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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.8 no.1 Juiz de Fora jun. 2014

https://doi.org/10.5327/Z1982-1247201400010004 

DOI: 10.5327/Z1982-1247201400010004

ARTIGO

 

Visualidade Moderna: Reflexões Acerca da Obra de Goethe e Schopenhauer

 

Modern Visuality: Reflections About Goethe's and Schopenhauer's Works

 

 

Rômulo BallestêI; Francisco Teixeira PortugalI

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo indica a importância do Doutrina das cores (1810), de Johann Wolfgang von Goethe, para o surgimento de um novo regime de visualidade no século XIX, o modelo de visão subjetiva na cultura ocidental. Sua postura radicalmente nova diante do fenômeno cromático defende o olho como um órgão vivo e, com isso, funda a visualidade como produto da ação fisiológica do olho. Schopenhauer, influenciado pelo trabalho de Goethe, desenvolverá a visão subjetiva por meio da divisibilidade retiniana. Embora Goethe tenha realizado um trabalho inovador, a historiografia da Psicologia moderna, ao se apoiar epistemologicamente no método positivo das ciências naturais, não o incluiu em seu domínio, restringindo-o a uma espécie de excentricidade do espírito do poeta. Acreditamos que a história da Psicologia possa ser repensada.

Palavras-chave: Psicologia da percepção; modernidade visual; Goethe; Schopenhauer.


ABSTRACT

This article points out the value of the Johann Wolfgang von Goethe's Theory of Colours (1810) for the emergence of a new visuality regime in the 19th century, the pattern of subjective vision in the Western culture. His radically new attitude towards the chromatic phenomenon stands that the eye is a living organ and, therewith, it founds the visuality as a product of the physiological action of the eye. Schopenhauer, influenced by Goethe's work, will develop the subjective vision through the retinal divisibility. Although Goethe carried out a innovative work, the historiography of the modern Psychology, by supporting itself epistemologically on the positive method of the natural sciences, did not include Goethe's work in its domain, restricting it to a sort of eccentricity of the poet's spirit. We believe that the history of Psychology can be rethought.  

Keywords: Psychology of perception; visual modernity; Goethe; Schopenhauer.


 

 

Este artigo pretende discutir a compreensão subjetiva de óptica a partir da crítica de Johann Wolfgang von Goethe (1749–1832) à concepção física elaborada por Isaac Newton (1642–1727) e contribuir para a revalorização do trabalho do primeiro para a Psicologia moderna. A crítica de Goethe incide diretamente sobre a proposta mecanicista que concebe a produção das cores como efeito do grau de refringência dos raios luminosos. A separação entre interior e exterior pressuposta na óptica newtoniana é abolida pela formulação goetheana de cor. Nela, as cores são produzidas por uma ação do próprio olho concebido como órgão vivo em unidade com a luz. A tese newtoniana da segmentação das cores resulta da compreensão de que elas derivam de ações da luz realizadas no espaço exterior ao observador, exterior ao olho, portanto. Para Goethe, em contraste, as cores tornam-se uma realidade por uma ação fisiológica, isto é, por uma ação corporificada que necessita do olho do observador. Há uma atividade de fabricação própria e intrínseca ao olho. Deste modo, segundo Goethe, "o olho se põe em atividade logo que percebe a cor e é de sua natureza produzir imediatamente, de forma tão inconsciente quanto necessária, uma outra [cor] que, juntamente com a primeira, compreende a totalidade do círculo cromático" (Goethe, 1810/1993, p. 146).

Essa ideia formulada por Goethe exercerá impacto no pensamento do jovem Arthur Schopenhauer (1788–1860), que pretenderá dar continuidade ao trabalho do poeta de Weimar. Schopenhauer, diferentemente da concepção doutrinária de Goethe, tentará desenvolver uma espécie de teoria matematizada da divisibilidade da ação retiniana. Além da opção pela teorização que o distanciava da preferência de Goethe pela doutrina das cores, Schopenhauer sofrerá ainda influência de fisiólogos e filósofos do materialismo francês de sua época.

Dessa forma, nosso trabalho está organizado da seguinte maneira: primeiro, apresentaremos a concepção newtoniana de óptica e a decomposição dos raios luminosos em diferentes cores; em seguida, exporemos a crítica feita por Goethe à elaboração de Newton e a originalidade da posição defendida no Doutrina das cores ao encarnar no organismo a atividade da produção das cores. Por fim, indicaremos como Schopenhauer, além do esforço de teorização, aprofunda a ruptura realizada por Goethe em relação ao trabalho de Newton ao enfatizar, curiosamente, a divisibilidade retiniana na produção das cores.

Devemos ressaltar que, ao indicarmos esses trabalhos relativamente raros na história da Psicologia, pretendemos ampliar o campo de discussão da Psicologia da percepção, possibilitando, assim, um diálogo com a visualidade moderna por diferentes visadas: estética, histórica, epistemológica e de ensino da Psicologia.

 

A Óptica de Isaac Newton

Por volta de 1666, Sir Isaac Newton, aos 23 anos de idade, realiza alguns experimentos em óptica quando se dedicava à tarefa de polimento de diferentes formas de lentes e produz um dos grandes livros científicos, o Óptica, publicado somente em 1672. As experiências constituem demonstrações que ele exibe como prova para seus teoremas e suas proposições. A experiência óptica realizada em seu próprio quarto consiste em escurecê-lo e fixar um prisma triangular em um pequeno orifício (foramen exiguum) de sua janela a fim de permitir tão somente a entrada de uma pequena quantidade da luz do sol. No quarto escuro, o prisma refrata a luz que entra pela fenda e forma a imagem na parede oposta a essa pequena abertura. Os aspectos então problematizados percorrerão um caminho que vai da natureza das cores à própria natureza da luz a que Newton atribuirá uma condição corpuscular e material. Nessas considerações há, para Newton, uma invariância das propriedades da luz: elas não são alteradas, quaisquer que sejam as refrações, reflexões ou inflexões dos raios luminosos e essa invariância pode ser verificada pela permanência da cor. Assim, é da natureza das cores ser propriedade original e inata da luz.

Os estudos newtonianos, de certo modo, reproduziam o modelo da câmara obscura, bastante conhecido desde o século XIV. É nas demonstrações realizadas nessas experiências que ele atribui às propriedades intrínsecas dos raios luminosos a geração de diferentes cores em detrimento da ideia tradicionalmente aceita de que elas são fruto da mistura de luz e sombras. Na demonstração da sexta experiência, desenvolvida desde 1666 — mais tarde, conhecida como experimentum crucis (experiência crucial) —, ele conclui que a cor não é uma mistura de luz e sombra. A experiência foi assim descrita por Newton:

Numa sala escura coloquei em um orifício circular de 1/3 de polegada de diâmetro que fiz na folha da janela um prisma de vidro por onde o feixe da luz solar que entrasse pelo orifício pudesse ser refratado para cima em direção à parede oposta da sala, formando ali uma imagem colorida do sol (Newton, 1704/2002, pp. 54-55).

O trabalho da Óptica, de Isaac Newton, está incontornavelmente apoiado na divisão entre uma representação interior e uma realidade exterior ao observador. O aparato da câmera obscura é materialmente exterior ao próprio observador e a formação da imagem deve-se ao jogo geométrico dos raios visuais. Cabe ao observador a passividade da recepção dos raios luminosos, pois todo o trabalho de produção perceptual da imagem deriva da exterioridade artificial da formação da imagem na câmara escura plasmada por meio dos raios luminosos que penetram a câmera obscura em relação ao observador. Jonathan Crary aponta que,

A atividade física que Newton descreve com o pronome em primeira pessoa refere-se não à operação de sua própria visão, mas antes ao seu emprego de [sic] um instrumento de representação transparente e refrativo. Newton é menos o observador e mais o montador de um aparato, de cujo funcionamento real ele está fisicamente separado. Embora esse aparato não seja estritamente uma câmara escura (é possível substituir um prisma por uma lente plana ou um pequeno orifício), sua estrutura é fundamentalmente a mesma: a representação de um fenômeno exterior ocorre dentro dos limites retilíneos de um aposento escurecido, uma câmara ou, nas palavras de Locke, uma "cabine vazia" (Crary, 2012, pp. 46-47). 

O quarto escuro constitui, consequentemente, o instrumento produtor da representação. Vale insistir que tal representação resulta do comportamento mecânico da própria refringência dos raios luminosos, nada devendo ao observador. Para ilustrar a relevância dos segmentos geométricos na concepção newtoniana, reproduziremos a seguir a passagem do Axioma VII do Livro I, parte I (seguida de uma figura extraída da edição brasileira do próprio livro de Newton):

Assim, sendo PR a representação de um objeto qualquer sem aberturas e AB uma lente colocada em um orifício feito na folha da janela de um quarto escuro, por onde os raios que provêm de qualquer ponto Q desse objeto são convergidos e se reúnem de novo no ponto q; e segurando em q uma folha de papel branco para que a luz incida sobre ela, a imagem desse objeto PR aparece no papel com a própria forma e as próprias cores. Pois assim como a luz provém do ponto Q se dirige para o ponto q, assim a luz que provém de outros pontos P e R do objeto se dirigem para tantos outros pontos correspondentes p e r; de modo que todo ponto do objeto iluminará um ponto correspondente do quadro e por esse meio fará um quadro como o objeto em forma e cor; salvo que o quadro será invertido. [...] Analogamente, quando uma pessoa olha para qualquer objeto PQR, a luz que provém de vários pontos do objeto é refratada pela pele transparente e pelos humores do olho (isto é, pelo revestimento externo EFG, ou tunica cornea, e pelo humor cristalino AB que fica depois da pupila mk), de modo a convergir e se reunir de novo em vários pontos do fundo do olho, onde forma a imagem do objeto na pele (que se chama tunica retina) que recobre o fundo do olho. Pois os anatomistas, quando retiram do fundo do olho a película externa e muito espessa que se chama dura mater, conseguem ver através das películas mais finas as imagens dos objetos vividamente formadas delas. E essas imagens, que se propagam para o cérebro por um movimento que acompanha as fibras dos nervos ópticos, são a causa da visão (Newton, 1704/2002, pp. 47-48).

A Figura 1 ilustra bem, ainda que de forma esquemática, a concepção geométrica de raios luminosos incidindo sobre o olho para formar a imagem. Tais raios luminosos provenientes de um ponto exterior atravessam as diferentes partes que constituem anatomicamente o interior do globo ocular e sofrem, consequentemente, as alterações próprias à refração das diferentes densidades para atingir pontualmente o interior do olho.

 

 

O Olho Goetheano

Johann Wolfgang von Goethe, após uma viagem à Itália, em 1791, realiza uma série de experimentos sobre a natureza das cores, sua relação com a luz e as condições de manifestação das cores utilizando prismas e lentes. As consequências desses estudos cromáticos estão na sua Farbenlehre (Doutrina das Cores) e apresentam uma posição crítica em relação à concepção do matemático inglês Isaac Newton, cuja teoria da divisibilidade da luz é taxada de artificialista por Goethe. Tal crítica constitui um passo de extrema importância para a constituição de um novo regime da visualidade no qual as cores são produzidas de três maneiras: física, química e fisiológica.

Ao priorizar a ação fisiológica na produção cromática, Goethe encarna no próprio olho, isto é, na ação do organismo, a gênese das cores. A separação entre interior e exterior decorrente do funcionamento da câmara escura no qual a luz penetra e realiza a imagem será radicalmente criticada pelo escritor alemão. Alguns anos mais tarde, o trabalho do filósofo Arthur Schopenhauer enfatizará esse aspecto fisiológico da visão desenvolvido na obra de Goethe, propondo a divisibilidade retiniana. Para podermos situar o leitor quanto à importância do trabalho de Goethe e tornar mais clara a virada que a percepção encarnada no olho do observador, percepção fundada na noção de visão subjetiva, promove na história da visualidade ocidental, apresentaremos brevemente alguns traços característicos da doutrina elaborada por Goethe. No entanto, não é somente um deslocamento do observador externo que o trabalho de Goethe realiza. Segundo Jonathan Crary, Goethe abandona o modelo/regime epistemológico e óptico da câmera escura e, dessa maneira, "dissolve a distinção entre espaço interno e externo" (Crary, 1988, p. 4). É agora, no interior do próprio corpo, que as imagens se produzirão; é na corporeidade do observador que a percepção será gerada. "A subjetividade corporal do observador, que foi a priori excluída da câmera escura, repentinamente torna-se o lugar em que um observador é possível" (Crary, 1988, p. 4).

O interesse de Goethe pela atividade científica é amplo e vem desde os tempos em que, embora fosse um jovem estudante de Direito, assistia às aulas de química, medicina e anatomia, além de vasculhar numerosos estudos do século XVIII sobre cores. Tais estudos podem ser agrupados em duas tendências (Roque, 1995, 1996, 2009).

De um lado, tomou corpo uma tendência "científica" levada a cabo por naturalistas que pretendiam desenvolver um sistema lógico que articulasse as cores entre si a partir de uma irredutibilidade fundamental, a saber: as cores primárias expressas nos círculos cromáticos de cores opostas. A tendência naturalista inaugurada por Buffon desenvolve a ideia de cores acidentais, isto é, cores formadas por pares de cores opostas como nos fenômenos de contraste. O médico Robert Waring Darwin, pai de Charles Darwin, produzirá uma reflexão sobre as cores acidentais de Buffon, sugerindo uma explicação sistemática dos fenômenos subjetivos da cor a partir da existência de fibras musculares que atuariam como agentes na retina. Outros naturalistas que desenvolverão estudos importantes sobre o fenômeno cromático são Moses Harris e Schiffmüller.

De outro lado, edificou-se uma tendência estética, realizada por aqueles que se envolviam de forma prática com o trabalho com as cores. Dentre os artistas do século XVIII interessados pelo estudo das cores, encontramos o gravador alemão Le Blon e o pintor francês Claude Boutet. Tanto a tendência naturalista quanto a estética se fortaleceram no século XIX e o conceito de cores complementares marcará o ponto histórico desse cruzamento. A complementaridade cromática estará presente, a partir do século XVIII, em diversas teorias e círculos cromáticos tanto dos naturalistas quanto por parte dos teóricos da pintura, na tentativa de composição de uma melhor harmonia entre as cores. A propagação da questão das cores complementares é claramente encontrada no trabalho de Michel-Eugène Chevreul1 Lei de Contraste Simultâneo das Cores (1861). Nele, a estreita ligação das cores complementares com a visão subjetiva é elaborada principalmente no que diz respeito ao fenômeno de pós-imagem. A concepção de cor formulada por Goethe não se enquadra em nenhuma dessas duas tendências do século XVIII. Seu trabalho caminha por uma via bastante diferente e se esforça para afastar a Doutrina das Cores da exigência de matematização e de formalização geométrica corriqueira na óptica inglesa. O distanciamento da matemática proposto no livro leva a uma aproximação dos coloristas e de suas técnicas de tingimento. "Se nos distanciamos do trabalho do matemático, procuramos, ao contrário, a técnica do colorista" (Goethe, 1810/1993, p. 130). 

Kestler (2006) destaca o aspecto científico da obra de Goethe como condição fundamental para a compreensão da obra poética. Dessa forma, podemos ver que é

no estudo da botânica, nas investigações anteriores sobre a anatomia, a geologia e a zoologia, e posteriormente na investigação sobre a luz e as cores em sua Farbenlehre, que vai se revelando e delineando o propósito de Goethe de tentar apreender o processo formativo da natureza viva como modelo de qualquer forma artística (Kestler, 2006, p. 46).

As conversas com seu secretário Johann Peter Eckermann demonstram que o interesse de Goethe pelo fenômeno cromático não está restrito àquilo que foi desenvolvido no seu Doutrina das Cores, mas se inscreve em um conjunto não sistemático de trabalhos acerca de diversos temas científicos. O comentador Günter Kollert (1992), investigando textos originais de Goethe, revela a dimensão desses trabalhos sobre as cores. Kollert afirma que o trabalho cromático de Goethe está dividido em três partes: uma parte didática — Doutrina das Cores, publicada em 1810, uma parte polêmica — Revelações sobre a Teoria de Newton, não publicada por Goethe em decorrência da crítica demasiadamente pesada e com tom de escárnio (o Revelações só veio a público em 1831 pouco antes de sua morte em 1832), e uma parte histórica, totalizando mais de 700 páginas (Kollert, 1992, p. 10).

Para compreendermos o passo dado pela Doutrina das cores na constituição de um modo de visibilidade, faz-se necessário entendermos a experiência realizada por Goethe. Apesar de utilizar o quarto escuro, assim como Newton, o princípio de funcionamento da câmera escura foi subvertido. Extraímos o trecho em que o autor descreve o experimento e demonstra o efeito fisiológico na produção de imagens circulares.

Num quarto o mais escuro possível, deixe que o sol brilhe, por uma fresta de três polegadas de diâmetro na janela, sobre um papel branco e olhe de certa distância fixamente para o círculo iluminado. Quando fechamos a abertura e olhamos para a parte mais escura do quarto, vemos diante de nós uma imagem circular. O meio do círculo parecerá claro, incolor, tendendo moderadamente ao amarelo; a borda, entretanto, logo parecerá púrpura. Demora certo tempo para que essa cor púrpura possa encobrir, da borda para o centro, o círculo inteiro, eliminando finalmente por completo o centro claro. Assim que o púrpura aparece no círculo inteiro, a borda começa a se tornar azul, encobrindo por sua vez gradualmente a cor púrpura. Quando a imagem está completamente azul, a borda se torna escura e incolor, demorando muito para que a borda incolor expulse o azul e todo o espaço se torne incolor (Goethe, 1810/1993, p. 62).

O efeito constatado por Goethe decorre do fechamento da pequena entrada de luz e da manutenção da observação do local em que a luz incidia na parede oposta. O experimento mostra certa permanência das cores mesmo na ausência da luz. A ação visual, sob a forma de transformações cromáticas, requer que o olho — agora orgânico, corporificado — seja corresponsável pela produção das cores. O enraizamento da visão no corpo humano encarna o observador na materialidade orgânica e fisiológica do organismo e desloca em direção a uma ciência da visão tanto os esforços intelectuais e a discursividade sobre a visão como a elaboração dos aparatos mecânicos da luz. Um novo estatuto de visualidade se instaura "quando o visível escapa da ordem incorpórea e atemporal da câmera obscura e se torna apresentado em outros aparatos, dentro da instável fisiologia e da temporalidade do corpo humano" (Crary, 1988, p. 5). Veremos mais adiante que a passagem da visão subjetiva encontrada em Goethe para a fisiologia dos sentidos não será direta ou contínua.

A visão subjetiva confere mais importância à participação ativa do aparato fisiológico do observador do que às qualidades sensíveis próprias ao objeto perceptual. Ela desarticula a dependência restrita aos stimuli externos para a produção do percepto. Há um deslocamento da exterioridade do objeto perceptual para a subjetividade do observador e tal deslocamento representa uma mudança de paradigma de visualidade. Isto é, há uma modificação de uma óptica ou física da percepção para uma Psicologia da percepção2.

A visão subjetiva significa, principalmente a partir dos estudos de cores de Goethe, um modelo de visão que remete ao aspecto fisiológico do corpo. Podemos definir visão subjetiva como a "[...] noção de que a qualidade de nossas sensações depende menos da natureza dos estímulos e mais da constituição e funcionamento de nosso aparato sensorial" (Crary, 1994, p. 21). O trabalho de Goethe possui uma diferença de natureza em relação ao realizado por Newton, o que aponta para um corte radical no que diz respeito ao estatuto da visualidade clássica. Goethe pretendeu investigar as condições necessárias para a manifestação do fenômeno das cores. Isto é, não realizou nem uma física do fenômeno luminoso nem uma lógica das cores, como fez o matemático inglês. A existência da cor se realiza como um fenômeno que não se restringe à Física, sendo pensada, portanto, como algo que escapa a esse domínio. O fenômeno da cor, no sentido goetheano, deve ser articulado com a própria experiência da cor:

As cores que vemos nos corpos não são algo completamente estranhas ao olho, como se de algum modo fosse a primeira vez que tivesse tal sensação. Ao contrário, esse órgão sempre se dispõe a produzir, por si mesmo, as cores, e desfruta de uma sensação agradável, quando externamente se apresenta algo adequado a sua natureza e se fixa de modo significativo sua capacidade de ser determinado numa certa direção (Goethe, 1810/1993, p. 140).

Sobre esse ponto incidirá a produção discursiva de um sujeito psicológico da percepção pelas disciplinas empíricas ao longo do século XIX, dentre as quais se encontra a Psicologia da percepção. Tais disciplinas, que Foucault (2007) chama de "ciências empíricas", produzem não apenas um objeto, mas diferentes objetos que surgem, se transformam, coexistem e se articulam num "espaço comum", cujas relações delimitam e especificam os próprios objetos. Esses sistemas de relações são as regras mesmas que caracterizam um discurso sobre a visualidade, no século XIX; uma formação discursiva através de diversos documentos científicos, filosóficos, pictóricos, que configuram um saber acerca da visualidade moderna. Portanto, uma série de práticas discursivas instaurou a visualidade na própria organicidade. Esse sujeito psicológico será inseparável de um observador ativo, produtor autônomo dos conteúdos percebidos por ele. A visão subjetiva realizará a inseparabilidade entre esse observador posicionado e ativo e um sujeito psicológico. Isso será levado adiante pelos trabalhos da Fisiologia e da Psicofísica, que proliferarão durante o século XIX, sob os temas da atenção, percepção, memória, pensamento que compõem os processos mentais básicos.

Para Crary, é própria do modelo moderno da visão uma espécie nova de observador. Ele é forjado no encontro dos novos discursos disciplinares a respeito da visão com novos aparatos técnicos, produzindo, com isso, a dimensão de um espaço interno autônomo e também, de forma ativa, da própria realidade visual. A visão possuirá um caráter dissociado do mundo objetivo e seu resultado, portanto, não é proveniente exclusivamente dos dados que afetam o aparelho sensorial, pois é a atividade do organismo que confere o efeito da visão. Para Crary, "se os discursos do visível, nos séculos XVII e XVIII, abafaram e esconderam tudo o que ameaçasse a transparência do sistema óptico, Goethe assinala uma inversão, por afirmar a opacidade do observador como condição necessária para o aparecimento do fenômeno" (Crary, 1988, p. 6).

As experiências de Goethe interlaçam a criatividade das formas científica e estética acerca do fenômeno cromático, levando a cabo um processo investigativo diferente do modelo anglo-saxão. Goethe apresenta uma contraposição às teorias ópticas defendidas 100 anos antes por Isaac Newton.  Assim, contrário à posição físico-matemática defendida por Newton, é que Goethe lançará sua crítica ao reducionismo inerente ao modelo científico de explicação da visão a partir de um conjunto de prismas e lentes. A Doutrina das Cores pertence a esse espírito, que se funda numa grave crítica ao mais rigoroso cientificismo e mecanicismo presentes em toda a física newtoniana. Na concepção de polaridade da cromatogênese, termo usado por Kollert (1992, p. 34), Goethe retira o aspecto negativo da não luz (trevas) que a ciência da óptica afirmava e concebe uma solidariedade qualitativamente própria à não luz e à luz na produção da cor. A cor é um atributo fenomênico.

A análise de Tantillo (2007) examina as qualidades dinâmicas inerentes à polaridade, a partir do desenvolvimento do olho goetheano presente na Doutrina das Cores. Pares de opostos que habitam a divisão clássica na Filosofia são reinterpretados pelo pensamento de Goethe, quando ele postula uma relação de fluidez na ligação entre os polos que contempla a possibilidade de reversibilidade das posições. Os polos "Sujeito x Objeto", "Sensualidade x Razão", "Ideal x Real", dentre vários outros, tornam-se inseparáveis, como nas polaridades de um imã. A presença da exterioridade é dada no interior do corpo próprio, cabendo ao olho mesmo fabricar a realidade exterior num dinamismo intrínseco à visualidade. No desenvolvimento da obra sobre cores, isso fica claro, pois, como nos diz Tantillo,

Toda a estrutura de Farbenlehre de Goethe está baseada no princípio polar. O texto começa descrevendo as cores como 'Taten und Leiben' ('ações e paixão') da luz. Logo se torna evidente que toda a natureza participa de polaridades, que se caracterizam como o 'Sprache' ['linguagem'] da natureza (Tantillo, 2007, p. 271).

Como "paixões e ações" da luz, as cores se constituem na ação do próprio olho que as produz. Goethe desfaz a exterioridade própria à contemplação clássica do observador. Não há um mundo de objetos, ou mesmo a natureza, a servir à contemplação. As cores estão por toda parte, desde as superfícies dos objetos visíveis, e existem na coexistência de polaridades na atividade fisiológica do observador, através dos fenômenos de pós-imagem, da permanência da imagem, contrastes cromáticos e outros que serão abordados no último capítulo da Doutrina das Cores, bem como também na cultura como um todo, por meio de seus aspectos sensíveis e morais.

No ensaio intitulado Goethe and Kantian Philosophy, Ernst Cassirer (1970) mostra, em determinado momento, que a ideia de morfologia concebida por Goethe representa uma importante modificação metodológica para a Biologia do século XVIII e marca o início da Botânica. Tal concepção de morfologia culmina em sua teoria da metamorfose. Nesta, a transformação e formação da natureza orgânica está diretamente ligada à transição da visão genérica das plantas, ou seja, há uma passagem da clássica expressão do sistema da natureza de Linnaeus em sucessivos arranjos para a visão genética da natureza orgânica enquanto produtora, isto é, dotada de uma capacidade interna de produtividade num processo de autoengendramento. Cassirer afirma que "a ideia de metamorfose torna-se o guia neste grande processo de produtividade interna da natureza" (1970, p. 92,). Portanto, o olho goetheano, que é a própria ação da retina enquanto respondendo ativamente pela imagem produzida, está em sintonia com a capacidade de formação e transformação da natureza orgânica que Goethe chama de morfologia. A cromatogênese está diretamente ligada a sua ideia de morfologia. 

A noção goetheana de visualidade funde aspectos poéticos, científicos e literários e realiza um olho que é a possibilidade de unificação da exterioridade na subjetividade. Um monismo ontológico ocorre a partir da ação orgânica do olho na produção das cores. Ao defender o olho como um órgão vivo e não separado da natureza, Goethe inaugura uma postura radicalmente nova em relação ao fenômeno cromático. Ele compreenderá que um fundamento da experiência sensível é intrinsecamente ligado à experiência da cor. Por essa razão, Goethe acusará o trabalho de Newton de artificialismo, pois este, ao tomar a cor como um fenômeno puramente físico, desconsidera a organicidade e a atividade própria ao órgão na atividade perceptual. A efetividade da ação sobre o mundo está diretamente implicada no pensamento do literato alemão numa unidade entre luz, olho e natureza; portanto, a equivalência da retina à parede do quarto escuro revela um completo afastamento da vida. O olho goetheano do qual fala a sua Doutrina das Cores é o olho responsável pela visão subjetiva. Isso quer dizer que a percepção está encarnada no próprio olho do observador. O olho é produzido pela luz, ele "[...] deve a sua existência à luz [...] a luz produz um órgão que se torna seu semelhante. Assim, o olho se forma na luz e para a luz" (Goethe, 1810/1993, p. 44). Para Goethe, "as cores são ações e paixões da luz" (1810/1993, p. 35) e, dessa forma, relacionam-se numa harmonia imanente. 

Mais uma vez, no ensaio de Cassirer sobre Goethe (1970), fica explícito, em algumas correspondências pessoais, o esforço que faz Goethe para evitar qualquer forma de simbolismo numérico na compreensão e no entendimento dos fenômenos da natureza; é tão forte a sua repulsa ao caminho da matemática que ele afirma ter planos de substituir uma notação numérica pelas notas musicais (Cassirer, 1970, p. 81). É nesse ponto, sobretudo, que Goethe irá discordar do trabalho de Schopenhauer, como discutiremos logo adiante.

 

A divisibilidade de Schopenhauer

O tratado Sobre a Visão e as Cores (1816/2003), de Schopenhauer (1788-1860), foi publicado em 1816, seis anos após a publicação Doutrina das Cores, e sofreu explícita influência do trabalho de Goethe. Como afirmamos anteriormente, Goethe era crítico da posição cientificista acadêmica que pretende tomar uma posição de exterioridade em relação ao fenômeno estudado. O próprio título do trabalho de Goethe afirma essa posição, pois o vocábulo doutrina (Lehre)3 apresenta o fato de que as cores não devem ser analisadas teoricamente, mas sim experienciadas na realidade da vivência cromática. No entanto, a primeira consideração de Schopenhauer em relação ao Doutrina das Cores diz respeito à sua incompletude decorrente, ainda segundo o autor, do fato de Goethe ter se restringido à dimensão da experiência.

É importante enfatizarmos a diferença entre doutrina e teoria, no sentido estabelecido por Goethe, para pensarmos a relação entre visualidade e Psicologia moderna. O termo doutrina aponta para a experiência psicológica que o indivíduo — de forma intuitiva ou espontânea — pode ter, enquanto o termo teoria captura a experiência como experimentação analítica, repetitiva e artificial que deve ser postulada necessariamente pela linguagem matemática. Para Goethe, a experiência não era separável da teoria numa relação mútua entre os fenômenos e as explicações desses fenômenos. Assim, embora a sua investigação científica seguisse o método intuitivo, ela não era uma investigação "naïve", pois toda proposição científica deve ter seu lugar fixo, num sistema definido e objetivamente fundado.

A influência do consagrado poeta de Weimar sobre Arthur Schopenhauer, jovem filósofo então, surge durante seus encontros nos salões literários que eram organizados pela mãe do filósofo. Essa influência e admiração é expressa no ensaio intitulado Sobre a Visão e as Cores (1816/2003), de Schopenhauer, que pretende conciliar determinado aspecto de teorização e quantificação do fenômeno cromático com uma certa continuidade da visão subjetiva desenvolvida por Goethe. Schopenhauer segue a nova via aberta por Goethe ao atribuir à capacidade orgânica da retina a produção das cores. É importante destacar esse aspecto do trabalho do filósofo para nosso argumento. Assim, devemos atentar para a ênfase atribuída por Schopenhauer ao papel da retina na produção das cores, ou ainda, para o aspecto subjetivo da visão cromática. Dessa forma, ele partirá das cores fisiológicas desenvolvidas por Goethe para afirmar a atividade qualitativamente dividida da retina. Schopenhauer pretende completar a doutrina de Goethe, formulando uma teoria sistemática.

Schopenhauer estabelece as cores como atividade qualitativamente dividida da retina. As cores são modificações do olho percebidas de modo imediato, são atividades plenas da retina e, por isso, permitem estabelecer as determinações de números inteiros, indicando as cores na totalidade espectral, assim como as menores frações indicam as gradações, matizes e nuanças que escapam às delimitações. O conceito de divisibilidade qualitativa da retina compreende tanto a divisibilidade "intensiva" (dinâmica) quanto a "extensiva" (mecânica). A divisibilidade intensiva pode ser definida pela influência da luz ou mesmo pelo grau de atividade atenuada da retina gerado pela ação do branco. Assim, a atividade atenuada da retina pode ser penumbra (cinza) ou obscuridade (preto). Por outro lado, a divisibilidade extensiva decorre da recepção de múltiplas impressões que afetam pontos da retina e, em consequência, a retina, agindo com toda a força sobre os outros pontos, produz a cor complementar à cor que inicialmente afetou o olho.

Algumas experimentações simples são propostas por Schopenhauer para apresentar sua teoria. Um primeiro experimento a que o autor se refere é a observação atenta e prolongada de um círculo branco sobre um fundo preto. Após a observação por cerca de 30 segundos, deve-se desviar o olhar para um fundo de cor cinza claro e, então, a imagem que permanece nos olhos é um círculo negro sobre um fundo branco. Ele chama esse fenômeno de "divisibilidade extensiva da atividade da retina" (Schopenhauer, 1854/2003, p. 58, grifo do autor). A retina é afetada pelo disco branco e a exaure nesse ponto por alguns instantes; isso se deve à completa inatividade da retina. Ele complementa a experiência sugerindo que se coloque um disco amarelo no local do disco branco. E ao ser feito isso primeiro e depois dirigindo o olhar para a superfície cinza-claro, observamos o efeito de um disco violeta. Nas palavras de Schopenhauer, buscamos a explicação para o fenômeno que acabamos de descrever:

Expondo ao olho o disco amarelo, como há pouco fizemos com o branco, a atividade plena da retina não foi excitada, nem ficou mais ou menos exaurida, ao contrário, o disco amarelo conseguiu provocar apenas uma parte dela, deixando a outra para trás, de modo que tal atividade da retina se dividiu então qualitativamente, separando-se em duas metades, em que uma delas se mostrou como disco amarelo e a outra, ao contrário, ficou de fora, e por si mesma segue adiante, sem qualquer estímulo externo novo, como espectro violeta. Ambos, o disco amarelo e o espectro violeta, como metades qualitativas da atividade plena da retina separadas neste caso, são em conjunto iguais a ela: por isso e nesse sentido, chamo-os de complemento um do outro (Schopenhauer, 1854/2003, pp. 59-60, grifo do autor).

O fenômeno da complementariedade das cores será fruto da visão fisiológica nos termos goetheanos ou ainda da ação direta da divisibilidade que é própria à retina, segundo Schopenhauer. É por essa razão que Jonathan Crary afirmará a existência de uma "[...] proximidade imediata de Schopenhauer com um discurso científico sobre o sujeito humano" (Crary, 2012, p. 78). Assim, a saturação de parte da retina por uma cor permite a ação da porção restante da retina como cor complementar a essa primeira. Dessa maneira, Schopenhauer afirma que "[...] as metades qualitativas, nas quais se divide aqui a atividade da retina, não são iguais entre si, sendo a cor amarela uma parte qualitativa desta atividade bem maior do que o seu complemento, a cor violeta" (Schopenhauer, 1854/2003, p. 60, grifo do autor).

Além de buscar completar a Doutrina das Cores, o ensaio de Schopenhauer reafirma como um engano a tese de Isaac Newton da divisão do feixe de luz solar proporcionada pelos graus da refração que o raio sofre. Nesse aspecto, Schopenhauer apresenta as críticas a Newton de forma mais clara do que Goethe o fez. Destacamos o parágrafo 8, em que fica clara a consideração feita à óptica de Newton. Para Schopenhauer:

Não se pode negar que em todos os equívocos, como também no de Newton, tenha havido um análogo distante, uma procura da verdade, o que resulta justamente a partir do ponto de vista de nossa observação. É que de acordo com ela, ao invés do raio de luz dividido, temos uma atividade dividida da retina; [...] Dessa maneira, de uma divisão do raio solar passaríamos para uma divisão da atividade da retina. Foi possível escolher esse caminho para a observação, porém — que retorna do objeto observado para o observador, do objetivo para o subjetivo (Schopenhauer, 1854/2003, p. 77, grifos do autor).

Ainda sobre o ponto da ação da luz e a natureza das cores, ele afirma uma posição segundo a qual "[...] partimos da luz para o olho, de modo que as cores para nós não passam de ações do próprio olho perceptíveis em oposições polares" (Schopenhauer, 1854/2003, p. 78). Schopenhauer continua sua crítica a Newton afirmando que

Uma diferença essencial entre a minha teoria e a de Newton consiste no fato de que esta (como já mencionei) apresenta cada cor como uma mera qualitas occulta (colorifica) de uma das sete luzes homogêneas, dando-lhe um nome e abandonando-a depois, deixando sem qualquer explicação a diferença específica das cores e o efeito peculiar de cada uma. Minha teoria, por outro lado, esclarece tais peculiaridades e nos faz compreender onde reside a razão da impressão específica e do efeito causado por cada cor, ensinando-nos a reconhecê-la como uma parte bem determinada da atividade da retina, expressa por uma fração e, além disso, como pertencente ao lado maior ou ao menor da dispersão de tal atividade (Schopenhauer, 1854/2003, p. 79, grifos do autor).

Schopenhauer dedica-se a realizar um trabalho como um complemento ao de Goethe, levando à radicalidade a noção de um corpo que tem um papel ativo, de um organismo corporificado na opacidade fisiológica. Contudo, Goethe enxergou no esforço do jovem filósofo uma diferença tão grave e uma deturpação na interpretação do seu trabalho que rompeu laços de amizades. Em toda a obra, Schopenhauer reconhece a originalidade e a importância do trabalho de Goethe, mas faz, em um capítulo final, algumas correções à doutrina de Goethe acerca do surgimento das cores físicas:

Apenas em dois pontos minha teoria obrigou-me a divergir de Goethe, a saber, no tocante à verdadeira polaridade das cores, tal como já foi exposto, e com referência à produção do branco a partir das cores, fato do qual Goethe nunca me perdoou, sem nunca também me ter apresentado, verbalmente ou por carta, qualquer argumento contrário (Schopenhauer, 1854/2003, p. 138).

Para nós, o mais importante aqui está no corte produzido pela visão subjetiva e os efeitos no campo da percepção bem como na Psicologia moderna. Esse corte aponta para a visualidade moderna interiorizada no corpo fisiológico e como efeito da atividade desse corpo. A Psicologia moderna, no seu projeto de ciência, será compreendida por nós nessa posição que produz a percepção moderna.

É importante pensarmos que afirmar a visão subjetiva implica produzir um corpo enquanto local no qual reside o observador ao mesmo tempo em que o próprio observador é possível enquanto tal. Nesse sentido, Schopenhauer buscará uma genuína aproximação com os fisiólogos de seu tempo. Para Crary, "[...] é importante afirmar a proximidade imediata de Schopenhauer com o discurso científico sobre o sujeito humano" (2012, p. 78). Nessa mesma direção, Lauxtermann (1987, p. 275) afirmará que Schopenhauer, ao identificar o mundo fenomênico com Vorstellung (Representação), faz um acordo com o realismo físico do materialismo francês de Cabanis  e, portanto, o interesse de Schopenhauer pelos estudos da óptica caminhará na direção da fisiologia dos órgãos dos sentidos e do próprio cérebro. Se o fenômeno do aparecimento das cores diz respeito às frações da atividade retiniana, o passo seguinte será conceder a existência de um papel crucial do cérebro no processo de transformação do material sensorial numa percepção e, para isso, Schopenhauer articulará sua filosofia com trabalhos dos fisiólogos de seu tempo, por exemplo, Georges Cabanis, Xavier Bichat e François Magendie.  As palavras de Lauxtermann deixam isso claro:

Se a sensação de cor (ou, por extensão, qualquer outra sensação) já não é algo puramente passivo, mas sim a atividade (provocada, sem dúvida, por um estímulo externo, neste caso, a luz) de um pequeno pedaço de tecido nervoso na parte de trás do globo ocular, quanto mais isto deve ser verdadeiro para as funções de um órgão infinitamente mais complicado como o cérebro humano! Para isto, é necessário um passo decisivo para reconhecer a cor, que a princípio nada mais é do que a sensação do olho, como uma qualidade de um objeto externo que atua sobre o olho. Na sensação do "vermelho", não há nada que nos permita dizer "este objeto é vermelho". Tal objeto existe apenas para o Entendimento (Verstand), o que é uma função do cérebro (1987, p. 283, grifos do autor).

 

Conclusão

O olho goetheano marca o aparecimento de um corpo que, na sua dimensão fisiológica, é responsável pela produção ativa da visão, das cores, das formas, do espaço e produziu uma importante ruptura com o modelo clássico de visão ao fornecer as bases para as duras críticas à concepção newtoniana. Os fenômenos da percepção visual, conforme defendidos por Goethe, tornam-se possíveis a partir da sua experiência qualitativa e não podem, portanto, ser apreendidos em termos quantitativos e matematizáveis. Mesmo em Schopenhauer, que buscou as evidências fornecidas pelo materialismo da fisiologia de sua época, ainda vemos um aspecto da experiência qualitativa da própria atividade retiniana. É importante destacarmos, no entanto, que a materialidade da Psicologia moderna, encarnada no organismo, não é da mesma ordem que a proposta por Goethe.

O encaminhamento dessa discussão na Psicologia da percepção nos leva a pensar que a apropriação do organismo de forma mecânica é incompatível com o caráter de transformação e formação do organismo entendido pela visão genética de Goethe. A colocação goetheana é desfeita quando se propõe um corpo como efeito do esquadrinhamento proposto pela atividade experimental que estabelece parâmetros e verifica a atuação desses parâmetros em situações artificiais às quais essas variáveis são submetidas.

O trabalho de Goethe foi negligenciado pelas psicologias norte-americana e anglo-saxônica ao se apoiarem epistemologicamente no método positivo das ciências naturais. Em geral, as investigações de Goethe são citadas na história das ciências ou na história da Psicologia científica, restringindo-as a uma espécie de excentricidade do espírito do poeta. Sua doutrina é fruto de experiências individuais e subjetivas que podem ser repetidas por qualquer pessoa, mas essas contribuições sequer são lembradas pelo discurso cientificista que predomina na história da Psicologia da percepção, como uma maneira positiva de pensar os fenômenos cromáticos. Manuais de Psicologia científica (Boring, 1950; Guillaume, 1966; Schultz & Schultz, 2005) instituem, frequentemente, a origem desse saber, apoiada em uma recusa radical a qualquer pensamento filosófico, estético ou artístico.

Certamente, a crítica do afastamento da vida por parte da artificialidade encontrada no mecanicismo e que, como já afirmamos anteriormente, organiza certo discurso cientificista da Psicologia moderna, contribui para pensarmos os fenômenos visual e cromático. Portanto, aproximar a noção da produção de uma espécie de organicidade ativa e produtora da visibilidade subjetiva, encontrada nos trabalhos de Goethe e de Schopenhauer, dos estudos do fenômeno visual é uma boa oportunidade para repensarmos alguns equívocos que reiteradamente são repetidos pela história da Psicologia, bem como para permitir a ampliação do diálogo da Psicologia, da experiência cromática, com a produção artística visual, a pintura e a história da arte.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rômulo Ballestê
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Avenida Pasteur, 250, Pavilhão Nilton Campos – Praia Vermelha
CEP 22290-902 – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: romuloballeste@gmail.com 

Revisto em 30/07/2013
Revisado em 18/01/2014
Aceito em 19/01/2014

 

 

1 A respeito do trabalho do químico francês Michel-Eugène Chevreul e da lei dos fenômenos de contrastes de cores a partir do tingimento de tecidos, bem como o desdobramento científico e artístico que esse trabalho teve, pode-se consultar o livro: Roque, G. (2009). Art et science de la couleur: Chevreul et les peintres, de Delacroix à l'abstration. Paris: Éditions Gallimard.
2 O detalhamento histórico que permite compreender as diferenças existentes entre uma física da percepção, uma fisiologia da percepção e uma Psicologia da percepção demandam um trabalho bem mais extenso em relação aos propósitos deste artigo e serão objetos de estudos ulteriores.
3 A tradução brasileira de Marco Giannotti (1993) adverte para esse aspecto e toma o termo alemão Lehre como doutrina, isto é, o toma na sua acepção mais próxima da pensada por Goethe, que inclusive faz um uso pejorativo do termo Theorie ao longo de seu escrito. Diversas edições traduzem Farbenlehre como "Teoria das Cores", mas seguiremos a tradução citada anteriormente por julgarmos a coerência na adoção do vocábulo doutrina com o restante da obra. Como o tradutor da obra de Goethe faz a apresentação da tradução brasileira do livro Sobre a visão e as Cores, de Arthur Schopenhauer, encontramos uma nota referida à questão da tradução do título do livro de Goethe. Essa opção toca diretamente num ponto de crítica feito por Schopenhauer e que nos parece um pouco distante do que se propõe a filosofia goetheana. Schopenhauer pretende completar o trabalho de Goethe, realizando uma teoria que ele esperava, mas que nos parece que não caberia mesmo ser realizada por Goethe.