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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.22 no.1 Brasília jan./mar. 2022
https://doi.org/10.5935/RPOT/2022.1.22902
10.5935/RPOT/2022.1.22902 ARTIGOS
Estressores psicossociais e saúde ocupacional entre docentes da educação básica pública
Psychosocial stressors and occupational health among public basic education teachers
Estresores psicosociales y salud ocupacional entre docentes de educación primaria pública
Virgínia D. CarvalhoI; Vitória Régia Lopes dos SantosII
IUniversidade Federal de Alfenas, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMG), Brasil
Informações sobre a autora principal
RESUMO
O estudo analisou a relação entre estressores psicossociais, sexo, transtornos mentais comuns (TMC) e danos físicos relacionados ao trabalho, entre docentes da educação básica pública. Uma amostra de 452 participantes respondeu a três escalas e a um formulário sociodemográfico e laboral. Análises de regressão hierárquica indicaram os estressores explicando a ocorrência de TMC e danos físicos relacionados ao trabalho, independentemente do sexo do respondente. Maior ocorrência de sintomas foi relatada pelas mulheres. Destacaram-se a capacidade preditiva do conflito trabalho-família em relação a todos os sintomas analisados e da sobrecarga de trabalho em relação aos TMC e dores no corpo, principalmente membros inferiores, além de alterações no sono. Efeito interativo foi verificado entre sexo e conflito trabalho-família em relação aos danos físicos. A discussão da saúde no trabalho docente foi enriquecida com a inclusão da variável sexo e de outros estressores psicossociais, como a insegurança na carreira, ainda pouco explorados nas pesquisas junto a estes profissionais.
Palavras-chave: estressores psicossociais; saúde ocupacional; docentes.
ABSTRACT
The study analyzed the relationship between psychosocial stressors, sex, common mental disorders (CMD) and work-related physical damage, among public basic education teachers. A sample of 452 participants answered questions based on three scales, as well as a sociodemographic and work form. Hierarchical regression analysis indicated the stressors explaining the occurrence of CMD and work-related physical damage, regardless of the respondent's gender. Greater occurrence of symptoms was reported by women. The predictive power of work-family conflict in relation to all analyzed symptoms, and work overload in relation to CMD and body pain, especially lower limbs stood out, in addition to sleep disorders. Interactive effect was verified between sex and work-family conflict in relation to physical damage. The discussion of teachers' health at work was improved with the inclusion of the gender and psychosocial stressors, such as career insecurity, that had previously barely been explored in research among these professionals.
Keywords: psychosocial stressors; occupational health; teachers.
RESUMEN
Este estudio analizó la relación entre los estresores psicosociales, el sexo, los trastornos mentales comunes (TMC) y el daño físico relacionado con el trabajo, entre docentes de educación primaria pública. Una muestra de 452 participantes respondió a tres escalas y un formulario sociodemográfico y laboral. Los análisis de regresión jerárquica indicaron los factores estresantes que explican la ocurrencia de TMC y daños físicos relacionados con el trabajo, independientemente del sexo del encuestado. Las mujeres relataron una mayor aparición de síntomas. Se destacó la capacidad predictiva del conflicto trabajo-familia en relación a todos los síntomas analizados y la sobrecarga laboral en relación a TMC y dolor corporal, especialmente miembros inferiores, además de trastornos del sueño. Se verificó el efecto interactivo entre sexo y conflicto trabajo-familia en relación a los daños físicos. La discusión de la salud en el trabajo docente se enriqueció con la inclusión de la variable sexo y otros estresores psicosociales, como la inseguridad en la carrera, aún poco explorados en investigaciones con estos profesionales.
Palabras clave: estresores psicosociales; salud ocupacional; docentes.
A docência é uma profissão que encerra inegável importância social, entretanto, as transformações pelas quais tem passado ao longo das últimas décadas têm contribuído para tornar mais desgastante o trabalho do professor. Os processos de precarização das condições de trabalho desse profissional foram se aprofundando (Assunção & Oliveira, 2009; Araújo, Pinho, & Masson, 2019; Piolli, Silva, & Heloani, 2015), em um movimento de intensificação do trabalho, tanto em termos de aumento da carga horária como do número de papéis que o professor é convidado a assumir (Araújo et al., 2019; Assunção & Abreu, 2019; Gasparini, Barreto, & Assunção, 2005).
Políticas dessa natureza, que configuram uma tendência mundial, a qual assume contornos ainda mais perversos no Brasil, encontram-se na gênese dos processos de adoecimento no trabalho (Araújo, Palma, & Araújo, 2017) ao contribuir para configurar um conjunto de estressores que afetam o bem-estar e a saúde psíquica desses profissionais (von der Embse, Ryan, Gibbs, & Mankin, 2019; Pereira, Londero-Santos, & Natividade, 2019; Valle, Reimão, & Malvezzi, 2011). Este quadro de adoecimento, por sua vez, afeta a capacidade para o trabalho do professor e produz impactos negativos nos resultados escolares, por aumentar as taxas de absenteísmo, afastamentos, deterioração no clima da escola e no próprio comportamento dos professores, com reflexos no comportamento dos alunos (Alcântara, Medeiros, Claro, & Vieira, 2019; Valle, Reimão, & Malvezzi, 2011; von der Embse, Ryan, Gibbs, & Mankin, 2019).
Ademais, urge reconhecer que a docência é uma profissão, por natureza, exigente, tendo em vista os aspectos emocionais envolvidos no seu exercício, o que torna os profissionais que nela atuam mais vulneráveis ao estresse (Birolim et al., 2019; Kyriacou, 2001). Assim, o estresse do professor tem recebido crescente atenção, nacional e internacionalmente (Kyriacou, 2001; Luz, Pessa, Luz, & Schenato, 2019; Mouza & Souchamvali, 2016; Skaalvik & Skaalvik, 2017), sendo abordado, inclusive em muitos estudos epidemiológicos, os quais têm contribuído para atestar, no caso brasileiro, o quadro de adoecimento dos professores, caracterizado, principalmente, por distúrbios psíquicos, musculoesqueléticos e disfonias (Araújo & Carvalho, 2009; Assunção & Abreu, 2019). Dentre os distúrbios psíquicos, os transtornos mentais comuns, que se afiguram como distúrbios leves, indicativos de "alguma afecção da estrutura de vida psíquica do trabalhador" (Borges & Argolo, 2002, p. 18), têm apresentado alta prevalência entre os docentes, como vêm mostrando algumas pesquisas (e.g. Gasparini, Barreto, & Assunção, 2006; Tostes, Albuquerque, Silva, & Petterle, 2018). Emergem também como aspectos problemáticos as dores em diferentes partes do corpo, alterações do sono e problemas gastrointestinais (Ribeiro, Araújo, Carvalho, Porto, & Reis, 2011; Silva & Dutra, 2016; Valle et al., 2011).
Tais achados tem propiciado inegável avanço para a discussão do tema, embora o desenho da relação entre aspectos psicossociais do trabalho e saúde docente demande, ainda, maior elaboração. Boa parte dos estudos que a abordaram, no Brasil, se fundamentou no modelo demanda-controle de Karasek (e.g. Araújo & Carvalho, 2009; Cardoso, Araújo, Carvalho, Oliveira, & Reis, 2011; Porto et al., 2006; Silva & Dutra, 2016), trazendo dados relevantes para o debate, porém com enfoque em um conjunto relativamente pequeno de estressores. Isso significa que discussões sobre estressores como conflito trabalho-família, papéis na organização e perspectivas de carreira, em sua associação com o adoecimento docente, pouco têm sido contempladas na literatura, como já havia sido observado, inclusive, por Araújo et al. (2019) que destacaram tal limitação na abordagem dos aspectos do trabalho.
Assim, buscando contemplar esses elementos, que ainda se configuram como lacunas nas pesquisas sobre a temática no Brasil, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar a relação entre estressores psicossociais, transtornos mentais comuns e danos físicos relacionados ao trabalho docente na educação básica pública, entre profissionais atuantes na região Sul de Minas Gerais. O modelo teórico adotado para orientar o desenvolvimento é aquele proposto por Cooper, em parceria com outros estudiosos (Cooper & Marshall, 1976; Cooper, Dewe, & O'Driscoll, 2001), o qual apresenta uma classificação dos principais estressores abordados na literatura em seis categorias: fatores intrínsecos ao trabalho, papéis na organização, relacionamentos no trabalho, desenvolvimento de carreira, interface trabalho-família e fatores organizacionais.
Tais estressores, quando percebidos pelos indivíduos como excedentes à sua capacidade de adaptação, podem ocasionar reações diversas, sejam de natureza fisiológica, psicológica e/ou comportamental. As reações fisiológicas envolvem variados tipos de respostas corporais aos estressores, desde variações nas taxas hormonais e dores no corpo, até problemas gastrointestinais e cardiovasculares. As reações psicológicas são aquelas experimentadas mentalmente pelos indivíduos, as quais podem se expressar em termos de ansiedade, depressão, burnout e (in)satisfação no trabalho, por exemplo (Cooper et al., 2001; Ganster & Rosen, 2013; Schonfeld & Chang, 2017). As reações comportamentais, por sua vez, caracterizam as ações que representam risco para o seu emissor, como o consumo excessivo de álcool, fumo ou tentativa de suicídio (Cooper et al., 2001; Ganster & Rosen, 2013).
Importa salientar as implicações mútuas entre respostas de diferentes naturezas, da mesma forma que se deve compreender que os estressores não agem isoladamente, mas de forma aditiva e dinâmica (Cooper et al., 2001). Dada, entretanto, a extensão do número de respostas possíveis aos diversos estressores, as pesquisas costumam focar as mais comumente emitidas. Ademais, tem predominado na literatura sobre estresse no trabalho a abordagem das reações psicológicas (Cooper et al., 2001; Ganster & Rosen, 2013), de modo que o presente estudo propõe uma ampliação no foco ao conjugar a análise de reações de natureza psicológica e fisiológica.
Método
Participantes
A população em estudo se constituiu pelos 790 docentes da educação básica, atuantes em 19 escolas da região Sul de Minas Gerais. Destes, 452 respondentes compuseram a amostra não probabilística por acessibilidade, observando-se um critério de inclusão que foi o tempo mínimo de um ano de trabalho como docente. As participantes foram, em sua maioria, mulheres (73,7%), com idade oscilando entre 31 e 50 anos (67,7%), casadas (58,1%), com renda mensal na faixa de 1 a 3 salários mínimos (49,8%) e 3 a 5 salários mínimos (35,9%) e com instrução em nível de graduação (34,9%) e especialização (55,3%). Predominou o vínculo empregatício efetivo (63,2%), sendo que 53,2% dos docentes trabalhavam em apenas uma escola e 46,3% atuavam em duas escolas. O tempo total de serviço como docente esteve entre 1 e 44 anos, com média de 14.51 anos (DP=8,45) e o número médio de alunos por turma foi de 34.13 (DP=6,74).
Cumpre esclarecer que o presente estudo se originou a partir de um projeto mais amplo que avalia a saúde psíquica no trabalho docente a partir de um conjunto de variáveis contextuais e individuais. Para atender ao objetivo desse estudo, foram empregados os dados colhidos a partir de quatro dos instrumentos adotados no referido projeto, sendo uma escala que levantou informações sobre a percepção de estressores psicossociais no trabalho, outras duas que mensuraram a ocorrência de transtornos mentais comuns e danos físicos relacionados ao trabalho e um formulário sociodemográfico que avaliou questões referentes ao perfil dos docentes e a alguns aspectos de seu trabalho.
Instrumentos
A Escala para Avaliação de Estressores Psicossociais no Contexto Laboral (EAEPCL), desenvolvida por Ferreira et al. (2015), com base no modelo de Cooper (Cooper & Marshall, 1976; Cooper et al., 2001), contempla cinco das seis categorias de estressores ali dispostas, sendo que apenas as características organizacionais não são abordadas em seus 35 itens. As respostas assinaladas em escala de seis pontos indicam a intensidade com que cada estressor é percebido pelo indivíduo. Os itens são distribuídos em sete fatores: conflito e ambiguidade de papéis, sobrecarga de papéis, falta de suporte social, insegurança na carreira, falta de autonomia, conflito trabalho-família e pressão do grau de responsabilidade. Pequenas modificações foram realizadas em alguns itens para sua adequação ao contexto em estudo.
Para a avaliação dos transtornos mentais comuns foi empregado o Questionário de Saúde Geral - QSG-12, em sua versão adaptada e testada no Brasil por Borges e Argolo (2002). Trata-se de um instrumento amplamente utilizado, cuja versão original possuía 60 itens, entretanto com versões mais reduzidas, como a de 12 itens que foi aqui empregada. Avalia sintomas e comportamentos particulares, indicativos de transtornos psíquicos leves, taxados em uma escala que varia de 0 a 3 pontos, de acordo com a intensidade com que cada um deles é experimentado pelo participante. Sua estrutura fatorial não tem sido objeto de consenso entre os estudiosos, exceto pela concordância de que o mesmo admite a utilização de solução unifatorial ou bifatorial (Borges & Argolo, 2002; Gouveia, Lima, Gouveia, Freires, & Barbosa, 2012).
Atendendo ao propósito de levantar reações individuais de natureza física foram utilizadas as questões que compõem o fator Danos Físicos da Escala de Avaliação dos Danos Relacionados ao Trabalho, que faz parte do Inventário sobre o Trabalho e Riscos de Adoecimento (Mendes & Ferreira, 2007). O referido fator é composto por 12 itens, que questionam sobre dores em diferentes partes do corpo e alguns distúrbios biológicos, os quais o respondente atribui que tenham sido causados essencialmente pelo seu trabalho. As respostas, indicadas numa escala de 0 a 6 pontos, sinalizam a quantidade de vezes em que cada tipo de dano foi experimentado pelo respondente (sendo 0=nenhuma vez e 6=seis ou mais vezes) nos últimos três meses. Pequena alteração foi realizada no enunciado da escala, avaliando os danos nos últimos seis meses, o que atende a uma das recomendações da Associação Internacional para o Estudo da Dor, referidas por Gabani, González, Mesas e Andrade (2018), quanto ao período que deve ser utilizado para mensuração dos sintomas.
Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos
Para a coleta dos dados foi realizado contato com as escolas para autorização e agendamento da aplicação dos questionários, sendo que tal atividade ocorreu durante os minutos iniciais de alguma das reuniões pedagógicas de cada instituição. O levantamento foi operacionalizado, na maior parte das instituições participantes, entre os meses de fevereiro e março de 2019, sendo que em apenas três delas a coleta ocorreu entre abril e maio daquele ano. A distribuição dos questionários foi precedida de breve apresentação do projeto e orientações iniciais para o preenchimento. De um total de 452 questionários aplicados, 14 foram descartados por erros de preenchimento, perfazendo um total de 438 questionários válidos. Foi assegurada a preservação da identidade dos respondentes durante todo o processo de levantamento, análise, discussão e divulgação dos resultados, sendo que estes foram requisitados a assinar um termo de consentimento livre e esclarecido. O projeto de onde se extraíram as informações que estão sendo trabalhadas no presente estudo se encontra registrado e aprovado pelo Comitê de Ética da Instituição de origem das autoras, sob o parecer de número 3.156.204.
Procedimentos de Análise dos Dados
O tratamento dos dados teve início com realização de análise fatorial exploratória (fatoração pelos eixos principais) e realização de testes de confiabilidade para examinar a adequação dos três instrumentos na mensuração das variáveis estudadas junto aos docentes, principalmente tendo em vista as pequenas adaptações realizadas na EAEPCL e no enunciado da escala que avaliou os Danos Físicos, bem como a falta de consenso na literatura quanto à estrutura fatorial do QSG-12. Análises de correlação, regressão hierárquica e ANOVA fatorial foram empregadas para investigar a relação entre sexo, estressores psicossociais, danos físicos e transtornos mentais comuns.
Resultados
Para todas as três escalas analisadas, a fatorabilidade dos dados foi indicada, de acordo com os coeficientes de KMO (0,90, 0,93 e 0,91) para as escalas EAEPCL, QSG-12 e Danos Físicos, respectivamente, além da significância do teste de esfericidade de Bartlet (p<0,001). Tomando-se a EAEPCL, a extração dos fatores se pautou pelo critério de Kaiser (autovalores maiores que 1), que indicou solução similar à original com a distribuição dos itens em sete fatores e variância total explicada de 56,2%. Pequenas diferenças foram observadas na composição de alguns fatores, que se mantiveram quando aplicada a rotação oblíqua. Três itens que carregavam originalmente nos fatores insegurança na carreira, conflito trabalho-família e pressão do grau de responsabilidade passaram a carregar no fator sobrecarga de papéis. Como dois desses itens não se adequavam bem ao conteúdo expresso no referido fator, além de estarem entre aqueles que foram reformulados para a aplicação da escala entre os docentes, optou-se por sua exclusão e realização de nova análise.
Os resultados da análise subsequente se mostraram muito próximos aos da primeira, com um item do fator conflito trabalho-família ("Levar trabalho pra casa") ainda carregando no fator originalmente denominado como sobrecarga de papéis. Tal item foi ali mantido em virtude de se mostrar relacionado ao conteúdo dos demais, entretanto, como sua entrada contribuiu para a noção de que o referido fator, neste estudo, estava tratando antes de sobrecarga de trabalho do que de papéis, o seu nome foi mudado. Assim, a estrutura resultante apresentou, nessa ordem, os seguintes fatores (seguidos das cargas fatoriais e indicador de confiabilidade): sobrecarga de trabalho (0,40 a 0,86; α=0,85), falta de suporte social (0,48 a 0,80; α=0,87), conflito e ambiguidade de papéis (0,52 a 0,87; α=0,85), conflito trabalho-família (0,50 a 0,85; α=0,79), falta de autonomia; (0,40 a 0,81; α=0,85), pressão do grau de responsabilidade (0,44 a 0,91; α=0,80) e insegurança na carreira (0,41 a 0,81; α=0,73).
As análises desenvolvidas para o QSG-12 indicaram a extração de um único fator, com variância total explicada de 49,31%. Considerando-se a confiabilidade elevada obtida para esse fator (α = 0,92), cujas cargas oscilaram entre 0,57 e 0,82 e também a recomendação de Gouveia et al. (2012, p. 382) em favor da solução unifatorial para o referido instrumento, com vistas a "uma representação mais parcimoniosa do construto desconforto psicológico", tal foi a solução adotada para o desenvolvimento das análises no presente estudo.
No que tange à escala que avaliou os Danos Físicos, os resultados apontaram uma solução bifatorial, com variância total explicada de 45,95%, que não apresentou, todavia, muita clareza na distribuição dos itens entre os fatores, além do que foram identificados dois itens com comunalidades muito baixas (em torno de 0,20). Assim, estes itens foram excluídos e uma nova análise realizada, com resultados mais satisfatórios, tanto em temos de variância total explicada (49,44%), quanto de composição dos fatores, os quais distinguiram claramente os sintomas de dor e os distúrbios biológicos, conforme a definição original do fator que trata dos danos físicos na EADRT. O primeiro fator foi intitulado sintomas de dor, avaliando dores no corpo, nos braços, na cabeça, nas costas e nas pernas e o segundo recebeu a denominação de distúrbios biológicos, reunindo itens que trataram de distúrbios digestivos, alterações de apetite, distúrbios na visão, alterações do sono e distúrbios circulatórios. Ambos os fatores apresentaram bons índices de confiabilidade (α = 0,85 e α =0,78, respectivamente) e cargas fatoriais satisfatórias foram obtidas para o primeiro (entre 0,48 e 0,90) e para o segundo (entre 0,40 e 0,79).
Com base nas informações obtidas a partir dos testes iniciais, passou-se ao exame da correlação entre esse conjunto de variáveis (Tabela 1). Os resultados obtidos demonstraram associações significativas entre a maior parte delas, com exceção para o sexo e os estressores psicossociais. Isso significa que não houve distinção na percepção destes últimos por parte de docentes mulheres ou homens, ao contrário do observado para os sintomas de TMC, dores no corpo e distúrbios biológicos (r=0,15 a r=0,19; p<0,01), cujo sinal positivo dos coeficientes foi indicativo de sua maior ocorrência entre as mulheres.
Foi possível também notar que quase todos os fatores que descrevem os estressores encontraram-se correlacionados (coeficientes r entre 0,26 e 0,66; p<0,01), como esperado, à exceção dos fatores sobrecarga de trabalho e conflito e ambiguidade de papéis. Isso denota certa sobreposição de conteúdo entre os fatores, que está de acordo com os pressupostos do modelo teórico apresentado por Cooper (Cooper & Marshall, 1976; Cooper et al., 2001), segundo o qual os estressores atuam de forma associada.
Os transtornos mentais comuns, sintomas de dor e distúrbios biológicos, por sua vez, também apresentaram associações significativas entre si (r=0,45 a r=0,68; p<0,01), com sexo (r= 0,15 a r=0,19; p<0,01) e com todos os estressores psicossociais (r= 0,18 a r=0,50; p<0,01), o que reforça a pertinência de se avaliar o papel desempenhado pelos estressores no adoecimento docente, além das explicações oferecidas pela variável sexo. Assim, na sequência, procedeu-se à execução de análises de regressão hierárquica (Tabela 2), com o controle da variável sexo, a qual, juntamente com os estressores psicossociais constituiu o grupo de variáveis antecedentes. Como variáveis critério, em cada análise, foram tomados os transtornos mentais comuns, os sintomas de dor e os distúrbios biológicos. Os resultados apontaram, no primeiro bloco das três análises de regressão, que o sexo explicou, significativamente, de 2% a 4% da variância na ocorrência de TMC, sintomas de dor e distúrbios biológicos relacionados ao trabalho. Com a entrada dos estressores psicossociais, uma explicação significativa foi adicionada à variância na ocorrência desses sintomas, com mudanças em R2 oscilando desde 17% (danos físicos) até 33% (TMC). Constatou-se, portanto, que tais estressores foram preditores das reações físicas e, principalmente, psicológicas, aqui estudadas, para além e mais expressivamente do que o fez a variável sexo.
No que concerne às contribuições preditivas de cada variável, o sexo apresentou associações positivas com todas as variáveis dependentes no primeiro modelo das análises (β=0,14 a β=0,19; p<0,01), com pequenas alterações nos coeficientes após a entrada dos estressores psicossociais (β=0,12 a β=0,18; p<0,01). Já dentre esses últimos destacaram-se o conflito trabalho e família e a sobrecarga de trabalho, com o primeiro oferecendo predição aos três tipos de reações estudadas e com os maiores coeficientes (β=0,16 a β=0,29; p<0,01) e o segundo se associando com transtornos mentais comuns (β=0,12; p<0,01) e sintomas de dor (β=0,17; p<0,01). Conflito e ambiguidade de papéis e falta de autonomia também foram preditores de transtornos mentais comuns (β=0,17 e β=0,12; p<0,01), ao passo que insegurança na carreira ofereceu predição aos distúrbios biológicos (β=0,12; p<0,01).
No intuito de compreender a dinâmica de algumas das associações com os fatores que designaram as dores no corpo e os distúrbios biológicos, considerando-se que alguns dos itens que os compõem constituem-se como variáveis abordadas nos estudos sobre adoecimento docente, nomeadamente, as dores nas costas, nos membros inferiores e superiores e as alterações no sono (Ribeiro et al., 2011; Silva & Dutra, 2016; Valle et al., 2011), optou-se por realizar novas análises de regressão, tomando-os como variáveis dependentes (Tabela 3).
Os resultados foram similares aos obtidos para a variável sexo nas análises anteriores, com explicação de 2% a 4% da variância nos sintomas analisados e os estressores psicossociais adicionando explicação (mudanças em R2) da ordem de 9% a 20%. No que tange à sua capacidade preditiva, a variável sexo também se associou de forma positiva com todas as variáveis dependentes em ambos os modelos das análises (β=0,12 a β=0,19; p<0,01) com magnitudes equivalentes àquelas previamente observadas. O conflito trabalho-família, inserido no segundo modelo, seguiu o mesmo padrão, com contribuições preditivas expressivas (β=0,13 a β=0,25; p<0,01). A sobrecarga de trabalho, por sua vez, ofereceu predição apenas às dores nas pernas e às alterações no sono (β=0,19 e β=0,14; p<0,01, respectivamente), tendo a insegurança na carreira se mostrado associada às alterações do sono (β=0,12; p<0,01).
Considerando-se que o conflito trabalho-família, assim como o sexo, se manteve como preditor significativo de todos os sintomas enfocados nas análises, de modo geral, além da peculiaridade desse estressor que concerne à administração das demandas do trabalho com os deveres e responsabilidades familiares (Cooper et al., 2001; Jex & Britt, 2008), torna-se plausível ponderar quanto à existência de um possível efeito interativo entre tais variáveis (sexo e conflito trabalho-família) na explicação das reações ao estresse, aqui estudadas. Com base nesse questionamento e dada a necessidade de maior atenção aos aspectos elucidativos da maior vulnerabilidade feminina ao adoecimento laboral, foram realizados testes ANOVA 2x2 (ANOVA fatorial) para verificar se as diferenças nas manifestações de tais reações ocorriam em função não apenas das duas variáveis antecedentes, mas da interação entre elas.
Assim, o conflito-trabalho família foi transformado em uma variável de duas categorias (nível alto e nível baixo de conflito), a qual foi computada juntamente com sexo como variável antecedente. Para um dos testes a variável critério foi a ocorrência de transtornos mentais comuns e para o outro foi a ocorrência de danos físicos, sendo que para esse último foi calculado um escore total que uniu sintomas de dor e distúrbios biológicos. Os resultados obtidos sinalizaram a ocorrência de efeito interativo entre sexo e conflito trabalho-família apenas em relação aos danos físicos (F=60,15; p<0,05), sendo que, considerados ambos os níveis de conflito trabalho-família (alto e baixo), as mulheres apresentaram escores mais elevados em danos físicos em comparação aos homens, mas essa diferença nos resultados foi maior sob a condição de baixo conflito trabalho-família. Tal resultado demonstra que apenas quando cresceu o conflito trabalho-família ele se tornou uma variável de risco para homens, pois em baixos níveis seu efeito foi muito pequeno. Já para as mulheres, o conflito trabalho-família, mesmo em baixos níveis, já se revelou problemático.
Discussão
A maior ocorrência de transtornos mentais comuns e danos físicos relacionados ao trabalho entre as mulheres, que foi atestada primeiramente nas análises de correlação, é um achado amplamente corroborado nacional e internacionalmente, em variados contextos laborais (e. g. Araújo & Carvalho, 2009; Campos, Araújo, Viola, Oliveira, & Sousa, 2020; Fotinatos-Ventouratos & Cooper, 2005). Além desse aspecto, a magnitude considerável observada nas correlações entre sintomas psicológicos e físicos (TMC's, dores no corpo e distúrbios biológicos), além de coerente, já havia sido observada junto a outras categorias ocupacionais, como no estudo de Faragher, Cooper e Cartwright (2004), os quais comentaram a respeito da dificuldade em se distinguir essas duas facetas no processo saúde-doença. Os referidos autores também atestaram que alguns estressores psicossociais, como aqueles concernentes à percepção sobre o próprio trabalho, se mostraram mais correlacionados com sintomas psicológicos do que físicos. A esse respeito, Ganster e Rosen (2013), em revisão de metanálise, apontaram uma tendência de associação mais robusta dos estressores psicossociais com reações de natureza afetiva do que física, a exemplo do que aqui ocorreu, haja vista que os coeficientes de correlação entre os transtornos mentais comuns e os fatores estressores (r=0,22 a r=0,50; p<0,01) foram, de modo geral, maiores do que aqueles observados entre esses últimos e os danos físicos (r= 0,18 a r=0,37; p<0,01).
O conjunto de resultados das análises de regressão também contribuiu para reafirmar relações anteriormente observadas na literatura, além de propiciar novos ângulos para a compreensão do processo de estresse entre docentes. Assim, tem-se o número ligeiramente maior de estressores psicossociais que explicaram os transtornos mentais comuns, com coeficientes que tenderam a ser maiores (com exceção para a sobrecarga de trabalho e a insegurança na carreira), em concordância parcial com os achados supramencionados de Faragher et al. (2004) e Ganster e Rosen (2013). Ainda, outros teóricos já haviam indicado, especificamente em relação aos estressores do papel, que estes costumam se relacionar mais fortemente com as respostas psicológicas (Cooper et al., 2001; Jex & Britt, 2008), o que se confirma integralmente aqui, dada a significância obtida na predição oferecida pelo fator conflito e ambiguidade de papéis apenas em relação aos transtornos mentais comuns.
No que tange à variável conflito trabalho-família, que foi o estressor com maior capacidade preditiva dos dois tipos de reações estudadas, tem-se um achado de grande relevância para a explicação do processo de adoecimento entre docentes da educação básica, que veio contribuir no sentido de confirmar inferências realizadas anteriormente, como aquela de Assunção e Abreu (2019, p. 2) que atentavam para a invasão do espaço da vida pessoal pelo trabalho em sua restrição do "necessário repouso e recuperação após as jornadas nas escolas e quando finalizadas as tarefas extraclasse, com prováveis efeitos negativos sobre a saúde". Tais efeitos, aqui observados, demonstraram significativa amplitude, se relacionando principalmente com a ocorrência de transtornos mentais comuns (β=0,29; p<0,01), mas também com variados sintomas de natureza física.
O desenho desse cenário tornou-se mais nítido com os resultados concernentes à sobrecarga de trabalho, que foi outro estressor que explicou tanto reações psicológicas quanto físicas e fortaleceu a noção de que a maior causa de adoecimento dos docentes estudados encontra-se no excesso de tarefas com que se defrontam no seu cotidiano laboral. Itens como "levar trabalho para casa" e "trabalhar duro para cumprir minhas tarefas" apresentaram as maiores cargas no fator (0,86 e 0,67, respectivamente), ratificando sua contribuição para gerar e/ou aumentar o conflito trabalho-família, em uma espécie de efeito aditivo entre os estressores na geração de reações, possibilidade já defendida por Cooper et al. (2001). Quanto à predição que esse estressor ofereceu aos transtornos mentais comuns (β=0,12; p<0,01), Pereira et al. (2019) já haviam discutido como o volume excessivo de trabalho e as pressões de tempo ente docentes tendem a contribuir para uma exaustão que afeta negativamente o bem-estar pessoal. Mas o que os resultados aqui obtidos demonstraram foi que a associação dessa sobrecarga foi ainda maior com os sintomas físicos, conduzindo a refletir que a tensão gerada nesse processo tende a desencadear, principalmente, manifestação de dores no corpo (β=0,17; p<0,01) para os pesquisados.
A questão da intensificação do trabalho docente e a consequente geração de adoecimento, de fato, não é tema novo na literatura. No que tange aos transtornos mentais comuns, por exemplo, Delcor et al. (2004) já haviam relatado sua associação com volume excessivo de trabalho e Gasparini et al. (2006), com as exigências de tempo pelas tarefas da escola. Luz et al. (2019), em revisão sistemática sobre trabalho e saúde docente encontraram que a carga de trabalho figurava entre as variáveis mais destacadas na produção de transtornos psicossomáticos. Assunção e Oliveira (2009) teceram reflexões sobre as consequências desse processo, que marca a realidade do trabalho dos docentes da educação básica no país, o qual termina por colocar em risco não apenas a saúde dos profissionais, como também a qualidade da educação.
Igualmente esteve presente em outros estudos junto a docentes da educação básica, a questão da falta de autonomia (e. g. Araújo & Carvalho, 2009; Gasparini et al., 2006), que aqui também apareceu como preditora de transtornos mentais comuns. Portanto, o presente trabalho, além de replicar vários desses achados, avançou no sentido de trazer luz sobre algumas problemáticas que vinham demandando maior atenção nas pesquisas, dentre as quais o conflito trabalho-família, que emergiu como um dos maiores potenciais agravantes da saúde nesse contexto.
O conflito e a ambiguidade de papéis também se mostraram como preditores dos transtornos mentais comuns, colocando em pauta, dentre outras, questões como "não haver coerência quanto à margem de autonomia que é informada em meu trabalho"; "receber instruções contraditórias sobre o que fazer no trabalho" e "não ter clareza quanto às tarefas que são de minha responsabilidade", as quais apresentaram as maiores cargas no fator (0,87; 0,85 e 0,77, respectivamente).
Auxiliando a ampliar a compreensão do quadro, a insegurança na carreira é outro estressor que requer maior investigação e que aqui se mostrou associado à manifestação de distúrbios biológicos. A pressão do grau de responsabilidade, por sua vez, embora também pouco debatida, não demonstrou ser um estressor diretamente relacionado a nenhum tipo de resposta física ou psicológica. O mesmo ocorreu com a falta de suporte social, essa bastante abordada em outros estudos, porém apresentando significância na maioria deles, em termos de sua relação com processos de adoecimento (e. g Delcor et al., 2004; Gray-Stanley et al., 2010; Porto et al., 2006), ao contrário do que foi aqui observado. Isso pode se dever à construção do fator, que foi composto por itens que tratam majoritariamente de não ser ouvido ou não receber ajuda de colegas e superiores. De qualquer forma, vale salientar que tanto a pressão do grau de responsabilidade, quanto a falta de suporte social, certamente contribuíram conjuntamente com os demais estressores para a explicação da variância nas reações aqui estudadas, já que guardam alguma relação com as mesmas, como demonstrou a análise de correlação.
Ainda, no que se refere aos achados relativos às variáveis preditoras das dores nas costas, braços e pernas e alterações do sono, os achados corroboraram o que evidenciavam estudos anteriores, quanto à maior ocorrência de dor entre as mulheres, seja apenas nos braços (e. g. Gabani et al., 2018), ou nos braços, costas e pernas (e. g. Ribeiro et al., 2011). Replicaram também, parcialmente, os achados de Cardoso et al. (2011), no tocante à predição oferecida pela sobrecarga de trabalho ao sintoma de dores nas pernas, uma vez que aqueles autores observaram que os aspectos psicossociais do trabalho se associavam ao relato de dor, porém tanto nos membros inferiores, quanto superiores e costas e não apenas nas pernas como aqui observado. Quanto à associação entre sobrecarga de trabalho e alterações no sono, também já havia sido identificada por Valle et al. (2011) que constataram relação entre estressores como dupla jornada e multiplicidade de tarefas e problemas de sono entre professores da rede pública.
Por fim, quanto ao efeito interativo observado entre as variáveis sexo e conflito trabalho-família, em relação aos danos físicos, uma possível explicação para os maiores escores nos sintomas físicos entre as mulheres, principalmente sob a condição de baixo conflito trabalho-família, se situa no próprio significado atribuído a tal tipo de conflito, que costuma ser diferente entre homens e mulheres. Como são estas, na grande maioria dos casos, que se responsabilizam pelo cuidado do lar e dos filhos, a existência de conflito trabalho-família para elas tende a assumir, em maior proporção, o significado de escassez de tempo para administrar encargos do trabalho e tarefas domésticas. De acordo com informações da agência de notícias do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD contínua) para o ano de 2019, mostraram que, em termos percentuais, o número de mulheres que se dedicaram a afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas foi de 92,1%, contra 78,6% dos homens. As mulheres despenderam em média 21,4 horas semanais nessas atividades, ao passo que os homens apenas 11 horas. Isso significa que as mulheres empregaram 10,4 horas semanais a mais nessas atividades do que os homens, tendo esse intervalo crescido entre 2016 e 2019, já que era anteriormente de 9,9 horas. Portanto, com base nesses números, torna-se compreensível que mesmo em níveis baixos, o conflito trabalho-família seja gerador de maior sobreesforço e tensão para as mulheres.
Sob essa ótica, faz sentido considerar que o conflito trabalho-família para as mulheres se associe mais fortemente a danos físicos do que para homens. Ribeiro et al. (2011) já haviam levantado essa possibilidade explicativa em seu estudo, no qual identificaram maior ocorrência de dor musculoesquelética entre mulheres, mesmo não tendo mensurado o conflito trabalho-família. De acordo com os autores mencionados, a dupla jornada das mulheres ao diminuir o tempo de descanso e refazimento as coloca mais predispostas ao adoecimento. Desmarais e Alksnis (2005) também já haviam atentado para o fato de que em virtude de sua maior carga de trabalho geral, as mulheres têm sua saúde física e mental mais ameaçada, sendo mais suscetíveis aos efeitos da carga de trabalho profissional.
Contribui também para reforçar esse raciocínio de variação do significado de conflito trabalho-família entre homens e mulheres, a própria generalidade dos itens que compuseram o fator conflito trabalho-família nesse estudo, os quais dão margem a interpretações diversas, que podem estar relacionadas à própria visão do indivíduo que as responde quanto aos papéis sociais femininos e masculinos. Os dois itens que abordam especificamente as questões relacionadas à família são: "ter dificuldades de conciliar as questões profissionais com as familiares" e "não poder cuidar direito de minha família em função do trabalho". Nota-se que eles podem ser entendidos tanto no sentido de atenção geral ao núcleo familiar, como estar junto e compartilhar, quanto no sentido de ser responsável pelas rotinas domésticas e assistência aos filhos, o que envolve maior demanda de tempo e esforço físico.
Os outros dois itens, que tratam de "não dispor de tempo para minha vida pessoal em função do trabalho" e "não me desligar do trabalho mesmo quando estou em casa", concernem muito mais à invasão do espaço da vida pessoal pelo trabalho, de um modo geral, do que à sobrecarga específica da dupla jornada com que as mulheres, em sua maioria, se defrontam. Nesse sentido, a inclusão, nos instrumentos de mensuração de estressores, de algumas questões que façam alusão explícita ao conflito entre desempenhar atividades domésticas (como limpeza, manutenção e/ou administração da casa, acompanhamento e assistência aos filhos) e atender demandas profissionais que extrapolam o ambiente organizacional, pode favorecer uma avaliação mais precisa desse estressor e de seus impactos na saúde.
No que tange ao resultado que indicou inexistência de efeito interativo entre conflito trabalho-família e sexo na ocorrência de transtornos mentais comuns, pode estar também relacionado às limitações das questões que compuseram aquele fator. Por isso, embora a inclusão do conflito trabalho-família nessa discussão tenha contribuído para o debate sobre os efeitos danosos, especialmente para as mulheres, da invasão do espaço da vida pessoal pelas tarefas do contexto organizacional, estudos futuros devem ampliar a avaliação desse construto. Desse modo, além de contemplar questões concernentes às rotinas domésticas, que permitiriam maior clareza sobre o conflito por tempo, também merecem ser incluídas aquelas que tangenciem o conflito por estresse, o qual trata de questões atinentes à transferência de reações emocionais negativas originadas no ambiente organizacional para casa, com potencial de contaminação da qualidade das relações no lar (Cooper et al., 2001, Jex & Britt, 2008).
Não se pode deixar de considerar, por fim, que o resultado aqui obtido está demonstrando que, não obstante as diferenças de concepção quanto ao significado de conflito trabalho-família, os homens também se sentem afetados por esse estressor. Isso indica que não é apenas o acúmulo de tarefas profissionais e domésticas que adoece, mas a sobrecarga de trabalho em si, inclusive para quem assume menor número de atribuições no lar. O que esse achado sinaliza é que o problema da sobrecarga de trabalho que extrapola o ambiente organizacional, roubando tempo da vida pessoal, assume contornos ainda mais sérios em termos de adoecimento para as mulheres, não por uma questão biológica, mas antes por uma questão social.
Em um esforço de síntese dos resultados obtidos, de modo geral, observa-se que o estudo contribuiu no sentido de corroborar alguns achados anteriores no que se refere à identificação de maiores índices de adoecimento físico e psíquico entre as mulheres; maior capacidade preditiva dos estressores psicossociais em relação às reações psicológicas do que físicas; associação de sobrecarga de trabalho com TMC e sintomas de dor (principalmente nas pernas), além de alteração do sono, reafirmando a problemática da intensificação do trabalho docente; e associação de falta de autonomia com TMC. A maior contribuição do estudo, entretanto, se deu ao trazer novas perspectivas para a análise do fenômeno a partir da inclusão de estressores ainda pouco explorados na pesquisa sobre estresse entre docentes no Brasil, com destaque para o conflito trabalho-família em sua predição expressiva de todos os tipos de sintomas aqui abordados. Além disso, a relação entre insegurança na carreira e distúrbios biológicos (em particular, as alterações do sono) possibilitou ampliar o desenho desse cenário, apresentando novas vias a serem transitadas em estudos futuros junto a esses profissionais.
A despeito das contribuições apontadas, algumas limitações do estudo devem ser indicadas. Dentre elas, a utilização de abordagem transversal, que embora caracterize o recorte adotado pela grande maioria das pesquisas, não consegue capturar a evolução do quadro em questão. Aliado a esse aspecto, o uso de abordagem quantitativa, que é outra tendência dos estudos no campo, facilita a identificação de tendências e do relacionamento entre variáveis, mas não permite alcançar em profundidade o fenômeno, conhecendo algumas particularidades que auxiliariam na interpretação dos resultados. Assim, estudos longitudinais e com emprego de triangulação metodológica podem agregar maior qualidade às pesquisas.
No que tange aos instrumentos utilizados, a escala que mediu os estressores psicossociais, embora tenha permitido avaliar um número razoável de variáveis, se fundamente em um modelo teórico sólido e não confunda estressores e reações, trazendo maior clareza na operacionalização dos conceitos, apresentou algumas limitações. Dentre elas, o fato de não contemplar alguns aspectos que permitissem elucidar melhor a questão do conflito trabalho-família, além do que, por ser instrumento de aplicabilidade geral a várias profissões, não capturou algumas especificidades do trabalho docente. Nesse aspecto, identifica-se uma demanda por escalas destinadas à avaliação de estressores no contexto da docência, que contribuam para avançar no sentido do aperfeiçoamento e refinamento das medidas. Cumpre considerar, ainda, que o fato de não ter sido levantada a carga horária total de trabalho doméstico, no formulário sociodemográfico empregado na pesquisa limitou a discussão sobre o efeito interativo observado entre a variável sexo e o conflito trabalho-família na explicação dos danos físicos. Desse modo, entende-se ser esse um aspecto merecedor de atenção em iniciativas futuras, com vistas à colocação em pauta de aspectos de desigualdade social que não devem ser silenciados nas pesquisas.
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Informações sobre as autoras:
Virgínia D. Carvalho
Universidade Federal de Alfenas
Rua Celina Ferreira Ottoni, 4000
37048395 Padre Vitor Varginha, MG, Brasil
E-mail: virginiadcarvalho@gmail.com
Vitória Régia Lopes dos Santos
E-mail: vitoria.regia83@outlook.com
Submissão: 27/07/2021
Primeira Decisão Editorial: 18/01/2022
Versão Final: 14/02/2022
Aceito em: 14/02/2022