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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Música para o teatro do inconsciente

 

Music for the unconscious's theatre

 

 

José Eduardo Costa e Silva

Mestre em Música pela UNIRIO. Professor de Estética e Alaúde na UEMG E-mail: zed2004@gmail.com

 

 


RESUMO

Uma reflexão filosófica sobre a inserção da música no Teatro do Inconsciente, tal como concebido pelo psicanalista e dramaturgo Antônio Quinet. Partindo do referencial teórico oferecido pela psicanálise lacaniana e pela ontologia da arte, sobretudo a que foi elaborada pelo filósofo Martin Heidegger, reflito sobre a ideia de que a música, no espaço teatral por ela circunscrito, promove a aproximação dos entes ao real, realizando-se como projeto da verdade, que valida o teatro como forma de vida.

Palavras- chave: Música, Teatro do Inconsciente, Real, Verdade.


ABSTRACT

This paper is a philosophical reflection about music for unconscious's theatre. Starting of Lacan's psychoanalysis and philosophy of art by Martin Heidegger, I argument that music, in the theatre, possibility the approximation between the being and the real, became an truth's project that make the theatre as life.

Keywords: Music, Unconscious's Theatre, Real, Truth.


 

 

Introdução

Apresento parte dos resultados da pesquisa que realizo na Cia de Teatro Inconsciente em Cena, vinculada ao Programa de Pós- Graduação em Psicanálise da Universidade Veiga de Almeida e ao Departamento de Teoria da Arte e da Música da Universidade Federal do Espírito Santo. Tratase de uma reflexão filosófica sobre a inserção da música no teatro, segundo dois polos conceituais: um primeiro, de onde provém o conceito de Teatro do Inconsciente, a saber, o teatro que se estrutura como o jogo entre o dito e o não dito da linguagem, encampando desse modo a concepção lacaniana sobre o inconsciente, e, sobretudo, as articulações entre arte e psicanálise, realizadas pelo psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet; um segundo, que situa a música no centro das reflexões sobre arte e ontologia, tal o que se faz representar nas filosofias de Nietzsche e Martin Heidegger.

A reflexão se desenvolve a partir da ideia de que, no Teatro do Inconsciente, se explicita a diferença entre o que existe mais ou menos próximo à realidade das pulsões. Destarte, o teatro é o espaço que concentra a complexidade do dito e do não dito, do que pode ou não ser explicitado com palavras e gestos, que, em última análise, reflete a perda da unidade entre existência afetiva e linguagem. O teatro é vida na forma da dúvida mais crua, a saber: a dúvida entre o ser e não ser, o móvel e o imóvel que um dia frequentou originariamente as especulações dos gregos pré- socráticos.

 

 

Nesse teatro, avento, a música pode revelar sua força unificadora, determinando-se como o lógos afetivo que mantém os entes por ela circundados na proximidade do real das pulsões, para a partir desta determinação, realizar-se como projeto da verdade, à moda originalmente grega, compreendida como o jogo dialético entre o velado e o desvelado. Eis talvez a chave do enigma sobre o que permite ao dramaturgo e todos aqueles que participam do teatro dizer que uma música está ou não adequada à cena. Como exemplo, um breve relato fenomenológico sobre uma cena da peça Abram-se os histéricos.

 

A necessidade de unidade no teatro do inconsciente.

O psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet estabelece o indicativo que orienta o teatro para o qual a música deve existir: trazer o inconsciente à cena, buscando, na esfera do artístico, tornar explícito o que não quer se dar de todo à explicitação. O teatro do inconsciente, melhor dizendo, o teatro da "outra cena", lugar que resguarda o significado transitório, ao mesmo tempo velado e desvelado em gestos, imagens pictóricas e sons - signos de uma cadeia de significantes puros, inscritos como sintoma no corpo. Assim concebido, o teatro é essencialmente corpo! Observa-se um corpo inseparável do universo anímico, que registra e unifica enigmaticamente vida interior e exterior, sem fazer distinção entre uma e outra.

 

 

Comparável à pintura, o teatro do inconsciente produz imagens estranhas à "normalidade" cotidiana. A propósito, penso em Bosch, Dali e nos pintores anônimos das cavernas do Piauí - no patrimônio pictórico da cultura abundam imagens ditas do inconsciente: formas deformadas, conjuntos de representações em associação livre, relógios e bigodes célebres. Porém, no teatro, as imagens deixam a "outra cena" para fazer parte da cena, dando-se ao âmbito das convenções de significação que edificam a linguagem e, por conseguinte, a cultura. Aparente paradoxo? Há imagens conscientes do inconsciente.

Trazer à consciência o que é próprio do inconsciente, estabilizar na forma do ser- significado, o que é da mobilidade do vir- a-ser, suster a linguagem em movimento na imagem da palavra inscrita no corpo; o teatro do inconsciente reedita a antiga querela em torno do "movimento do ser", travada na antiguidade entre os membros das Escolas de Parmênides e de Heráclito. O ser é móvel ou imóvel? (BEAUFRET, 1978). Na possibilidade de dizer o que é, reside a possibilidade de dizer o que somos - eis a condição objetiva da subjetividade. Mas há o aberto inexorável de tudo que existe em movimento, que revela até a possibilidade mais radical da existência, qual seja, o desvanecimento da subjetividade. Portador de tal indecisão ontológica, o teatro do inconsciente é também, como bem o diria Nietzsche, trágico.

A proposta é compor a música do teatro do inconsciente. Como mencionado, esse teatro traz a indecisão ontológica fundamental entre a mobilidade e imobilidade do ser. No inconsciente, onde se dá o jogo entre o visto e não visto dos significados transitórios de uma cadeia de significantes puros (LACAN, 1998, p.24), ser e não ser é da ordem do teria sido, modo verbal que tenta expressar o movimento do ser em movimento, que se constitui na constante resignificação de si mesmo no mundo (HEIDEGGER, 1988, pr.65). E o músico pergunta: trata-se de ver ou escutar o ser do inconsciente?

Escutar o inconsciente como quem escuta o ruído que denuncia a presença de um animal escondido. O ruído diz o que o animal é ou não é, na medida em que indica o lugar em que se encontra o animal, precisamente, o lugar que determina seu status ontológico. Se suposto o ruído no teto, talvez esteja ali um pássaro. Se suposto atrás de latas ou objetos velhos, quem sabe trata-se de um roedor. Mas é possível supor a presença de animais improváveis e também de seus qualificativos. Em uma palavra, o ruído, expressão da materialidade do som, traz a marca do que aqui tomo como pertença comum ao inconsciente, ao teatro e à música, a saber: o caráter transitório do significante puro.

Ecoam as palavras de Hölderlin: "dificilmente o que habita próximo à origem abandona o lugar" (HÖLDERLIN, 1991, p.167). Possivelmente! O lugar existencial de um ente está associado à determinação do que ele é; o ser não abandona o lugar. Não obstante, quando há um afastamento entre ente e lugar, as relações entre as categorias do pensamento arrefecem, a ponto de mascarar a origem do objeto significado. Por exemplo, a origem de um sintoma parece estar mais na cena do que na "outra cena". Engano do que é aparente! O significante puro, que denuncia a origem do ser do ente, assim como o ruído de um ente que não tem lugar determinado, tem o caráter do ser afastado do lugar. Logo, inconsciente, teatro e música, na medida em que portam o significante puro, portam também o ser afastado do lugar.

O ser afastado do lugar dá a medida da diferença entre apresentação e representação no teatro do inconsciente, estruturando- o essencialmente como linguagem. O que se dá no âmbito da apresentação está próximo ao real, que existe ao mesmo tempo fora e dentro da linguagem, tal como se traduz o neologismo lacaniano Extimidade. Fora, na medida em que é concebido como universo pulsional que se recusa à forma e ao significado. Dentro, porque, como não linguagem, solicita a linguagem, alimentando a vontade de polissemia do sujeito (LACAN, 1997). Por outro lado, o que se dá no âmbito da representação é da ordem do ente que construiu sua história na linguagem, a ponto de parecer existente em si mesmo, não obstante ser derivado do real. Está claro que o aparente paradoxo, sugerido no início deste texto, sequer existe: sobre o fundamento do real, o inconsciente se diz no consciente, assim como suas imagens correspondentes dizem, assim como, enfim, o apresentado se diz no representado.

O ser afastado do lugar estrutura o teatro do inconsciente como linguagem da diferença entre o que é na proximidade do real e o que é na distância. Porquanto seja, o ser afastado do lugar estrutura o teatro do inconsciente como obra de arte que, por princípio, quer promover a unidade entre o próximo e o distante, ou seja, entre o apresentado e o representado (linguagem cotidiana). E por ter em si mesmo o apelo da unidade, o teatro do inconsciente abriga a luz, a música e tudo mais que nele se insinue como promessa de força unificadora.

 

A força unificadora da música

A música em sentido lato: antes da palavra, gemidos e grunhidos (ROUSSEAU, 1999, p.247). A mera forma universal, o signo vazio e prenhe do estado afetivo que acolhe a razão, condição metafísica da linguagem (SCHOPENHAUER, 1969, p.309). Expressão da pulsão de Dioniso, dizer da totalidade que se individua em formas apolíneas (palavras e coisas designadas) (NIETSZCHE, 2006, pr.3/8). A noção de que a música é ontologicamente próxima à realidade das pulsões é recorrente na tradição do pensamento. Desta noção, decorre outra: a música é em si mesma a dimensão de não linguagem da linguagem, em que o silêncio polissêmico do universo afetivo é condição para o ato simbólico originário de todo dizer. Na medida em que instaura-se como eidos, a música é força evanescente do significante puro, a permanência da intenção de significar o que é em essência movimento da totalidade latente dos sentidos.

A música é o estar entre a palavra e a coisa (HEIDEGGER, 2003, p.24). O afeto transformado em movimento mélico, que liga o saber imediato da coisa a seu signo. Mousikè, entre os gregos! (TOMÁS, 2002) Lógos! O dizer cantante do ser indeterminado que se determina como significado no ente (HEIDEGGER, 2003, p.27). Destarte, a música realiza no real a unidade entre o eidos fenomênico e a linguagem.

Com sua força unificadora, a música instaura uma afinação (Stimmung). Afinação; estar em uma tonalidade afetiva do ser, compartilhando um modo de significação do mundo (HEIDEGGER, 1988, p.29). A afinação instaurada pela música é estranha à afinação vigorante no cotidiano (facticidade), justamente a que corresponde à concepção habitual de que o ser é um composto de matéria e forma, segundo uma finalidade (VATTIMO, 1996, p.17). Conquanto no cotidiano os entes sejam compreendidos como uma totalidade de úteis familiares, que funcionam e se estruturam de acordo com uma finalidade, sob a afinação da música impera a abertura do ser para o indeterminado polissêmico, no que constitui a estranheza.

Na estranheza da música, o que no cotidiano é imperceptível, por ser familiar, torna-se distante, dando-se imediatamente aos sentidos. Assim, a música sustenta o que no teatro está explicitado em imagens e palavras, tornando- os próximos ao real, revelando o que parece ser da essência do teatro: o sujeito na descoberta de si mesmo, na medida em que vê a si mesmo em sua relação com o outro. Nessa descoberta, o sujeito participa da tensão do sereno, ou seja, da tensão entre o imóvel (ser) e o móvel (vir- a-ser).

 

A música como projeto da verdade no teatro

A tensão do sereno é inerente à música. Como mencionado, a música é o estar entre a palavra e a coisa designada (lógos), a síntese incompleta entre o som e o significado. Em sua estrutura, a matéria (som/silêncio) não está completamente subsumida à forma significadora, podendo por isso ser escutada em si mesma, no instante que antecede a sua subsunção formal. Logo, na música, o som é mais som do que quando usualmente está incorporado às coisas do cotidiano. E, do mesmo modo, o silêncio é mais silêncio. Também a forma mais originária, que permite a aparência do som, é escutada como estrutura deslocada, como o que universalmente existe por si. Trata-se, então, de escutar matéria e forma na própria substancialidade, grandeza e qualidade! Em outras palavras, matéria e forma se dão aos sentidos como categoria, isto é, como o ente em sua primeira acepção. Nota-se, apreendidos como o ente em sua primeira acepção (categoria), que as partes primariamente constitutivas da música (matéria e forma) permitem a interpelação discursiva da totalidade do ente, caracterizando o estado primordial de abertura para a atividade significadora, que é radicalmente produzido como clareira do ser (1).

Destarte, a sentença: a música traz a condição para o acontecimento da verdade (Lichtung)..Tal acontece porque, sendo a música uma síntese incompleta, ela permite que suas partes sejam escutadas como categorias, ou seja, como o ente em sua primeira acepção. Nessa escuta primordial, o homem descobre sua pertença comum ao ser e à linguagem, e interpela discursivamente o imediato do ente (2). Porém, a interpelação do ente é um ato potencialmente inesgotável, posto que é da estrutura da verdade o dar-se à luz descobridora do ser e o ocultar-se, em um jogo de mostra e esconde que garante o permanente aberto da interpretação. Situo-me aqui no âmbito de conceitos derivados da designação grega para a verdade (Alétheia), quais sejam a Lichtung e o inconsciente estruturado como linguagem, tal como o concebe Lacan. Por ora, constato que a Licthung e o inconsciente compartilham de uma mesma estrutura, justamente a estrutura do jogo dialógico da verdade. Por conseguinte, o teatro do inconsciente é o teatro da verdade, e a música existe nele como condição de possibilidade de seu próprio acontecimento.

A música no teatro existe como projeto da verdade que nele irá acontecer. Presença explícita ou subtendida, a música está imbricada às palavras, às imagens e aos gestos, acolhendo- os em sua abertura para o indeterminado do ser. Então, o que se vê na experiência de compor trilhas para teatro é justificável: uma única obra musical, ou mesmo um fragmento de obra, sustenta múltiplos significados para a cena circunscrita. Também o contrário ocorre: uma única cena é sustentada por obras estruturalmente diferentes. Vale dizer, a verdade, concebida como abertura para o indeterminado do ser (Lichtung), é única e universal. Como assinala Heidegger no parágrafo 44 de Ser e Tempo, estaríamos nós mesmos na verdade e não fora dela, a ponto de convertê- la em objeto do conhecimento.

Entretanto, mesmo diante da univocidade da verdade que se traduz na univocidade da música, o dramaturgo e todos aqueles que de algum modo estão envolvidos pelo teatro exigem a música que verdadeiramente melhor se adéqua à cena. Esta situação apenas atesta o fato de que a verdade particulariza-se segundo as categorias de relação e causa, configurando-se no modo da correção (adaequatio rei et intellectus). É sobre esse modo que recaem historicamente as discussões sobre o valor absoluto e o relativismo, a cada vez que o ente se oculta e se mostra. Existindo nesse modo da verdade determinamos cotidianamente o verdadeiro e o falso, assim como o adequado e o inadequado.

Participa do enigma da obra de arte a experiência da verdade em sentido amplo e inexorável; diante de uma obra de arte, não relutamos em saber o que é ficção, realidade e verdade. Penso na singularidade do teatro; a cada dia uma nova peça! Mera repetição, mero jogo que nos mantém na máxima proximidade do real. Assim, tão próximos do real, tentamos saciar o que em nós existe como estrutura: a vontade de dar palavra ao transitório, a vontade de dar conceito ao indeterminado, a vontade que é mais genuína ao sujeito e ao teatro, a saber: a vontade de verdade (3). O dramaturgo, assim como os demais que vivem no teatro, estão com vontade de verdade, a ponto de solicitar a verdade mais correta e adequada, que se traduz na música reconhecidamente própria da cena. Não obstante, a música reconhecidamente própria da cena é uma experiência em particular.

 

Abram-se os histéricos! (4)

A música circunscreve o espaço que envolve a atriz e o que está em seu entorno. O limite do espaço é o escutado segundo a tonalidade afetiva da música. Assim, no limite do espaço, configura-se um mundo do qual participam os sons dos instrumentos, as vozes e os ruídos. Um mundo é o conjunto daqueles que compartilham a presença comum imposta pela força unificadora da música. Sob a força, não há como saber ao certo de onde advêm os sons e as imagens. É como se o som da respiração não viesse do corpo, mas fosse próprio da música. E o som do piano não viesse das cordas e da madeira. Assim como a cor que não parece advir da lâmpada. Todavia se escuta a corda e a madeira. E se vê a cor somente. Eis o estado da tensão do aberto!

A música é estruturalmente simples; uma voz ininterrupta, ligada, espacialmente situada em um plano inferior, constituída por harmônicos do piano provenientes de clusters sobrepostos. Sobre essa voz, incide outra, constituída por esparsos fragmentos das árias: Sola, Perduta, Abandonatta, da ópera Manon Lescaut, de Puccini; Sempre Libera e Addio del Passado, da ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi. Os fragmentos contêm os pontos culminantes das árias, partes de uma música que, em seu contexto original, denota instantes de grande intensidade dramática, cujo sentido está perpetuado na história da relação desta música com seus ouvintes.

Em contraste com os esparsos fragmentos das árias incididas, a voz dos harmônicos soa como uma massa de sons indistintos, uma reserva de silêncio produzida pela monotonia, pronta para dar suporte a qualquer evento que queiramos destacados da realidade do palco. E a atriz, no papel de Adelina Patti, declama a história encenada na ópera Manon Lescaut (5). Sua declamação tem caráter ambíguo; ao mesmo tempo que tenta conduzir os ouvintes para o riso, acentuando o exagero e o ridículo da história, mantém um tom de seriedade, dado pela insinuação de estar ela, a atriz, identificada à dor de Manon. A música, no momento em que predominam os sons de base, tenciona com o humor sugerido na declamação, posto que a afinação que ela impõe à cena sugere um sentido de gravidade. Assim, o ouvinte não consegue decidir-se pelo riso ou pela comiseração.

Porém, quando na música incidem os fragmentos de ópera, justamente aqueles que, no contexto original, acentuam a dramaticidade cênica, altera-se a afinação predominante. O fato é que a incidência dos fragmentos é um evento novo, contrastante com o que até então se ouvia. Agora eram sons novos, oriundos de outra região de textura e timbre, outra organização rítmica, tudo confluindo para que a novidade fosse interpretada como um outro, solicitando a postura relacional da escuta. Aberta para a relação, a escuta descobre o quão contrastantes estavam música e texto; o ouvinte acredita em sua interpretação e ri. E uma tal crença só poderia no interior daquele pertencimento, em que música e verdade revelaram-se como o mesmo.

 

Notas

(1) Refiro-me à histórica discussão sobre as categorias. Estariam elas nas coisas exteriores ou no sujeito? Segundo Heidegger, as categorias são o ente em sua primeira acepção, o aparente imediato das coisas, que uma primeira vez se apresenta ao homem pré- dispondo- o para a atividade significadora. Menciono o célebre exemplo do Templo Grego no ensaio A Origem da Obra de Arte; é o templo que informa a dureza da rocha sobre a qual está erguido (HEIDEGGER, 1987, 2ª parte). Em outros termos, na relação com o mundo, o homem aprende as categorias com as quais significa o próprio mundo. Este é o estado de imediatez que fundamenta ontologicamente todo o conhecimento (HEIDEGGER, 2007, p.23).

(2) Em SILVA (2011), desenvolvo os argumentos que sustentam a interpretação de que a música traz a condição para o acontecimento da verdade. Em resumo, relaciono as teses de dois textos de Martin Heidegger, a saber, A Origem da Obra de Arte, em que o filósofo, partindo do conceito grego de alétheia, conceitua a verdade como um acontecimento que abre uma clareira (Lichtung) de aproximação imediata entre homem e ser. Esse acontecimento se dá justamente pelo fato de que, em alguns entes (as obras de arte), não se opera uma síntese completa entre matéria e forma. Evidentemente, Heidegger está em diálogo com a Doutrina das Quatro Causas de Aristóteles, que leva- nos a concluir que o ser é um composto de matéria e forma. Heidegger é crítico da concepção finalista desta doutrina: "uma matéria assume uma forma para cumprir a função de...". Por outro lado, ao definir a música genericamente como uma não síntese entre matéria e forma, Heidegger estaria, consequentemente, admitindo que a música traria em si mesma a condição para o acontecimento da verdade.

(3) A expressão vontade de verdade é de uso corrente nos textos de Nietzsche compilados sob o nome A Vontade de Poder, os quais correspondem à última fase do pensamento desse filósofo. No presente texto, não aplico esta expressão no mesmo sentido em que Nietzsche a concebeu. Para o filósofo, dizer vontade de verdade é um modo de expressar a propensão doentia do homem ao pensamento e ao niilismo que do pensamento se apoderou como forma de negar a realidade humana das pulsões, sobretudo, a pulsão dionisíaca. A interpretação que aqui apresento é de certo modo corroborada pelas reflexões de Heidegger sobre o sentido da verdade em Nietzsche (HEIDEGGER, 2007 -1a Ed.1961 -, p.379/386).

(4) A cena teatral citada nesse texto é do espetáculo Abram-se os Histéricos, do Dramaturgo Antonio Quinet, com a direção de Regina Miranda e trilha sonora por mim composta e dirigida. O espetáculo é encenado pela Cia Teatral Inconsciente em Cena, e sua história retrata um importante passo da descoberta do inconsciente por Freud, quando este assistia aos "espetáculos cênicos" das histéricas, estudadas por Charcot, em Paris, no século XIX. O que se discute é se a histeria seria mera encenação ou a expressão de uma doença real. No link http://vimeo.com/39947215, visualizado com a senha Charcot, pode-se conferir diretamente a cena referida. Trata-se da cena 13, em que a atriz Marina Salomon representa a cantora Adelina Patti, em um suposto sarau nos salões de Charcot. A cantora encena a situação de se sentir "sola, perduta e abandonatta". Na leitura do autor, seria também Adelina Pati uma histérica, o que, em certo sentido, corrobora a tese de que a histeria atinge a todos. Já no link http://vimeo.com/39950219, acessa-se uma visão mais abrangente do espetáculo.

(5) O texto declamado pela atriz: "Manon! Quando ia entrar para o convento, Manon encontra dois homens: um poderoso e rico e o outro, sem recursos, por quem se apaixona. Atraída pelo luxo ela escolhe o ricaço. Deslumbra-se então com as roupas, as joias e o palácio que passa a morar. Mas sente a falta... a falta de seu Chevalier e o recebe na casa do marido. Pegos em flagrante, eles têm que fugir imediatamente. Mas ela não quer largar as joias. Pecato! Tuto questo splendore! Tudo questo tesoro! E se entulha de colares, pulseiras, diademas. Chega a polícia. Manon vai presa, deportada para a América. No final da ópera lá está ela no vazio de tudo - Sola, perduta, abandonata." Texto originalmente publicado em A lição de Charcot (QUINET, 2005, p.41), que deu origem ao texto da peça Abram-se os Histéricos.

 

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Recebido em: 11/7/2012
Aprovado em: 28/11/2012