SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número1O estudo da comorbidade entre fobia social e álcoolOrientação profissional na escola: uma pesquisa com intervenção índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.2 n.1 Juiz de Fora jun. 2008

 

RELATOS DE PESQUISA

 

A questão cognitiva e afetiva na inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho1

 

Cognitive and affective dimensions in the insertion of people with disabilities at work market

 

 

Giselle Brighenti Lara* ; Maria Regina do Carmo Ávila** ; Maria Nivalda de Carvalho-Freitas***

Universidade Federal de São João Del Rei

 

 


RESUMO

As pessoas com deficiência têm enfrentado muitas dificuldades para se ingressar, se manter e crescer no mercado de trabalho. Assim, tem-se a necessidade de estudar como o mundo do trabalho tem visto e como recebe essas pessoas. A Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do ano de 2007 demonstrou que do total de 37,6 milhões de vínculos empregatícios formais, menos de 1% são de pessoas com deficiência. Os objetivos desta pesquisa foram verificar como gerentes potenciais de pessoa com deficiência veem a deficiência; e se existe relação entre as formas, como veem as possibilidades de trabalho dessas pessoas e os sentimentos que possuem em relação a elas.

Palavras-chave: Diversidade; Cognição; Afetividade; Trabalho.


ABSTRACT

The people with disabilities have been faced to experience difficulty in obtaining, maintaining, or advancing in employment. For these reasons, it is necessary to study how the people in the workplace have seen and how they have received the disabled people. In Brazil, during 2007s, only 1% in 37.6 millions of employments was occupied by people with disabilities, according to official documents. The aim of this research was verified how the disability are seen by managers. Furthermore, it was verified if the beliefs and affection are correlated when the managers assess the work possibilities of people with disabilities.

Keywords: Diversity, Cognition, Affection, Work.


 

 

Introdução

O censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2000 mostra que, no Brasil, existem 24,5 milhões de pessoas portadoras de algum tipo de deficiência. Destes, 9 milhões estão em idade de trabalhar, porém apenas 1 milhão exerce alguma atividade remunerada e 200 mil possuem registro em carteira de trabalho.

O Decreto 3.298 de 20 de dezembro de 1999, que implementa a Lei n. 7.853, estipula pisos percentuais diferenciados de contratação dependendo do tamanho da empresa. A partir dessa implementação, começou a haver uma oferta crescente de vagas para pessoas com deficiência (PcD’s) nas empresas.Segundo Tanaka e Manzini (2005), porém, apesar de a lei ter impulsionado a abertura de vagas nas empresas, o número de pessoas com deficiência o qual se encontra no mercado de trabalho ainda está muito longe de alcançar aquilo que a lei prevê. Dados que comprovam tal afirmação são os da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do ano de 2007 mostrando que, do total de 37,6 milhões de vínculos empregatícios formais, apenas 348,8 mil, ou seja, menos de 1%, são de pessoas com deficiência.

As pessoas com deficiência têm enfrentado muitas dificuldades para se ingressar, se manter e crescer no mercado de Trabalho (Carvalho-Freitas, 2007). Em muitos casos, as empresas contratam pessoas com deficiência pela imposição legal, contudo não se preocupam em eliminar as barreiras arquitetônicas e adequar as condições ambientais para ser acessíveis a todos (Suzano, Nepomuceno, Ávila, Lara & Carvalho-Freitas, 2008).

O que tem acontecido é que as empresas têm se deparado com a questão da inserção dessas pessoas, muitas vezes, sem preparação para tal. Silva (1993) destaca que há uma falta de preparo do mundo industrial para absorver pessoas com deficiência, devido à falta de adaptações nos postos de trabalho, e Batista (2004) ressalta que as empresas precisam se adequar às necessidades diferenciadas das pessoas. A inserção obrigatória, das pessoas com deficiência nos locais de trabalho para que se cumpra uma exigência imposta pela Lei se constitui um problema na medida em que os locais de trabalho são de difícil acesso, os meios de comunicação não são adequados, o acesso a recursos e serviços facilitadores da inclusão social, apesar dos avanços, é muito pequeno, não fazendo parte ainda do cotidiano da maioria das empresas. Além de barreiras arquitetônicas, existem as barreiras atitudinais que se pautam na discriminação que as pessoas com deficiência têm que enfrentar. Para Tanaka e Manzini (2005, p. 292):

A lei acabou sendo um importante instrumento de reivindicação dos direitos da pessoa com deficiência, mas ela por si só não irá resolver os problemas que essa população terá que enfrentar para chegar ao mercado de trabalho. Há que se reconhecer que os primeiros passos foram dados com a aprovação de uma legislação que visa beneficiá-la nas questões relacionadas ao trabalho. Entretanto, a dificuldade de participação da pessoa deficiente no trabalho não decorre da falta de leis e de fiscalização, mas da carência de ações e recursos que viabilizem a concretização daquilo que é preconizado dentro dos dispositivos legais.

Além disso, o próprio entendimento do que seja deficiência não tem sido objeto de consenso. Conforme o decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999, a definição de deficiência está centrada em perdas ou anormalidades de atributos pessoais relacionados à função psicológica, fisiológica ou anatômica. Essa definição é ampliada pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2003) que, através da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, passa a considerar os fatores ambientais como elementos de análise adicionais da funcionalidade e incapacidade das pessoas com deficiência, considerando, assim, na avaliação médica, fatores do meio ambiente no qual estão inseridas essas pessoas.

Por outro lado, o desenvolvimento dos estudos sociológicos sobre deficiência indica que esse conceito pode ser considerado como um produto físico da ação biológica sobre o funcionamento do corpo; ou produto de vontades individuais (pessoas com e sem deficiência) envolvidas na criação de identidades e na negociação de papéis; ou produto material das relações socioeconômicas desenvolvidas dentro de um contexto histórico específico; ou produto dos valores sociais desenvolvidos dentro de um contexto cultural específico, dependendo da perspectiva de análise ontológica da deficiência (Priestley, 1998).

Para que esse conceito seja analisado de forma abrangente, a deficiência será entendida, neste artigo, como uma condição biológica, anatômica ou sensorial que, devido às contingências históricas, sociais e espaciais, pode acarretar, para a pessoa que a possui, desvantagem, discriminação social ou dificuldades para sua inserção social.

Segundo Carvalho-Freitas (2007), a forma de interpretação compartilhada pelas pessoas sobre a deficiência é um fator explicativo importante para a gestão dessa dimensão da diversidade, devido a seu impacto nas ações e escolhas das pessoas.

Assim, observar um objeto ou relacionar-se com uma pessoa com deficiência é uma ação que depende das concepções prévias das pessoas em relação à deficiência.

Considerando a natureza contingencial da deficiência, os objetivos desta pesquisa foram verificar como gerentes potenciais de pessoas com deficiência veem a deficiência; e se existe relação entre as formas como veem as possibilidades de trabalho dessas pessoas e os sentimentos que possuem em relação a elas.

O pressuposto teórico adotado foi de que forma é visto um objeto.Entende-se que, as estruturas avaliativas ou de crenças sobre ele estão estreitamente relacionados com componentes afetivos direcionados a este objeto.

A afetividade e a cognição sempre foram temas de grande relevância entre filósofos, psicólogos e profissionais de outras áreas do saber. Muitas vezes, apresentam-se cindidas histórica e culturalmente uma da outra. Um exemplo disso está em Platão que define e valoriza o pensamento como forma de elevação do homem e como virtude a liberação e troca de todas as paixões, prazeres e valores individuais pelo pensamento. Descartes também demonstra essa cisão com a sua tão famosa afirmação: “Penso, logo existo!” destituindo o valor dos sentimentos. Kant considerava as paixões como “enfermidades da alma” e que essas dificultavam o exercício da razão (Arantes, 2003).

Alguns autores, por outro lado, demonstram uma inter-relação entre cognição e afetividade. Piaget foi o primeiro autor que se direciona a integrar tais dimensões. Para ele, toda ação e pensamento comportam um aspecto cognitivo (estruturas mentais) e um aspecto afetivo (energética que é a afetividade – energia que direciona seu interesse para uma situação ou outra, e a essa energética corresponde a uma ação cognitiva que organiza o funcionamento mental). Outro autor é Vygotsky que postula que as emoções são integradas ao funcionamento mental. Para ele “a forma de pensar, que junto com o sistema de conceitos nos foi imposta pelo meio que nos rodeia, inclui também nossos sentimentos” (Vygotsky, 2004, p.126). Para Wallon, inteligência e afetividade estão intrinsecamente conectadas, mas existem fases em que um ou outro predominam ao longo do desenvolvimento humano (Arantes, 2003).

Também a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento diz que o sujeito elabora e organiza sínteses complexas de significados a partir de processos afetivos e cognitivos. Segundo Arantes (2003), os modelos organizadores são conjuntos de representações mentais que as pessoas realizam em situações específicas e que as levam a compreender a realidade e a elaborar seus juízos e suas ações.

Sendo assim, a partir dos pressupostos da Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, as pessoas apresentam, além das estruturas de pensamento, um conjunto de desejos, sentimentos, afetos, representações sociais e valores diante de um objeto. (Arantes, 2003)

Especificamente em relação à deficiência, a literatura tem mostrado como ela tem sido objeto de preconceitos (Omote, 1987; Glat, 1995; Crochík, 1996; Marques, 1998; Marques, 2001; Popovich et al., 2003; Quintão, 2005, dentre outros). Os preconceitos estão fundados em crenças generalizadas sobre características pessoais (atributos) de grupos minoritários, as quais são consideradas como tipicamente negativas.

Esses preconceitos, associados à discriminação, podem ser concebidos, no caso das pessoas com deficiência, segundo o conceito de estigma que, numa primeira acepção, se refere aos “sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” (Goffman, 1989, p. 11).

Admitindo que as formas de ver a deficiência estejam ancoradas em concepções de homem e mundo, conscientes ou não, foram buscadas na literatura referências que pudessem ajudar a identificar maneiras de ver a deficiência e posteriormente verificar sua associação ou não com possíveis sentimentos em relação às pessoas com deficiência. Assim, foi utilizada na pesquisa a tipologia construída por Carvalho-Freitas e Marques (2007b) a qual identificou tipos de concepções de deficiência a partir de uma extensa revisão de literatura sobre a deficiência ao longo dos séculos.

Concepções de deficiência são modos de pensamento construídos ao longo da história, não necessariamente fundados em informações e conhecimentos racionais, que oferecem os elementos utilizados para qualificação das pessoas com deficiência e as justificativas para as ações em relação a elas. As concepções são formas de interpretação da deficiência predominantes ao longo do tempo, que se caracterizam como matrizes interpretativas que moldaram e legitimaram a distinção das pessoas com deficiência, tanto na sociedade quanto no trabalho.

Quatro matrizes foram utilizadas para compor as sete concepções de deficiência identificadas por Carvalho-Freitas (2007):

A deficiência vista como fenômeno espiritual tem como característica principal atribuir uma origem metafísica à deficiência e considerá-la uma manifestação de desejos ou castigos divinos. As pessoas que acreditam nos pressupostos dessa matriz, são favoráveis à segregação da pessoa com deficiência em instituições de caridade separadas da sociedade ou longe da exposição pública sujeita à compaixão. Há uma relação baseada na caridade.

Na normalidade como matriz de interpretação, a deficiência é considerada um “desvio” ou “doença” que necessita de cuidados especiais dos profissionais da saúde. Nessa matriz, a possibilidade de inserção das PcD’s se dá mediante a reabilitação e a adequação delas ao sistema social.

A inclusão como matriz de interpretação tem como pressuposto a inclusão realizada por parte da sociedade, ou seja, ela tem que se adaptar para incluir a todos. Essa inclusão das pessoas com deficiência deve ser feita a partir de suas potencialidades. Assim, desloca-se a deficiência de um problema individual para um problema social. Seu pressuposto é o de que a sociedade tem que se adequar a todos e incluir as diferenças.

A matriz de interpretação técnica da deficiência se materializa através da concepção das pessoas que veem a diversidade como um recurso a ser gerido nas organizações, e que consideram as práticas sociais e organizacionais como veículos para a participação e inclusão das pessoas com deficiência. Essa matriz se traduz em quatro fatores que avaliam as possibilidades de trabalho das PcD’s em relação à Percepção de desempenho; Percepção do vínculo; Percepção dos benefícios da contratação e Percepção sobre a necessidade de treinamento.

Essas distintas formas de ver a deficiência e as possibilidades de trabalho das PcD’s se combinam de maneiras diferentes, explicitando maiores ou menores contradições das pessoas em relação às PcD’s. Por exemplo, uma pessoa pode aceitar plenamente que as pessoas com deficiência podem desempenhar adequadamente qualquer tipo de trabalho, desde que modificadas as condições e instrumentos de trabalho e, ao mesmo tempo, concordar que somente alguns setores são adequados ao trabalho das pessoas com deficiência.

Partindo do pressuposto de que essas concepções de deficiência estão associadas com componentes afetivos, realizou-se esta pesquisa.

 

Método

A pesquisa se caracteriza por sua natureza descritiva, relacionada ao esforço de caracterização dos gestores quanto às suas concepções de deficiência e sentimentos em relação às pessoas com deficiência. Além disso, este trabalho busca explicar as relações entre concepções de deficiência e sentimentos provocados por ela.

O universo da pesquisa foi constituído por 650 alunos de cursos de especialização em Administração de três universidades federais mineiras. A escolha dessa população se deu pelo fato de se constituir, principalmente, de pessoas com perfis característicos das organizações formais, que ocupam ou poderão ocupar funções gerenciais, e que potencialmente podem trabalhar com PcD’s em função da Lei de Cotas.

Todo o universo de alunos das três universidades foi convidado a participar da pesquisa. No entanto, algumas turmas não o fizeram, devido a dificuldades em paralisar as atividades de aula para responder aos questionários. Além disso, vários alunos haviam faltado nos dias da realização da coleta de dados e alguns não se dispuseram a participar. Do total, 288 alunos responderam à pesquisa. Porém, foram utilizados na análise 227 questionários, pois os demais apresentaram muitos dados faltantes ou estavam incorretamente respondidos, isto é, não haviam seguido corretamente as instruções de preenchimento nas duas seções analisadas: concepções de deficiência e sentimentos. Veja dados da amostra utilizada na Tabela 1.

Conforme pode ser observado na Tabela 1, 54,6% dos respondentes são do sexo feminino, sendo 65,2% deles pessoas solteiras. A faixa etária de maior concentração dos respondentes é de 21 a 30 anos, com 63,4% do total; e 83,7% da amostra estão trabalhando. Dessas pessoas, 52,4% nunca trabalharam ou estudaram com pessoas com deficiência; 69,2% possuem apenas informações superficiais sobre a deficiência. Pode-se observar, contudo, que 16,1% dos respondentes já estudaram sobre a inserção de pessoas com deficiência no trabalho. Dos respondentes, 22% são do curso de Gestão de Pessoas, as demais se dividem entre Marketing, Auditoria, Finanças, Negócios, Logística e Meio Ambiente.

O método de pesquisa adotado foi o quantitativo, tendo sido utilizado o survey (baseia-se no inquérito dos participantes, através de questionário) de desenho transversal.

Os instrumentos de pesquisa foram: o Inventário de Concepções de Deficiência desenvolvido a partir das Concepções de Deficiência identificadas por Carvalho-Freitas (2007), e o Inventário de Sentimentos em relação às Pessoas com Deficiência (IS), construído especificamente para esta investigação que conta com dezenove sentimentos.

Para as respostas dos participantes aos dois questionários, utilizou-se a Escala Likert, de escolha forçada para medição, considerando-se uma variação de que 1 (discorda totalmente) a 6 (concordam totalmente). A opção pela escala de escolha forçada foi feita visando levar os entrevistados a manifestar sua opinião, ao invés de relutar em manifestá-la, uma vez que o tema poderia conduzir as pessoas a não se manifestarem.

Para a análise dos dados foram utilizadas a estatística descritiva e a correlação de Pearson com o auxílio do software SPSS for Windows (Statistical Package for Social Sciences) , visando facilitar a utilização dos recursos estatísticos.

 

Resultados e Discussão

Serão apresentados os resultados dos dois questionários analisados e as análises da correlação realizada.

A Tabela 2 apresenta os dados do Inventário de Concepções de Deficiência e Inventário de Sentimentos em Relação às Pessoas com Deficiência.

Conforme pode ser observado na Tabela 2, há uma tendência grande em se discordar dos pressupostos da matriz espiritual (59% discorda muito ou totalmente), embora possam ser encontradas pessoas que concordem com suas premissas. Quanto à matriz da normalidade, os resultados indicam dúvidas dos respondentes em relação aos seus pressupostos, pois 63,9% responderam que discordam ou concordam pouco, isto é, não têm convicção em relação às respostas dadas. A maioria dos respondentes (78,3%) concorda muito ou totalmente com os argumentos da matriz da inclusão. Quanto aos fatores da matriz técnica, a maioria (80,9%) discorda muito ou totalmente que o desempenho, e a qualidade de trabalho são inferiores ao das demais pessoas e que contratar pessoas com deficiência possa comprometer a competitividade das empresas. A maioria (82,8%) concorda muito ou totalmente que as organizações precisam treinar chefias e funcionários para o processo de inserção de pessoas com deficiência. Além disso, apenas 37,8% dos respondentes concordam muito ou totalmente que a contratação de pessoas com deficiência possa trazer benefícios para o clima e para a imagem da organização.

Esse perfil dos respondentes indica uma tendência à manifestação de concepções mais baseadas na inclusão em relação à inserção de pessoas com deficiência, ratificando a literatura presente no campo de que é necessário modificar o ambiente de trabalho para ser acessível a todos (Carvalho-Freitas & Marques, 2007a; Sassaki, 1999; Barnes, Oliver & Barton, 2002; Freund, 2001; Kitchin, 1998, dentre outros). Também, ao responderem sobre a percepção que possuem sobre o desempenho das pessoas com deficiência, concordam que elas podem desempenhar o trabalho com a mesma produtividade e qualidade que as demais. Os resultados, entretanto, também mostram que são pessoas com dúvidas quanto à adequação das pessoas com deficiência no trabalho, conforme resultados da matriz da normalidade, o que confirma os resultados de pesquisa de Araújo e Schmidt (2006) que identificam o desconhecimento e descrédito nas potencialidades da pessoa com deficiência. Esses resultados indicam que está sendo construída uma disposição positiva em relação à inserção de pessoas com deficiência no mercado de Trabalho. Contudo ainda são recorrentes as dúvidas das pessoas em relação à adequação das pessoas com deficiência às organizações de trabalho, pois o foco é ainda predominantemente nas pessoas com deficiência e no que lhes faltam, e não em suas potencialidades.

Em relação aos sentimentos, foi constatado que aqueles que as pessoas discordavam pouco ou concordavam que experimentavam em relação às pessoas com deficiência foram: a admiração, o sentir-se vulnerável, a ausência de sentimentos diferenciados entre pessoas com e sem deficiência e o sentir-se mais reflexivo quando encontra pessoas com deficiência.

Foi verificado se havia correlação entre as formas como os respondentes viam a deficiência e percebiam os sentimentos experimentados em relação a elas, através do teste de correlação de Pearson, cujos resultados constam na Tabela 3.

Quanto à correlação dos fatores, apesar de sua baixa intensidade, observam-se na Tabela 3 indicações de que:

1. Quanto maior a concordância com os pressupostos da matriz espiritual, maiores os sentimentos de que é necessário ajudar a pessoas com deficiência, ao lado da admiração e a impotência frente a essas pessoas. Segundo Carvalho-Freitas (2007), a concordância com os pressupostos desta matriz leva à defesa da existência de instituições que cuidem das pessoas com deficiência e ao incentivo à difusão de donativos como uma forma de caridade. Talvez, isso justifique a correlação existente citada acima entre a matriz espiritual e a necessidade de ajudar as pessoas com deficiência. Para Batista (2004), é comum as pessoas com deficiência serem nomeadas como anjos, principalmente as crianças, e os professores, pais e todos os que trabalham com pessoas com deficiência são vistos como “seres abnegados, santificados em vida, servidores do bem” (p. 98).

2. Quanto maior a concordância com os pressupostos da matriz da normalidade, maiores os sentimentos de compaixão, medo, angústia, indiferença, necessidade de ajudar a pessoa, tristeza, raiva, a impaciência, a aflição, a impotência, a vulnerabilidade, o constrangimento, o sentir-se mal e não saber identificar o motivo. Segundo Carvalho-Freitas (2007), são inúmeras as práticas educacionais e profissionais que segregam e mantêm as pessoas com deficiência em espaços diferenciados das demais pessoas. Elas ficam entregues aos cuidados de profissionais como as escolas especializadas, as oficinas de trabalho protegidas e os serviços de reabilitação, cujo foco permanece apenas na “retificação” da pessoa com deficiência para sua adequação social. Percebe-se que as pessoas que compartilham dos pressupostos da Matriz Normalidade apresentam inúmeros sentimentos frente à deficiência. Isso pode estar relacionado a uma falta de contato com as pessoas com deficiência.

3. Quanto maior a concordância com a matriz da inclusão, menores são os receios frente às pessoas com deficiência (medo) e maior a admiração em relação a elas. A concepção baseada nesta matriz mobiliza menos sentimentos e estes são de cunho positivo se comparados aos sentimentos descritos na Matriz de Interpretação Normalidade. Para Carvalho-Freitas (2007), a deficiência tem se deslocado de uma matriz de interpretação calcada na normalidade para se inserir em uma matriz na qual a inclusão social ganha status de discurso e interpretação dominante. É preciso sublinhar que esta é uma matriz recente que precisará de tempo para ser incorporada. As ações relacionadas a ela são no sentido de modificar a sociedade para que esta seja acessível a todos.

4. Quanto pior se avalia o desempenho das pessoas com deficiência, maiores são: a concordância com a presença dos sentimentos de compaixão, medo, desprezo, angústia, repulsa, indiferença, desejo de ajudar, tristeza, raiva, impaciência, aflição, admiração, receio de contrair a mesma deficiência, vulnerabilidade e ausência de sentimentos diferenciados.

5. Quanto maior a percepção de que as PcD’s são mais comprometidas e estáveis em relação ao trabalho, maior o sentimento de tristeza em relação a elas.

6. Quanto maior a percepção dos benefícios da contratação de pessoas com deficiência, maior o sentimento da necessidade de ajudar essas pessoas.

7. Quanto maior a percepção da necessidade de treinamento para a inserção, maiores os sentimentos de urgência de ajudar a PPD, a não diferenciação de sentimentos em relação às pessoas com e sem deficiência e o sentimento de ficar mais reflexivo.

Várias e múltiplas são as relações possíveis entre as formas de ver a deficiência e os sentimentos experimentados em relação às pessoas com deficiência. Pode-se constatar, porém, que as pessoas que mais compartilham dos pressupostos da matriz da normalidade e que mais avaliam negativamente o desempenho das pessoas com deficiência são as pessoas que também experimentam o maior número de sentimentos em relação às pessoas com deficiência, a maioria deles de cunho negativo. Esse resultado indica que essas duas formas de ver a deficiência são as mais mobilizadoras de sentimentos, o que necessita de futuros estudos para entender melhor os motivos pelos quais essa relação ocorre.

Por outro lado, quanto maior a concepção de inclusão, isto é, de que a sociedade precisa se adequar para ser acessível a todos, menores os receios e maior a admiração em relação a essas pessoas.

Assim podemos observar que a deficiência é mobilizadora de inúmeros sentimentos nas pessoas; no entanto, algumas formas de ver as PcD’s estão mais relacionadas aos sentimentos experimentados em relação a elas, do que a outras.

Considerando que a ação das pessoas seja derivada em grande medida dos pensamentos (crenças) e dos sentimentos em relação a um objeto, é importante construir uma pauta de reflexões que contemple as formas de ver os sentimentos mobilizados pela deficiência, visando facilitar o processo de inserção dessas pessoas no trabalho. Pesquisas anteriores têm indicado que nas organizações em que ocorrem práticas de sensibilização para a inserção e adequação das condições de trabalho (Carvalho-Freitas & Marques, 2007a), a avaliação do desempenho das pessoas com deficiência é mais positiva do que naquelas em que essas práticas não ocorrem.

Finalizando, é importante sublinhar que a presente pesquisa foi realizada com pessoas que não estão atuando diretamente com pessoas com deficiência, sendo que muitas delas jamais tiveram contato com elas, o que se constitui um limite quando se consideram seus resultados. Outras pesquisas serão necessárias para aprofundar os resultados e para verificar se entre pessoas que atuam com pessoas com deficiência ocorrem relações de interdependência similares entre formas de ver a deficiência e os sentimentos experimentados em relação a essas pessoas.

 

 

 

 

 

 

Referências

Arantes, V. A. (2003). Afetividade e Cognição: rompendo a dicotomia na educação. Porto: :Videtur, 23 (1), 5-16.         [ Links ]

Araujo, J. P., & Schmidt, A. (2006). A Inclusão de Pessoas com Necessidades Especiais no Trabalho: A visão de Empresas e de Instituições Educacionais Especiais na Cidade de Curitiba. Revista Brasileira de Educação Especial, 12 (2), 241-254.         [ Links ]

Barnes, C., Oliver, M., & Barton, L. (2002). Disabilities Studies Today. Cambridge: Polity.         [ Links ]

Batista, C. A. M. (2004). Inclusão: Construção na Diversidade. Belo Horizonte: Armazém de Idéias.         [ Links ]

Carvalho-Freitas, M. N. (2007). A inserção de pessoas com deficiência em empresas brasileiras - Um estudo sobre as relações entre concepções de deficiência, condições de trabalho e qualidade de vida no trabalho. Tese de doutorado. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG.         [ Links ]

Carvalho-Freitas, M. N., & Marques, A. L. (2007a). A Inserção de Pessoas com Deficiência em Empresas Brasileiras: uma Dimensão Específica da Diversidade nas Organizações. In Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração (Org.), Anais Eletrônicos do XXXI Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração. Rio de Janeiro: EnANPAD.         [ Links ]

Carvalho-Freitas, M. N. & Marques, A. L. (2007b). A diversidade através da história: a inserção no trabalho de pessoas com deficiência. Organizações e Sociedade,14 (41), 59-78.         [ Links ]

Crochik, J. L. (1996). Preconceito, indivíduo e sociedade. Temas em Psicologia, (3), 47-70.         [ Links ]

Decreto n. 3.298, de 20 de Dezembro de 1999 (1999). Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Brasília, DF. Recuperado em 13 abril, 2009, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3298.htm.         [ Links ]

Freund, P. (2001) Bodies, disability and spaces: the social model and disabling spatial organizations. Disability & Society, 16 (5), 689-706.         [ Links ]

Glat, R. (1995). Integração dos portadores de deficiências: uma questão psicossocial. Temas em Psicologia, 3(2), 89-94.         [ Links ]

Goffman, E. (1989) Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: Zahar Editores.         [ Links ]

Kitchin, R. (1998). ‘Out of Place’, ‘knowing one’s place’: space, power and the exclusion of disabled people. Disability & Society, 13 (3), 343-356.         [ Links ]

Lei n. 7.853, de 24 de Outubro de 1989 (1989). Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Brasília, DF. Recuperado em 13 abril, 2009, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7853.htm        [ Links ]

Marques, C. A. (1998). Implicações políticas da institucionalização da deficiência. Educação & sociedade, 19 (62), 1-21.         [ Links ]

Marques, C. A. (2001) A construção do anormal: uma estratégia de poder. In Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Org.), Anais Eletrônicos do XXIV Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Caxambu: 2001.         [ Links ]

Omote, S. (1987). Estereótipos a respeito de pessoas deficientes. Didática, 22 (22/23), 167-180.         [ Links ]

OMS Organização Mundial da Saúde. (2003) CIF: Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde[Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para a Família de Classificações Internacionais, org.; coordenação da tradução Cassia Maria Buchala]. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo – EDUSP.         [ Links ]

Popovich, P. M. et al. (2003). The assessment of attitudes toward individuals with disabilities in the workplace. The Journal of Psychology, 137 (2), 163- 177.         [ Links ]

Priestley, M. (998). Constructions and creations: idealism, materialism and disability theory. Disability & Society, 13 (1), 75-94.         [ Links ]

Quintão, D. T. R. (2005). Algumas reflexões sobre a pessoa portadora de deficiência e sua relação com o social. Psicologia & Sociedade, 17 (1), 17-28.         [ Links ]

Sassaki, R. K. (1999). Inclusão no trabalho. In Sociedade Inclusiva (Org.), Anais Eletrônicos do I Seminário Internacional da Sociedade Inclusiva. Belo Horizonte.         [ Links ]

Silva, O. M. (1993). Uma questão de competência. São Paulo: Memonn.         [ Links ]

Suzano, J. C. C., Nepomuceno, M. F., Ávila, M. R. C., Lara, G. B.& Carvalho-Freitas, M. N. (2008). Análise da produção acadêmica nacional dos últimos 20 anos sobre a inserção da Pessoa Portadora de Deficiência no mercado de trabalho. Em: M. N. Carvalho-Freitas & A. Marques. L. (Orgs.), Trabalho e Pessoas com Deficiência: pesquisas, práticas e instrumentos de diagnóstico, (cap. 1, pp. 23-42). . Curitiba: Juruá Editora.         [ Links ]

Tanaka, E. D. O.& Manzini, J. E. (2005). O que os empregadores pensam sobre o trabalho da pessoa com deficiência? Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 11(2) p. 273-294.         [ Links ]

Vygotsky, L. S. (2004). Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

1 Agradecimentos ao CNPq e à FAPEMIG pelo apoio ao financiamento da pesquisa.
* Rua Alberto Mendes Miranda, 57, Tejuco – São João del Rei – MG CEP: 36309-316 gisellelara@yahoo.com.br
** Contato: Av Nossa Senhora do Pilar, 81, Centro – São João del Rei – MG CEP: 36307-372 reginapsicologia@yahoo.com.br
*** Praça Dom Helvécio, 74, UFSJ – Campus Dom Bosco - São João del Rei – MG CEP: 36.301-160 - nivalda@ufsj.edu.br

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons