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Saúde & Transformação Social
versão On-line ISSN 2178-7085
Saúde Transform. Soc. vol.4 no.4 Florianopolis out. 2013
PESQUISA, TEORIA E METODOLOGIA
Interface do discurso da Saúde e Justiça: uma experiência no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas
Speech Interface of Health and Justice: An experience in Psychosocial Care Center for Alcohol and Other Drugs – CAPSad
Josenaide Engrácia dos SantosI*; Talita Mosquetta Maleski AlmeidaI**
I Universidade de Brasília (UNB), Brasília, DF - Brasil
RESUMO
O fenômeno álcool/drogas era tratado no âmbito da Justiça, tendo cunho repressivo-punitivo, cuja ideia central é de que os usuários, como pena, ficam obrigados e encaminhados para casas de recuperação, comunidades terapêuticas e serviços de saúde. O objetivo desse estudo é compreender o processo de construção dos sentidos atribuídos dos usuários encaminhados pela Justiça acerca do CAPSad com três parâmetros: Como nomeiam? Como explicam? Como se posicionam? O estudo é qualitativo, baseado na metodologia do Construcionismo Social. Instrumento entrevista semiestruturada aberta. Foram entrevistados 10 indivíduos encaminhados pela Justiça para tratamento no CAPSad. A análise foi feita através do Mapa de Associação de Ideias. Resultados organizados por temáticas: Nomeando o tratamento - narrativas se caracterizaram pela tonalidade afetiva utilizando seus valores pessoais como alegria, esperança; Explicando o tratamento - inicialmente medo e insegurança, mudam no decorrer do processo dando lugar ao aprendizado; Posicionamento - mudança de percepção e atitude frente ao encaminhamento da Justiça. Os repertórios revelaram formatos únicos de uma construção de conhecimento e aprendizagem capaz de produzir mudança nas percepções e no cotidiano bem como no manejo pessoal no trato da dependência química.
Palavras-chave: Serviços de Saúde Mental; Justiça; Direito Penal.
ABSTRACT
The alcohol/drugs phenomenon that was treated under the law with a punitive-repressive, whose central idea is that users, as a penalty, shall be bound and sent for recovery houses, therapeutic communities and health services. The objective of this study is understand the process of constructing meaning of users referred by the Justice to the CAPSad with three parameters: How to nominate? How to explain? As a stand? The study is qualitative, based on the methodology of Social Constructionism. The method used was of open interviews. It was interviewed 10 individuals referred to treatment by the courts to CAPSad. The analysis was performed using the Association of Ideas Map. The results were organized by themes: Naming the treatment - narratives characterized by affective tone using personal values such as joy and hope; Explaining the treatment - initial fear and insecurity changed during the process giving rise to learning; Positioning - perception and attitude changed towards the Justice's referral. It is concluded that the repertories revealed unique learning and knowledge building, producing changes on perception, daily lives as well as personal ability in dealing with chemical dependency.
Keywords: Mental Health Services; Justice; Criminal Law.
1. INTRODUÇÃO
O consumo de álcool e drogas está inserido no cotidiano de grande parte da população. De acordo Pinho et al1 afirma que cerca de 10% das populações dos grandes centros urbanos de todo o mundo consomem abusivamente substâncias psicoativas.
O fenômeno constitui um grave problema em função de sua complexidade e magnitude, já que afeta pessoas de maneiras diferentes, conforme Sócrates2, por diferentes razões, em diferentes contextos e circunstâncias, afetando, expressivamente, a saúde e a qualidade de vida dos usuários, familiares e de toda a sociedade, o que demonstra o enredamento do uso de drogas na sociedade.
A complexidade do uso de drogas é um problema sistêmico, fisiológico, psicológico, jurídico, político, social, cultural, dinâmico Brasil3, refere que em vários momentos possui interface com a Justiça quando se diz respeito ao aparato de leis e normas que foi construído permeado por valores morais, influenciado por momentos históricos de cunho repressivo-punitiva.
As maneiras de punir os usuários de substâncias psicoativas eram baseadas no discurso político-jurídico de um estereótipo da criminalidade segundo Carvalho4, em contraposição, a saúde, o uso de drogas seria visto como uma doença denominada Dependência Química e, portanto, para Santos5 o caminho para sua solução seria a Clínica Psiquiátrica, nos seus mais variados níveis, de um atendimento ambulatorial até a internação em hospitais psiquiátricos.
O fenômeno álcool/drogas era tratado no âmbito da Justiça, tendo cunho repressivo-punitivo, baseado no modelo de tribunais norte-americanos, cuja ideia central conforme Bravo6 é de que os usuários, como pena, ficam obrigados a tratar sua suposta doença, a qual é diagnosticada na maior parte dos casos por uma autoridade jurídica e que podem encaminhar para casa de recuperação, comunidades terapêuticas e em especial serviços de atenção à saúde como o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas (CAPSad), para a atendimento Integral. Esse encaminhamento não corresponde a uma penalidade, mas sim é uma providência que a Justiça determina ao verificar que o réu é dependente em substância ilícita ou lícita.
Dessa forma, o presente artigo procurou compreender, descrever e explicar os sentidos atribuídos, sob a perspectiva do usuário encaminhado pela Justiça do tratamento ofertado pelo CAPSad.
2. PERCURSO METODOLÓGICO
Estudo qualitativo que utilizou a abordagem teórica conceitual do Construcionismo Social, pois essa permite capturar o processo da produção de sentidos dentro dos contextos sociais Spink7, já que se interessa por identificar os repertórios, as formas com as quais as pessoas descrevem sua compreensão e vivência de mundo, para Santos e Cardoso8, há interesse pelos sentidos na vida cotidiana.
"A investigação construcionista preocupa-se com a explicitação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem e explicam o mundo em que vivem". Entendendo consoante Spink7 que as ações humanas são relatáveis e observáveis; as falas e experiências dos atores sociais fornecem dados relevantes para que o pesquisador, através de encontros e conversas, amplie o acesso à produção de sentido dos usuários.
O cenário da pesquisa foi no CAPSad – Ceilândia, Distrito Federal. Os sujeitos da pesquisa foram 10 usuários encaminhados pela Justiça para tratamento. Os critérios de inclusão foram: indivíduos com idade superior a 18 anos, de ambos os sexos, encaminhados pela Justiça, que estavam em tratamento a pelo menos 2 meses e que voluntariamente aceitaram participar da pesquisa.
Para coleta de dados foi utilizado entrevista semiestruturada que permite, afirma Spink7 relacionar práticas discursivas com produção de sentido, assume-se que os sentidos estão no discurso que faz da linguagem ferramenta para construção da realidade. A linguagem é um instrumento ou ferramenta psicológica pela qual estabelecemos diferentes relações com os que nos cercam e produzimos sentido para nossas circunstâncias, possibilitando a comunicação desse sentido aos que estão ao nosso redor e que falam a mesma linguagem Spink e Frezza9.
A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética da Fundação de Pesquisa Ensino e Saúde da (FEPECS) Nº 226/2012, de 13 de agosto de 2012. O anonimato dos participantes foi garantido por meio da utilização da abreviatura "E", de entrevistado, seguida por numerais arábicos, em ordem crescente, conforme explicitado: E1, E2, E3, E4... E10.
Após a transcrição literal das entrevistas, a análise dos dados foi realizada através do Mapa de Associação de Ideias, que é um recurso de visualização que tem objetivo dar subsídios ao processo de interpretação e facilitar a comunicação dos passos do processo interpretativo Pinheiros10. De acordo com o Mapa "[...] são instrumentos de visualização do processo de interanimação que possibilitam, entre outras coisas, mostrar o que acontece quando perguntamos certas coisas ou fazemos certos comentários Pinheiros10."
O Mapa de Associação de Ideias se constrói inicialmente através da definição de categorias gerais, geralmente retiradas dos objetivos específicos da pesquisa. Para análise de conteúdo, busca-se organizar o conteúdo das transcrições a partir das categorias propostas. Contudo, diferentemente daquelas técnicas, mantém-se a sequência das falas do entrevistador e entrevistado de forma a preservar o caráter dialógico e local da produção de sentidos sobre determinada categoria. Assim, tendo construído uma tabela com o número de colunas de acordo com as categorias criadas, a transcrição é transposta integralmente, sendo os trechos da deslocados conforme a coluna/categoria pertinente.
Essa técnica do Mapa de Associação de Ideias envolve as seguintes etapas:
a) foi utilizado um processador de dados tipo word for windows e digitado toda a entrevista; b) foi construída uma tabela com números de colunas correspondentes às categorias utilizadas; e c) foi utilizadas as funções cortar e colar para transferir o conteúdo do texto para as colunas, respeitando-se a sequência do diálogo.Pinheiros10
Obteve-se, como resultado, um efeito escada, ou seja, o discurso das entrevistas foi gravado, posteriormente transcrito e, depois, transportado em sua totalidade para o Mapa de Associação de Ideias, respeitando a ordem da fala original. O roteiro utilizado foi dividido em colunas temáticas de associação de ideias. A entrevista dividiu-se em blocos de três colunas. Cada coluna incorporou uma pergunta: como o nomeia o tratamento, como descreve/explica o tratamento e como se posiciona no tratamento.
3. REPERTÓRIOS PRODUZIDOS NO CAPSAD
Cuidar é, antes de tudo, encontrar-se com. Conforme Ayres11, é encontrar-se com uma história, com uma trajetória, com sonhos, desejos, crenças e descrenças, valores, saberes e expectativas. No repertório produzido sobre a experiência de tratamento no CAPSad, o cuidado apresenta característica singular e própria no atendimento desses usuários, sendo a análise desses baseada no Mapa de Associação de Ideias, que teve suas categorias estabelecidas pela entrevista.
3.1 Tratamento nomeado como um sentimento valorativo
O sentimento está ligado conforme Jung12, a uma dimensão valorativa das pessoas e coisas – é a busca de valores pessoais. Os usuários relataram sentimentos relacionados à alegria, carinho, utilizando dos seus próprios valores pessoais. Os repertórios produzidos levaram em conta o que os usuários sentem em relação ao tratamento no CAPSad.
E8: Pra mim é um sentimento, a terapia, muito bom.
Como valorizam as impressões pessoais, segundo Jung13, está naturalmente voltada para as relações interpessoais e preocupam-se com os sentimentos e valores dos outros, sendo estas manifestas através de uma linguagem caracterizada como: esperança. E6: Esperança. Importar-se com; apoio; alívio no desabafo.
O núcleo das narrativas se caracterizou pela sua tonalidade afetiva, pela acentuação dos afetos. Esta acentuação é, conforme Jung13, energicamente falando, uma quantidade de valor. Nas falas podemos identificar que subjetivamente é possível avaliar a quantidade de maneira mais ou menos aproximada, na medida em que o elemento central seja consciente como retratado abaixo:
E8: Felicidade, a paz, tranquilidade.
E9: Carinho.
Como podemos perceber, os repertórios produziram a explosão de sentimentos relacionado à figura da terapêutica ofertada no CAPSad, sendo que essas associações são feitas na relação entre os diferentes elementos psíquicos entre si, trazendo uma relação interna e individual em cada indivíduo.
3.2 Conhecimento como ferramenta de auxílio
O conhecimento como ferramenta, segundo Merhy14, é o saber que se dispõe para produção do ato de saúde, experimentado pelos entrevistados quando os mesmos afirmam.
E2: CAPS é uma ferramenta, é uma ferramenta que a gente tem pra lutar contra isso. É a ferramenta que tem a quantidade de dentes daquilo que você precisa.
As narrativas tratam do conhecimento como um manual que facilita e uniformiza as orientações a serem realizadas, com vistas ao cuidado em saúde, é uma ajuda.
E1: Ajuda, ajuda. Por outro lado, é também uma forma de ajudar os indivíduos no sentido de melhor entender o processo de saúde-doença e trilhar os caminhos da recuperação.
E2: O CAPS é esse combustível, é essa força, essa instrução, é esse manual.
As falas permitem o homem comunicar-se com seus companheiros; contudo a fala só se torna compreensível em conexão com a interação social. Esta inserção da fala no processo interativo torna, segundo Souza15, o significado social reflexivo, estimula o estoque comum de conhecimento para auxílio junto às situações impostas pelo uso problemático de substâncias psicoativas.
3.3 A explicação do tratamento perpassou a surpresa, estranhamento e aprendizado.
Os relatos demonstraram: surpresa, estranhamento. Conforme relatam:
E3: No primeiro dia você pode até estranhar, mas você continua para você vê, vai encontrar sua felicidade., e E6: Então, foi sugerido eu fazer, eu não conhecia, eu pensava que era uma coisa e foi outro.
O estranhamento inicial possivelmente é fruto da experiência com a justiça, pois uso de drogas é considerado um delito passível de punição, daí a surpresa e estranhamento. E o encaminhamento é visto como uma penalização e não como tratamento.
Entretanto, no decorrer do processo, estes sentimentos deram lugar à apropriação do que é orientado no CAPSad, gerando uma sensação de pertencimento e de aprendizado.
E4 diz: Achava que era outra coisa. Aí depois eu cheguei aqui, comecei a participar dos grupos, aí pra mim foi bom.
E1: É diferente, uma coisa totalmente diferente, um tratamento, é a melhora da gente, eles estão ali pra que? Pra dar o apoio pra gente...eu vi que é coisa totalmente diferente, é totalmente diferente.
É através de seus ârelatosâ que a fala ou o ato adquirem os significados que eles têm. Durante o tratamento os pacientes têm a oportunidade de participar de grupos compostos por pessoas que também foram encaminhadas pela Justiça, como também vindas por demanda espontânea, produzindo sentidos para troca e interação que produz aprendizado, percebido na fala de:
E5: De aprendizado, né, a gente aprende demais, a gente aprende com a nossa história e com a história dos outros também.
Chauí16 contribui ao afirmar que o conhecimento se volta para a relação entre a consciência (dimensão interior) e a realidade (dimensão exterior), o entendimento e a realidade, ou seja, o aprendiz e o objeto do conhecimento.
E7: Troca de experiência. Hoje eu pude ver isso. Ninguém sabe demais. Aquele que acha que sabe demais, é o que mais precisa aprender. Isso que eu vejo agora.
Garfinkel17 sugere que, em contraste com a famosa frase de Durkheim, a realidade social não é um fato, mas uma contínua realização. Podemos perceber que o grupo narra sobre o compartilhamento que produz aprendizado, é por meio das relações advindas de experiências que envolvem a ação de conhecer e a possibilidade de escolha que a aprendizagem se torna significativa. As narrativas abaixo trazem o elemento de aprendizado associado com a troca de experiências sempre presentes:
E2: ...é uma compartilhação de experiências.
E3: E o eu tô aprendendo, esse tal do CAPS, né. Muito bom, muito legal, ensina muita coisa boa, coisa que eu não sabia.
Antonello18 conceitua a aprendizagem como "[...] a atividade social que acontece dentro de um ambiente participativo, aonde a interação entre pessoas conduz a uma terceira dimensão instruída, o saber quem".
E6: A minha experiência é que eu to vendo a realidade da vida né? Que tô aprendendo cada dia mais um pouco, assim, que se passa, assim, na vida do ser humano, então deu pra abrir mais a mente. Deu pra abrir mais a mente.
E8: O tratamento do CAPS é bom, é ótimo, entendeu? Lá tem muita coisa pra você aprender. Aprender e viver.
O conhecimento desenvolvido e adquirido pelos usuários se dá por meio de exposição das ideias, produzindo novos conhecimentos a partir da interação com o seu grupo. Vasconcelos e Mascarenhas19 argumentam que a aprendizagem pode ser entendida como um processo de mudança de comportamento a partir da aquisição de conhecimentos sobre si e o meio. Complementam afirmando que se relaciona, também, à identidade dos indivíduos, que a desenvolvem a partir da interação entre seus valores e comportamentos existentes e os novos estímulos e experiências adquiridas no cotidiano.
3.4 Liberdade do sujeito
A liberdade está presente no imaginário do ser humano, esse conceito emerge nas narrativas produzidas, provavelmente surge em detrimento de uma vivência com o Judiciário, na qual a intervenção esta associada à imposição e coerção, em contraposição aparece a figura do CAPSad que trabalha com a escuta do sujeito. Para Tenório20, escuta é um instrumento essencial do trabalho clínico, na medida em que o papel fundamental do profissional do CAPSad consiste em acolher a produção psíquica, criando condições para a emergência das diferenças, dos conflitos e da singularidade do sujeito considerando sua história, liberdade de escolha e flexibilidade no atendimento.
E7:CAPS é a liberdade, porque dá o acesso a pessoa descobrir realmente o outro lado da história. E aí a liberdade de pensamento, ou seja, tirar do cativeiro, duma cegueira... por isso que eu digo que também posso me expressar.
Vigotski21 traz: "A liberdade humana consiste precisamente em que pensa, quer dizer, em que toma consciência da situação criada",liberdade existe quando os conflitos são resolvidos. O tratamento no CAPSad reforça o conceito de liberdade conforme pode ser percebido nos relatos a seguir:
E1: Porque daqui a gente vai pra casa da gente tem as coisas de fazer da gente.
E6: O CAPS é o seguinte, ele, tipo assim, o CAPS não obriga ninguém vim não.
E10: Aí lá, você tem liberdade, você pode falar o que quiser...
As formas de relações desenvolvidas com o tratamento terapêutico ofertado pelo CAPSad, colabora na construção de narrativas do modo de vida e a forma de estabelecer relações proporciona que os usuários sejam levados a descobrirem possibilidades para a reconstrução de suas vidas promovendo o desenvolvimento da liberdade, quanto a possibilidade de definir novas opções.
A experiência aqui relatada com o CAPSad toma sentido subjetivo, conforme Rey22, toda experiência toma sentido subjetivo a partir de seus efeitos colaterais sobre uma pessoa ou um grupo e, neste caso, um dos efeitos foi a materialização da liberdade. A liberdade é difícil de ser definida. E pensar na liberdade pode-se recorrer ao descrito por Cecília Meireles23: "Liberdade â essa palavra, que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda."
3.5 Posicionamentos no tratamento
O posicionamento provocou reflexão sobre os momentos anteriores principalmente quanto o inicial no CAPSad devido o encaminhamento pela Justiça. Nesse bloco ficam evidentes as formas como os indivíduos se portaram e participaram do tratamento, a natureza prática da pergunta produziu um conteúdo mais denso. Medo e Insegurança; Mudança de percepção e atitudes; Encaminhamento da Justiça como oportunidade.
3.5.1 Medo e Insegurança
O medo e insegurança são forjados cotidianamente pelas práticas dos homens, tem suas conceituações baseadas historicamente, são resultados das produções histórico-sociais Coimbra24 e advêm de ameaças externas, vindas do desconhecido.
O usuário encaminhado pela Justiça possivelmente tem introjetado nas suas crenças, valores e ideias que o Judiciário tem como função a punição, essa motivada pelo comportamento considerado desviante e que leva à obrigatoriedade do tratamento, provocando medos e inseguranças quanto ao que será vivido no CAPSad. Não podemos perder de vista que o poder exercido pela Justiça bloqueia a possibilidade de outros discursos, ou seja, o usuário de drogas, ainda tem seu comportamento criminalizado o que produz insegurança como se percebe nas falas a seguir:
E5: Será que vão me internar? Fazer alguma coisa?
E1: Porque eu achava que ia ser internado, né,ia ser internado antigamente as pessoa internava aquela pessoa que tinha problema com álcool ou com droga,... porque eu achava que quando eu chegasse aqui ou, eles iam me internar...
O medo é um fenômeno psicológico, criado a partir da combinação de traumas, expectativas e receios individuais, é uma preparação para o desconhecido e evapora quando a situação se torna conhecida Rozziet al25.
E8: Aí eu fiquei meio assustado também, logo no começo. Na hora que entra na sala da Justiça, o cara já começa a tremedeira, o problema alí, o nervoso.
E9: Eu pensava que ia ter muita pressão psicológica em cima de mim.
E10: Eu fiquei com medo de caso eu chegasse atrasado, ou talvez não viesse, vocês iam rapidamente falar com o juiz, talvez ia ser preso.
O medo de enfrentar o desconhecido, sentimento de insegurança representado pelo receio de visualizar com maior nível clareza a possibilidade de potencial no que viria a ser o tratamento. A insegurança e medo levam aos mecanismos de agitação, resistência, como também pela imposição da justiça gera o sentimento de obrigação do fazer o tratamento e não ficar mal perante a Justiça, percebido pela fala de:
E6: A gente chega um pouco sem graça né? A gente vem porque, devido, se não fizer complica mais a situação.
As falas a seguir também reproduzem esses mecanismos:
E1: Logo de cara eu não gostei porque eu tava assim meio no efeito da coisa ainda. Ainda estava naquele efeito todo. Cheguei assim, muito nervoso, muito agitado aí não tinha percebido que tava ocorrendo não.
E2: A minha reação, assim no momento mesmo, segundo dia, eu não achei muito bom não, eu fiquei muito revoltado, mas não por causa daqui do CAPS, com que aconteceu comigo.
E7: Pois eu não conhecia muito bem a proposta e então eu estava um pouco retraído e, vamos se dizer assim, que sem muitas alternativas. Ou seja, tinha uma resistência.
Os usuários sinalizam que a Justiça estava associada à modalidade de pena em que o atributo de delinquente é inevitável, na medida em que a ideologia da Justiça é repressiva e totalitária. A reação dos entrevistados é apreensão diante do inesperado.
3.5.2 Mudança de Percepção e Atitudes
Percepção e atitudes foram modificadas com estímulo do cuidado para associar os ganhos e perdas diante do CAPSad. Os entrevistados saem do estágio pré-contemplação, para a contemplação e manutenção que culmina com mudanças sinalizadas anteriormente.
A Pré-contemplação é um estágio em que não há intenção de mudança nem mesmo uma crítica a respeito do conflito envolvendo o comportamento-problema; a Contemplação se caracteriza pela conscientização de que existe um problema, no entanto há uma ambivalência quanto à perspectiva de mudança; a Ação se dá quando o cliente escolhe uma estratégia para a realização desta mudança e toma uma atitude neste sentido e a Manutenção é o estágio onde se trabalha a prevenção à recaída ea consolidação dos ganhos obtidos durante a Ação Oliveira26.
Percebem-se esses estágios nas falas a seguir:
E2: Eu acho que o que mudou, foi exatamente essa percepção dos sentimentos, essa ausência de sentimentos que eu tava sentindo e de repente eu senti aqui dentro.
E3: É o que eu lhe falei, mudei muito, muito com tudo, assim, a educação, pensar alguma coisa que a gente podia falar, mas você que aqui as palavras, você podia falar com a pessoa. Então tudo assim, pra mim achei bom de mais, nesse termo assim, eu mudei.
E4: Logo no começo eu achava que era coisa simples sabe? Falava assim: Ah, sei nem porque eu tô lá. Porque não tô vendo nada. Mas depois eu fui continuando vindo, aí eu fui ver a mudança sabe?
E7: Ou seja, ser mais consciente. Pra não voltar no mesmo erro.
O tratamento ofertado no CAPSad estimula o comprometimento para a realização dessas mudança, que por meio da terapêutica utilizada os indivíduos se sentem encorajados a prosseguir quando percebem essas mudanças.
E8: Eu fiquei mais religado. Tô mudando cada vez mais ainda. Mudando mesmo.
E3: Bem diferente, comigo, com a família, com os filhos, até de conversar melhor. Conquistei tudo, né. Antes era meio perdido, conquistei tudo dentro de casa.
Há escolha e responsabilização do sujeito, que consegue perceber aspectos de sua vida que necessitam de mudanças para que ocorra crescimento no seu cotidiano. No cotidiano é possível perceber as mudanças de atitudes dos indivíduos, antes não praticadas. Aqui o sujeito passa a ser protagonista responsável por suas mudanças. É a cognição produzida na interseção entre as contingências biológicas, comportamental e institucional.
E1: Minha casa praticamente já terminei, tava precisando, até em casa eu tava deixando a desejar, arrumar mesmo, fazer um reboco, fazer um piso que eu mexo com essas coisas, pronto, praticamente já pronto, pintadinha, e assim eu vou levantando minha auto estima... parece que foi transformando, se transformou pra melhor, pra melhor, né, até emprego, emprego bom, já arrumei de novo.
E9: Porque quando não tava fazendo tratamento eu não tinha educação. E vai aprendendo, né?Tô fazendo o EJA, eu tava fazendo a quarta série e fui para a quinta. Foi agora, poucos dias...tô na computação.
E10: Converso com minhas filhas, converso com a mulher, né, não vou fazer isso de jeito maneira, por isso que eu digo pro cê, eu pra mim, é uma experiência muito boa.
As mudanças ocorridas durante o tratamento trazem um significado individual ao cuidado, mudanças ocorridas não ligadas somente à abstinência, mas às formas de se perceber e de vivenciar o dia – a- dia, ou seja, no âmbito familiar, na percepção do sujeito lidar com seus sentimentos, sendo componente que pode promover de mudança desse indivíduo. As falas relatadas colocam em evidência a ideia do conhecimento de si e do cuidado de si como vias de alcançar o equilíbrio.
3.5.3 Encaminhamento da Justiça como oportunidade
Algo que chamou atenção durante as entrevistas foi o fato dos entrevistados passarem do tempo de tratamento estabelecido pela Justiça.
E1: Passei desse tempo, passei desse tempo e quero continuar mais do que eles propôs pra mim. Mas não, terminou meus quatro meses continuo aqui e quero continuar.
E5: Então fiz foi gostar que a justiça me mandou pra cá. E agradeço muito isso que eles fez por mim.
As falas a seguir trazem associações do tratamento como oportunidade:
E2: Eu vim honrar um compromisso que eu assumi, eu tive que assumi com a justiça, hoje se tornou um prazer pra mim... é aquela história de unir o útil ao agradável.
E10: Você recebeu uma chance, tem que abraçar com as duas mãos, com corpo todo, é desse jeito que eu estou pensando. Eu vim pra cá, agradeço até o juiz também, por ter mandado eu pra cá.
Conhecer o tratamento oferecido no CAPSad, a lógica utilizada, referem confiança e veracidade, postura agora tomada frente à Justiça:
E4: Mesmo se não fosse autorizado pelo juiz, eu também vinha do mesmo jeito. Certeza. Se eu conhecesse. Totalmente que eu vinha, certeza.
E6: Então, devido, com a justiça ou não, se fosse de eu permanecer aonde eu estou, eu fico.
E8: Dizer o que eu quero na justiça, porque eu quero ficar mais aqui no CAPS.
Ao se pensar em indivíduos que são obrigados a fazer o tratamento no CAPSad, seria ponderável refletir que esses não apresentariam essa atitude em permanecer e ultrapassar o tempo estabelecido judicialmente, porém, o que se percebeu nos discursos foi uma atitude diferente, a permanência e aceitação do cuidado como oportunidade de uma possível mudança de vida.
4. INTERFACES DO TRATAMENTO
Os discursos retrataram estranhamento, medo e insegurança, não podemos esquecer que a presença dos usuários no CAPSad é fruto de imposição da Justiça, ainda que a mesma seja, como estabelece Prado27, nos moldes mediadores da Justiça Terapêutica que engloba os aspectos do direito, sociais, legais, de tratamento e reabilitação de uma situação patológica. A intervenção da Justiça fica entre a penalização e uma prática terapêutica clínica compulsória para os usuários, daí o medo.
A explicação sobre o tratamento ofertado narra a vivência de uma singularidade antes não experimentada, sem julgamento, sem juízo de valor, que produz efeito na sua existência, ou seja, transformando ações em práxis. Conforme Castoríades28, práxis é o fazer na qual o outro são visados como seres autônomos, nas quais são contemplados seus pensamentos e ações no que diz respeito à liberdade de escolha.
Liberdade de escolha que permeou segundo os discursos, todo tratamento, do acolhimento às atividades ofertadas no serviço, culminando na modificação do medo e incerteza para mudanças de atitudes, inclusive no que diz respeito ao encaminhamento feito pela Justiça que buscava a solução não só do conflito com a lei, mas conjugadamente o tratamento especializado para cuidar dos problemas dos indivíduos, nas situações relacionadas ao consumo de drogas.
5. CONSIDERAÃÃES FINAIS
As características das demandas que chegam ao CAPSad encaminhadas pelo Judiciário são diversas, desde fortuitos usos experimentais de drogas até situações graves e recorrentes. As narrativas apresentadas sob a perspectiva desses sujeitos que tiveram sua demanda formulada pela Justiça e não por eles, evidenciam que a experiência de tratamento no CAPSad foi significativa em suas vidas. Os repertórios revelam formatos únicos de uma construção de conhecimento e aprendizagem capaz de produzir mudança nas percepções e no cotidiano, bem como no manejo pessoal no trato da dependência química.
O tratamento presente em lei ao usuário de drogas que comete algum delito de alguma forma garante um conjunto de direitos e garantias constitucionais dada ao indivíduo que se concretiza com o encaminhamento para o CAPSad, através dessas medidas, os usuários têm a possibilidade de se recuperar, entretanto, é inegável que a medida da Justiça tem, também, característica punitiva repressiva, na qual acontece a retribuição do delito cometido, daí a preocupação inicial dos usuários em chegar ao CAPSad e imaginar uma penalização.
O presente trabalho sinaliza a importância do CAPSad na vida desses usuários e aponta para a necessidade de discussão da criminalização do comportamento do usuário de drogas, bem como sinaliza a necessidade do estreitamento entre Justiça e a saúde no papel de cuidado do CAPSasd, no sentido de se fazer conhecer por ambas, sendo a Justiça como poder instituído, e o CAPSad como dispositivo de saúde essencial para tratamento integral.
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Endereço para correspondência
Josenaide Engrácia dos Santos
Universidade do Estado da Bahia, Departamento Ciências da Vida.
Estrada de Barreiras s/n Narandiba. Cabula.
CEP: 41195-001 - Salvador, BA – Brasil.
Telefone: (71) 3875094.
Email: josenaidepsi@gmail.com
Artigo encaminhado: 21/04/2013
Aceito para publicação: 18/10/2013
Notas