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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.1 Belém jan./abr. 2020

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº01artigo64 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº01artigo64

 

Gadamer e a questão ambiental

 

Gadamer and the environmental issue

 

Gadamer y el problema ambiental

 

 

Gustavo Silvano Batista

Universidade Federal do Piauí

 

 


RESUMO

A questão ambiental apresenta-se entre os principais temas tratados por Gadamer a partir dos anos 70. Ao repensar a questão, tendo em vista a perspectiva hermenêutica, Gadamer sugere uma nova abordagem considerando não apenas a crise ambiental, mas uma relação renovada com o próprio ambiente, em seus mais diversos níveis. Por isso, pensar interpretativamente a questão significa, em grande medida, propor uma ecologia interpretativa, o que significa oferecer um tratamento filosófico próprio ao problema. Deste modo, o presente artigo pretende situar a questão ambiental como um problema hermenêutico, apontando, em linhas gerais, seus principais desdobramentos teoréticos, nos termos de uma ecologia hermenêutica ou ecohermenêutica.

Palavras-chave: Hermenêutica; Tecnociência; Ecologia; Ambientalismo; Práxis


ABSTRACT

The environmental question arises among the Gadamer's main themes from the 1970s. To rethinking the environmental issue, from the hermeneutic perspective, Gadamer suggests a new approach considering not only the environmental crisis, but a renewed relationship with the environment itself, in different levels. Therefore, thinking about the question interpretatively means, in large extent, proposing an interpretive ecology, which means offering a philosophical treatment to the problem. Thus, this article intends to situate the environmental issue as a hermeneutic problem, pointing out, in general, its main theoretical developments, in terms of a hermeneutic ecology or ecohermeneutic.

Keywords: Hermeneutics; Technoscience; Ecology; Environmentalism; Praxis


RESUMEN

El problema ambiental surge entre los temas tratados por Gadamer a partir de la década de 1970. Al repensar el tema, en vista de la perspectiva hermenéutica, Gadamer sugiere un nuevo enfoque considerando no solo la crisis ambiental, sino una relación renovada con el medio ambiente en sí Diferentes niveles de relación. Por lo tanto, pensar en la cuestión interpretativamente significa, en gran medida, proponer una ecología interpretativa, lo que significa ofrecer un tratamiento filosófico adecuado al problema. Así, este artículo pretende situar el tema ambiental como un problema hermenéutico, señalando, en general, sus principales desarrollos teóricos, en términos de una ecología hermenéutica o ecohermeneutica.

Palabras-clave: Hermenéutica; Tecnociencia; Ecología; Ambientalismo; Praxis


 

 

INTRODUÇÃO

A pergunta sobre a relação do homem com o ambiente, sua atual condição e preservação é contemplada pela hermenêutica como uma questão que está inserida num horizonte de questionamento que tem como pano de fundo a relação com o sentido das coisas em geral no âmbito do mundo da vida, conforme expressão de Husserl. A hermenêutica filosófica de Gadamer assume como sua tarefa teorética a convocação husserliana 'retornar às coisas mesmas' como uma tarefa interpretativa básica na qual a relação com os outros no mundo circundante se dá em diversos níveis de sentido. Por isso, o tema ambiental figura entre as atuais preocupações hermenêuticas, no sentido de considerar a questão em seus mais diversos contornos, partindo sempre da manifestação da própria questão na esfera da vida prática. Em poucas palavras, Gadamer, entre outros hermeneutas, tratará do tema ambiental atento ao chamado de Husserl, compreendendo tal atitude como um elemento fenomenológico próprio da hermenêutica filosófica, fazendo justiça ao próprio projeto filosófico hermenêutico, segundo o qual se busca problematizar a efetividade histórica da vida em comum e suas possibilidades.

A pergunta sobre a relação com os ambientes naturais, sua condição e preservação, retomada como objeto de reflexão da fenomenologia e, por conseguinte, pela hermenêutica filosófica, à medida que ambas posturas teóricas compreendem a questão ambiental a partir de uma pergunta inserida no horizonte de investigação que, na relação do ser humano com os ambientes naturais e, por conseguinte, com os ambientes construídos, tem como pano de fundo o sentido efetivo das coisas em geral. O que significa dizer que a formulação da pergunta ambiental, primeiramente na perspectiva fenomenológica e, consequentemente, na perspectiva hermenêutica, reivindica uma revisão dos pressupostos que estão em jogo na própria relação homem e ambiente. Tal postura investigativa não abre mão de rever a própria forma como o ambiente é considerado pelas ciências em geral, levando em conta especificamente o domínio do discurso científico-tecnológico que, em grande medida, assume a prerrogativa de explicar efetivamente os processos ambientais, promovendo tais discursos, considerados objetivos e verdadeiros, como únicos possíveis de entender o ambiente em sua totalidade. Esse posicionamento é revisto de modo crítico pela fenomenologia e hermenêutica, à medida que outras possibilidades de avaliação também são possíveis, tendo em vista a própria relação do ser humano com o ambiente circundante.

Assim, uma primeira atitude importante para pensar devidamente a questão ambiental é rever como a relação entre homem e ambiente é pensada, em seus mais diversos níveis, entendendo que o ponto focal é a relação, momento que ilumina os mais diversas possibilidades de interpretação da relação, dando um passo à frente no que diz respeito ao modo como a ciência e a tecnologia explica o meio ambiente, promovendo um momento de compreensão, segundo o qual o próprio ambiente manifesta-se e transforma a vida humana.

Deste modo, é no horizonte relacional que está em jogo as diversas intervenções humanas no ambiente e, ao mesmo tempo, o próprio modo como o ambiente intervém na vida humana. Como afirma Toadvine:

A ecofenomenologia baseia-se em uma dupla pretensão: primeiro, entende-se que um relato adequado de nossa situação ecológica requer métodos e insights da fenomenologia; e, segundo, que a fenomenologia, liderada por seu próprio momento, pode se tornar uma ecologia filosófica, que é o estudo da inter-relação entre organismo e mundo em suas dimensões metafísica e axiológica. (BROWN, TOADVINE, 2003, p. xii-xiii).

 

PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICO-HERMENEUTICA E A QUESTÃO AMBIENTAL.

Assim, a abordagem fenomenológico-hermenêutica possibilita um questionamento não somente da estrutura da própria questão, mas, sobretudo, dos aspectos inerentes às tentativas de investigação e solução da crise ambiental. Uma perspectiva hermenêutica de tratamento da questão ambiental quer se situar especialmente no modo como nos relacionamos com o mundo que nos constitui e, ao mesmo tempo, com o qual fazemos parte, em um horizonte no qual está em jogo diversas ações humanas, tais como extinções de espécies, mudança climática, poluição, esgotamento de recursos naturais, entre outras, e também atitudes de preservação, buscando a eficácia da sustentabilidade, uma melhor relação com o lixo, formas alternativas de vida, etc. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de considerar que muitos dessas situações, especialmente a questão do clima, também se mostra como um sintoma do meio ambiente marcado pela intervenção cada vez mais profunda do homem.

Tendo em mente tal panorama, Gadamer irá tratar da questão ambiental nas discussões hermenêuticas realizadas especificamente em textos publicados a partir dos anos 70, quando lida com as questões hermenêuticas no âmbito da práxis da vida em comum. A inserção deste problema no horizonte de suas reflexões indica uma perspectiva de questionamento que retoma a questão – a relação homem e ambiente – a partir de uma abordagem interpretativa alternativa, que em grande medida pretende contribuir para repensar a relação com o meio ambiente. Deste modo, Gadamer entende a questão ambiental a partir da crise ambiental, ou seja, um dos momentos terríveis da vida humana, em sua relação com o seu ambiente, no qual o próprio ambiente é devastado de modo cada vez mais definitivo, tendo como justificativa um modo de vida cada vez menos sustentável e inviável para a maioria da população humana na terra. Gadamer entende que a crise – que manifesta esse desequilíbrio entre homem e ambiente – pode ser uma oportunidade para repensarmos a própria vida humana na terra e suas possibilidades futuras.

Por isso, é importante esclarecer que a questão ambiental não é simplesmente tomada a partir de suas formulações científico-sociais, mas antes se manifesta como um momento privilegiado para repensar a própria relação com as coisas em geral. Gadamer fala na questão ambiental em meio a uma discussão sobre o horizonte da vida prática e sua relevância na atualidade. É nesta perspectiva que a questão ambiental aparece, nos termos da crise ambiental, como um tema que confirma a degradação da vida prática em comum, à medida que a própria sociedade ocidental se encontra totalmente engajada no desenvolvimento da técnica e seus desdobramentos tecnológicos. Por isso, pensar a questão ambiental é, ao mesmo tempo, repensar o modo como lidamos com a vida na terra, enquanto comunidades, e seus desafios e perspectivas futuras.

Neste sentido, ao questionar as alternativas de preservação/destruição da natureza, fundamentalmente relacionadas à sua condição de equilíbrio/desequilíbrio frente ao desenvolvimento da ciência e tecnologia, a hermenêutica filosófica não contribui somente refletindo o impacto da questão ambiental na condição comunitária humana, mas a própria formulação da questão, reconsiderando o problema filosoficamente, ressaltando as heranças metafísicas inerentes ao problema. Dito de outro modo, um primeiro momento importante para repensar a questão ambiental é analisar o próprio modo como o problema é pensado, ou seja, compreender os pressupostos que estão em jogo à medida que tal problema é colocado.

Por isso, uma revisão da formulação da questão ambiental, de um ponto de vista fenomenológico-hermenêutico, requer um posicionamento teorético e interdisciplinar, na tentativa de contribuir para um questionamento mais amplo, que não se limite à crise ecológica em termos científicos, mas diga respeito a uma forma de relação – basicamente interpretativa – que não pode ser ignorada. O que significa dizer que não basta identificar a crise a partir de análises e relatórios científico-tecnológicos. É preciso mais um passo: compreender a crise como uma escolha prática da própria comunidade humana, especialmente em seus modos de vida. O que se reflete de forma especial nas políticas que regem as comunidades globais, tendo muitas vezes, por exemplo, o consumo como um valor intrínseco à vida.

Neste horizonte teorético, tendo em vista o equilíbrio da relação com a esfera prática da vida em comum, a questão ambiental aparece como talvez um dos poucos momentos que proporcionaria uma nova relação com o ambiente em geral. Tal perspectiva coloca o tema ambiental em um âmbito ampliado de questões hermenêuticas, reconsiderando o próprio acontecer da compreensão totalmente referido ao mundo prático da vida, o que podemos ver no tratamento que Gadamer realiza quando lida com questões da medicina, literatura, poesia, artes, entre outras. No caso específico da questão ambiental, Gadamer aponta a necessidade de repensarmos a própria condição de desequilíbrio das possibilidades vitais trazidas pelo progresso humano e pelo desenvolvimento da ciência, tendo em vista o impacto técnico na condição comunitária humana no ambiente natural compartilhado. O que significa, em alguma medida, repensar o próprio modo de vida da comunidade e seus limites.

Notadamente na obra "A Razão na Época da Ciência", Gadamer faz forte referência ao problema ambiental a partir da chamada 'crise ecológica'. Tal crise é uma das preocupações mais urgentes de nosso tempo, não somente como algo a ser resolvido, mas como um tema diretamente relacionado ao domínio da tecnociência. Na perspectiva hermenêutica, tal problema foi desencadeado especialmente pelo modelo de produção e pensamento industrial que dominam a cultura ocidental, o que pode acarretar a própria impossibilidade de vida na terra. Diz Gadamer:

... uma experiência mais geral, que apela para a nossa razão prática, ao tornar conscientes os limites de nossa racionalidade técnica: a crise ecológica. Esta crise reside no fato de que um crescimento potencial de nossa economia e nossa técnica, se seguirmos o caminho no qual nos encontramos atualmente, provocará, em um tempo não muito distante, a impossibilidade de vida neste planeta (Gadamer, 1983, p. 54).

A extensão da questão hermenêutica para o tema do meio ambiente através da crise ecológica indica uma preocupação, muitas vezes apontada por Gadamer, de repensar alternativas para a vida humana atual, o que não se limitaria a reconsiderar apenas a própria condição humana, mas também o seu ambiente circundante e a paisagem. O panorama atual, seguindo a descrição de Ulrich Melle, indica um horizonte de questionamento aplicado ao problema ambiental:

A desintegração da ecologia planetária com sua onda de extinções tem significado e importância para nós, não apenas como uma ameaça a nossa sobrevivência e a continuação de nossa civilização. A marca humana no planeta e seus ecossistemas se torna cada vez maior. O crescimento das infraestruturas e instalações técnicas, dos assentamentos humanos e aglomerações urbanas, dos locais industriais, da mineração, da silvicultura, da pesca e da pecuária leva a que uma parte cada vez maior da superfície do planeta seja transformada radicalmente de sua condição natural em forma humana e determinada pelo homem, uma forma que mudará e será constantemente refeita segundo critérios de rentabilidade econômica (Melle, 2010, p. 359).

O panorama descrito por Melle oferece-nos um horizonte no qual o pensamento hermenêutico – nos termos de uma ecohermenêutica – não deveria perder de vista as demandas do compreender enquanto um acontecimento básico da vida humana e seu ambiente. O que significa dizer que um pensamento ecológico hermenêutico, baseado na consideração da questão ambiental em novos termos, pode problematizar os pressupostos básicos sedimentados não somente no atual discurso sobre a ecologia e o meio ambiente, mas também como uma busca de repensar a relação entre homem e ambiente, questionando os pressupostos metafísicos desde já atuantes tanto no discurso da ciência quanto na formulação do próprio discurso ecológico.

Deste modo, a reflexão acerca do meio ambiente como uma questão hermenêutica, onde os humanos habitam e se relacionam compreensivamente, indica uma nova possibilidade de relação, que faz justiça às demandas interpretativas da constituição de um mundo situado, pleno de sentido no qual a vida humana acontece efetivamente.

Tendo como herança e pano de fundo a relação com o sentido das coisas em geral no âmbito do "mundo da vida", conforme expressão de Husserl, tal perspectiva hermenêutica pretende discutir um horizonte no qual está em jogo uma série de ações humanas e suas repercussões não somente no discurso, mas também nas ações práticas comuns. É o que poderíamos tratar ao falar de mudança climática, poluição, esgotamento de recursos naturais, etc. Tal posicionamento também deve examinar os esforços de conservação e/ou preservação do meio ambiente, a defesa da sustentabilidade, etc.

Ambos encaminhamentos – de preservação ou destruição – são objeto de investigações hermenêuticas, à medida que a própria relação com o ambiente pode ser repensada, na tentativa de investigar novas possibilidades de tratar do problema ambiental. Neste sentido, pode-se repensar o próprio discurso ecológico a partir de uma revisão da estrutura metafísica (própria do discurso dos biólogos, cientistas, engenheiros, arquitetos) própria do discurso ambiental, evidenciando elementos hermenêuticos que estão em jogo nesta questão.

Há, portanto, na abordagem hermenêutica, uma oportunidade de reorientação do homem em sua relação com o seu ambiente e, consequentemente, o vislumbramento de um caminho para a superação da crise ambiental. Isto quer dizer que o caminho hermenêutico pode ser uma via alternativa para a abordagem do discurso ecológico, nos termos de ampliação da consciência hermenêutica, em seu diálogo com o meio ambiente.

Assim, uma hermenêutica ambiental não deve perder de vista a conexão básica entre os ambientes e as pessoas, ou seja, a situação própria das comunidades e a relação com seus lugares. A compreensão atuante na relação com o ambiente é um processo efetivo, não somente porque lidamos com nosso meio como um texto a ser interpretado em seus mais diversos níveis, mas porque é contínuo e sempre novo o diálogo próprio inerente ao modo como nos relacionamos com nosso mundo circundante, que sempre tem algo a nos dizer. Nesta perspectiva, é uma contribuição hermenêutica lidar com as questões próprias do ambiente a partir de sua manifestação, não somente buscando suas causas, mas compreendendo a própria questão como algo constitutivo da nossa própria relação com o mundo, buscando alternativas adequadas à própria constituição do problema.

Por isso, uma das principais preocupações é entender a eficácia de um questionamento hermenêutico acerca do ambiente em suas mais diversas manifestações e, por conseguinte, pensar em suas consequências práticas. Dito de outra forma, seria possível refundar a ecologia, em termos hermenêuticos, considerando toda a série de desenvolvimentos científicos relacionados à contínua tecnificação da natureza, não se restringindo aos mesmos como as únicas fontes de verdade sobre o meio ambiente? Ainda seria possível, portanto, sustentar um discurso ecológico a partir de outros elementos distintos dos científicos? Por fim, qual o alcance ético da reflexão hermenêutica sobre o meio ambiente?

Tais questões colocam-se no horizonte de questionamento hermenêutico, na tentativa de repensar o meio ambiente, evidenciando as contribuições para um pensamento ambiental que leve em conta o contínuo diálogo entre homem e seu ambiente, seja o mesmo natural ou construído, na tentativa de compreender tal relação situada na esfera prática comunitária, em equilíbrio com os desenvolvimentos científicos.

Assim, a hermenêutica ambiental não pode deixar de lidar com a relação histórica entre homem e ambiente, muitas vezes tratando de casos específicos nos quais se mostra como tal interação acontece. Contudo, não se trata simplesmente de uma proposição de uma nova ética ou política ambiental, mas antes compreender a questão como um tema prático, situado – e não apenas como mais uma questão técnica.

Como os ambientes são passíveis de diversas camadas de interpretações devido às mais diversas relações, cada discurso deve ser devidamente considerado para uma visão mais ampliada da questão. Por essa razão, a pergunta hermenêutica sobre o ambiente não se limita a buscar informações diferenciadas ou soluções técnicas mais adequadas para os problemas identificados em cada caso. Mas, ao contrário, perceber que os mais diversos posicionamentos se situam em um horizonte de sentido mais amplo, no qual está em jogo, como limiar, a vida histórica efetiva e comum. Dito de outro modo, a hermenêutica ambiental recorda-nos que todo ambiente que aparece em uma relação com os sujeitos intérpretes tem sua própria história. E por isso, devem ser devidamente repensados, no porvir das mais efetivas e diversas questões.

Um dos caminhos interessantes que pode contribuir para um tratamento hermenêutico de algum problema ambiental específico são os critérios de interpretação ambiental sugeridos por John Van Buren (1995 e 2014) em suas contribuições acerca de uma hermenêutica ambiental crítica. O trabalho deste filósofo americano é um bom exemplo do trabalho hermenêutico ambiental, especialmente nos termos de uma hermenêutica ecológica.

Podemos aqui entender o termo 'ecologia' não apenas como o estudo aprofundado das relações entre seres vivos e os ambientes onde vivem, conforme é caracterizada pela biologia. Os filósofos hermeneutas ressignificam essa noção, retomando o termo 'ecologia' como o estudo das interações (recíprocas) entre seres vivos e ambientes, notadamente o ser humano e o meio ambiente, pensando as relações de modo basicamente correlato. Em outros termos, uma ecohermenêutica se caracteriza pelo estudo da interdependência entre seres vivos, especialmente o ser humano, e os ambientes e suas solidariedades, com ênfase nas diversas camadas de sentido proliferados nestas relações, para além dos estudos científicos. Ou seja, busca-se tratar das múltiplas mutualidades que constituem o tecido ambiental, suas transformações em esfera local e, por conseguinte, global, além da influência da indústria e do crescimento populacional.

No caso específico do trabalho de Van Buren, o autor lida com um problema ambiental concreto: a conservação ou preservação das florestas nos Estados Unidos. O convite para participar deste debate foi uma oportunidade para ampliar a análise dos conflitos que rondam a maior parte dos casos concretos. Deste modo, Van Buren concebeu e elencou critérios hermenêuticos básicos para a interpretação do ambiente do ponto de vista de uma questão concreta. Deste modo, ele distinguiu quatro momentos – pensados como critérios –, que contribuem para a devida consideração do problema. São eles: biofísico, histórico, técnico e ético-político.

Como traço biofísico, o autor parte da interpretação dos fatos biológicos e suas interpretações pelas ciências naturais. Trata-se do primeiro nível a ser considerado, mas não somente, como se fosse o único critério confiável para lidar com uma questão ambiental. Trata-se de um momento no qual se realiza uma explicação pormenorizada do objeto a ser considerado e suas características biofísicas. Como segundo momento, o traço histórico deve ser considerado a partir da inserção do problema nas tradições históricas e sua própria historicidade, ou seja, o lidar com problema ao decorrer do tempo histórico próprio das relações.

Ainda se coloca como traço importante o caráter técnico do problema, ou seja, sua relação com o domínio da razão instrumental, especialmente em relação aos meios e fins próprios da questão. E por último, mas não menos importante, o caráter ético-político, ou seja, o sentido da questão no âmbito da vida humana compartilhada com os outros seres vivos, seu caráter ético-normativo e político, o que significa dizer que as questões ambientais também estão marcadas pelos valores individuais e comuns de cada indivíduo e sociedade e, por isso, colocam-se de modo relevante.

O exemplo da proposta de Van Buren é fundamental já que nos oferece um caminho teórico-prático concreto no lidar com as questões ambientais localizadas. O que significa dizer, do ponto de vista da vida efetiva de cada comunidade, estender o caráter interpretativo para quaisquer ambientes, analisando de modo aprofundado e holístico os encontros, interações, reações e sintomas 'reais' nas interdependências entre ambientes, seres vivos e seus problemas, além de salientar a multiplicidade de sentidos próprios de cada ambiente, em cada momento histórico no qual o mesmo é localizado, possibilitando assim visões alternativas para as mais diversas questões ambientais e a busca de possíveis encaminhamento e soluções conjuntas.

É bastante claro, do ponto de vista hermenêutico, que nenhuma questão ambiental será devidamente tratada se examinarmos somente os elementos biofísicos ou técnicos. Muitas vezes problemas ambientais graves nem são compreendidos pelas comunidades devido às explicações puramente técnico-científicas. É preciso que a questão seja pensada para além do registro da razão científica e instrumental, considerando outros elementos relevantes, tais como a história da questão, sua repercussão ético-política, urbanística, entre outras.

Dito isto, poderíamos entender a questão ambiental em Gadamer como um primeiro passo para uma tarefa que se desdobra à medida que novas questões se colocam efetivamente nas repercussões da crise ecológica. O que torna o questionamento hermenêutico passível de difusão acerca de diversos outros ambientes, para além do natural, possibilitando assim a interpretação e aprofundamento dos modos de relação, suas formas de escrita e proliferação de sentidos, à medida que permite o desenvolvimento de uma consciência hermenêutica nas relações com os múltiplos ambientes. O que significa compreender a necessidade de também contribuirmos com uma ecologia hermenêutica, ao passo que podemos entender tal ecologia como um estudo compreensivo e abrangente das questões que nos cercam e que se manifestam de forma cada vez mais urgente.

Este questionamento hermenêutico não está imune a se transformar também em uma espécie de 'ambientalismo hermenêutico' que, ao passo que se preocupa de modo cada vez mais efetivamente com as questões ambientais, também compreende as interações com o mundo histórico da vida como um lidar comunitário, no qual está em jogo homem e ambiente como um dos elementos ecológicos fundamentais. E tal caráter fundamental diz mais respeito aos danos que o ser humano provoca na terra que as transformações benéficas da vida humana, muitas vezes limitadas a algumas comunidades privilegiadas. Tal ambientalismo não poderia ser indiferente aos desafios ambientais atuais enquanto não compreendermos que uma consciência ambiental hermenêutica crítica está sempre atenta a crítica aos próprios pressupostos teóricos de cada análise, especialmente no que diz respeito a manutenção comum da vida na terra.

 

Referências

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Nota sobre o autor

Gustavo Silvano Batista - Doutor em Filosofia pela PUC-Rio/ Universidade de Copenhague. Professor do Departamento de Filosofia da UFPI. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPI. E-mail: gustavosilvano@ufpi.edu.br.

 

Recebido em: 20/01/2019
Aprovado em: 20/03/2020

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