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Perspectivas em análise do comportamento

versão On-line ISSN 2177-3548

Perspectivas vol.1 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Análise de consequências como procedimento para decisões éticas

 

Consequence analysis as a procedure in ethical decision making

 

 

Alexandre Dittrich

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O comportamento de decidir envolve a busca de subsídios que permitam prever quais as possíveis consequências de nossos cursos de ação. Decisões éticas demandam, igualmente, tais previsões. Neste artigo, apresentamos a análise de consequências como proposta de procedimento que pode sistematizar e facilitar esse tipo de previsão. Sugerimos quatro etapas para o processo de análise de consequências: (1) categorizar as consequências; (2) definir as pessoas ou grupos afetados; (3) definir os efeitos seletivos das consequências; (4) definir a sequência temporal das consequências. Por fim, discutimos as possíveis limitações do procedimento.

Palavras-chave: análise de conseqüências, comportamento de decidir, ética, análise do comportamento


ABSTRACT

Decision making behavior involves looking for resources which allows us to guess about the possible consequences of our courses of action. Ethical decisions demand such guessing as well. In this article, we propose consequence analysis as a procedure which can systematize and facilitate this kind of guessing. We suggest four steps for the consequence analysis procedure: (1) to categorize de consequences; (2) to define persons or groups affected; (3) to define the selective effects of the consequences; (4) to define a timeline of consequences. We conclude the article discussing possible limitations of the procedure.

Keywords: consequence analysis, decision making behavior, ethics, behavior analysis


 

 

Prescrever comportamentos sempre foi parte importante do que se entende por ética. Enquanto campo de estudos filosóficos, a ética certamente não se restringe à prescrição, mas costuma-se esperar dela que sirva como guia para o comportamento, apontando o que é correto ou incorreto fazer em diferentes situações. É razoável esperar que este seja seu objetivo final – do contrário, sua própria utilidade poderia ser questionada.

Tradicionalmente, na história da filosofia, a prescrição ética se deu de modo bastante direto: os filósofos meramente recomendavam certo conjunto de "virtudes" – a justiça, o comedimento, a fé, a coragem, etc. – e não raro as "justificavam" afirmando que seriam as virtudes do homem virtuoso. Eventualmente, alguns autores foram além disso, especificando os comportamentos que caracterizariam as chamadas "virtudes" e justificando a recomendação de tais comportamentos por suas possíveis consequências, para além de uma mera predileção pessoal do filósofo.

Contudo, parecer haver uma tendência, na ética contemporânea, de minimizar a prescrição direta de virtudes ou comportamentos em favor da prescrição de procedimentos que possam auxiliar a tomada de decisões éticas.1 Por que isso está acontecendo? Em poucas palavras, a resposta parece ser essa: diferentes disciplinas e práticas – filosofia, história, antropologia, direito, política – tornaram evidente a ampla variabilidade de costumes entre diferentes indivíduos e culturas, tanto num certo período histórico quanto entre diferentes períodos (Fagot-Largeault, 1997; Sève, 1997). Com isso, a defesa de prescrições éticas particulares como ideais universais perde força e se destaca a importância do respeito às diferenças individuais e culturais. Por outro lado, pode-se perguntar qual o limite desse respeito.2 Surge, nesse contexto, um intenso debate sobre o estabelecimento de padrões éticos mínimos que garantam o respeito à vida e ao bem-estar das pessoas, independentemente das particularidades de costumes individuais e culturais.

Assim, do intercâmbio crescente entre diferentes indivíduos e culturas surgem choques inevitáveis entre seus costumes e interesses. Pode-se tentar resolvê-los pela força3 ou pela diplomacia. A segunda opção torna a prática cultural de tomar decisões éticas e políticas não apenas importante, mas indispensável. Essa prática, por sua vez, tornase progressivamente mais complexa à medida que somos confrontados com as diferenças individuais e culturais apontadas acima: não se trata apenas de decidir quais caminhos levarão ao que é bom, mas também de explicitar o que consideramos bom.

Seriam tais discussões realmente necessárias? Em Walden II, Frazier parece aborrecido com a ideia: "Todos nós sabemos o que é bom, até que paremos para pensar a respeito" (Skinner, 1948/2005, p. 146-147). Parece fácil, por exemplo, optar entre medidas que, provavelmente, promoverão a saúde de um grupo e outras que, provavelmente, a prejudicarão, porque as consequências da escolha, neste caso, podem ser previstas com razoável precisão.4 Mas dizer isso de todos os possíveis dilemas éticos soa precipitado. O próprio Skinner (1969), entretanto, não deixa de lançar reflexões mais comedidas sobre o tema:

A cultura que levar a sobrevivência em consideração tem mais chances de sobreviver. Reconhecer esse fato não é, infelizmente, resolver todas as nossas dificuldades. É difícil dizer quais tipos de comportamento humano provarão ter mais valor em um futuro que não pode ser claramente previsto. (p. 46)

A previsão citada por Skinner é um aspecto importante do que nos interessa aqui. Para designá-la, Skinner usou, em algumas ocasiões, o verbo guess (1953/1965, p. 436, 1961/1972b, p. 49). Podemos traduzi-lo como previsão ou como suposição Tratase de prever as possíveis consequências de nossas práticas atuais. A ciência, com sua insistência sobre a "observação cuidadosa, a coleta de informação adequada e a formulação de conclusões que contenham um mínimo de ilusão [wishful thinking]" (Skinner, 1953/1965, p. 435), parece oferecer o caminho mais seguro para que tais suposições revelem-se corretas. Nunca poderemos estar absolutamente certos de que nossas práticas produzirão os resultados que delas esperamos (Skinner, 1955-1956/1972a, p. 6; p. 13; 1971, p. 549). Porém, as culturas que buscarem explicitamente e de forma planejada atingir seus objetivos terão mais chances de fazê-lo.

Neste artigo, propomos um instrumento simples – que chamaremos de análise de consequências – que talvez possa ajudar analistas do comportamento a prever consequências de modo mais sistemático. Esse instrumento certamente não é e não pretende ser a solução definitiva para qualquer problema ético, mas coaduna-se com o espírito da ética contemporânea ao propor um procedimento auxiliar para que pessoas e grupos tomem decisões éticas por si mesmos. Entendemos que o procedimento é aplicável não apenas para a análise de possíveis intervenções por meio da tecnologia comportamental, mas para a análise de qualquer tipo de intervenção que afete pessoas ou grupos, sejam quem forem seus proponentes.

Antes disso, porém, é importante compreender o processo de tomar decisões como um processo comportamental.

 

O Comportamento de Tomar uma Decisão

O subtítulo acima repete um subtítulo do capítulo sobre o pensar ("Thinking") em Ciência e Comportamento Humano (Skinner, 1953/1965). Skinner começa afirmando que "'decidir', conforme usaremos aqui, não é a execução de um ato sobre o qual decidimos, mas o comportamento preliminar responsável por ele" (p. 243). Tomamos decisões quando diferentes cursos de ação apresentam probabilidades semelhantes. Como exemplo, Skinner analisa um processo hipotético de decisão sobre passar as férias nas montanhas ou na praia: "podemos ler atentamente revistas sobre viagens e livretos sobre férias, descobrir para onde irão nossos amigos e qual a previsão do tempo para cada lugar, e assim por diante" (p. 243). Por que esse comportamento de tomar decisões ocorre? Porque apresenta consequências reforçadoras, afirma Skinner; ele não apenas nos livra da indecisão, mas nos permite tomar um curso de ação efetivo: "Quando analisamos uma situação cuidadosamente durante a tomada de uma decisão, possivelmente aumentamos a probabilidade de que a resposta eventualmente realizada atingirá o máximo reforçamento" (p. 244).

A decisão a ser tomada no exemplo citado por Skinner (1953/1965) certamente tem consequências relativamente triviais, especialmente quando comparada às decisões tomadas, por exemplo, no campo das políticas públicas. Não obstante, trata-se também de um caso que demanda previsão (guess): se não sabemos exatamente quais as consequências de cursos alternativos de ação, buscamos, dentro de nossas possibilidades, saber o que poderá ocorrer em cada caso. Alguém poderia, no entanto, afirmar que prever é uma palavra de cunho teleológico: como um futuro que ainda não existe (e talvez não venha a existir) pode controlar nosso comportamento hoje? A isso, deve-se responder o óbvio: não se trata de supor que o futuro possa controlar o que fazemos hoje, mas de tentar produzir hoje variáveis que possam alterar probabilidades de respostas atuais. Observamos com frequência que certas ações produzem certas consequências (operantes produzem consequências comportamentais; práticas produzem consequências culturais) e, a partir disso, prevemos que ações semelhantes podem produzir consequências semelhantes no futuro. É um procedimento básico da ciência, que aponta para a conexão direta entre previsão e controle. Contudo, o mesmo procedimento, com menor rigor, é comum em situações do cotidiano, como aquela apontada por Skinner.

 

Análise de Consequências

Em um artigo publicado no Journal of Applied Behavior Analysis em 1980, Sanford e Fawcett utilizaram a expressão consequence analysis (análise de consequências) para descrever um procedimento por meio do qual residentes de uma comunidade na cidade de Lawrence, no estado do Kansas, avaliaram os possíveis impactos da construção de uma rodovia em seu território, considerando diversos aspectos de seu cotidiano (e.g., economia, segurança, qualidade do ambiente, etc.). O objetivo do estudo foi analisar o efeito desse procedimento sobre as verbalizações dos participantes em relação à construção da rodovia, no sentido de se mostrarem favoráveis ou contrários a ela. Não nos alongaremos sobre os detalhes metodológicos do projeto5, mas é importante destacar aqui alguns de seus aspectos e implicações.

Inicialmente, é importante sublinhar que os participantes do estudo foram convidados a analisar consequências apenas possíveis, isto é, eles estavam supondo ou prevendo tais consequências. Essa é uma limitação óbvia, mas inevitável em todas as previsões: elas podem se revelar mais ou menos acuradas.6 Em segundo lugar, cabe também notar que os participantes eram chamados a realizar suas próprias previsões sobre os possíveis impactos do projeto (ainda que a partir de um questionário formulado pelos pesquisadores), e não meramente a analisar um conjunto de previsões realizadas por alguma das partes interessadas no problema. Se o estudo tivesse sido patrocinado pela empreiteira interessada na execução da obra, por exemplo, haveria motivos para desconfiar de sua isenção. Os resultados mostraram que, para nove dos dez participantes do estudo, houve decréscimo no grau de favorabilidade conferido à construção da rodovia, embora apenas dois participantes tenham declarado intenção de mudança de voto sobre o projeto após a intervenção (um de indeciso para sim e outro de indeciso para não). Não houve mudanças de sim para não ou vice-versa.

Previsões sobre possíveis consequências de algum comportamento ou prática podem mudar a posição de uma pessoa ou grupo sobre tal comportamento ou prática? Os dados de Sanford e Fawcett (1980) sugerem que sim, embora os próprios autores afirmem não ser possível estabelecer uma relação causal inequívoca entre o procedimento empregado e as mudanças registradas nas verbalizações dos participantes.

Análise de consequências é uma expressão de amplo alcance. Ao utilizá-la, não queremos nos referir tão-somente ao procedimento empregado por Sanford e Fawcett (1980). Essencialmente, porém, nossa proposta parte do mesmo pressuposto que fundamenta a discussão dos dados desse artigo, assim como a análise sobre o processo de tomar decisões feita por Skinner (1953/1965): decidir consiste em prever as possíveis consequências de nossas ações atuais. Trata-se de tentar, na medida do possível, lançar um olhar sobre um futuro que obviamente ainda não existe.

Mas o que, exatamente, é necessário prever ao tomar decisões éticas? Talvez seja útil sugerir alguns parâmetros que possam orientar nossas previsões e, assim, facilitar o processo de decisão. É o que faremos a seguir, cientes de que tais sugestões podem ser aperfeiçoadas, refinadas ou complementadas:

(1) Categorizar as consequências: Como vimos, a análise de consequências consiste em prever quais as possíveis consequências dos cursos de ação atuais. Alguns comportamentos ou práticas podem produzir diversas consequências simultaneamente, de modo que sua classificação em categorias pode ser útil. Como vimos anteriormente, Sanford e Fawcett (1980) se defrontaram com tal situação em seu estudo. Para organizar e facilitar a análise de consequências por parte dos participantes, os autores criaram categorias de consequências previsíveis em virtude da construção da rodovia (e.g., economia, segurança, qualidade do ambiente, etc.). Decisões no campo das políticas públicas, via de regra, revelam a mesma complexidade, podendo exigir, igualmente, a análise através de categorias. O programa Bolsa Família, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2009), por exemplo, prevê resultados positivos nos campos da educação, saúde e emprego.

(2) Definir as pessoas ou grupos afetados: Consequências podem ser definidas tão-somente em termos de transformações do ambiente físico (e.g., construção de rodovias, escolas, postos de saúde, desmatamento, poluição, erosão, etc.), mas obviamente o que nos interessa são as consequências de tais transformações na vida de pessoas e grupos. Nossas ações podem afetar desde uma única pessoa (por exemplo, aquela que toma a decisão ou alguém próximo a ela) até grandes populações e, no limite, a totalidade dos seres humanos. Assim, definir quais as pessoas e grupos possivelmente afetados pelas ações sob análise é fundamental no processo decisório. Citemos novamente o programa Bolsa Família: ele atinge grupos familiares específicos, que atendem aos seguintes critérios: "famílias em situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 70,00 a R$ 140,00) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 70,00)" (MDS, 2009).

(3) Definir os efeitos seletivos das consequências: Consequências podem (ou não) ter efeito seletivo sobre comportamentos ou práticas, alterando sua forma e/ou frequência. Na medida em que seja possível prever tais efeitos, eles obviamente devem ser considerados. Somente dados empíricos podem posteriormente confirmar se os efeitos previstos de fato se verificam, mas isso não dispensa a tarefa de planejá-los (se quem faz a análise propõe a intervenção) ou prevê-los (se a análise se aplica a propostas de intervenção de outras pessoas ou instituições). As condicionalidades estabelecidas pelo programa Bolsa Família são, essencialmente, contingências estabelecidas para que as famílias possam receber a bolsa e produzem efeitos previsíveis sobre certos comportamentos dos membros das famílias. Trataremos novamente dessas condicionalidades no próximo item.

(4) Definir a sequência temporal das consequências: Um problema importante relativo à definição das consequências é o estabelecimento de limites temporais à análise. Supostamente, tudo o que fazemos hoje tem consequências que se estendem indefinidamente no tempo. Assim, há que se impor limites à extensão temporal da análise. Por outro lado, em várias situações é importante prever para além das consequências mais óbvias - as de curto prazo. Os exemplos mais familiares para os analistas do comportamento dizem respeito a comportamentos imediatamente reforçadores (e.g., uso de drogas, consumo de alimentos ricos em açúcar e gordura) com consequências prejudiciais no longo prazo. Porém, decisões relativas a populações podem revelar a mesma característica. O planejamento urbano dá vários exemplos disso. Em entrevista à Folha de São Paulo, o então secretário municipal de transportes, Carlos Zarattini (2001), discorreu sobre o problema das "lotações" na cidade de São Paulo e destacou diferenças entre a percepção da população e do governo municipal sobre o problema:

A opinião da população é sobre seu efeito direto, ela analisa o impacto direto sobre a sua vida. Nós temos que levar em conta uma visão geral, a visão do sistema como um todo, em uma cidade de 10 milhões de habitantes. Se eu fosse avaliar do ponto de vista individual ... talvez eu tivesse a mesma opinião. Mas, olhando do ponto de vista geral, a gente tem que pensar no futuro do sistema. (p. C7)

Assim, as lotações resolvem um problema imediato para o usuário, mas a demanda crescente pelo serviço gera dificuldades no trânsito que afetam toda a população. Sequências de acontecimentos deste tipo nem sempre são imediatamente claras. Identificá-las, porém, é parte essencial da tarefa do administrador público.

Quando falamos em sequência temporal das consequências, queremos sublinhar o fato de que consequências geram consequências, isto é, de que ações atuais têm consequências estendidas no tempo7 (cujo grau de previsibilidade obviamente varia). O trabalho de previsão, portanto, nem sempre estará esgotado com a definição de consequências simples: é preciso prever sequências de consequências.8 O programa Bolsa Família (MDS, 2009) apresenta exemplos desse tipo de previsão. Conforme apontamos há pouco, para participar do programa, as famílias precisam cumprir as chamadas condicionalidades, quais sejam:

Crianças de até sete anos devem manter o calendário vacinal em dia; Mulheres grávidas devem realizar consultas de pré-natal, de acordo com calendário definido pelo Ministério da Saúde; Crianças e adolescentes de seis a 15 anos devem ser matriculados na escola e ter frequência mínima de 85% das aulas; Jovens de 16 a 17 anos devem ser matriculados na escola e ter frequência mínima de 75% das aulas. (MDS, 2009, p. 8-9)

Como resultados do programa, o governo federal apresenta a diminuição da pobreza e da desnutrição (efeito do dinheiro repassado às famílias), a redução da evasão escolar, o aumento da frequência às escolas (efeitos das condicionalidades relativas à matrícula e frequência escolar), além da dinamização da economia dos municípios mais pobres, com "impactos importantes no desenvolvimento local" (MDS, 2009, p. 16-17) (efeito da utilização do dinheiro das bolsas no comércio das comunidades). Além disso, as condicionalidades, de acordo com o governo federal, contribuem "para as famílias romperem o ciclo da pobreza entre gerações" (p. 3) – uma contribuição cuja mensuração certamente é complexa.

Críticas ao programa apontam um possível caráter assistencialista e eleitoral9 na transferência direta de renda e apontam para a importância de avaliar seus resultados. Entrevista concedida à Folha de São Paulo por Anthony Hall, especialista em programas de transferência de renda da London School of Economics, ilustra bem o tom dessas críticas:

Seu objetivo imediato, obviamente, é amenizar a pobreza, e as avaliações iniciais indicam que o programa foi bastante bem-sucedido. Outro objetivo é acumular capital humano, fazendo os pagamentos condicionais a educação e saúde. E, nisso, o cenário é menos certo no momento. No campo educacional, as matrículas aumentaram, mas isso não necessariamente significa que a qualidade melhorou. Os resultados são melhores na saúde, em campanhas de vacinação e outras frentes.... O próximo estágio desse tipo de programa é estabelecer uma ligação clara com geração de emprego.... A avaliação tem de acompanhar o progresso dos beneficiários do Bolsa Família cinco, seis anos depois que deixaram a escola, para checar se há correlação entre ter participado do programa e uma melhor posição no mercado.... O que pode haver também é uma mudança na mentalidade dos políticos e planejadores, tentação de "curto-prazismo", de pensar que a transferência de dinheiro seja um modo rápido e popular de entregar os bens e pegar os votos, em vez de investir em saúde e educação pelos próximos dez anos.... O perigo é permanecer de curto-prazo e clientelista. (Hall, 2009)

Deve-se notar que o governo federal aponta para ações complementares ao programa, que "incluem, por exemplo, atividades de geração de trabalho e renda, capacitação profissional, microcrédito, ampliação de escolaridade, garantia de direitos sociais, acesso e melhoria das condições habitacionais e desenvolvimento local das regiões mais pobres" (MDS, 2009, p. 10). É louvável, além disso, que o documento revele uma disposição de "constante aperfeiçoamento: mudanças, ajustes e correções são medidas necessárias para que o Bolsa Família continue a contribuir para a redução da pobreza e para o reforço dos direitos sociais básicos de cidadania" (p. 17). Não se trata aqui, porém, de emitir juízos sobre o programa, mas de apontar para algumas implicações importantes de sua análise. Prever sequências de consequências é uma atividade obviamente complexa, sujeita a erros (e mesmo distorções deliberadas), mas ainda assim necessária. Pode-se pensar, por exemplo, que um programa como o Bolsa Família só se justificará se de fato contribuir "para as famílias romperem o ciclo da pobreza entre gerações" (MDS, 2009, p. 3). A sequência de eventos previstos para que isso ocorra é longa e obviamente pode não se confirmar. É razoável pensar que, quanto mais distantes no tempo as consequências planejadas, mais difícil é sua previsão (assim como a avaliação de sua efetiva ocorrência). Avaliar empiricamente os resultados efetivos de ações implementadas é indubitavelmente a melhor forma de criar subsídios para decidir sobre sua pertinência.

De modo a sintetizar e ilustrar nossa proposta, apresentamos na Tabela 1 as etapas da análise de consequências, assim como as perguntas pertinentes a cada etapa e alguns exemplos de respostas para tais perguntas.

 

 

Limitações da Análise de Consequências

Já apontamos em algumas ocasiões o limite mais óbvio da análise de consequências: trata-se apenas de previsão. Resultados empíricos são sempre mais confiáveis do que previsões; ainda assim, previsões são necessárias. Talvez caiba aqui lembrar que qualquer previsão se baseia, inevitavelmente, na experiência passada, científica ou não. "Prever o futuro" só é possível a partir de um passado que nos indique, com maior ou menor segurança, que certos comportamentos produzem certas consequências. Mas a complexidade das variáveis envolvidas, especialmente em contextos culturais, certamente limita a acuidade de tais previsões, como reconhecia Skinner: "Podemos estar certos de que muitos passos no planejamento científico de padrões culturais produzirão consequências imprevistas" (1955- 1956/1972a, p. 13). Não há dúvida, porém, de que as evidências empíricas eventualmente disponíveis devem servir como parâmetro fundamental para qualquer intervenção. É razoável esperar, por exemplo, que a repetição de programas de transferência de renda como o Bolsa Família em diferentes contextos crie subsídios que permitam avaliar sua pertinência, ou os aspectos que devem ser aperfeiçoados para que tais programas produzam os resultados esperados, ou ainda as especificidades regionais que devem ser consideradas.

A análise de consequências tem como outro limite evidente o fato de que ela tão-somente visa tornar o futuro mais claro, mas possivelmente não tem qualquer efeito sobre as suscetibilidades ao reforçamento das pessoas expostas à análise. Em uma linguagem tradicional, diríamos que a análise de consequências não muda os valores das pessoas: ela ajuda a prever consequências, mas as consequências terão diferentes funções (reforçadoras ou punitivas) para diferentes pessoas.

Há uma passagem da obra do filósofo alemão Carl Hempel que ilustra o problema de forma instigante:

Vamos assumir, então, que confrontados com uma decisão moral, possamos chamar o demônio de Laplace como consultor. Que ajuda poderemos conseguir dele? Suponhamos que temos que escolher um entre diversos cursos de ação alternativos possíveis, e queiramos saber qual deles devemos tomar. O demônio poderia então nos dizer, para cada escolha contemplada, quais seriam suas consequências para o curso futuro do universo, nos mínimos detalhes, não importa quão remotos no tempo e no espaço. Mas, tendo feito isso para cada um dos cursos de ação alternativos sob consideração, a tarefa do Demônio estaria completa; ele nos teria dado toda a informação que uma ciência ideal poderia nos dar sob tais circunstâncias. E, no entanto, ele não teria resolvido nosso problema moral, pois isso requer uma decisão sobre qual dos diversos conjuntos alternativos de consequências mapeados pelo demônio é o melhor; qual deles deveríamos produzir. E o peso da decisão ainda cairia sobre nossos ombros. (Hempel, 1960/1965, p. 88-89)

O demônio de Laplace é o analista de consequências perfeito: ele prevê o futuro com absoluta segurança. Podemos admirar e almejar seu poder, mas mesmo que o tivéssemos, a questão dos valores, ou de quais consequências são desejáveis, permaneceria em aberto. O problema diz respeito, é claro, à diversidade de reforçadores que podem adquirir controle sobre o comportamento de diferentes pessoas e grupos, e não há nada além da nossa história que nos permita "justificar" os valores que defendemos. Não escolhemos aquilo que reforça nosso comportamento.

Mudar valores é, portanto, um problema à parte – que pode e deve, não obstante, ser analisado do ponto de vista analítico-comportamental. É o que faz, por exemplo, Leigland (2005), argumentando que ao mudar valores estamos lançando mão de operações estabelecedoras, verbais ou não verbais – isto é, estamos alterando a efetividade de certos eventos como reforçadores ou punidores. A análise de consequências, por si só, não tem esta função. É possível que ela mude a posição de uma pessoa ou grupo a respeito de algum problema (como sugere o estudo de Sanford & Fawcett, 1980), mas isso ocorrerá não por alguma alteração na efetividade de reforçadores, mas simplesmente porque a possibilidade de novas consequências foi apresentada.

É razoável supor, porém, que a análise de consequências produza avanços significativos em direção a decisões bem fundamentadas e mesmo a acordos entre pessoas ou grupos. O conhecido filósofo moral R. M. Hare (1997/2003) argumenta que muitos dos debates no campo da ética dizem respeito não a discordâncias fundamentais sobre valores (consequências), mas sobre questões empíricas relativas à sua produção:

Em quase todos os problemas morais práticos descobriremos que a imensa maioria das questões que têm de ser respondidas antes de podermos resolvê-los são questões factuais.... Certamente, as questões factuais são as que causam 99% da dificuldade. Poderemos ver isso se examinarmos quaisquer duas pessoas discutindo a respeito de uma questão moral: quase sempre veremos uma questionando os fatos da outra, e vice-versa. Voltando, por um momento, ao problema do convocado que tem de decidir se deve entrar para o Exército: a parte maior do seu problema é descobrir o que está realmente acontecendo, por exemplo, no Vietnã, e quais devem, provavelmente, ser as consequências reais de vários cursos de ação, de sua parte ou de parte do governo. (p. 61)

É importante notar que Hare chama de questões factuais tanto "o que está realmente acontecendo" quanto "quais devem, provavelmente, ser as consequências" de alguma ação. Estritamente falando, porém, previsões não são questões factuais, embora sejam baseadas em fatos (isto é, na experiência passada). Porém, tanto questões factuais quanto previsões são importantes na análise de consequências. Se a análise de consequências realmente permitir prever o futuro de forma mais organizada e acurada, sua contribuição para discussões éticas pode ser considerável. Skinner (1961/1972b), de forma mais ousada, chega a afirmar que "quando nós pudermos planejar pequenas interações sociais e, possivelmente, culturas inteiras com a confiança que depositamos na tecnologia física, a questão dos valores não será levantada" (p. 49). Ao contrário de Hempel, Skinner parece acreditar que o demônio de Laplace, tendo feito seu trabalho, não deixaria espaço para discussões éticas (e que os 99% de Hare seriam, na verdade, 100%). Seria possível concordar apenas se supuséssemos uma completa uniformidade em relação aos valores (ou consequências) que diferentes indivíduos ou grupos buscam produzir. Não resta dúvida, porém, de que as incertezas inerentes à previsão respondem por grande parte das dificuldades em tomar decisões éticas.

Apontamos até aqui duas limitações importantes da análise de consequências, que podem ser assim resumidas: (1) como qualquer procedimento de previsão (guess), ela pode ser mais ou menos acurada; está, portanto, sujeita a falhas; (2) ela não resolve o que Hempel chama de problema moral – isto é, mesmo que haja acordo sobre as possíveis consequências de um dado curso de ação, é possível ainda perguntar: devemos produzi-las?

Respeitadas as peculiaridades de cada situação, é razoável recomendar que a análise de consequências seja um procedimento democrático, acessível a todos os possíveis interessados em certa decisão ética. Essa participação ampliada pode fazer com que (1) possíveis consequências que poderiam passar despercebidas sejam apontadas e (2) pessoas com histórias de reforço diferenciadas possam se manifestar sobre o valor que conferem às consequências previstas.

 

Considerações Finais

No campo da ética prescritiva, analistas do comportamento tendem a recomendar que os seres humanos se empenhem em comportamentos ou práticas que provavelmente contribuirão para a sobrevivência das culturas. Outras pessoas ou instituições podem questionar este valor e defender outros, mas a preocupação com o futuro da humanidade e com as condições sob as quais este futuro será vivido são temas comuns nas discussões éticas e políticas atuais. A disposição de prever e planejar o futuro é uma característica avançada da análise do comportamento, e tem reflexos importantes na forma como lidamos com questões éticas.

Analistas do comportamento têm o legítimo direito de posicionar-se contra (e não colaborar para) comportamentos ou práticas cujas consequências consideram previsivelmente prejudiciais às chances de sobrevivência das culturas. Igualmente, têm o direito de recomendar comportamentos ou práticas que possivelmente aumentem tais chances de sobrevivência e de atuar profissionalmente para fomentá-los. Ao fazê-lo, estarão prescrevendo certos comportamentos em função de suas possíveis consequências. Mas para além da prescrição, analistas do comportamento podem colaborar para que sua própria comunidade, bem como outras pessoas ou instituições, estejam cada vez mais sob controle de um futuro que ainda não existe. A análise de consequências tem justamente a tarefa de fazer tal futuro "existir", criando hoje variáveis que podem controlar comportamentos ou práticas com consequências remotas.

Enquanto proposta, a análise de consequências certamente não é original. O planejamento de intervenções aplicadas na análise do comportamento exige do aprendiz semelhante capacidade de antecipar os resultados de suas intervenções. As características possivelmente novas da proposta em relação ao planejamento tradicional são estas: (a) ela é aplicável às intervenções de outras pessoas ou grupos, não apenas de analistas do comportamento; (b) ela não se restringe a prever consequências com efeitos seletivos, seja em nível operante ou cultural. A análise de consequências, conforme aqui proposta, pode se mostrar útil ou não. Se não for útil, provavelmente será descartada. Se for útil, certamente poderá ser aperfeiçoada, contemplando dimensões do problema que não abordamos. Qualquer iniciativa neste sentido será muito bem-vinda.

Talvez a maior tragédia do mundo atual seja a baixa capacidade que temos, os seres humanos, de prever as consequências do que fazemos para além de nosso futuro individual e imediato. O surgimento das qualidades que chamamos genericamente de consideração e respeito pelo outro depende em grande medida da visibilidade que temos sobre as consequências de nossos atos não apenas para nós, mas para outras pessoas. Nessa medida, a análise de consequências pode ser, inclusive, um recurso educativo. Ela pode aumentar a capacidade de autocontrole entre pessoas e comunidades, permitindo a elas "a manipulação de variáveis das quais o comportamento é função" – a própria definição de autocontrole para Skinner (1953/1965, p. 228).

 

Referências

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Endereço para correspondência

Alexandre Dittrich
E-mail: aledittrich@ufpr.br

Praça Santos Andrade, 50, 2º andar.
CEP: 80060-000.
Curitiba, PR.

 

 

Submetido em 15/09/2009
Primeira decisão editorial em 24/12/2009
Aceito para publicação em 02/02/2010

 

 

1 Um exemplo notório é a proposta de Habermas (2004) sobre uma ética da discussão.
2 A pergunta emerge, por exemplo, no emblemático caso dos países, especialmente africanos, que praticam a mutilação genital feminina. Documento recente publicado pela World Health Organization (WHO, 2008) e subscrito por várias agências registra a prática em 28 países e apela veementemente pela sua completa eliminação.
3 Tornou-se famosa a definição da guerra como "a mera continuação da política por outros meios", cunhada pelo estrategista militar Clausewitz (1832/1873).
4 O que dizer, porém, das comunidades que praticam a mutilação genital feminina? A prática produz, de acordo com a WHO (2008), diversos problemas de saúde, o que não impede sua continuidade.
5 Incluímos nas referências o link para acesso à versão online do artigo.
6 Esse problema será retomado adiante, quando tratarmos das limitações da análise de consequências.
7 Obviamente, essa não é uma conclusão nova para analistas do comportamento. As investigações atualmente realizadas em torno dos conceitos de metacontingências e macrocontingências(e.g., Todorov, Martone, & Moreira, 2005) têm contribuído decisivamente para dar visibilidade a tal fato.
8 O fato de que há limites de previsibilidade para tais sequências cria problemas complexos no campo da filosofia política. Skinner (1953/1965) dizia, por exemplo, que "o princípio de sobrevivência não nos permite alegar que o status quo deve ser bom porque ele está aqui agora" (p. 432). Dito de outro modo, nossas práticas atuais apenas nos permitiram sobreviver até o momento; isso não quer dizer que elas sejam, doravante, as melhores práticas para garantir nossa sobrevivência (podendo, inclusive, serem prejudiciais neste sentido). Prever contextos futuros, portanto, é indispensável. Contudo, sempre é possível argumentar que certas práticas se mostrarão prejudiciais no longo prazo, mesmo que pareçam benéficas agora (ou vice-versa), porque o futuro é, com o perdão da redundância, indefinidamente longo. Um marxista sempre pode afirmar que a ruína do capitalismo está próxima; basta para isso que o capitalismo exista.
9 O programa parece, de fato, exercer impacto sobre o voto de pelo menos parte da população atingida, conforme estudo divulgado na Folha de São Paulo ("Bolsa Família é Responsável", 2009).

 

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