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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.4 no.2 São Paulo dez. 2012

 

ARTIGO

 

 

Grupo terapêutico no CAPS: cuidado a homens com o sofrimento mental e histórico de violência

 

Therapeutic group at CAPS: care to men with mental suffering and history of violence

 

 

Dorotéa Albuquerque de Cristo

Universidade Federal do Pará - UFPA

 

 


RESUMO

O presente relato aborda uma experiência do trabalho psicológico de grupo com 10 homens apresentando sofrimento mental e comportamento violento. Foi realizada num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da região metropolitana de Belém e teve duração de seis anos (2005 a 2011). Esse grupo teve como objetivo o cuidado a homens com o histórico de violência sexual e física, em diferentes contextos (de rua, doméstica, trabalho, etc.) e que foram diagnosticados como portadores de algum sofrimento mental grave. O trabalho objetivou uma abordagem compreensiva de tratamento ao usuário e modos de prevenir futuros atos de violência. Nesse sentido é importante destacar que não é um olhar só para o aspecto patológico da violência, mas também um olhar para a pessoa que a utiliza como forma de relação com o mundo e as possibilidades de ressignificação dessas relações.

Palavras-chave: violência; homens; saúde mental; grupos.


ABSTRACT

The present report discusses an experiment of group psychological work with 10 men showing mental suffering and violent behavior. Was held in a Center for psychosocial care (CAPS) in the metropolitan region of Belém and lasted six years (2005 to 2011). This group aimed to care to men with sexual and physical violence, in different contexts (home, work, etc.) and that have been diagnosed as suffering from some serious mental suffering. The work aimed a comprehensive treatment approach the user and ways to prevent future acts of violence. In this sense it is important to highlight that it is not a look just for the pathological aspect of violence, but also a look at the person who uses it as a form of relationship with the world and the possibilities of ressignification of these relationships.

Keywords: violence; men; mental health; groups


Resumen

Este informe analiza una experencia de grupo de trabajo psicológico con 10 hombres con enfermedad mental y el comportamiento violento. Fue realizada en el Centro de Atención Psicosocial (CAPS) del la región de Belém y duró seis años (2005 a 2011). Lo mismo grupo tuvo como objetivo el cuidado a los hombres con histórico de violencia sexual y fisica, en contextos distintos (calle, doméstica, trabajo, etc) y que fueran diagnosticados con algun sufrimiento mental grave. El trabajo tuvo un enfoque compreensivo de lo tratamiento al usuario y formas de prevenir futuros actos de violencia. Así, es importante despegar que la mirada no es solamente para el aspecto de la enfermedad, sino también una mirada para la persona que la utiliza como forma de relación con el mundo y las posibilidades de reinterpretación de estas relaciones.

Palabras clave: violencia; hombres; salud mental; grupos.


 

 

Introdução

O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) caracteriza-se por ser um serviço de atenção diária, que surgiu como substituto do manicômio após a Reforma Psiquiátrica, que redefiniu a assistência à Saúde Mental no Brasil e o fim do modelo manicomial. Tem como objetivo promover a reabilitação psicossocial de pessoas com sofrimento mental, tomando para si a responsabilidade do cuidado em espaço aberto, não hospitalar:

Os serviços de atenção psicossocial devem ter uma estrutura bastante flexível para que não se tornem espaços burocratizados, repetitivos, pois tais atitudes representam que estariam deixando de lidar com as pessoas e sim com as doenças. (Amarante, 2007, p.83)

No âmbito da saúde mental, a demanda de casos envolvendo algum tipo de violência é muito grande, tanto de pessoas que sofreram algum tipo de violência, como de pessoas que praticaram atos de violência. A minha experiência profissional num CAPS I1 da periferia de Belém revelou a ligação do sofrimento daquelas pessoas com as questões sociais vividas na comunidade. No período do trabalho o CAPS estava superlotado de pessoas com sofrimento psíquico, na maioria das vezes, relacionados às condições precárias de vida a que estavam submetidas. A grande maioria, em busca de remédios para aliviar sintomas e laudos psiquiátricos semestrais, que garantissem um benefício mensal.

No entorno desse CAPS, a população convive com uma área carente de políticas públicas que visem à qualidade de vida dos seus moradores. Distante do centro da cidade, nesse espaço predomina a escassez e a pobreza, a violência urbana e a doméstica, desordens econômicas e sociais, que contribuem para o agravamento de problemas de saúde, incluindo os mentais.

O CAPS surgiu, nesse contexto, com uma proposta de se constituir em único espaço de acolhimento e atenção ao portador de sofrimento mental, além de participar da comunidade, estendendo sua atuação, num trabalho de articulação e prevenção, que envolvesse toda a comunidade.

A necessidade de criar um grupo que atendesse o número crescente de homens com comportamentos violentos que chegavam ao CAPS, nasceu da dificuldade da equipe em acompanhar individualmente sujeitos que não tinham aceitação nos demais grupos, seja pela dificuldade da maioria da população em compreender o ato violento, seja pela criminalização do usuário por parte de outros, que sofreram algum tipo de agressão.

Os usuários com esse histórico que chegam ao CAPS muitas vezes não revelam seu comportamento violento no momento do acolhimento, apenas os demais sintomas que lhe provocam sofrimento mental. Essa atitude pode ser entendida como defesa contra possíveis rejeições por parte de outros usuários ou contra a negligência por parte dos profissionais de saúde, que podem ter dificuldade em aceita-los. Geralmente na avaliação psicológica, esse fato é desvelado, assim como a possibilidade de se repetir, o que provoca medo e insegurança no usuário, motivo primeiro que o faz procurar ajuda profissional.

O relacionamento interpessoal entre o usuário e o profissional, e os cuidados prestados por este, têm ligação direta com as concepções que esse profissional tem dos homens e da violência.

 

Masculinidades, violência e sofrimento mental

Para a sociedade brasileira, o homem é representado como invulnerável a qualquer dano, seja de ordem física, mental ou social, não necessitando de programas de prevenção ou assistência, justamente por ser o principal autor de atos violentos em diversos contextos. De acordo com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, implantada pelo Ministério da Saúde em 2008, os homens não adentram ao sistema de saúde pela Atenção Primária, recorrem somente aos serviços de média e alta complexidade, quando as doenças e agravos já estão instalados e só resta o tratamento ou a reabilitação.

Para a Política, de acordo com as últimas pesquisas, o homem é mais vulnerável à violência, já que é percebida socialmente como estratégia de empoderamento masculino. Com esse fator relevante, acaba sofrendo com os graves danos físicos, psíquicos e sociais provocados pelos atos violentos, tanto sendo a vítima, como sendo o autor. Pelos dados da Epidemiologia, morrem mais cedo e possuem uma expectativa de vida menor que das mulheres. (Brasil/MS, 2008)

Para Souza (2004), apesar desse modelo hegemônico de masculinidade, associando virilidade à competição e violência, oriundo de valores patriarcais ter sido amplamente criticado e discutido, ainda é predominante no país. Para a autora, os indicadores no Brasil alertam para o crescente envolvimento de rapazes jovens em situações de violência, destacando o quanto a associação entre a identidade viril e essas características de competição e violência, vêm contribuindo para o aumento da criminalidade e da vitimização da população masculina mais jovem, uma fase da vida onde tensões e ansiedades estão presentes, geradas por uma identidade ameaçada e precisando ser reafirmada constantemente com comportamentos violentos.

Ainda de acordo com a autora, essa realidade tem um impacto no perfil epidemiológico da população masculina do país:

No Brasil, de 1991 a 2000, ocorreram 1.118.651 mortes por causas externas, das quais 926.616 ou 82,8% eram homens. Nesse período, a taxa média de mortalidade masculina por essas causas na década foi de 119,6/100.000 habitantes, sendo cinco vezes maior do que a taxa média observada para as mulheres (24/100.000 habitantes). (Souza, 2004, p. 62).

A maioria das pesquisas realizadas no Brasil aponta a relação da violência contra a mulher e o sofrimento mental das vítimas, ou mesmo da violência contra crianças e adolescentes e as sequelas psíquicas. É inegável afirmar as consequências dos atos violentos para a saúde psíquica das pessoas que sofreram qualquer tipo de violência. Por outro lado, o usuário, autor da violência, também pode apresentar sofrimento mental, e passa dentro de serviços de saúde por situações que muitas vezes configuram outra violência, a institucional.

O Ministério da Saúde (Brasil/MS, 2003) define violência institucional nos espaços de saúde como:

Aquela exercida nos/pelos próprios serviços públicos, por ação ou omissão. Pode incluir desde a dimensão mais ampla da falta de acesso à saúde, até a má qualidade dos serviços. Abrange abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre usuários e profissionais dentro das instituições, até por uma noção mais restrita de dano físico intencional. (p 21.)

Granja e Medrado (2009), fazendo uma análise da violência de gênero, afirmam que a sociedade tem um olhar intencional para os acontecimentos sociais. Partindo do pressuposto que as relações de gênero são pautadas na desigualdade e organizam essa sociedade, tornou-se natural pensar no homem, autor da violência de gênero, como agressor e merecedor de punição.

Relatando uma vivência num CAPS álcool e drogas (CAPS ad), serviço especializado em saúde mental que atende pessoas com problemas decorrentes do uso ou abuso de álcool e outras drogas, os autores relatam que, a partir do diálogo com profissionais de saúde do espaço, soube-se que o serviço recebe usuários encaminhados pela Vara Especial de Penas Alternativas, homens que chegam com encaminhamento já direcionado para atendimento psicológico com tempo determinado (um ou dois anos), com queixa de agressão a mulheres, geralmente suas companheiras. Esse tratamento, para os autores, parece ser entendido como uma pena, e geralmente, apesar de seu encaminhamento ao serviço ser devido a situações de violência, o tratamento focaliza apenas o uso abusivo de drogas.

Parece estar implícita a simples relação entre o uso de drogas e a violência, desconsiderando aspectos culturais que orientam a construção dos lugares de homens e mulheres na sociedade brasileira. Os autores reconhecem que o uso de drogas e álcool faz parte dessa socialização masculina, mas não é o único fator, e direcionam seu estudo para a violência em sua complexidade, não só como um caso de justiça e segurança pública, mas também como um caso de saúde.

O mapeamento do estudo, que foi realizado na cidade de Recife, capital do Estado de Pernambuco, confirma uma centralização do enfrentamento da violência de gênero no setor de Justiça e Segurança Pública. Ratificou, ainda, que, tanto as políticas quanto os serviços são voltados para mulheres, em detrimento das necessidades de cuidado aos homens. Em relação à saúde mental, destacam o tratamento nos CAPS ad, sempre associando violência e uso abusivo de álcool e outras drogas:

As falas dos profissionais atribuem um lugar secundário aos CAPS. Parece que os consideram como mais adequados para transtornos mentais graves, o que dificulta o acesso a eles, em casos de homens e mulheres envolvidos em situações de violência. (Granja & Medrado, 2009, p.30)

Cabe-nos refletir a situação dos homens como autores da violência e portadores de sofrimento mental, não no sentido de fazer afirmações, mas indagações. A relação entre loucura e violência sempre esteve presente, não só a violência como causa da loucura, mas também a loucura como fator que potencializa a disposição para o ato violento.

Até os dias de hoje o chamado louco é considerado inimputável, por estar desprovido de razão, e consequentemente não ter condições de assumir responsabilidade por seus atos. Por séculos, o tratamento a que eram submetidos nos manicômios, tinham como objetivo punir para reeducar. Em sua obra "Vigiar e Punir", Foucalt (citado por Lobosque, 1997), descreve a prisão e o asilo como aparelhos para transformar em dóceis os sujeitos violentos. Não sendo livre para fazer escolhas, o psicótico não seria culpado de seus atos, mas paradoxalmente o tratamento visaria restabelecer essa consciência que foi perdida com a loucura e tal restabelecimento só poderia ser feito através de castigos.

Outro ponto questionável era a internação compulsória, que partia da noção de periculosidade presumida. Na obra de Pedro Gabriel Delgado (citado por Lobosque, 1997) "As Razões da Tutela", a loucura, por ser imprevisível, passa a ser um campo privilegiado para tal noção. Muitos profissionais da saúde atribuíam a algumas patologias uma conexão direta com a criminalidade: "A todos os alienados, em período de crise ou estáveis, infratores ou não, adequar-se-ia o princípio de irresponsabilidade absoluta, justificando assim seu perpétuo isolamento" (Lobosque, 1997, pg. 92).

Atualmente, após a Reforma Psiquiátrica, em que instituições manicomiais foram denunciadas por atrocidades e assassinatos em nome do tratamento, e após o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), o sujeito passa a ter direitos e o tratamento privilegia o espaço aberto, não manicomial.

A violência passaria a ser própria da condição humana e não da loucura. Por outro lado, o sujeito com transtorno mental que comete violência grave, como assassinato ou outro crime considerado hediondo, vai para o manicômio judiciário (uma espécie de hospital presídio), justamente por ser inimputável, só tendo direito a liberdade após alta da psiquiatria. Essa alta pode não acontecer, e acaba sendo a única pena perpétua no país, já que para os demais a pena máxima é de trinta anos. E ai já é outra discussão, que envolve a área da saúde e a judiciária.

Apesar dos avanços da Reforma, um dos desafios dos serviços é buscar o compromisso desse usuário com seu tratamento. Em anos de experiência, posso afirmar que esse usuário tem potencial para responder ativamente às nossas indagações e interpelações. Desse modo, todo o projeto terapêutico desse usuário pode fundamentarse na capacidade de responsabilidade dele, logicamente considerando episódios de crises agudas, quando não possui condições de responder por si. Então temos aqui uma responsabilidade que vai depender do estado em que se encontra o sujeito, mas que pode ser acessível em vários momentos.

Muitos usuários participantes do grupo no CAPS em Belém vinham de um histórico de atos violentos antes do surgimento dos sintomas psicóticos, ou seja, não era a Lei instituída que os pressionava de fora, mas seus delírios de perseguição e alucinações auditivas, que os acusavam, através de vozes, imagens e pesadelos, por seus atos, que invadiam sua existência e que não o livravam facilmente de suas culpas e medos. Essa invasão era tão desesperadora, que o tornava vulnerável a cometer novos atos violentos contra si mesmo e contra outros.

No tratamento ele pode ser corresponsável, juntamente com a equipe, por sua recuperação e mudança em momentos de estabilidade, não em episódio de crise aguda. Entende-se que em momentos de estabilidade, o usuário ainda pode estar sujeito a delírios e alucinações, tendo outra relação com os mesmos, não mais de dependência. Porém, para restabelecer totalmente a estabilidade mental, e alcançar a cura, precisa readquirir sua responsabilidade e poder de escolha, sem estar sujeito à linguagem psicótica.

Nessa ambiguidade o pensamento do tratamento moral foi se construindo e, até hoje, muitos profissionais da saúde, questionam a ausência de razão do usuário que age com violência, já que é considerado corresponsável por seu atendimento, e acabam agindo também com violência através da punição velada em sua relação com esse usuário. Para os profissionais haverá sempre a dúvida se o usuário não está usando o recurso da loucura para se livrar de penalidades do sistema e não ser responsabilizado diretamente por seus atos.

Considerando que a maioria dos usuários do grupo do CAPS vinham de um histórico de comportamentos violentos antes dos sintomas psicóticos, muitos deles em profissões que legitimam a violência, como policiais e vigilantes, ou em casos de violência doméstica, e só uma minoria apresentaram o comportamento violento após o surgimento dos sintomas ou em estado de crise psicótica, podemos articular os campos da masculinidade, da violência e do sofrimento mental nessa experiência.

É bom destacar que nenhum desses usuários passou por qualquer punição da Lei instituída, uns por se encontrarem em situações aparentemente legítimas ligadas a profissão, outros por agirem em situações privadas, que não eram denunciadas por seus familiares e outros por estarem em episódios de crises agudas de psicose, ou seja, necessitados de tratamento. Quando o caso estava ligado a uso e abuso de álcool e outras drogas era imediatamente encaminhado para o CAPS ad.

Cabe aqui outro ponto que merece destaque, nesse grupo, apesar de várias falas de desejo de morrer ou matar o outro, não havia nenhum caso com histórico de assassinato, mas de tentativas.

Como já foi exposto, estudos apontam a vulnerabilidade de homens a situações de violência em nossa cultura. A questão que nos mobiliza nessa reflexão e na estratégia de criar um grupo com o perfil de comportamento violento e sofrimento mental, diz respeito a outras vulnerabilidades apontadas nessa experiência. Numa região tão carente de políticas de promoção e prevenção de saúde e que expõe sua população a uma série de outras necessidades econômicas e sociais, como nesse contexto em Belém, favorece o uso da violência como forma de empoderamento. Não temos mais como desvincular as doenças e agravos da população com as questões sociais e com a sociedade e a cultura em que estão inseridos. O trabalho terapêutico envolveu também questões da sua realidade social e familiar.

A experiência com um grupo de homens no CAPS contribuiu para que toda uma equipe refletisse suas práticas e modos de percepção e relação com esses sujeitos geralmente sem escuta, e que cometem os atos que tanto nos causam incômodo e repugnância.

Homens que agem com violência e os chamados loucos em nossa sociedade ainda assustam e causam estranheza, como se não fossem humanos e sem direito a tratamentos. Basta pensar nos espaços de isolamento a que são submetidos, nas prisões e manicômios judiciários. A sociedade demonstra seu poder de opressão nesses espaços, ao isolar esses sujeitos dos demais. A violência institucional acontece justamente em espaços onde os vulneráveis deveriam ser cuidados e acolhidos em seus conflitos.

 

Abordagem Fenomenológica

Partindo de uma compreensão fenomenológica, o conceito de saúde mental e doença estão integrados na mesma definição, ambos são processos de construção e reconstrução constantes do mundo. Para Augras (1998), o saudável seria aquele que supera os conflitos, o patológico estaria estagnado, sem mudança. A terapia, nesse caso, objetivaria a percepção desse processo, suas paradas e suas possibilidades de crescimento.

Hoje o paradigma sistêmico da saúde, onde todos os fatores (o meio ambiente, a genética, o social, o individual) estão interrelacionados na construção do sofrimento mental; dá um enfoque mais humanista aos atendimentos, distinguindo a doença tal como é definida nos manuais e a doença tal como é percebida pelo indivíduo.

Na prática cotidiana dos serviços não hospitalares, como os Centros de Atenção Psicossocial, residências terapêuticas e outros, percebe-se que o sofrimento de uma pessoa com quadro clínico semelhante ao de outra, a afeta de forma distinta, nem sempre correspondendo à concepção da doença que orienta os manuais médicos.

Esse novo paradigma já não reduz as necessidades de saúde a fatores fisiológicos, mas busca também a totalidade do ser, resgatando a subjetividade, não só do usuário do serviço, mas também a dos trabalhadores da saúde, como parte do processo de tratamento.

No modelo biomédico, esse sujeito é um paciente, está em sofrimento, recebe um diagnóstico baseado num manual, toma conhecimento de que tem uma doença e que esta precisa ser controlada a base de remédios, que eliminarão os sintomas; além de outros procedimentos, como, por exemplo, a internação para tratamento intensivo, até que sua doença seja controlada, ou seja, até que o conteúdo psicótico seja totalmente suprimido. Esse tratamento visa, inclusive, a total supressão dos delírios, sem a compreensão do sentido deles, pois são considerados pensamentos confusos que nada tem a ver com o sujeito, só com a doença.

Dentro de uma relação de facilitação, o poder flui da pessoa com sofrimento mental e de suas necessidades para a equipe que a acompanha, ou seja, o poder, a responsabilidade e as tomadas de decisão são compartilhados por todos. (Rogers, 2001).

Construir relações de ajuda com os chamados psicóticos é também responsabilizá-los por parte desse processo. Hoje esse usuário participa da elaboração do seu projeto terapêutico e reflete juntamente com a equipe suas questões, numa relação que extrapola o atendimento clínico, onde todos estão envolvidos numa construção coletiva, transdisciplinar: usuário, equipe, família, comunidade e outros. As classificações (CID 10 e DSM IV), dentro de uma orientação humanista-existencial, ignoram a singularidade da pessoa. Para uma abordagem fenomenológica, a relação é sempre mais importante que os sintomas. Por trás dos delírios está a dor, o medo, a raiva, a culpa, a solidão, o desespero, e são essas experiências que o facilitador escuta e busca compreender.

 

Experiência

Dentro de uma visão fenomenológica, o sintoma é visto como linguagem, como forma do sujeito expressar seu mundo. As tentativas de realização pessoal desses homens com sofrimento mental foram tão frustradas e traumatizadas, que eles, geralmente, tentam um afastamento total de sua vivência para libertar-se desse contato com o mundo externo, com os outros. Porém, em suas falas, o "outro ameaçador" parece persegui-lo, invadindo seu ser, através dos pesadelos, delírios e alucinações. É como se ficasse a serviço desse outro, com experiências de muita dor e medo, um sofrimento intenso. Muitas vezes, para se livrar desse desespero, o indivíduo reage de forma violenta.

O grupo terapêutico no CAPS tinha, no máximo, 10 usuários. Com o tempo esse número foi alterado, em alguns momentos com mais de 10 participantes e outros, com menos, devido à alta dos usuários ou mudança de projeto terapêutico. Apenas 05 usuários permaneceram durante todo o tempo de funcionamento. Os membros do grupo apresentavam diversos diagnósticos, que iam da depressão à esquizofrenia, favorecendo a relação entre diferentes. O grupo abrangia situações inter-relacionais, além de questões de ordem social e comunitária.

Em seis anos, constituiu-se como lugar privilegiado de experiências, onde os participantes auxiliaram-se mutuamente na compreensão do sofrimento um do outro e em sua superação. O processo grupal permitiu o envolvimento dos participantes por meio de um elo que se estabeleceu nas interações, no espaço intersubjetivo.

Enquanto facilitadora do grupo, procurei confiar no processo do mesmo e por isso não orientei ou dei dicas, as soluções surgiram no processo. Procurei acompanhar e facilitar a compreensão dos sentidos que o grupo expressava. Ali as pessoas não estavam submetidas ao processo, elas instauraram o processo, a partir delas e dos outros:

Quando nos deparamos com um grupo, podemos adotar a postura de resolver seus problemas através de dicas orientadoras. Não estamos, então, confiando no próprio processo grupal. Se, ao invés disso, propusermos uma abertura de todos a todos, a partir de seus centros pessoais (a partir do coração), então as soluções ocorrerão mas não como coisas prontas, e sim como um novo rumo mais criativo que o próprio grupo acaba assumindo. (Amatuzzi, 2001, p.124)

Destaca-se nessa experiência de seis anos as manifestações mais expressivas encontradas nas reuniões, como a solidariedade entre os participantes e as iniciativas espontâneas dos membros, como levar canções conhecidas, para facilitar a compreensão do seu sofrimento pelos demais. Uma das canções que mais chamou atenção e mobilizou o grupo, que a elegeu como favorita, foi a música do compositor Lobão (1989) "Essa noite não", levada por um membro do grupo. O sentido da canção dizia respeito ao medo que a noite trazia, dos pesadelos e alucinações, do desespero da insônia e da vontade de morrer. No refrão a canção diz "mas não tente se matar pelo menos essa noite não". Traz também um sentido de não desejar morrer antes de tentar, buscar outro caminho, não desistir.

A equipe de profissionais do CAPS, também participou desse acompanhamento, que não ficou restrito à Psicologia, já que a prática se insere dentro da proposta da clínica ampliada, onde a atenção ao usuário é diferente da clínica tradicional, nessa proposta o tratamento é pensado de acordo com as necessidades do usuário, por uma equipe de profissionais:

A Clínica Ampliada, no entanto, não desvaloriza nenhuma abordagem disciplinar. Ao contrário, busca integrar várias abordagens para possibilitar um manejo eficaz da complexidade do trabalho em saúde, que é necessariamente transdisciplinar e, portanto, multiprofissional. (Brasil. MS, 2009, p.14)

Havia a necessidade de compartilhamento com os demais profissionais, até pela importância da inserção desse usuário em outros recursos do CAPS, e não só do serviço de Psicologia e Psiquiatria. Logo, muitos usuários desse grupo passaram a usufruir de outros atendimentos e atividades do CAPS, como atividade física, grupo cultural, oficinas terapêuticas e outros.

Outro destaque foi a necessidade de participação e adesão do usuário no seu projeto terapêutico, buscando sua participação e autonomia nas decisões sobre sua saúde. Essa participação foi importante, pois o usuário passou a compreender que possuía uma responsabilidade na sua recuperação. É preciso compreender o sentido da doença para cada sujeito e, assim, juntamente com ele e com o grupo, ajudá-lo na reconstrução do sentido de sua existência e de suas relações com o mundo.

Todos os usuários, mesmo os com diagnóstico de psicose, estavam em condições de compreender, no estudo do seu caso, seus limites e possibilidades. Não havia nesse grupo pessoas desconectadas da realidade, sem possibilidade de reflexão e ação. Faziam uso de medicação controlada e alguns já haviam passado por internações, em período de crise, no Hospital de Clínicas Gaspar Viana, mas estavam com pensamento coerente, com capacidade de autocompreensão e memória preservada. Para Stockinger (2007) esse foi o objetivo do movimento da Reforma Psiquiátrica: "Talvez esteja aí o principal valor em jogo na reforma. A liberdade e a responsabilidade eminentemente afirmadas como condições humanas básicas já afirmadas nas psicologias existencialistas e humanistas". (p.97)

O tempo de duração de seis anos se deve ao fato da minha mudança do serviço, já que passei a fazer parte da equipe de outro serviço de saúde, porém o grupo teve continuidade com outra profissional da Psicologia, com outro referencial.

 

Resultados

No período de atendimento, detectaram-se resultados favoráveis. O resultado foi bastante positivo e avaliado constantemente. Esse trabalho da Psicologia, em um CAPS, com um enfoque fenomenológico, favoreceu a corresponsabilidade do usuário por seu atendimento e sua evolução, contribuindo para que outros profissionais que ali atuavam fizessem, a partir dessa experiência, uma redefinição de funções, além de propostas para implementação de novas práticas que contemplassem as necessidades desse segmento de usuários. Em seis anos, os participantes do grupo não voltaram a ter reações violentas e se mostraram muito mais dispostos a se inserir em outros espaços do CAPS e da comunidade, em busca de seu crescimento pessoal.

Apesar de avanços e sucessos na experiência, tivemos algumas dificuldades, principalmente no que diz respeito às regras da instituição, que se impõem sobre os grupos do CAPS, ou seja, predominam as regras institucionais, não do grupo. Uma é a valorização do uso da medicação, quase uma obrigatoriedade para quem faz acompanhamento no CAPS. Em várias ocasiões esse fator provocou divergência de opinião entre a equipe quanto à sua necessidade em determinados casos, e o efeito no organismo do usuário, que faltava muitas vezes às sessões do grupo por estar sobre forte efeito de medicação psicotrópica.

Outro dos grandes obstáculos foi o entra e sai de participantes. Quando o usuário chegava a uma estabilidade no seu quadro, com redução nos sintomas ou ausência deles, recebia alta melhorada da equipe do CAPS que o atendia, mesmo que ainda sentisse necessidade de permanecer no grupo terapêutico. Essa prática levou alguns casos a uma regressão no quadro sintomático do usuário, que ainda sentia necessidade de assistência, fazendo com que retornasse ao atendimento em pouco tempo.

Esses são verdadeiros dilemas para uma abordagem fenomenológica, já que se tenta preservar a autonomia do sujeito, porém esbarra-se em outros fatores. Sabe-se que a instituição regula os grupos para poder contemplar, dentro de suas possibilidades, as necessidades da comunidade e do próprio serviço. A demanda dos CAPS com esse perfil é muito grande, assim como existe limitação de espaço e de profissionais para atender as reais necessidades da área de abrangência do serviço.

Não quero justificar aqui as limitações da instituição como inevitáveis, mas como um problema que tem solução, que nem sempre vai depender da vontade do servidor da saúde, mas de várias outras estratégias, como o adequado funcionamento do atendimento em rede ou aumento de CAPS III, que funcionam 24h, com um número maior de profissionais. Enfim, ampliação de recursos que possam realmente fazer avançar os projetos da Reforma Psiquiátrica e do SUS.

Outra limitação que merece uma discussão mais ampla nos espaços de capacitação e supervisão nos CAPS é a relação entre os profissionais e os usuários que possuem histórico de violência, e diz respeito à cultura em que estamos inseridos. Essa relação muitas vezes se configura numa violência institucional, como a resistência em atender essa demanda de homens, que pode afastar esse usuário do serviço e agravar seu quadro, já tão comprometido pelo sofrimento mental.

Acredito que essa experiência pode contribuir para discussões e reflexões a respeito das temáticas do sofrimento mental, das masculinidades, da violência e do trabalho de grupo. Embora existissem, e ainda existam, obstáculos institucionais, pode-se afirmar que foi uma experiência exitosa, que atendeu ao que se propôs.

Após minha saída do CAPS, outra psicóloga assumiu o serviço de Psicologia, mas de maneira diferenciada, já que cada profissional tem estilo e referenciais próprios de trabalho.

 

Referências

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Recebido em: 20/03/2012
Aceito em : 25/08/2012

 

 

1.Os CAPS podem ser de tipo I, II, III, Álcool e Drogas (CAPS AD) e Infanto-juvenil (CAPSi). Para populações entre 20 a 70.000 habitantes - CAPS I. Populações com 70.000 a 200.000 – CAPS II e populações com mais de 200.000 – CAPS III. (Portal da Saúde, www.saude.gov.br, acessado em 17/11/2012).