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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2017

 

ARTIGOS

 

A urgência das inquietações: uma improrrogável militância

 

The urgency of the restlessness: a non-postponable militancy

La urgencia de las inquietaciones: una militancia improrrogable

   

 

Danichi Hausen MizoguchiI, e Alice De Marchi Pereira de SouzaII

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

II Justiça Global, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo dedica-se a interrogar as relações possíveis entre o derradeiro curso ministrado por Michel Foucault no Collège de France – A coragem da verdade – e as urgências de militância demandadas por um mundo que não cessa de acontecer. Assim, extrai duas passagens breves e quase desimportantes do curso ditado por Foucault em 1984 – os excertos iniciais e finais – , nos quais Foucault anuncia uma delicada relação com o tempo: entre o tarde e o tarde demais. É, pois, entre o tarde e o tarde demais que é alocada a atitude de militância – quando o mundo demanda o improrrogável, quando há muito a ser feito, quando a luta torna-se força de abertura daquilo que já se é. O artigo faz-se em dois movimentos intercalados: a aproximação com as aulas ministradas por Foucault e a publicização narrativa de uma militante – performatizando a improrrogável junção entre a coragem da verdade e uma vida não-fascista.

Palavras-chave: Tempo; Militância; Ética; Verdade.


ABSTRACT

This article deals with the possible relations between the last course given by Michel Foucault in the Collège de France - The Courage of Truth - and the urgencies of political militancy demanded by a world that never ceases to happen. Thus, it draws two brief and almost unimportant passages from Foucault's 1984 course - the initial and final excerpts - in which Foucault announces a delicate relationship with time: between the late and the too late. It is, then, between the late and the too late that the attitude of militancy is allocated - when the world demands the non-extendable, when there is much to be done, when the struggle becomes the opening force of what one already is. The article is made in two intercalated movements: the approximation with the classes taught by Foucault and the narrative of a militant - performatizing the non-extendable junction between the courage of the truth and a non-fascist life.

Keywords: SoTime; Militancy; Ethic; Truth.


RESUMEN

Este artículo está dedicado a examinar las posibles relaciones entre el último curso ministrado por Michel Foucault en el Collège de France - El coraje de la verdad - y la emergencia de militancia por un mundo que no cesa de suceder. Por lo tanto, dibuja dos pasajes breves y casi sin importancia del curso enseñado por Foucault en 1984 - los extractos iniciales y finales - en el que Foucault anuncia una delicada relación con el tiempo: entre tarde y demasiado tarde. Por lo tanto, es de entre tarde y demasiado tarde de que se asigna a la actitud militante - cuando el mundo demanda del improrrogable, cuando hay mucho por hacer, cuando la lucha se convierte en la fuerza de abertura de lo que ya se es. El artículo se divide en dos movimientos intercalados: el enfoque de las clases enseñadas por Foucault y la narrativa de una militante - performatizando la unión entre el coraje de la verdad y la vida no fascista.

Palabras-clave: Tiempo; Militancia; Ética. Verdad.


 

 

Veridicção e ética: entre o mais tarde e o tarde demais:

“Bom, olhem, eu tinha algumas coisas a dizer no âmbito geral dessas análises. Mas já está tarde demais. Então, obrigado” (Foucault, 2009/2011, p. 297). É com essas palavras que, no dia 28 de março de 1984, Michel Foucault encerra A coragem da verdade, seu derradeiro curso no Collège de France. É com essas palavras, portanto, que Michel Foucault finda o ofício cumprido desde o início da década de 1970, ano após ano conduzindo a cátedra de História dos sistemas de pensamento na tradicional instituição do Quartier Latin: o exato instante em que estava tarde demais para aquele professor – quando ele ainda podia dizer, quando em breve já não diria mais, quando lecionava o espólio filosófico que aos poucos seria o de todos aqueles que o leriam no porvir.

Estivera tarde – mas não tarde demais – já no início do derradeiro curso. Foucault, nas primeiras palavras enunciadas ao público naquele ano, pede desculpas aos que o acompanhavam no auditório abarrotado:

Não pude começar meu curso, como de costume, no início de janeiro. Estive doente, doente mesmo. Correram boatos de que era para me livrar de uma parte de meu público que eu havia trocado as datas. Não, não, eu estava doente mesmo. Por conseguinte, peço que me desculpem. (Foucault, 2009/2011, p. 3).

Michel Foucault morreria no dia 25 de junho de 1984, quase cinco meses depois de ter se desculpado por começar mais tarde, aproximadamente três meses depois de anunciar que estava tarde demais. Nas palavras entoadas entre o momento em que se fazia um início tardio e o momento em que estava tarde demais, uma certa urgência – talvez improrrogável – se confecciona: a estranha temporalidade de quem, à beira da morte, se vê impelido a enunciar um modo de veridicção no qual a verdade implica-se à coragem – e esta, por fim, a sempre inadiável tarefa de inquietar-se consigo.


***

Tão logo conclui o pedido de desculpas por estar começando o curso um pouco mais tarde do que em outras ocasiões, Foucault anuncia a direção que gostaria de emprestar às aulas no ano de 1984: a continuidade do estudo em torno do tema da parresía. Passagem de um movimento que fora disparado sorrateiramente em tantos instantes de sua trajetória intelectual, mas que só pode ser apresentado com veemência e consistência a partir do curso ministrado nos anos de 1981 e 1982 – A hermenêutica do sujeito – e levado ao grande público tão somente com os dois últimos volumes de A História da Sexualidade – O uso dos prazeres e O cuidado de si. Um pouco de possível diante do sufoco, a ultrapassagem da linha do poder, do que ele vê ou faz ver, do que ele diz ou faz dizer, a abertura da subjetividade ao fora, uma nova conceituação para as relações entre o sujeito e o poder, a saída da bad trip da governamentalidade.

Em Hermenêutica do sujeito tratava-se de estudar o conjunto de práticas que tiveram grande importância na Antiguidade e que dizem respeito ao que frequentemente em grego se nomeava como epimeleïa heautou – ou seja, ocupar-se de si. Práticas as quais, no decorrer da história ocidental, sob os enormes e recentes blocos do cristianismo e da ciência moderna, foram obnubiladas pelo gnôthi seauton

- ou pelo conhecimento de si. Era a demarcação do interesse foucaultiano – em um mergulho temporal mais profundo e quase raro em sua trajetória

- por uma modulação grega em que a inquietação consigo era condição fundamental para construir para si a existência mais bela possível.

Já em A coragem da verdade, em uma lógica de prosseguimento em relação às problematizações lançadas em Hermenêutica do sujeito e às que ocuparam o curso dos anos de 1981 e 1982, O governo de si e dos outros, são estudados modos distintos de veridicção a fim de que as especificidades da parresía possam aparecer – ali, já se sabe, onde a verdade implica-se necessariamente à coragem, à ética, e, portanto, à confecção de modos de existência. O curso que começa mais tarde e termina tarde demais coloca-se, assim, sob a dimensão que implica a enunciação em um tempo específico: o tempo em que uma certa modulação da verdade já não pode mais se demorar – o tempo da improrrogável urgência da ética.


***

Em A coragem da verdade, são apresentados quatro modos fundamentais de veridicção – ou, em outros termos, quatro modos fundamentais de relação da verdade com o mundo: a profecia, a sabedoria, a técnica e a parresía. Cada qual refere-se a personagens diferentes, a entonações verbais diferentes e a domínios diferentes – são, pois, modos distintos de fala. Modulações as quais delicadamente impõem diferenças – e às vezes divergências – políticas em relação aos modos de enunciação da verdade: um profeta não é um sábio, um sábio não é um professor, um professor não se coloca em risco – “todo mundo sabe, e eu em primeiro lugar, que ninguém precisa ser corajoso para ensinar” (Foucault, 2009/2011, p 24), disse Foucault já na primeira aula desse curso.

Se é de uma urgência improrrogável que se quer versar, torna- se fundamental que se perceba – por mais que não tenha sido algo ao qual Foucault tenha dedicado especial atenção em suas derradeiras lições, atento que estava a outras tantas distinções – que inevitavelmente cada um destes modos de veridicção conduz seus personagens a uma relação explícita e específica com o tempo – com a temporalidade, portanto, intimamente implicada às relações possíveis entre a verdade e o mundo. Entre a profecia, a sabedoria, a técnica e a parresía, temporalidades distintas se engendram: entre o profeta, o sábio, o técnico e o parresiasta, distintas temporalidades políticas implicadas aos modos de veridicção são montadas – e delas é preciso extrair as consequências. O profeta é, evidentemente, alguém que diz a verdade – ou seja, alguém reconhecido como apto a dizer a verdade. E é, sobremaneira, alguém que, a dizendo exatamente em uma posição de intermediário entre os deuses e os mortais, se situa na exata distância entre o presente e o futuro (Foucault, 2009/2011, p. 15). Já que se coloca na posição de desvelar aquilo que o tempo esconde dos homens e que nenhum olhar humano poderia ver e nenhum ouvido humano poderia escutar, o profeta, ao dizer a verdade, “ajuda os homens a vencer, de certo modo, o que os separa de seu futuro, em função da estrutura ontológica do ser humano e do tempo” (Foucault, 2009/2011, p. 16). A enunciação profética aproxima-se, portanto, de um futuro feito destino o qual inevitavelmente virá, a despeito das dificuldades cotidianas de antevisão que o tornam nebuloso. O anúncio profético da verdade é, portanto, o anúncio de um tempo inequívoco, inescapável e futuro – de um futuro entendido como o tempo longínquo que virá e que tão somente espera o calendário escorrer para que possa acontecer, haja o que houver.

Se o profeta é alguém apto a dizer a verdade, é exatamente assim – guardadas todas as distinções de modo – que o sábio também pode ser entendido: ele também é alguém reconhecidamente apto a dizer a verdade. Todavia, diferentemente do profeta – aquele que diz o que será e o que virá, em um futuro ainda nublado, mas necessariamente vindouro –, quando o sábio diz a verdade, diz a verdade daquilo que eternamente é – portanto, diz o caráter intemporal do ser do mundo: o sábio diz a verdade daquilo que já é porque sempre foi e sempre será. Verdade, portanto, que reside no ser e na natureza – ou naquilo que os gregos chamavam de phýsis –, estabelecendo um modo de veridicção ontológico que faz as coisas resistirem em um eterno e longo presente no qual residem as essências quase desprovidas da passagem política da temporalidade. A relação do sábio com a verdade e com o tempo – absolutamente diferente daquela estabelecida pelo profeta – estagna o mundo em um gigantesco instante, a partir do qual a verdadeira verdade das coisas pode ser enunciada: é a enunciação, ao fim e ao cabo, de um saber comum que encontra a placidez de um largo presente em que a essência das coisas do mundo se mantém – verdade, portanto, distante de toda urgência, afastada de todo caráter improrrogável, verdade de um tempo estagnado e plácido.

Já o dizer a verdade do técnico – ou, em outros termos, daquele que ensina – implica uma relação de veridicção na qual o conhecimento toma corpo em uma prática – em um jogo específico que pleiteia não apenas a palavra, mas também todo um exercício corporal o qual dá matéria à verdade. É assim que Foucault define: “Eles detêm esse saber, professam-no e são capazes de ensiná-los aos outros. Esse é o técnico, que detém uma tékhne” (Foucault, 2009/2011, p. 23). Trata-se de um saber que se coloca sob a obrigatoriedade de ser dito – de ser transmitido –, já que está ligado a toda uma tradição: o homem da técnica não poderia saber nada se não houvesse, antes dele, um outro técnico que lhe ensinou, de quem foi discípulo e que, portanto, foi o seu mestre. Para que esse saber não feneça, é preciso que o técnico não cesse de transmiti-lo, e assim sucessivamente na relação de ensino e aprendizagem. Todavia, trata- se de uma transmissão em que não se assume risco algum. Por outra, sob o vínculo da herança e da tradição de um saber comum, a manutenção da relação e do conhecimento se efetiva: o ensino, unindo e vinculando, assegura a sobrevivência do saber.

O professor – o homem de know-how – é, portanto, aquele que diz em nome de uma tradição. É aquele que diz em nome de um passado que adentra o presente e mira o futuro – protegendo- se das intempéries na manutenção de uma técnica que se repete e que deve ser transmitida de geração a geração. É, assim, junto ao problema da transmissão que a temporalidade será evidenciada. O técnico é aquele que diz a tradição, em uma manutenção do passado no presente e em uma estranha preparação do presente para o futuro que virá. Se há urgência ou caráter improrrogável no modo de veridicção da técnica, eles só podem ser a ânsia protegida da manutenção – a quase defesa moral do tempo contra a própria passagem do tempo, a instauração de um modo no qual o futuro repete o presente e o presente repete o passado.

É nesta trilha de investigação dos modos de veridicção – e, notadamente, percorrendo um trajeto que, atravessando os três modos acima apresentados, intenta chegar à íntima relação parresiástica entre a verdade e a ética – que Foucault se encontrará com a morte mais famosa da história da filosofia: o envenenamento de Sócrates. O ciclo desta célebre morte representa, segundo Foucault, a função de fundação ética do cuidado de si. Assim, Sócrates será entendido, na lição foucaultiana, como “aquele que prefere enfrentar a morte a renunciar a dizer a verdade” (Foucault, 2009/2011, p. 61). Mas de qual verdade Sócrates não renuncia – ele que tem em si fragmentos de todos os três modos de veridicção já mencionados? Foucault responderá: “Sócrates é o parresiasta” (Foucault, 2009/2011, p. 26). Mas o que isso significa – e quais as implicações disto como uma certa direção temporal que aqui quer se dar?

É ali, finalmente, que uma relação de veridicção que só encontra eco e função junto ao éthos vai se estabelecer. E estabelecer uma relação de verdade com o éthos, dentre tantas outras coisas, implica um encontro singular com o tempo – já que “o parresiasta não diz o futuro”, nem “levanta o véu que cobre o futuro”, não habita um eterno e estagnado presente, não defende a repetição de uma tradição, mas, mais do que tudo, é aquele que “levanta o véu que cobre o que existe” (Foucault, 2009/2011, p. 16). Tarefa inadiável, tarefa urgente, talvez tarefa improrrogável: a de implicar a verdade à confecção sempre infinda de um modo de existência – tarefa derradeira de Sócrates, tarefa derradeira de Foucault, tarefa cotidiana de todo aquele que, a cada instante, sabe que começa mais tarde e está sempre em vias de habitar o tarde demais, levantando ininterruptamente o véu que cobre tudo o que existe porque já não há mais o que esperar.

***

Eis as últimas palavras de Sócrates – palavras improrrogáveis, instantes antes de estar tarde demais, na forma de pequena súplica a seu amigo Críton: lembrem-se de fazer o sacrifício de um galo a Asclépio, façam isso, não se esqueçam disso, não descuidem disso (Platão, 2000a, p. 190). É preciso sacrificar um galo ao deus da cura, e disso não se pode descuidar: bizarrice, ironia e estranheza é o que Foucault encontra nesta frase. Frase absolutamente investigada ao longo da história ocidental, mas que, em sua estranha e paradoxal banalidade, permaneceu por muito tempo sem uma explicação convincente. Asclépio é um deus o qual faz somente uma coisa para os humanos: curá-los de tempos em tempos. Fazer a Asclépio o sacrifício de um galo é o gesto tradicional pelo qual se agradece quando ele, efetivamente, curou alguém – gesto feito depois de efetuada a cura, portanto. Mas, se assim é, do que Sócrates, à beira da morte, havia sido curado – justo no momento em que o veneno que inevitavelmente lhe matará já chega ao baixo-ventre, justo quando estava quase tarde demais? Há quem interprete – é o caso de Alphonse de Lamartine, por exemplo, no poema A morte de Sócrates – que a cura mencionada por Sócrates se referia à doença que é viver. As palavras de Lamartine são as seguintes: “Aos deuses libertadores, diz ele, sacrifique- se! Eles me curaram! – De quê?, indaga Cebes. – Da vida” (citado por Foucault, 2009/2011, p. 84). Tal tese recorrente, reencontrada na análise do filósofo francês Léon Robin, o qual, no começo do século XX, afirma que Sócrates, no exato instante em que morria, estava curado da ligação entre corpo e alma – ou, em outros termos, a alma via-se “finalmente curada do mal de estar unida a um corpo” (Foucault,2009/2011, p. 85).

A interpretação de Lamartine, de Léon Robin e de tantos outros é próxima a de Friedrich Nietzsche quando, no aforisma de A gaia ciência intitulado Sócrates moribundo, diz: “Quisera que também no último instante ele tivesse guardado silêncio – nesse caso, ele pertenceria talvez a uma ordem de espíritos ainda mais elevada. Terá sido a morte, ou o veneno, ou a piedade, ou a malícia – alguma coisa lhe desatou naquele instante a língua e ele falou” (Nietzsche, 1882/2012, p. 204). E mais: “Essa ridícula e terrível última palavra quer dizer, para aqueles que têm ouvidos: „Ó Críton, a vida é uma doença‟. Será possível?‟” (Nietzsche, 1882/2012, p. 204). Interpretação, portanto, que se repete – da poesia à filosofia, mas não só – em sua obviedade: Sócrates considerava-se doente de viver e era na morte e com a morte que se curava – e é por isso dizia a Críton que era necessário sacrificar um galo a Asclépio. Se assim fosse, seria Sócrates – conforme afirma Foucault – o parresiasta?

Georges Dumézil (1989), todavia, indica que pode haver – ou melhor, que há – um equívoco nessa recorrente interpretação – que não era possível que Sócrates, em suas últimas e improrrogáveis palavras, quase tarde demais, tivesse capitulado ao indicar que a vida era uma doença da qual ele em breve se curaria. Um punhado de passagens – sobremaneira algumas do Fédon (Platão, 2000b), destacadas por Dumézil (1989) e mencionadas por Foucault (2009/2011) na aula do dia 15 de fevereiro de 1984 – indicam que não haveria em Sócrates qualquer direção de interpretação da vida como doença – interpretação, aliás, que não encontrava absolutamente nenhum lugar na Grécia Antiga. Se assim é – portanto, se não é da doença da vida que Sócrates se curava – resta a pergunta: qual foi essa doença por cuja cura era necessário agradecer? A que Sócrates se referia ao mencionar o sacrifício de um galo a Asclépio justamente no improrrogável instante em que, com o corpo impregnado de cicuta, sentia lentamente a morte chegar?

Dumézil diz que nada do que leu sobre os últimos instantes de Sócrates o satisfez (Dumézil, 1989, p. 142): a tese quase ridícula de Ulrich von Wilamowitz, que aponta que Sócrates, nos últimos instantes lembrara de uma doença que tivera tempos atrás e que era pela cura dela que agradecia; a tese que indica que Sócrates, altruísta até o fim, gostaria de oferecer o galo a Asclépio em função da doença de um amigo, e esse amigo era justamente Platão; as teses que supõem que Sócrates delira ao ser envenenado; as teses que fazem crer que Sócrates agradece pelo deus tê-lo mantido com saúde por tanto tempo durante a vida. Teses e mais teses que desagradam Dumézil, mas, mais do que tudo – ao contrário do que disseram Lamartine, Robin e Nietzsche, para quem Sócrates quis sugerir que a morte é a cura para a doença que é a vida em si, algo contrário a todos os seus ensinamentos que se voltam aos bons usos da vida (Dumézil, 1989, p. 153) – a aposta do filólogo francês é de que Sócrates não fraquejou em seus últimos instantes: foi, ao contrário, no último e improrrogável momento que disse o que era para ele o mais essencial e mais manifesto em seus ensinamentos.

Para tanto, Dumézil volta-se a outro diálogo socrático – nomeado Críton (ou do dever) (Platão, 2000a) –, no qual Críton propõe a Sócrates organizar uma fuga junto a todo um complô de amigos – e bastaria Sócrates aceitar a fuga para que ela se efetivasse. O argumento central de Críton era de que seria necessário fazer de tudo para escapar à morte – porque se Sócrates não tentasse ao menos fugir, estaria traindo a si mesmo, a seus filhos e a seus amigos perante a opinião pública, abandonando-os todos a uma vida na qual já não poderia mais intervir. A questão posta por Críton, portanto, conduz Sócrates ao encontro com o senso comum, e é neste enfrentamento que a resposta socrática – depois de reclamar que Críton havia chegado cedo demais – é dada sob a forma de uma pergunta: deve-se levar em conta o juízo de todo mundo? A conclusão é a de que convém não se preocupar com a opinião de todo mundo e de qualquer um, mas somente com o que possibilita decidir o que é justo e o que é injusto – e o que possibilita esta decisão é a verdade. Eis a interpretação de Dumézil para a derradeira e improrrogável fala de Sócrates: é, pois, da doença do senso comum que Críton – e Sócrates, enfim – foi curado, ao se libertar da opinião de todos e de qualquer um, escolhendo “se fixar e se decidir por uma opinião verdadeira fundada na relação de si mesmo com a verdade” (Foucault, 2009/2011, p. 92). Era pela cura desta doença que seria necessário ofertar um galo a Asclépio: a cura da doença da opinião falsa.

Ademais, é preciso lembrar que todo o ciclo desta morte é perpassado pelo tema do cuidado – pelo tema da epiméleia. Esse é o testamento de Sócrates – esta é sua última vontade, enunciada no instante de urgência em que a cicuta já circula em suas veias: cuidai de vós mesmos. O exercício de uma parresía que o expôs à morte, o exercício de seu dizer a verdade e, finalmente, a provocação a que todos cuidem de si mesmos, indicam um modo de veridicção distante daqueles da profecia, da sabedoria e da técnica – notadamente porque fazem aparecer o perigo da ética, “cuja coragem deve ser exercida até a morte” (Foucault, 2009/2011, p. 99), ali onde todo instante pode ser o último – e, portanto, deve ser vivido como se fosse, de fato, o último. Tempo urgente de uma verdade, tempo improrrogável de uma enunciação sempre entre o mais tarde e o tarde demais: o tempo exato, cotidiano e arriscado de um cuidado e de uma inquietação que já não podem mais esperar.


***

Se entendermos que “o discurso revolucionário, quando assume a forma de uma crítica da sociedade existente, desempenha o papel de discurso parresiástico” (Foucault, 2009/2011, p. 29) – ali onde todo o risco, toda coragem e todo cuidado se põem em jogo na trama da verdade –, entendemos que há todo um trabalho de militância que se faz cotidiano – na direção inequívoca que foi a legada por Sócrates e por Foucault nos instantes de suas mortes: a tarefa improrrogável de cuidar-se de si e de inquietar-se consigo.

É assim que o presente artigo segue, na escrita inadiável de uma militância que – sob o modo de veridicção da parresía, enfrenta e constrói a si à medida em que escreve a si mesma: de uma militância que não acredita na tristeza como condição para acontecer (Foucault, 2010) – ao contrário, de uma militância que, inquieta consigo e com a vida, trata de fazer de si mesma e das vidas que atravessa obras de arte.

Doravante, pois, tratar-se-á de uma experiência militante a qual – tal qual aquilo que Foucault e Sócrates lecionaram – sabe que a tarefa improrrogável da ética é a de, a todo instante, viver como se estivesse entre o mais tarde e o tarde demais: a militância que habita a relação improrrogável entre a verdade e a ética. É com uma carta escrita por uma militante para si mesma que a materialidade deste problema vital, temporal e ético poderá ganhar consistência e materialidade.


Uma carta militante: a inadiável tarefa da vida como obra de arte:

Querida amiga,

Acabo de voltar de Brasília, depois de três dias de trabalho intenso, e estou um tanto à flor da pele. Na verdade, faz tempo que oscilo entre estados de tristeza, raiva ou mera anestesia. Imagino que um pouco disso você possa ter notado, pois respinga nas relações. Você sabe também que outro estado que me tem tomado é o da doença, como se um corpo tomado por determinadas forças entrasse em esgotamento: uma gripe viral e um distúrbio gastrointestinal esquisito me acometeram nos meses mais recentes.

Esse tipo de agenda em Brasília para quem atua com direitos humanos em organizações não-governamentais na sociedade civil sempre são pesadas e cansativas, pois o tempo é curto e o trabalho é muito. Quando o tema é a proteção a defensoras e defensores de direitos humanos1, geralmente incluem reunir militantes cujos direitos foram violados e estão indignados e fazer incidência política em órgãos do governo, com quem a relação nunca é exatamente tranquila (outra nota irônica: tenho feito muito o ato falho de digitar "covil" e não "civil" ultimamente. Talvez seja porque estamos realmente tendo que enterrar muitos dos nossos ultimamente...). Quer dizer: a questão é que estamos indignados também, mas estar nesse papel de ONG exige uma relação com a institucionalidade, e esta interlocução ou mediação com o governo é cada vez mais desgastante.

Mas o que queria lhe dizer é que de novo foi justamente o que escapa aos discursos oficiais e públicos o que mais mexeu comigo, e talvez com o grupo que lá esteve. Para além de toda uma avaliação nesses dias de atividade de que não tem jeito, é voltar-nos para nós o que precisamos e devemos fazer nesse momento de retrocesso, teve a presença de companheiros da Colômbia e do México lá, trazendo as experiências dos programas de proteção a defensores de direitos humanos de seus países. Deram uma contribuição muito boa, muito potente do ponto de vista técnico, (macro)político, militante, mas também afetivo-político ou micropolítico, talvez. Principalmente os colombianos...

Um deles tem sobrenome Guevara, o que já dispensa comentários. Quando fazíamos as avaliações e falas finais naquele grupo de umas 40 pessoas que estavam há três dias vivendo aquelas coisas todas – queda do ministro de direitos humanos, audiência pública polêmica, reuniões e relatos dos mais graves daquelas pessoas que estavam na linha de frente das lutas – ele diz que, se pode dizer algo como “mensagem a ser deixada para os companheiros do Brasil”, é: “cuidenSE”. Com essa ênfase mesmo. Ele segue:

O que é se cuidar? É comer bem, é dormir bem, é fazer exercício, é estar perto da família, é passar tempo com os amigos. É cuidar primeiro de si, e só depois cuidar da pessoa ao lado. Da pessoa ao lado, e não de todos os defensores de direitos humanos do mundo. Porque se eu não posso cuidar do companheiro que está perto de mim, não posso cuidar de outros. E nem querendo; não vou conseguir. Pois temos limites. É saber que pode vir aqui o maior expert em proteção do mundo para nos ensinar a nos proteger (vindo da Europa ou de onde for...), mas que a base da nossa autoproteção está em nós. É saber que há momentos de angústia - e vi muitos de vocês falando com tamanha angústia, tristeza, preocupação – mas que isso também pode ser superado, e deve, mesmo que demore, enxergando essa força que temos em nossas articulações como grupo.

Uma vertigem me percorreu o corpo: um Guevara chamando atenção para o cuidado de si (por mais que possa não ser leitor de Foucault, por mais que o cuidado a que se referisse fosse mais ligado ao tema daquela atividade)! Um cara que trazia consigo um extenso conhecimento e saber técnico sobre o assunto, faz questão de deixar esse recado no final? Não é qualquer coisa. Ele estava falando de um outro plano, de um plano de relação da gente com a gente mesmo, estava falando de um plano desejante, afetivo. Micropolítica. De uma confiança no que já temos e sabemos, de um plano de produção que se livrasse da angústia, que se ligasse com a realidade e com a necessidade de seguir, pois o caminho é longo. Ouvi algo de estética da existência ali.

Já a outra companheira colombiana fala que quando vê o Brasil, vê um povo “com os pés na selva e os olhos no mar”. E passa a falar coisas do mar que poderiam soar clichês, mas na voz dessa mulher, ex-guerrilheira, que para mim tem olhos de oceano, que tem uns longos cabelos negros, que se assemelha a uma indígena, meio bruxa... as coisas que ela fala do mar são de uma autenticidade e de uma intensidade sem igual, e, portanto, passam longe de clichês.

“O mar é feito dessas gordas ondas, em cujas cristas às vezes estamos surfando. Mas as mesmas ondas em seguida nos engolem, nos derrubam ao chão. É como a vida”, diz ela, reconhecendo a obviedade da analogia. Diz que o Brasil e os defensores de direitos humanos estamos num momento desses, levando caldo, e está difícil. Mas o mar, como a vida, muda, e é isso que faz do mar, mar, e da vida, vida: as ondulações... E se tem uma coisa certa, que o mar SEMPRE faz, é que “el mar siempre te saca”. Adoro essa palavra no espanhol, pelos múltiplos sentidos que tem: tirar, trazer à tona, trazer aos olhos ou empurrar a algum lugar, sempre num movimento que envolve algo de força e velocidade. Ela diz: “ele sempre te tira do fundo, te devolve à superfície”. Então, fala ela, tratemos de não desesperar. Quem se desespera, se afoga. O mar está violento, mas diz que eles, vindos de um país com uma história de anos de violência também tiveram – e ainda têm de seguir lutando, buscar maneiras de, em certos momentos, boiar, encontrar as melhores estratégias de se manterem vivos.

Como se não bastasse, numa última dinâmica que fizemos, jogando um rolo de barbante um para o outro – técnica grupal na qual dizemos que força vemos no outro e porquê quer continuar conectado com aquela pessoa –, o barbante vai rodando, e eu penso que quero jogar para ela aquele carretel quando cair nas minhas mãos. Afinal, já conhecera ela antes, no Rio, em fins do ano passado, e foi ela quem me acolheu em Bogotá quando fui para lá recentemente, sempre com esse ar tranquilo e um quê de misterioso, os olhos caídos nas beiradas, mas em nada tristes. Olhos negros de uma tranquilidade firme. Uns olhos de sabedoria ignorante.

Sei que o tal barbante roda e quando alguém outro joga prá ela, é para mim que ela endereça o tal cordão, me chamando de mulher, e diz coisas lindas, daquele jeito enfeitiçado e direto dela. Confesso que não lembro direito das primeiras palavras, por mais que eu tenha me esforçado para que minha memória patética não me deixasse na mão mais uma vez. De cara meus olhos marejaram, e fiquei tentando concentrar nas palavras prá elas grudarem no meu cérebro, em vão. Só retive a última frase, que foi “que essa mulher encontre a alegria”.

***

Não só há um eco lamentoso de parte de uma geração em relação aos “fracassos” do socialismo e do comunismo como também há, por vezes, uma queixa em relação à geração atual. Somos, enquanto juventude, frequentemente questionados quanto ao potencial para se revoltar com o intolerável nos dias de hoje. Ouve-se bastante, desde os contextos mais banais e cotidianos, até por meio de intelectuais e seus escritos, que não há mais um delineamento definido daquilo que supostamente devemos combater; que a chamada “luta” perdeu força e unidade; que, enfim, esta é uma geração esvaziada pelo capitalismo neoliberal e seus sedutores cantos de sereia.

“As pessoas ficam falando em futuro, em mudança, mas não estão nem aí pras coisas que estão no mundo. Perderam a capacidade de espernear pras coisas mudarem. Desaprenderam”, diz o poeta vagabundo Zizo, personagem de Cláudio Assis no filme “A febre do rato” (2011). Há mesmo momentos em que nos acho de fato péssimos, garota. E talvez a crítica tenha seu lugar; quiçá a nossa geração seja mesmo merecedora dessa acusação. Uma geração totalmente capturada, sagaz em prol do capital e do interesse próprio, e vazia em criação, invenção. Bem que uma duplinha pícara de autores já dizia: “não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais; falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente” (Deleuze & Guattari, 1991/2005, p. 141).

Mas o caso aqui não parece que seja o de repetir as indagações outrora já lançadas na história, como diz Badiou, e nutrindo-as com, digamos, “conteúdo renovado” ou, simplesmente, com “a nossa cara”. A questão que ora nos interessa levantar, repousa menos na preocupação com as formas de se organizar, com os rumos da esquerda, com suas propostas ou com o que seria uma maneira quiçá mais pertinente, realista ou “revolucionária” de lutar (através de partidos ou não? Tomar o poder ou não? Comuna? Democracia? Socialismo ou comunismo ou anarquismo ou o que?). Repousa (ou voa, inquieta?) sobre um ponto que se faz ao mesmo tempo micropolítico e ético: o que temos feito de nós mesmos, ao sermos “militantes de esquerda”? De que modos estaríamos, nós mesmos, reproduzindo aquilo mesmo que queremos combater – e de que maneiras estamos, em palavras e em ato, revolucionando o mundo e a nós mesmos?

O que presentemente está atravessado naquilo que se costumou chamar de militância “de esquerda” e o que tristeza e microfascismo, conforme escreveu Foucault, em seu O Anti- Édipo: uma introdução à vida não fascista (1994/2010), podem ter a ver com isso? Diante de um mundo cada vez mais repleto de dispositivos de controle, repressão, culpabilização, desqualificação, narcisismos e disputas por protagonismo, em que práticas militantes jogam-se as fichas das apostas daqueles que ousam acreditar que um mundo outro é possível? Se não é preciso ser triste, como fazê-lo com uma alegria, mas uma alegria que não é ingênua, e sim política, potente, ligada ao desejo, e, portanto, revolucionária?

Na medida em que as perguntas instalam-se numa questão ética, relativa a modos de subjetivação e a uma atitude de militante-no-mundo, seria mesmo preciso desnaturalizar termos como os de “militância”, “esquerda”, “direitos humanos”, “tristeza”, “alegria”, dentre outros. Será que apenas eu (ou alguns de nós...) entendemos que combater essas linhas de poder, esses vetores do capital, e suas modulações – moralismos, machismos, narcisismos e assim por diante, inclusive em nós – denota “ser militante”, “ser de esquerda” – considerando essa posição mais (ou diferente) do que apenas seguir uma doutrina, seja ela escancarada em ideologias consagradas ou disfarçada em discursos pseudo-libertários (“pseudo” porque libertários o são até o momento em que dizem que o grupo a que se pertence é que detém “a melhor verdade” sobre o que é “ser revolucionário”)?

E se a questão é ética e dependeria de atitudes, princípios, como fazer desses princípios práticas, exercícios cotidianos? Trazê-los ao rés do chão, à superfície de nossas peles, ao ar que respiramos, ao modo como levamos nossas vidas e lutas? Não de maneira a sermos fiscais de nós mesmos (nem dos outros): erramos, cansamos, caímos, claro está, e seguiremos errando (ainda bem!), caindo, cansando. Mas como manter essa espécie de estranhamento com o que muitas vezes é naturalizado como algo que “está em todos nós”, manter aí um tensionamento, agonismo micropolítico que não produza contraturas (ao menos não muitas...), e sim levezas, desprendimentos do que deve ser, conectando-se com o que pode ser? Se essa é uma arte de viver, como sermos, então, artesãos de nós mesmos e do mundo, de maneira ativa, e não reativa?

Evoco, então, querida amiga, alguns dos motivos que me fazem crer que é importante falar do que tange tristeza, alegria, negatividade, afirmação, poder, desejo, microfascismos, potência, capturas, esquerda, liberdade. Os motivos que nos fazem lançar tais indagações inicialmente são ligados a uma militância de esquerda mais marxista e tida como “tradicional” com que passamos a conviver num determinado momento de nossas vidas; esquerda que se problematiza muito pouco e que se critica de sobra; reproduções de culpabilizações, pessoalizações, medos, raivas, sede por vingança, moralismos; reproduções dessas paixões tristes nos meios ligados a essa militância onde circulamos (mesmo que nelas haja alegria aos montes).

Por outro lado, nos incomoda também uma espécie de excesso de teorização etérea, de uma vulgata “deleuzianismo-foucaultianismo” (que ao sê-lo já traem muito esses autores, os quais sempre repudiaram “fazer escola”, e seus conceitos ficam, assim, desgastados). Vulgata que vem mesclada a uma ode um tanto vazia à alegria, à liberdade, ao devir. Larrosa aponta a corrosão dessas palavras, “tão manipuladas, tão manuseadas, tão corrompidas por séculos e séculos de tagarelice que é quase impossível utilizá-las”, e o que ocorre é que “estamos ficando sem palavras para dizer o intolerável e para afirmar o nosso querer viver” (2000, p.328). Esse outro “lado" de um mesmo campo ainda situado à esquerda, num terreno mais amplo, é o que encontramos em nossas experiências junto a ambientes e pessoas que conhecemos principalmente na academia, mas não só.

Isso se faz questão na esquina da nossa experiência. Vemo-nos incomodados com essas reproduções de palavras-de-ordem como que “de um lado” e “de outro”, primeiramente, mas isso logo se alarga para outras modulações: caretismos e falsos libertarismos vêm e vão por todos os lados. Inclusive em nós mesmos: percebemo-nos num embate doloroso, dificílimo, com essas linhas que nos subjetivam. Encadeamento de questões: o que sou? O que devo ser? O que quero ser? O que somos (na ONG, na universidade, na Cinelândia, no bar, na rua, no Brasil, em casa, na esquerda)? O que queremos ser? Para culminar em perguntas mais potentes: o que, afinal, temos feito de nós mesmos, militantes? Quais ultrapassagens desejadas, quais possíveis? De alguma forma, viemos perguntando – e respondendo, sempre parcialmente – como não sermos mais os mesmos?

Ora, que é ser um militante triste? Uma das respostas é “não experimentar”. De Maio de 1968 (e aqui ele já transborda a França, pois estamos falando do conjunto de movimentos revoltosos dos anos 1960), esses são espécies de efeitos: o lamento dos que viveram revoluções socialistas marcadas por moralismo e disciplina, sobre como sua geração não experimentou o suficiente, e por isso se entristeceu; da mesma forma, outros – muitos dos quais latino-americanos – vão deprimir diante da frustração de terem seus sonhos e utopias devastados pela repressão de ditaduras empresarial- militares, seguida da consolidação de um capitalismo neoliberal globalizado: dirão que são uma “geração derrotada”. “Perdemos o poder, não soubemos lidar com sua tomada”. A linha dura se reificando; o medo, sempre o medo de desterritorializar, medo do desconhecido, medo do novo, medo da ousadia, levando de volta a esta linha (Deleuze & Guattari, 1980/2004). Outros, ainda, vão debandar, alegremente, para a social-democracia, eco-democracia, “centro-esquerda” ou mesmo bradar pelo fim “dessa besteira de dois lados”. A reciclagem dessa tal democracia, outrora objeto de suor, luta e conquista, em roupagens agora liberais, lhes servirá – como serviu aos “novos filósofos”, como serve a tantos defensores de direitos humanos de gabinete2. Constatamos aí os efeitos do perigo da molecularidade sedutora que decorre da dura, quando a aposta é no capitalismo neoliberal e em suas capilaridades e micropoderes (Deleuze & Guattari, 1980/2004, p.110).

E você me perguntará: e os que experimentaram? Estariam aí os militantes alegres? É que não basta experimentar. Alguns experimentam sem cuidado. Radicalizarão em grupos clandestinos e terroristas – guerra pela guerra. “Nós que amávamos tanto a Revolução”, de Cohn-Bendit (1987), traça alguns desses itinerários. Aí também estão os que experimentaram sem prudência nenhuma, sem direção nenhuma: overdose. Os anos 1970 levarão essa marca, um pouco dos 1980 também: linha de fuga desesperada, a revolta pela revolta, a experimentação pela experimentação (Deleuze & Guattari, 1980/2004).

Mas há outras, minha querida, há mil modulações, efeitos e filhos de maio que nem mesmo a mais exaustiva categorização dá conta. Em pesquisa, a socióloga Julie Pagis3 bem que tenta, mas a própria pesquisadora reconhece a insuficiência do esquadrinhamento que investe.

A questão é que “não ceder” – à direita, ao poder, ao capital – não significa entristecer, enraivecer, resignados na subjetivação esquerdista endurecida, ressentida. E sabemos do quanto vivemos ainda rodeados das segmentaridades duras: os valores burgueses, as trilhas seguras, as receitas de bolo, os tecnicismos, as instituições.

Mas não basta, repetimos, simplesmente experimentar esvaziadamente ou achar que isso equivale à alegria – veja: sou feliz! “Mais amor por favor”, “gentileza gera gentileza”, ecos no vazio. Ou tirar a roupa no meio da rua e tirar onda de “cão”, se dizendo anarquista, como se isso bastasse (ser malvado sempre foi sexy). Ainda aí estaríamos escravos de nossos “eus”. É preciso atentar para não perder de vista as questões do nosso tempo, do nosso presente.

Aumentar a nossa velocidade de escape e criação talvez também ainda diga pouco. Talvez se trate de uma prudência e de uma acidez: linha de fuga por linha de fuga pode dar em superdose, loucura, aniquilamento. Ou então hippongagem4, filosofia marqueteira, esoterismo, anarcoxismo acadêmico, ou, talvez pior, rebeldia hipster, feminismo pop, ativismo de publicitário, uma moda de ser “meio intelectual, meio de esquerda” (“o gigante acordou”), formas às quais se conectam mesmo agências publicitárias que incentivam um “consumo baixo” ou “consciente”, e às vezes até uma tentativa de pseudo-captura do comunismo em novas vestes de um “colaborativismo” (que, se talvez efetue algum desvio, mantém-se em função do capital). Muito além da experimentação desenfreada dos anos 1970, hoje talvez incorramos nos perigos das linhas moleculares capitalísticas que tudo semiotizam.

Mas mesmo que parte de mim nos ache uns cagões, querida amiga, seja por nossos medos modernos ou nossos escapes vazios pós-modernos, outra parte esperneia, me arrasta, certa de que muito do que vivemos como libertário – ou impulso, tentativa de sê- lo – não foi, não é, meramente hedonismo ou coisa de criança mimada, de “guria de apê”5. Donna Haraway dirá: é preciso viver com terror e alegria. Não se trata de uma ou outra. Essa parte de mim é a que acredita que ainda somos jovens demais para desanimar, para não fazer dessa crítica do que somos no presente mero beicinho, braço cruzado, lamento sem volta.

Você sabe, dizer: somos muito mais novos do que acreditamos não é uma maneira de diminuir o peso de nossa história sobre nossos ombros. É, antes, colocar à disposição do trabalho que podemos fazer sobre nós mesmos a parte maior possível do que nos é apresentado como inacessível. (Foucault,1994/ 2010a, p.358).

É aí que reside uma alegria como experimentação, uma alegria apesar ou na própria queda-livre do vão que é a vida. Por que não de peito aberto? Pergunto-me quando esqueço disso. Aí mora minha aversão a quem faz cara de sério como se isso fosse arma diante de um presente pessimista – e que na verdade é igualmente escudo para nada fazer, pois “tudo estaria perdido mesmo”.

Clarice Lispector (1998) me sopra aos ouvidos para dizer que já há demais os que estão cansados, e refere- se a uma alegria áspera e eficaz, que não se compraz em si mesma, que é revolucionária. Ouço a voz de Juçara Marçal, na canção São Jorge, do Metá Metá (2012), cantar “Com um sorriso derrubo uma tropa inteira / Mesmo que na dianteira sombra venha me seguir”. Schérer também me canta seu canto de sereia outro, dizendo que é nossa tarefa reencontrar a sedução do mundo: “preservar o que ainda resta da sedução do mundo ou saber ressuscitá-la é nossa tarefa, nosso combate” (2003, p.6). Converso com o Cacique Babau, indígena Tupinambá baiano, em Brasília. Ele descreve que nos momentos de retomada de territórios indígenas, eles já o fazem rindo, e é aquele riso que mete medo nos fazendeiros. Como se a alegria dos indígenas fosse já arma, fosse instrumento eficaz na própria luta. É de arrepiar ouví-lo falando isso, sorrindo. A poetisa, a música, o filósofo, o índio: é essa alegria guerreira e política que queremos, é esse encantamento que nos interessa.

Se é de criação que precisamos, então que ousemos experimentar mais desse devir revolucionário, nada romântico ou saudosista, mas vetor de força eletrizante que encarna nas nossas vidas a qualquer momento, a todo momento, que nos revoluciona a nós mesmos e ao mundo. Devir que afirma o que é revolta perante o abominável, que irrompe intempestivo num presente intolerável, devir que não pode ser previamente nominado, porque diz do que estamos nos tornando (Deleuze & Guattari, 1991/ 2005). Que pode parecer grandioso, mas não é monumental: é o que se pode fazer hoje, aqui, agora. Ou logo ali... “Nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer”, como diz Foucault (1995, p.256). Essa posição de um “hiperativismo pessimista” nos vacina contra uma apatia, e nos conduz também ao exercício do pensamento como experimentação, da análise das implicações do que fazemos e de como nos posicionamos: “diagnosticar os devires, em cada presente que passa”, como dizem Deleuze e Guattari (1991/2005, p.145). Não, repito, para recair no “excesso de clareza”, “tudo no microscópio”, da molecularidade, de novo. Justo pelo contrário: para não fugir à raia de uma experimentação que vem com prudência e sentido.

Retornam aqui esses princípios do cuidado de si e o dizer verdadeiro como convite e como aposta para nós, para a militância. Mas por que esses caminhos? A eles aludimos muitas vezes antes, mas talvez seja ainda importante insistir, agora com mais... cuidado!

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É ainda no mesmo curso de 1984, em suas últimas aulas, que Foucault (2009/2011) coloca a especificidade da estética da existência cínica como a incansável e permanente transformação de si e a constante edificação de uma vida outra. Esta, por sua vez, está indissociada da provocação aos outros sobre o que têm eles feito de si mesmos, de que formas têm se acomodado aos valores tradicionais, no que é tido como dado, estável, imutável – bem como da crítica e transformação do mundo existente, fazendo surgir aí também um mundo outro.

Note você que não se trata de uma “outra vida” ou de um “outro mundo”, como se estivessem descolados ou distantes do presente (o novo homem? Utopias tranquilizadoras? Revoluções históricas? Direitos Humanos?); pelo contrário, a vida outra e o mundo outro justamente se inscrevem como resultado de uma atividade política de trabalho sobre si e transformação das nossas vidas e de nosso mundo atuais, tendo sido chamada de “militância filosófica” pelo próprio Foucault (2009/2011) (processos de subjetivação? heterotopias inquietantes? Devir revolucionário? Práticas libertárias?). A questão e o – assim tomado por nós – convite de Foucault extrapola um “campo de atuação”, evidentemente: sejamos todos corajosos cães – cada qual à sua maneira, é claro, sem modelos prévios – para colapsar o que há de instituído, normatizado, não mais aceitável, apaziguante, doutrinador, docilizante, limitador no presente. Além do mais, ladremos para que tal movimento se prolifere.

Acontece que “Foucault não é filósofo e militante, acadêmico e resistente. Ele é historiador porque militante, resistente, tanto quanto estudioso”, diz Frédéric Gros (2002). E, de fato, em A coragem da verdade, é essa a afirmação que Foucault faz: ela é, mais do que apenas chave de leitura da obra e da vida, aquilo que sustenta a escritura de livros e a ação política – e aí, minha querida, remetemo-nos ao que nos demos conta quando falávamos entre academia e militância. Escrita e ação são uma mesma coisa, uma só substância, “como em Espinosa”, uma só força, dirá de novo Gros (idem, p.8). Ora, nada estranho para o próprio Foucault, que pouco antes disso já afirmava que discursos são práticas.

Entrevemos uma gauche imanente, vivida e experimentada a cada momento, aqui e agora, que além de solapar o presente, incita, provoca ou outros a fazerem o mesmo. E olhando para sua introdução à vida não fascista, não era esse o latido de Foucault? Não estava ele nos incitando, nos indicando que cuidássemos de nós mesmos, ao perscrutar em nossos corpos de militantes as dobras do fascismo?

Minha querida, não há lugar a se chegar. Não há um modo de ser militante, ser esquerda, de ser pesquisador, de se viver a ser atingido. O que podemos é dizer: apostando que há uma alegria enquanto potência de agir própria ao viver a vida de modo ético, isto é, inerente ao exercício de liberdade cotidiano através da infatigável prática do cuidado de si, de nós, – fica claro que na frase “não imagine que seja preciso ser triste para ser militante” (Foucault, 2010) há o que seja talvez a pista mais preciosa para uma prática militante rigorosamente libertária e parresiástica. E, nessa arriscada postura da coragem da verdade, talvez resida o mais autêntico elo entre desejo e realidade.

Experiência: é nela que emergem inquietações que se nos fazem questão, ponto de partida candente e irrefutável de problematização. Experiência: é dela que se faz escrita, é ela superfície e preenchimento – ou melhor dito: coextensividade – de texto, pesquisadores, militantes. Experiência: é nela que se jogam os dados do que se ensaia. Só nela verificamos se aquilo no que apostamos – uma militância que se cuide a si mesma –transforme o mundo e a nós mesmos. Fica o que não coube – no papel, no envelope, no tempo. Fica uma transformação, uma tarefa, uma disposição, fica a aventura – fica a tarefa sempre improrrogável de forjar o si, a vida e o mundo.

Referências

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Data de submissão: 25/09/2016
Data de aceite: 30/11/2016

 

1 Cumpre um breve esclarecimento do que o termo “defensores de direitos humanos” designa: são militantes que atuam em defesa de seus direitos em diferentes âmbitos (indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais, pessoas que atuam em ONGs, jornalistas) e que, em decorrência de sua luta, são ameaçados (ONU, 2016).

2 Diz-se daqueles que trabalham com direitos humanos apenas em seus confortáveis escritórios, incidindo apenas em espaços de institucionalidade ao invés de atuar junto aos movimentos sociais, coletivos e lideranças que estão na linha de frente das lutas, e portanto se propondo a compartilhar as violações sofridas lá onde elas acontecem.

3 “Mai 68, un pavé dans leur histoire” (2014).

4 Muitos dos hippies dos anos 70 “instalam-se numa marginalidade crônica (...), usando drogas, „viajando‟, experimentando seus corpos (...). Todos têm planos, mas ninguém realiza nada” (Coimbra, 1995, p. 29).

5  Expressão que usamos no sul do Brasil para designar jovens que cresceram em meio a privilégios.



I Danichi Hausen Mizoguchi: Professor do Departamento e do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: danichihm@hotmail.com

II Alice De Marchi Pereira de Souza: Pesquisadora na Organização Não- Governamental Justiça Global, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Doutora em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: alicedemarchi@gmail.com

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