade e proteção das particularidades grupais; a função de orientação toma as RS como um guia para a ação; finalmente, a função justificadora serve para explicar comportamentos adotados perante outros grupos (Abric, 1998).

Assim, percebe-se que as RS são estruturas dinâmicas, construídas socialmente, e que se manifestam no discurso e nas práticas que orientam as tomadas de decisão cotidianas de sujeitos e de grupos nos mais diversos momentos da vida (Moscovici, 2007), principalmente na vivência da doença, situação em que se produzem sentidos coerentes com a visão de mundo a fim de integrar a experiência de adoecimento (Barreto et al., 2013). Logo, este estudo buscou identificar e analisar as representações sociais dos moradores de um hospital colônia em relação à hanseníase, ao envelhecimento e à própria instituição.

 

Método e participantes

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo, com abordagem qualitativa e dados transversais.

A pesquisa contou com uma amostra por conveniência, registrando a participação de 16, dentre os 22 moradores de um hospital colônia da região Nordeste do país. O hospital foi inaugurado em julho de 1931 por uma sociedade beneficente, tendo sido encampado, pelo então governo, em 3 de janeiro de 1940.

A idade dos participantes variou de 48 a 85 anos (M = 67,0 anos; DP = 9,7), e todos já se encontravam curados da hanseníase. O tempo de diagnóstico da hanseníase, apresentado pelos participantes, foi de 4 e 63 anos (M = 36,42; DP = 17,1); a idade, quando da internação no hospital colônia (HC), variou entre 13 e 66 anos (M = 37,56 anos e DP = 16,20), sendo que o morador mais recente vive na instituição há 2 anos e o mais antigo há 56 anos (M = 28,9 anos; DP = 17,8). Os dados sociodemográficos podem ser verificados na Tabela 1.

Instrumentos

Para a coleta de dados, foram utilizados dois instrumentos. O primeiro foi um questionário sociodemográfico para a caracterização dos participantes, com a finalidade de obter informações sobre idade, sexo, estado civil, religião, escolaridade, renda, época do diagnóstico, idade - quando da internação no HC -, tempo de permanência no HC, diagnóstico de cura e visitas de familiares. O segundo instrumento foi o Teste de Associação Livre de Palavras (Talp), com os estímulos-indutores: hanseníase, envelhecimento e HC para obter RS sobre o envelhecimento, a hanseníase e o HC.

Procedimentos éticos e procedimentos de coleta de dados

A presente pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí, apresentando CAAE n. 69177017.3.0000.5669 e Parecer n. 2.311.177. Depois da aprovação pelo Comitê, o pesquisador contatou o HC a fim de solicitar a autorização para realizar a pesquisa na instituição. Após isso, foi iniciada a coleta de dados, de forma voluntária e anônima, na qual foram esclarecidos os objetivos do estudo e obtidas as devidas autorizações, assim como foi possível o preenchimento dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para que os participantes pudessem autorizar a participação na pesquisa e responder aos instrumentos, como determina as Resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Estima-se que aproximadamente 15 minutos foram necessários para finalizar a participação na pesquisa.

Os critérios de inclusão na pesquisa contemplaram os participantes que tinham diagnóstico ou que vivenciaram o adoecimento por hanseníase; que moravam no hospital colônia há pelo menos um ano; que eram maiores de 18 anos; e que apresentavam discurso coerente e orientado no tempo e no espaço.

Ao todo, o HC contava com 22 moradores, sendo que desse total três recusaram-se a participar da investigação e outros três não se enquadravam nos critérios de inclusão da pesquisa. Isso porque um deles apresentava comprometimento cognitivo e o outro estava na instituição há apenas três meses. Ainda havia um morador que, a despeito de viver no HC, nunca vivenciou o adoecimento por hanseníase.

Antes de iniciar a aplicação do Talp, fez-se uma simulação para familiarizar o participante com o instrumento. Depois disso, seguiu-se para a aplicação da seguinte forma: "o que vem à sua mente quando escuta a palavra hanseníase?" "Diga as primeiras palavras que o senhor ou senhora lembra ao escutar o termo hanseníase". Procedimento semelhante foi usado nos demais estímulos: envelhecimento e HC. Cada participante deveria evocar, espontaneamente, cinco palavras em um tempo de 3 minutos. A partir disso, as palavras expressas, em frases ou não, eram associadas aos termos indutores, cada um perguntado separadamente.

Vale ressaltar que a coleta de dados foi realizada por um pesquisador previamente treinado e qualificado, que procedeu individualmente na residência de cada participante (no HC, cada morador tem seu quarto ou casa), e que, naquele momento, assinaram o TCLE.

Procedimentos de análise de dados

Os dados sociodemográficos foram analisados a partir das estatísticas descritivas no software IBM SPSS 21, objetivando caracterizar a amostra. No que se refere aos dados colhidos relacionados ao Talp, recorreu-se à Teoria das Redes Semânticas, uma ferramenta metodológica que, segundo Vera-Noriega (2005), é utilizada para que se possa conhecer, com elevado nível de precisão, o significado de um grupo e o núcleo estruturante de cada representação. Nesse sentido, incluíram-se os seguintes parâmetros: tamanho da rede (TR), núcleo da rede (NR), peso semântico (PS) e distância semântica quantitativa (DSQ).

O TR é obtido por meio do número total de definidoras (palavras utilizadas para definir o conceito). O PS de cada definidora obtém-se somando-se a ponderação das frequências pela hierarquização, em que se assinala com o número 1 a palavra ou a definidora mais próxima e se multiplica por cinco; com 2, a segunda palavra mais próxima e se multiplica por quatro; com 3, a terceira mais próxima e se multiplica por dois, até chegar à palavra número 5, que é multiplicada por um. O NR consegue-se mediante as cinco palavras definidoras, com peso semântico mais alto. Essas definidoras, que conformam o NR, são as que melhor representam o conceito. A DSQ obtém-se por intermédio das definidoras do NR, assinalando-se a definidora com peso semântico mais alto, com o valor 100%. As demais porcentagens são obtidas mediante uma regra de três simples.

 

Resultados

A partir da coleta de dados sobre o estímulo-indutor hanseníase (Tabela 2), observa-se que o termo preconceito foi apresentado pelos participantes da pesquisa como sendo o conceito mais representativo para hanseníase, o que pode ser comprovado por seu PS superior ao das demais palavras evocadas. Outra palavra também significativa, considerando a proximidade semântica, é tratamento, pois evidencia a DSQ mais próxima do conceito principal, dando indícios de sua relevância para os moradores do HC. Também estão presentes no NR, atrelados ao conceito de hanseníase, as seguintes palavras: sequelas, doença e doença.

Em relação ao estímulo-indutor envelhecimento (Tabela 3), os participantes associaram a palavra abandono como a mais significativa para o referido conceito. Também significativos nas evocações foram os termos velho, senescência e velhice. Mais distante do NR do estímulo-indutor, envelhecimento foi representada pela palavra saúde.

No que tange às evocações sobre o estímulo-indutor HC, os moradores da instituição destacaram comunidade (Tabela 4) como a palavra definidora do conceito em análise. As duas palavras que seguem, na ordem de importância, são tratamento e mutilação, termos que, inclusive, guardam uma relação semântica bastante próxima. Família e bem-estar representam, nessa sequência de apresentação, o último par de palavras constitutivas da importância do estímulo-indutor, bem como também evidenciam proximidade semântica.

Levando-se em consideração os dados obtidos nesta pesquisa, é possível identificar e compreender o conhecimento elaborado e partilhado pelos moradores do HC, no que diz respeito à hanseníase, ao envelhecimento e à própria instituição na qual residem. Diante disso, os resultados serão discutidos e analisados à luz da TRS.

 

Discussão

O fato de os moradores do HC terem ancorado a RS da hanseníase, sobretudo, no preconceito, coincide com os achados de outros estudos que destacam o sofrimento do hanseniano como sendo muito mais moral e psíquico do que físico (Barreto et al., 2013; Silveira & Silva, 2006; Souza & Sena, 2014). Essa constatação parece difícil de ser explicada quando se considera apenas o status atual da hanseníase, isso porque, já há algumas décadas, a doença é passível de tratamento e de cura.

Nesse sentido, surge a necessidade de considerar que, no Brasil, até os anos 1990, a hanseníase ainda era designada pelo termo lepra, doença milenar carregada de estigma e preconceito (Silveira et al., 2014). Assim, embora no presente estudo a palavra lepra não tenha figurado no campo da RS da hanseníase, resultado esse que se assemelha ao de uma outra pesquisa (Silveira & Silva, 2006), salienta-se que o termo hanseníase ainda guarda elementos da representação tradicional da lepra (Barreto et al., 2013).

Esse contexto torna-se compreensível quando se tem em conta que o termo atual, hanseníase, é uma tentativa de modernizar o senso comum, mas em decorrência do caráter de estabilidade inerente às RS, esse é um processo que não ocorre em curto e médio prazos (Barreto et al., 2013; Oliveira, Mendes, Tardin, Cunha, & Arruda, 2003). Exemplo dessa tensão entre a utilização dos significantes hanseníase e lepra pode ser encontrado em estudos, nos quais se observa que o termo hanseníase tem sido compreendido por uma parte da população não apenas como uma nova designação para uma velha doença (lepra), mas significando um outro tipo de doença, uma afecção que se distancia da marca negativa carregada pela terminologia lepra (Lins, 2010; Silveira & Silva, 2006).

O tratamento da hanseníase parece ocupar um espaço significativo nas RS dos moradores do HC, uma vez que surge tanto associado ao fenômeno da hanseníase quanto vinculado ao campo representacional da própria instituição. Cabe salientar que durante a maior parte da história da hanseníase não havia um tratamento eficaz (Souza & Sena, 2014), sendo somente a partir da década de 1980, com a implantação da poliquimioterapia - um esquema terapêutico recomendado pela OMS - que se difundiu a ideia de um tratamento capaz de levar à cura da doença (Cardona-Castro & Bedoya-Berrío, 2011; Ministério da Saúde, 2017).

No entanto, é possível identificar estudos nos quais os pacientes de hanseníase dividem-se entre os que representam a hanseníase como uma doença curável, como qualquer outra, e aqueles para quem a hanseníase é uma doença crônica e incurável, pois a cura bacteriológica, promovida pelo tratamento, não é capaz de extinguir a ameaça dos quadros reacionais, as dores e as sequelas adquiridas (Cruz, 2016; Silveira & Silva, 2006). Nessa perspectiva, uma vez que a maioria dos moradores do HC convive com sequelas físicas da hanseníase, dentre as quais ferimentos e amputações de membros superiores e/ou inferiores, pode-se pensar que o tratamento continuado dos efeitos causados pela doença gera, nesses indivíduos, uma representação da hanseníase como uma doença incurável, tal qual a lepra de outrora.

O fato de ser associada a sequelas e, por conseguinte, a mutilações, denota que as RS sobre a hanseníase, mesmo com os avanços científicos no campo terapêutico, ainda se ancoram na concepção de que essa doença é grave e que pode ocasionar efeitos indesejados naquele que adoece (Silveira & Silva, 2006). Mais que isso, pode-se pensar que essas evocações (sequelas e mutilação) remetem, mais uma vez, a elementos ligados às RS da lepra.

Nesse ínterim, é pertinente destacar que um estudo prévio (Lins, 2010) mostrou haver uma diferença entre o conhecimento do senso comum sobre a lepra e sobre a hanseníase, pois nas RS correspondentes à lepra figuram concepções que se associam a ferimentos crônicos e à mutilação de partes do corpo, que, por sua vez, levam à desfiguração. Já as RS da hanseníase estruturam-se na descrição de manchas grandes que se espalham, mas que, diferentemente da lepra, não geram deformação corporal (Lins, 2010).

Esse achado torna-se compreensível quando se tem em conta que, na sociedade contemporânea, é nas oposições entre saúde-doença e indivíduo-sociedade que a representação se estrutura e atribui sentido à doença. Assim, estudar as RS da saúde e da doença significa acessar, por meio de indivíduos situados social e historicamente, a imagem da sociedade e de seu sistema de normas (Herzlich, 2005).

Congruente a essa discussão, quando se tenta compreender o percurso histórico da hanseníase como doença, percebe-se que o paradigma que legitimou a exclusão e o isolamento a que eram destinadas as pessoas que apresentavam os sinais hansênicos baseava-se na divisão entre sadios e doentes (Barreto et al., 2013). Não obstante essa realidade, o fato de os moradores do HC terem ancorado a representação da hanseníase em uma concepção de doença (função de conhecimento das RS), pode indicar que esses indivíduos se reconhecem a partir da referida oposição entre sadio e doente (função identitária), bem como que se comportam de acordo com essa representação (função de orientação) e a utilizam como fonte justificadora de decisões e posicionamentos (função justificadora).

Com relação às RS dos participantes da pesquisa sobre o envelhecimento, o abandono adquire centralidade. O que pode ser explicado pela análise dos dados sociodemográficos, na qual se percebe que quase metade dos moradores do HC (43,8%) relata nunca receber visita de familiares. Vale lembrar que o abandono constitui uma das vivências possíveis no envelhecimento e, mais que uma realidade presente na vida de muitos idosos, o estado de abandono, muitas vezes, aponta para uma trajetória de vida marcada por perdas sociais e afetivas que se intensificam na velhice (Marin, Miranda, Fabbri, Tinelli, & Storniolo, 2012).

Tendo por base a história de vida dos participantes desta pesquisa, não se pode desprezar o fato de que o abandono era uma realidade para muitos pacientes diagnosticados com hanseníase e se materializava pela extinção dos vínculos comunitários e afetivos. Isso porque logo após a internação nos hospitais colônias, não raramente, os pacientes eram abandonados pelas pessoas de seu círculo de convivência, inclusive pelos próprios familiares (Barreto et al., 2013).

Sendo assim, a ancoragem das RS do envelhecimento no significante abandono denota mais que uma experiência possível na velhice. Certamente, evidencia também a trajetória de um grupo de pessoas que, se em um primeiro momento vivenciou o abandono em decorrência do adoecimento pela hanseníase, na atualidade sofre o abandono devido ao avanço da idade.

Congruente a essa discussão, a expressão velhice ainda foi mencionada pelos participantes da pesquisa no que se refere às suas percepções sobre o envelhecimento. A representatividade desse termo pode ser explicada pelo fato de 75% da amostra apresentar 60 anos ou mais, idade na qual o brasileiro é considerado legalmente idoso (Lei n. 10.741, 2003).

Ademais, essa evocação coincide com o achado de uma pesquisa anterior, na qual se constatou que os participantes representavam o envelhecimento como etapa - velhice - e não como processo, sendo que a referida fase era objetivada, sobretudo, pela figura do velho em contraposição ao termo idoso - considerado mais positivo (Martins, Camargo, & Biasus, 2009). Exemplo oposto pode ser observado em outro estudo, no qual os participantes, ao representarem o envelhecimento como processo, ancoraram essa representação em conteúdos como modificações, adaptação e amadurecimento, o que possibilitou a compreensão de que, para além das transformações físicas, o envelhecimento encerra também mudanças psíquicas diante das quais cada um se posiciona de forma singular (Mendes et al., 2012).

Ao representarem o envelhecimento no significante velhice, além de evidenciarem uma associação entre a representação e a própria condição vivenciada, os moradores do HC também apontam para uma compreensão limitada acerca do envelhecimento como processo. Essa situação pode levar ao não reconhecimento e/ou à valorização dos ganhos adquiridos com a passagem do tempo.

À semelhança do presente estudo, uma investigação (Carvalho, 2009) em que se analisou a história de hansenianos constatou que, para eles, após o momento da internação, a rejeição sofrida passava a ser vista como "exterior" à colônia; isso porque, nessa instituição, não se sentiam indesejáveis, mas pertencentes a uma comunidade baseada na identificação e na reciprocidade entre seus membros. Em oposição, estava a relação com os sadios, percebidos como externos à comunidade, que demonstravam o medo do contágio pela doença e atualizavam, no doente, o trauma da rejeição.

Desse modo, as RS do HC, no significante comunidade, implicam, primeiramente, a construção da identidade do hanseniano em contraposição ao grupo das pessoas sadias e que se encontram externas à colônia. Por outro lado, essas RS também indicam um modo característico de agir no cotidiano da instituição, já que, no interior de uma comunidade, os membros relacionam-se sob os laços de solidariedade e de cooperativismo.

No entanto, para a maioria dos participantes da presente pesquisa, à questão da hanseníase e de suas sequelas somou-se a condição de idoso. Assim, a colônia não abriga mais somente "ex-hansenianos", mas pessoas idosas que não têm para onde ir. Nesse âmbito, Debert (1999) acrescenta que, com o avanço da idade, viver em uma comunidade significa poder reformular os papeis sociais exercidos, bem como desenvolver uma rede de solidariedade e de troca de afeto capaz de prover gratificação e apoio emocional, o que favorece uma experiência bastante positiva no envelhecimento, principalmente para aqueles com vínculos familiares rompidos ou fragilizados.

No campo representacional dos moradores do HC, os termos família e bem-estar apresentam proximidade semântica. Isso porque a família desempenha um papel fundamental para a manutenção do bem-estar na vida das pessoas, pois é considerada a principal fonte de suporte, especialmente por sua responsabilidade em prover acolhimento e cuidados aos seus membros (Neri et al., 2012).

Contudo, ao aprofundar a discussão sobre o papel da família, é pertinente enfatizar que a centralidade dessa instituição, após o período da infância, já vem sendo contestada. Essa contestação abre a possibilidade de considerar que as novas configurações de sociabilidades, especialmente na velhice, não são apenas substitutas das relações vivenciadas no âmbito familiar, devendo, portanto, ser consideradas como diferentes formas de relação, marcadas por suas próprias singularidades (Debert, 1999).

Dessa compreensão ampliada, depreende-se que, embora os moradores do HC não sejam biologicamente ou legalmente pertencentes à mesma família, concorda-se que as RS da colônia, ancoradas nesse significante, apontam para a percepção de relações permeadas por elementos como suporte, acolhimento, cuidado e sentimento de pertença. Logo, os referidos elementos também contribuem para reforçar as RS do HC como sendo uma comunidade.

Diante dos resultados deste estudo, e levando-se em consideração o que Herzlich (2005) defende acerca do estudo das RS no campo da saúde e da doença, é possível perceber que as RS dos moradores do HC sobre a hanseníase organizam-se de forma paralela ao binômio sadio-doente, revelando sua ancoragem em elementos ainda muito associados às RS tradicionais da lepra, como o preconceito e as sequelas.

No que se refere às RS do envelhecimento, elaboradas e partilhadas pelos moradores do HC, verificou-se que tais RS ancoram-se em um esquema conceitual associado à fase da velhice marcada pelo abandono e que, por sua vez, objetiva-se na figura do velho. Finalmente, as RS sobre o HC diferenciam-se das representações anteriores por ancorarem-se muito mais em componentes positivos, dentre os quais comunidade e família.

 

Considerações finais

A presente pesquisa teve por objetivo identificar e analisar as RS dos moradores de um HC sobre a hanseníase, sobre o envelhecimento e sobre a própria instituição. Observou-se que as categorias hanseníase, envelhecimento e hospital colônia deram margem para o surgimento de RS associadas a conteúdos positivos e negativos, possibilitando, assim, a compreensão da realidade do grupo investigado.

Nesse sentido, é pertinente ressaltar que os moradores do HC ainda ancoram as RS da hanseníase em conteúdos de representação da lepra, haja vista associarem o referido campo representacional, sobretudo, a aspectos negativos. Esse achado é congruente ao estatuto das RS como fenômenos dinâmicos, mas não passíveis de alterações a curto e médio prazos.

Em relação ao envelhecimento, percebe-se que esse processo biopsicossocial, que perpassa toda a vida humana, foi representado pelos participantes da pesquisa como sendo apenas uma fase do desenvolvimento humano - a velhice. Esse conhecimento limitado acerca da complexidade que envolve o envelhecimento pode ter relação com a baixa escolaridade dos participantes da pesquisa, bem como com o não reconhecimento dos ganhos adquiridos com a maturidade.

Em contraposição à conotação negativa presente nas RS anteriores, as RS sobre o HC ancoram-se em aspectos mais positivos que negativos, evidenciando que, para os moradores da instituição, o HC tem sua objetivação materializada na imagem de comunidade. Isso pode se dever ao fato de que, na época em que o adoecimento por hanseníase ainda significava rejeição e exclusão social, o hospital colônia foi o lugar onde essas pessoas encontraram acolhimento e aceitação.

Finalmente, apesar da relevância dos dados originados pelo presente estudo, salienta-se a existência de algumas limitações, haja vista tratar-se de uma pesquisa transversal, com dados por conveniência, o que impossibilita a generalização dos resultados para outros grupos de moradores de hospitais colônias. Assim, sugere-se que novos estudos sejam realizados em outras instituições, com recorte longitudinal, para que se possam obter dados mais representativos e que ampliem a compreensão do fenômeno abordado.

Espera-se que este artigo contribua para a realização de intervenções que promovam a modificação dos elementos das RS da hanseníase a fim de distanciá-los dos conteúdos associados às RS da antiga lepra. De forma similar, também almeja-se contribuir para a mudança dos componentes das RS do envelhecimento objetivados na figura de velho e associados à experiência do abandono.

 

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Recebido em: 13/2/2019
Aceito em: 18/2/2021

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