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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.7 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2017
ARTIGOS
A escrita, o silêncio da literatura improrrogável no pensamento blanchotiano
The writing, the silence of literature predictable in blanchotian thought
Escritura, la literature de silencio en el pensamiento blanchotiano inalterable
Alberto AmaralI e Debora SouzaII
I Centro Universitário do Pará (CESUPA), Belém, PA, Brasil.
II Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil.
RESUMO
O presente texto busca traçar um diálogo a partir da noção de escrita, silêncio da literatura do pensamento blanchotiano, em que esta escrita é apresentada como uma literatura improrrogável. Mas o que seria uma escrita improrrogável? Maurice Blanchot, em sua tessitura, apresenta-nos a partir de seus textos ensaísticos que o escrever é fazer da coisa uma imagem que, longe de representá-la, retrata sua ausência, sua impossibilidade de ser sempre a mesma, sua instabilidade no tempo e sua falta de significação. Escrever, portanto, é denunciar o vazio que se esconde por detrás de cada palavra. Lidamos neste texto com uma concepção bastante especial da escrita, esta literatura Improrrogável que resiste aos tempos sombrios vivenciados em nossos dias. Essa ideia foi delineada neste trabalho por meio das concepções Blanchotianas que neste artigo denominamos por uma literatura Improrrogável, questionando a importantes figura do escritor, ou do autor, considerando que Maurice Blanchot não estabelece diferença entre os dois termos. Ele desaparece, em seu sentido convencional. O autor está morto. Mas quem escreve? No sentido blanchotiano, a morte do autor está relacionada à ausência do condutor todo-poderoso que fala a linguagem do dictare. Isto é, produzir o discurso que pede obediência e oferece descanso, “que só demanda a docilidade e promete o grande repouso da surdez interior”.
Palavras-chave: Escrita; Morte; Silêncio; Impossibilidade; Blanchot.
ABSTRACT
The present text seeks to draw a dialogue based on the notion of writing, silence of the Blanchotian literature of thought, in which this writing is presented as an irreplaceable literature. But what would be a non-extendable writing? Maurice Blanchot, in his tessitura, shows us from his essay texts that writing is to make of the thing an image that, far from representing it, portrays its absence, its impossibility to be always the same, its instability in time And its lack of significance. Writing, therefore, is denouncing the emptiness that hides behind every word. We deal in this text with a rather special conception of writing that is this Improrable literature, which resists the dark times experienced in our day. This idea was outlined in this work through the Blanchotian conceptions that in this article we call an Improrable literature, questioning the important figure of the writer, or the author, considering that Maurice Blanchot makes no distinction between the two terms. It disappears, in its conventional sense. The author is dead. But who writes? In the blanchotiano sense, the death of the author is related to the absence of the all-powerful conductor who speaks the language of dictare. That is, to produce the discourse that calls for obedience and offers rest, "which only demands docility and promises the great repose of inner deafness".
Keywords: Writing; Death; Silence; Impossibility; Blanchot.
RESUMEN
En este artículo se traza un diálogo a partir de la noción de escritura, el silencio de la literatura blanchotiano pensamiento, que la escritura se presenta como una literatura no extensible. Pero lo que sería una escritura no extensible? Maurice Blanchot en su tesitura, nos muestra a partir de sus textos ensayísticos, la escritura es hacer algo una imagen que, lejos de representar Retrata su ausencia, su incapacidad de ser siempre el mismo, su inestabilidad en el tiempo y su falta de significación. La escritura, entonces, es reportar el vacío que se esconde detrás de cada palabra. Nos ocupamos en este trabajo con una concepción muy especial de escritura que no es extensible esta literatura, que se opone a los tiempos oscuros que experimentan en la actualidad. Esta idea fue esbozada en este trabajo a través de conceptos Blanchotianas en esta convocatoria artículo de una literatura no extensible cuestionar el escritor importante de la figura, o el autor, mientras que Maurice Blanchot establece ninguna diferencia entre los dos términos. Desaparece en el sentido convencional. El autor ha muerto. Pero, ¿quién escribe? En blanchotiano sentido, la muerte del autor se relaciona con la ausencia de todo poderoso conductor que habla el lenguaje de dictare. es decir, producir el discurso que pide obediencia y ofrece descanso, "que sólo exige docilidad y promete un gran resto de la sordera interior".
Palabras-clave: Escritura; La Muerte; El Silencio; La Imposibilidad; Blanchot.
O presente ensaio tem como finalidade buscar um diálogo em torno da escrita no pensamento blanchotiano – uma ação Improrrogável naquilo que se mostra como uma insatisfação do que vem se realizando nos dias atuais –, estabelecendo uma conversa com vozes da literatura para refletir as principais questões que o pensador francês nos apresenta em sua obra em torno dessa questão.1
Para esse autor, a escrita é uma entrega fascinante à ausência do tempo: quando o presente é suspenso, passado e futuro se revelam e retornam sempre entrelaçados. Escrever é fazer da coisa uma imagem que, longe de representá- la, retrata sua ausência, sua impossibilidade de ser sempre a mesma, sua instabilidade no tempo e sua falta de significação. Escrever, portanto, é denunciar o vazio que se esconde por detrás de cada palavra.
A impossibilidade da fala, de dizer o que realmente interessa advém quando o mundo e seus objetos deixam de ser ilusoriamente familiares ao olhar. O familiar é um atributo do domesticado, daquilo que se fixa no tempo, adquirindo uma identidade. Desvendar o silêncio por detrás das palavras é justamente dissolver as identidades, espantar-se com o óbvio, procurar em cada coisa a face terrível da vida, a matéria orgânica que pulsa, e não define um só sentido. Captar a vida implica o susto de se estar vivo.
Se aquele que escreve, escreve porque ouviu o inaudível, podemos pensar que aquele que escreve é quem olhou o interminável, ainda que desviasse seu olhar para não morrer, tal qual Orfeu ao voltar seu olhar para Eurídice. Esse raciocínio e indagação poderiam resumir o poder-ver, a disponibilidade do leitor para acolher a palavra escorregadia de Blanchot, a experiência de um impossível de que a escrita nos dá conta.
“Escrever é o interminável, o incessante” (1955/1987, p.17). O escritor, para Blanchot, “pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se dirige a ninguém, que não tem centro, que nada revela”. Tudo isso pode ser percebido em O Espaço Literário, livro que faz uma meditação sobre a natureza da literatura, perpassando, querendo ou não, sobre uma morte plural, sobre o silêncio. Este livro se compõe em fragmentos, mas ao mesmo tempo, costurados pela linha de um pensamento de que a linguagem poética se opõe à linguagem do mundo, na medida em que nesta última, “a linguagem cala-se como ser da linguagem e como linguagem do ser” (para permitir que os “seres” falam). Enquanto a fala poética buscaria justamente o silêncio dos seres, seria uma linguagem na qual “ninguém fala e o que fala não é ninguém”. Em outras palavras, uma linguagem essencial, circundada, confirmada e ameaçada pelo silêncio.
A obra de Maurice Blanchot (1907-2003) é uma obra de crítica- escritura, afirma Leila Perrone-Moisés (1993, p.93), em Texto, Leitura, Escritura. O seu discurso, ao sentido barthesiano, é algo intransitivo, não diz nada a não ser ele mesmo. Nesse jogo discursivo, a literatura é vivida como um drama ontológico, cujo segredo todo escritor, solitariamente, tenta decodificar.
A palavra, entretanto, é uma luta silenciosa que evita a violência do embate entre corpos. Quem discute não se atraca; a linguagem, pelo menos, segura os contendores até um certo limite, desarmando a violência franca, tornando-se nossa esperança de garantia de que o mundo poderá viver sem a destruição, sem o embate e sem a tortura.
Na seção chamada “La passion du dehors”, do capítulo “Le grand refus” de L’entretien infini, Maurice Blanchot fala em “le vertige de l’espacement”, que é o reino do fascínio, o espaço da impossibilidade. Mas é o possível, e não o impossível, que tem o poder do não (de negar, de eliminar); isto é, “o homem, cada vez que ele é, a partir da possibilidade, é o ser sem ser”2. (Blanchot, 1969/1998. p 66-67). Blanchot nos diz com essas palavras que por meio da linguagem o ser humano afasta-se de si mesmo, construindo em seu lugar um outro ser pela atribuição de sentidos que o signo lhe propicia. No reino da paixão, o fascínio elimina o poder de atribuir um sentido. Quem está fascinado não vê um objeto real, tudo pertence à paixão do exterior. Escrever é, assim, solidão e fascínio.
A literatura não é imagem dos objetos do mundo, mas a sua própria imagem, imagem da linguagem, linguagem imaginária. Na linguagem cotidiana, a imagem aparece sobre a ausência da coisa. Na linguagem literária, a imagem aparece sob a sua própria ausência, já que ela é a própria linguagem.
O morto é a imagem de si mesmo (e não do vivo que foi), por se tornar mais imponente, mais impressionante (como a arte clássica), do que o vivo enquanto era apenas um ser humano. Não obstante, a relação do cadáver com este mundo é de algo que perde seu valor de uso e de verdade para adquirir uma existência neutra, que na verdade não se assemelha a nada. Por quê? Porque o homem mesmo assemelha-se pouco a si próprio, já que em vida ele era mais uma função do que um ser; o cadáver, por ser um corpo sem utilidade, é apenas imagem, e imagem de nada. Essa condição de Neutralidade na imagem do defunto é conduzido ao cemitério, o lugar da absoluta impessoalidade e anonimato. Esse caráter incomum e neutro da imagem cadavérica relaciona-se às imagens veiculadas pelo texto literário em sua fabulação da impossibilidade.
O escrever a morte e o direito a literaturaEntre várias figurações da morte em Blanchot, destacamos neste texto que, a morte está ligada à aniquilação do autor, que é a exigência profunda da obra. Não é uma mudança de estado de espírito para se conformar ao escrito, não é um distanciamento de si mesmo para penetrar a ficção. Trata-se aqui da supressão da existência do autor no mundo, algo como a relação do suicida com a morte, a busca do inacessível, o ingresso no fascínio da noite da desrazão. Nem o autor nem o suicida sabem o que fazem, ambos atendem a uma exigência não-explicitada, em direção a um ponto que arruína toda ação premeditada.
Parece que ambos, ao fazerem o que quer que seja, só se dão bem enganando-se sobre o que fazem, procurando mais ou menos uma direção que lhes escapa: este toma uma morte pela outra, aquele toma um livro pela obra, mal-entendido a que se confiam às cegas mas que uma consciência surda faz de suas tarefas uma aposta orgulhosa, como se esboçassem uma espécie de ação que só poderia atingir seu termo no infinito. (Blanchot, 1955/1999ª, p.133)3.
Essa concepção de morte liga-se a outro tipo de supressão, que é a morte por acidente da palavra útil, daquilo que ela pode garantir em termos de apaziguamento e conforto. Enquanto a palavra do cotidiano mata a coisa para apoderar-se dela e estabelecer um dictare, isto é, produzir o discurso que pede obediência e oferece descanso, “que só demanda a docilidade e promete o grande repouso da surdez interior”. (Blanchot, 1959/1998, p. 3004) a palavra da literatura só promete inquietação, configurando um acidente que altera a ordem natural da função informativa. Voltando à palavra usual, ela mata o objeto porque este pode morrer, a possibilidade da morte assegura sua existência. A primeira morte blanchotiana encontra-se em sua relação com a autoria, ou a ausência desta: a história se conta sozinha, no tatibitate dos personagens. Não existe escritor; por mais que sua sombra insista em se insinuar aqui e ali, o texto o dispensa. A segunda figuração da morte ligada à escrita no romance é o óbito do valor de uso da palavra. É necessário não confundir a morte da palavra útil, com a qual trabalharemos aqui, com a morte que a palavra útil processa no ato de significar, em que a coisa é aniquilada, destruída, para renascer como ideia. Esse poder de destruição é a força que a palavra traz em seu seio, que tanto pode ser utilizada para trabalhar na compreensão das coisas, quanto para perpetrar uma plurissignificação irredutível. Sobre essa função da linguagem literária, é esclarecedor o texto final de “La littérature et le droit a la mort”, de La part du feu:
Se denominamos essa potência a negação ou a irrealidade ou a morte, tanto a morte, como a negação e a irrealidade, trabalhando no fundo da linguagem, aí significam a chegada da verdade ao mundo, o ser inteligível que se constrói, o sentido que se forma. Mas, logo em seguida, o sinal muda: o sentido não representa mais a maravilha de compreender, mas nos reenvia ao nada da morte, e o ser inteligível significa apenas a recusa da existência, e o cuidado absoluto com a verdade se traduz pela impotência de agir verdadeiramente. Ou então a morte se mostra como a potência civilizatória que resulta na compreensão do ser. Mas ao mesmo tempo, a morte que resulta no ser representa a loucura absurda, a maldição da existência que reúne em si morte e ser, e não é nem ser nem morte. A morte resulta no ser: tal é a esperança e tal é a tarefa do homem, pois o próprio nada ajuda a fazer o mundo, o nada é criador do mundo no homem que trabalha e compreende. A morte resulta no ser: tal é o dilaceramento do homem, a origem de seu destino infeliz, pois pelo homem a morte vem ao ser e pelo homem o sentido repousa sobre o nada; só compreendemos privando-nos de existir, tornando a morte possível, infectando o que compreendemos com o nada da morte, de maneira que, se saímos do ser, caímos além da possibilidade da morte, e a conclusão se torna o desaparecimento de qualquer conclusão.5 (Blanchot 1944/2003A, pp. 330-331).
Esse texto demanda algumas considerações. Blanchot refere-se inicialmente à força de negação das palavras, que conduz ao sentido e à compreensão apaziguadoras, lembrando que negação, irrealidade e morte são potências do mundo real. No momento em que o signo falha ao representar o que havia morrido, emerge o nada da morte, e a verdade não mais se revela, isto é, o escritor não pode agir “verdadeiramente”.
No outro movimento, ligado aos afazeres do mundo, a morte apresenta um poder civilizatório que torna possível a existência dos seres, por mais que ela conduza o homem à infelicidade; assim, a morte está para o homem cotidiano como o sentido está para a palavra útil. Daí a insistência de Blanchot na oração “a morte resulta no ser”: seja loucura, infelicidade ou dilaceramento, só ela possibilita ao homem a compreensão, a apreensão dos sentidos das coisas.
Do outro lado da morte e da compreensão está a literatura. Experimentá-la é cair além da possibilidade da morte, além da possibilidade de compreender, é chegar ao domínio onde “a conclusão se torna o desaparecimento de qualquer conclusão”. As precedentes figurações da morte conduzem à conclusão de que elas se relacionam respectivamente à supressão do escritor e à eliminação da fala cotidiana, e veiculam a idéia de impossibilidade da morte. Essas formas se entrelaçam no conceito magistral de literatura que Blanchot estabelece em “La littérature et le droit a la mort”:
A literatura agora prescinde do escritor: ela não é mais a inspiração que trabalha, essa negação que se afirma, esse ideal que se inscreve no mundo como a perspectiva absoluta da totalidade do mundo. (...) Ela não é a noite; ela é sua obsessão; não a noite, mas a consciência da noite que sem repouso vela para se surpreender e por causa da qual se dissipa sem repouso. Ela não é o dia, ela é o lado do dia que ele rejeitou para se tornar luz. E ela não é mais a morte, porque nela se mostra a existência sem o ser, a existência que mora sob a existência como uma afirmação inexorável, sem começo nem fim, a morte como impossibilidade de morrer.6 (Blanchot, 1944/2003A, p. 317.).
Blanchot argumenta que a literatura não se dedica a produzir sentido no mundo; em vez disso, busca suprimir a palavra comum e substituí-la por sua absoluta ausência – ausência identificada com a escrita literária. Ao contrário de Sartre, que admitia uma função moral e positiva para a literatura, de reconstrução utópica do mundo por meio da arte, Blanchot assinala seu viés desestabilizador, de dúvida e negação do mundo. Essa contradição entre o engajamento sartreano e a inoperância atribuída por Blanchot à literatura foi o motor para que este último escrevesse o ensaio "A literatura e o direito à morte”.
Blanchot afirma que a literatura se inicia no momento mesmo em que ela se torna uma questão – sua própria questão. A pergunta que daí emerge só é respondida pelo e no fazer literário, pois é nesse fazer – nela, literatura – que “repousa silenciosamente a mesma indagação, endereçada à linguagem, por trás do homem que escreve e lê, pela linguagem que se tornou literatura” (Blanchot 1944/1997: 291). Nesses dois termos, tidos como essenciais à literatura – a linguagem e o homem que a produz – repousa o potencial volitivo daquela pergunta misteriosa, e, quem sabe, sua resposta inaudível, inarticulável. Assim, aquele que escreve e aquele que lê são dissolvidos em favor da emergência da experiência da literatura, região que desabilita aquele o aparente binômio excludente. Se a morte do autor é aqui anunciada, é depreciada a noção do escritor apartado do mundo, morador de um único plano reservado às almas “iluminadas”, capazes de produzir literatura. Em vez disso, afirma que aquele que a produziu desaparece para dar lugar à linguagem.
Blanchot apresenta o surrealismo como movimento exemplar desse questionamento sobre a arte, por desestabilizar o caráter sublime da literatura e esvaziá-la de si mesma, tornando-a tão-somente “a revelação desse dentro vazio, que inteira se abre à sua parte de nada, que realize sua própria irrealidade” (Blanchot 1944/1997, p. 292). Tal movimento negativo e destitutivo lhe dá “a condição de ser isolada em estado puro” e atribui-lhe maior “ambição criadora” quando a concilia com um nada e retira- lhe o poder de afirmação ou autenticação do mundo. O movimento surrealista evoca a revelação deste “dentro vazio”, explicitando a ruína da literatura, a negação do seu status de afirmação das coisas, como sua potência; seu distanciamento de uma afirmação totalizante, sua afirmação; seu silêncio, seu poder. Sua nulidade, por colocá-la como ato bruto, dá-lhe autonomia, tira-a de um centro afirmador, marginaliza-a e a desatrela de verdades positivantes (ou afirmativas). Os surrealistas contribuíram com produções literárias, baseadas num tudo abolidor do racional limitante. Aqueles autores traziam o atrevimento de uma certa indiferença em fazer com que suas obras correspondessem a uma demanda do público ou da crítica, gerando uma arte desabridamente ligada à ideia inventiva de liberdade.
Essa operação nem aparta a literatura do mundo nem lhe impõe a necessidade concreta de traduzi-lo e transgredi-lo. Não é dever da literatura transformá-lo, mas acaba por fazê-lo à sua maneira. Apesar de ele gestá-la a partir de um nada ausente do mundo, o escritor precisa destruir a linguagem realizável, erigi-la diferente do que era e assumir a negação daquilo que afirma. Assim, a obra está no mundo graças à sua ausência, pois é na diferença entre o projeto da obra e a própria obra que está o fazer literário; e é nesse lugar de desconstrução que a linguagem afirma- se como elemento constituidor de uma nova realidade.
Blanchot nega a obrigação da literatura existir para agir no mundo, embora seu processo acabe por fazer com que aja. Seu engajamento está nessa displicência enganosa. Seu trabalho está nessa ausência (que é presença em um sentido não correspondente, contra respectivo) do mundo, pois é a partir desse duplo de repetição e descolamento, de representação de uma realidade dada e de refundação de um mundo com suas regras próprias, que a obra se cumpre.
Do outro lado da morte e da compreensão está a literatura. Experimentá-la é cair além da possibilidade da morte, além da possibilidade de compreender, é chegar ao domínio onde “a conclusão se torna o desaparecimento de qualquer conclusão”.
O significado que me chega pela via do significante passa pela supressão do objeto. Por meio da palavra o objeto vem a mim privado de ser, chegando- me apenas o resíduo inalienável de ser. Nomear a mim mesmo é como entoar meu canto fúnebre: o ser evocado surge como ideia e conceito. Falar é, portanto, um “direito estranho”, o direito à ausência, ao aniquilamento, à morte. Hegel, citado por Blanchot, diz que, para tornar-se senhor dos animais, o que Adão primeiro fez foi dar-lhes um nome, “isto é, aniquilá-los em sua existência (enquanto existentes)” (Blanchot, 2003A, p. 3137). O gato então não é mais apenas um gato8, mas também, agora, uma ideia, condenando o homem a conviver com as coisas a partir do sentido que lhes atribuía, tornando-se prisioneiro da compreensão e sabendo que essa claridade não podia findar. O fim dos seres, portanto, é luz, porque a significação nasce na morte deles. A linguagem mata pela possibilidade da morte, isto é, ela mata porque o objeto a que ela se refere está ligado à morte por um laço de essência: os seres morrem porque podem morrer.
Na linguagem corrente, a palavra exclui a existência do que designa, sim, mas remete à própria não-existência daquele ser, que se tornou sua essência. Assim, nomear o gato é fazer dele um não-gato, ou um outro- gato, mas não um cão ou um não-cão. A palavra mata o gato, mas ressuscita-o na ideia. Manter a ideia como definitiva, segura, sem permitir que as palavras retornem às coisas, deixa-nos tranquilos. Assim é a linguagem comum, referencial: ela mata o gato, mas o ressuscita como sua ideia, seu ser, seu sentido; a palavra então segura o ser, retém uma ideia, definitiva, sólida, mas uma ideia que carrega uma perda. Ao ser negada, ao ser suprimida, a coisa se perde, obviamente, e é essa a falta primordial que a linguagem inaugura e que se torna o seu tormento, uma vez que ela esforça-se para buscar o dia, a claridade, não a intimidade do não-revelado.
Na perspectiva de pensador francês Roland Barthes que nos apresenta em sua obra Le plaisir du texte nos fala de uma certa margem subversiva do texto, marcada por uma fenda, um corte, que corresponderia à ideia do descentramento do texto de Blanchot em sua busca da impossibilidade. Essa fenda se abre à desconstrução dos edifícios ideológicos, dos grupos intelectuais, da hierarquia das linguagens, do venerando paradigma gramatical. Tal escrita, que se aproxima da “maravilha inquietante” de Blanchot, desconforta, torna-se às vezes enfadonha, abala as crenças históricas, culturais e psicológicas do leitor, a solidez de seus valores e de suas lembranças, fá-lo entrar em crise com a linguagem. Não é doxa nem paradoxa (Barthes, 1973/1999, p. 27) nem opinião nem contestação; é a dilação, à espera do que nunca virá, que para Blanchot é a esperança da poesia de acessar o inacessível, o momento que precede a emissão da palavra.
Que escrita atormentada é esta que ensurdece o homem para o mundo e não pode distanciar-se, emergindo e submergindo sempre, em qualquer dos casos a soçobrar? O escritor torna-se refém de seu escrito, como um Ahab- Melville arrostando Moby Dick em sua luta inevitável, ou Ulisses-Homero tentando trapacear para saborear o canto mágico sem sucumbir. É o autor assumindo a paixão de seu personagem, tentando desvencilhar-se dele com uma cotovelada desajeitada, a disputar com ele um lugar na escrita, fundindo-se com ele. Ao invés de trazer a escrita para si, ele acaba soçobrando nela, sem saber o que fazer para levar adiante o restante do relato, revelando uma relação doentia com a escritura, cujos elementos não são dispostos com o decoro que a literatura deles espera.
Essa escrita que não se preocupa em estabelecer parâmetros lógicos ou morais ou estéticos faz lembrar o surrealismo de André Breton, que Blanchot considera um dos fundamentos da escritura contemporânea, dedicando ao escritor de Nadja pelo menos três importantes textos: “Réflexions sur le surréalisme”, em La part du feu, (Blanchot, 1944/2003A. pp. 90-102) “L’écriture automatique”, inserido no capítulo “L’inspiration”, de L’espace littéraire, (Blanchot, 1955/1999A. pp. 233-238.) e “Le demain joueur”, de L’entretien infini. (Blanchot, 1969/1998. pp. 597-619). No primeiro deles, Blanchot fala na enorme influência do movimento liderado por Breton na literatura francesa. Para ele, todo escritor moderno, de alguma maneira, tem uma tendência surrealista, embora não exista mais um movimento, e sim um estado de espírito, de “um fantasma, uma brilhante obsessão”. (Blanchot, 1944/2003A, p. 90)9. A grande descoberta do surrealismo para Blanchot é a escrita automática, a história de um “contínuo infortúnio”, segundo Breton. Não é esse método uma invenção fictícia, mas responde a uma das principais aspirações da literatura: “A escrita automática é uma máquina de guerra contra a reflexão e a linguagem”. (Blanchot, 1944/2003A, p. 91.)10. É o momento do homem em que as antinomias perdem o sentido, a cultura tradicional é sufocada, a escrita afasta- se do discurso, aproximando-se da ideia do absoluto, da não-mediação da linguagem. Para Blanchot, o surrealismo não é aquele movimento destruidor que a tradição, talvez por influência do dadaísmo, quis fazer crer; ele contém, ao contrário, um impulso poderoso de construção. A busca de Breton é o imediato, a ausência de mediação entre o ser e as coisas, o mundo, os sentimentos e os sentidos. Exemplo: se eu sofro, e posso transferir esse sentimento imediatamente para a escrita, sem o controle da consciência, eu estarei mais próximo do sentimento em si, sem a mediação da palavra opaca; teríamos então uma prodigiosa continuidade entre o que sofro e o que escrevo, tornando-se as palavras tudo o que sou naquele instante. Blanchot, nesse momento, refere-se à crença de Breton como uma “ilusão singular”, ou seja, algo que não pode ser realizado, o que não diminui sua importância, coerentemente com a atitude do autor de A parte do fogo, que considera a busca do imediato algo que deve ser perseguido sempre na literatura, mas que jamais será alcançado.
Considerando a importância do surrealismo para o pensamento blanchotiano iremos transcrever aqui o verbete que André Breton propõe para a palavra “surréalisme”, e que consta de seu manifesto. O objetivo de Breton era definir o termo de “une fois pour toutes”, para afrontar atitudes de “três mauvaise foi” que contestavam o direito de seu grupo de utilizar o termo:
S U R R E A L I S M O, s. m.
Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe expressar, seja oralmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer controle exercido pela razão, afora qualquer preocupação estética ou moral. E N C I C L. Filos. O surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações negligenciadas até aqui, à onipotência do sonho, ao jogo desinteressado do pensamento. Ele tende a arruinar definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos e a substituí-los na resolução dos principais problemas da vida. Utilizam o S U R R E A L I S M O A B S O L U T O os senhores Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Éluard, Gérard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.11 (Breton, 1943/1963, pp. 37-38).
Essa definição, suficientemente enciclopédica para não deixar dúvidas quanto à posse do nome por Breton e seus amigos, contém os elementos principais analisados por Blanchot na comparação entre o surrealismo e a literatura reivindicada por ele. O que ele chama funcionamento real do pensamento reside na busca de um fato absoluto que propicie ao homem manifestar todas as suas possibilidades. A esperança e o risco de determinar esse ponto é um dos grandes objetivos do surrealismo. É importante lembrar mais uma vez que quanto maior é a distân cia entre onde se está e aonde se quer chegar, tanto mais forte e poderosa se manifesta a esperança. Esperança e desejo, desejo e paixão, pura paixão que se expressa na referência ao jogo desinteressado do pensamento. O que já está dado, o que já está feito não importa: imitar é humilhante, usar as palavras como instrumentos de troca é escravizador, considerar a arte como o divertimento do homem é empobrecedor. O uso artístico das palavras só adquire validade se nele estiver engajado o destino do homem.
O que para alguns parecia um procedimento facilitador, um instrumento de utilização simples e acessível, a escrita automática é na realidade algo extremamente dificultado pela dispensa do talento e da cultura, um movimento que conduz à experiência infinita do inacessível, que não pode ser tocado nem comprovado para que se lhe atribua credibilidade. A ausência de controle da razão, a dispensa de valores estéticos ou morais leva a uma não-escolha extenuante da ordem natural das coisas ou da ordem das leis e normas, a um ponto em que não é mais possível escolher, situação de angustiante desmesura. Esse automatismo psíquico puro, como queria Breton, ou a pura inspiração de que fala Blanchot, é a ociosidade infinita que conduz à superabundância da recusa, a
um ponto extremo em que a inspiração, esse movimento fora das tarefas, das formas adquiridas e das palavras verificadas, adota o nome de aridez, torna-se essa ausência de poder, essa impossibilidade que o artista interroga em vão, que é um estado noturno, ao mesmo tempo maravilhoso e desesperado, onde permanece, em busca de uma palavra errante, aquele que não soube resistir à força excessivamente pura da inspiração”.12 (Blanchot, 1955/1999A. p 241.)
Ao final do ensaio “Le demain joueur”, dedicado a Breton e ao surrealismo, Blanchot alinha alguns termos ligados ao seu pensamento e inspirados pelo movimento bretoniano. São ideias fundamentais para a reflexão blanchotiana: désoeuvrement, désarroi, jeu, aléa, recontre, vertige de l’espacement, inconnu, parole plurielle.13
Blanchot nos lembra a palavra do deus Apolo, quando diz a Admeto, pela boca do poeta Bacchylide: “Tu não passas de um mortal; assim, seu espírito deve nutrir dois pensamentos de cada vez”. (Blanchot, 1969/1998, p.113)14 A maldição do deus condena o homem a se atrapalhar infinitamente com a pluralidade de pensamentos e discursos. A prerrogativa do discurso Uno pertence aos deuses, a verdade é divina.
O silêncio da escrita improrrogávelContinuando essa reflexão em torno da escrita, iremos adentrar nas questões que Blanchot desenvolve em sua obra Le livre a venir para apresentar aos leitores suas reflexões em torno do silêncio da escrita. Uma escrita que aqui estamos denominando de improrrogável.
No quarto capítulo de Le livre a venir (“Où va la littérature?”), quarto subcapítulo (“Mort du dernier écrivain”), deparamo-nos com a provocação: Blanchot simula o desaparecimento de “le petit mystère de l’écriture”, com o emudecimento da última voz literária. Adviria então um imenso silêncio, proveniente dessa voz que se calou, desse pensamento que se extinguiu, o grande silêncio resultante da cessação desse faustoso aparato “que é a palavra das obras acompanhada do rumor de sua reputação”.15 (Blanchot, 1959/1998, p. 297).
Esse não é certamente o silêncio blanchotiano; é apenas o formidável juízo comum, que se incomodará, sim, quando os autores da tradição se calarem. Para Blanchot, não haverá propriamente um silêncio, porque este já existia, já que as obras canônicas se constroem pelo silenciamento do ruído do mundo, isto é, a escrita convencional deve ordenar e enquadrar a linguagem útil, a voz de todos, transformando-a em algo especial. O que ocorrerá propriamente será, quando “cette lumière” se apagar, um “recul du silence.”, uma fenda na tessitura do silêncio, que anunciará um novo ruído da “ère sans parole”. Nada muito barulhento; apenas um murmúrio, que não afetará o barulho das tradições da sociedade dos homens e de sua ordem confortadora. Será, todavia, um ruído incessante, portador daquilo que “nunca foi dito e não o será jamais”.16 (Blanchot, 1959/1998. p.298). Esse murmúrio é produto da impossibilidade de a “nova literatura” enquadrar a fala que vem do mundo.
Temos aqui Maurice Blanchot na plenitude de sua veia ambígua e deslizante, além de extremamente provocadora. O “último escritor” a que ele se refere é certamente o escritor da tradição, aquele que ganha prêmios literários, vende milhares de cópias e provoca um vazio social com sua retirada de cena, como um Rimbaud mais eficiente que o real, que alimenta o abalo feliz da tribo mais com sua atitude de não escrever do que propriamente com sua escrita. Há vários indícios disso, em expressões como “le petit mystère de l’écriture”, ou seja, a escrita que impressiona, pour épater le bourgeois, sutilmente diminuída pelo adjetivo “petit”. Ou como “donner un peu de fantastique à la situation”, na referência a um suposto Rimbaud “encore plus mistique que le véritable’. Se as pessoas se chocam com a atitude incrível, irresponsável e instigante de um poeta promissor que se retira para traficar armas num país longínquo e desconhecido, que dizer de tal ser tendo seu comportamento magnificado?
Esse “fin sans appel” provocaria um abalo social e cultural. A intenção de Blanchot é certamente irônica, por tudo o que conhecemos de seu pensamento acerca da literatura. Tem mais: o “silêncio” que adviria é aquele ao qual as pessoas se referem “delicadamente” quando algum escritor morre; há uma sociedade culta e educada que polidamente se ressente da perda dos grandes homens, notadamente se eles empunham uma pena.
Encontra-se aí o silêncio da suprema pompa “qu’est la parole des oeuvres accompagnée de la rumeur de leur réputation”. Blanchot é o homem das palavras movediças, deslizantes, que beiram o cinismo. Não se pode pensar nas palavras de nenhuma obra daquilo que ele considera literatura como sendo ostentação, superior cerimonial literário, palavras ritualísticas do conforto, da segurança, do apaziguamento. Muito menos acompanhadas do barulho dos aplausos e rapapés. Esse escritor e essas obras que encenam esse hipotético emudecimento encontram-se evidentemente na tradição literária ocidental.
Retomando o início do texto, ele fala desse desaparecimento sem que ninguém o perceba, como se houvesse uma espécie de passagem sutil de um estado a outro. Pode-se inferir então que esse desaparecimento se daria de maneira imperceptível para a sociedade; isto é, a literatura tradicional, ruidosa, desapareceria em meio ao barulho do dia, sem que o mundo se desse conta disso, e permaneceria apenas “a” literatura.
O que advirá então? Um outro tipo de silêncio, a dilaceração do silêncio comportado das belas letras, um murmúrio incessante, que o escritor não consegue conformar. Quando Blanchot menciona essa era sem palavra, ele certamente refere-se à morte da palavra útil no texto literário; as palavras não mais dizem, portanto são palavras do silêncio, ou não-palavras, e não mais as palavras que atribuem leis ao ruído do mundo, que se identifica com a linguagem cotidiana dos homens.
A nova modalidade de ruído consiste em um vazio “um murmúrio ligeiro, insistente, indiferente”; “para baixo do mundo comum das palavras cotidianas”.17 (Blanchot, 1959/1998, p. 297). É uma palavra que está abaixo de tudo o que é dito. Impor silêncio a essa palavra é a missão do escritor, no sentido de tornar sua obra uma “riche sejour de silence” contra a “imensité parlante”. Deve-se entender esse escritor ainda como sendo o escritor da tradição, que articula a defesa de sua obra contra a palavra espectral ordenando-a e organizando-a. Pode-se identificá-lo com o clássico, o humanista, que já não carrega “les signes sacrés”.
Como uma estátua, ou uma pintura, a obra literária “se eleva e se organiza como uma potência silenciosa que dá forma e firmeza ao silêncio e pelo silêncio”.18 (Blanchot, 1959/1998,pP. 298). Essa potência silenciosa é relacionada à soberania decorosa da forma clássica, que impõe silêncio à imensidade falante. A obra convencional cala o murmúrio incessante para lhe conferir sentido. Sua obra é a palavra literária da tradição portadora do silêncio que organiza a palavra errante, do basta que corrige seu erro. Esse é o silêncio que se calaria com a morte do último escritor, o qual é, evidentemente, o clássico, que Blanchot denomina ironicamente “grande autor”.
Escrever e produzir comportadamente é buscar as verdades que faltam ao espaço da desmesura, é adormecer o tormento mágico que paralisa a lucidez, é apaziguar e enganar a impossibilidade de dormir. Esse movimento, que leva ao espaço do sono e do repouso, é o que Blanchot chama, numa locução carregada de ironia, “escrever verdadeiramente”. A expressão designa, por conseguinte, a escrita convencional, a que não sucumbe à exigência profunda do ato de escrever, a que atribui um sentido às coisas na ausência delas, a que preserva um conteúdo, lutando para não se manter toda ela interior a si mesma.
É curioso que, para Blanchot, as bibliotecas bem organizadas (outra ironia) conservam as grandes obras clássicas, que, mesmo condicionadas ao seu cerimonial limitador, guardam dentro de si um “centre d’illisibilité”, “um autre enfer” que convive com o silêncio canônico. É o que ocorre, por exemplo, com Hamlet, que “sob a terra, velha toupeira, aqui e ali, erra sem poder e sem destino”.19 (Blanchot, 1959/1998, p. 299). A fala de Hamlet em sua queixa vagabunda e errante é a fala que se opõe à fala da ditadura, aquela que manda e nunca duvida, que ostenta a clareza da palavra de ordem, réplica parodística do rumor, máscara, mentira que se dirige a nós sem desviar- se de nós, ao passo que a outra é desviante. O discurso do escritor da tradição é, portanto, a expressão metamorfoseada do rumor inicial, que se disciplina para não lesar os homens.
Impor silêncio ao murmúrio incessante que se ouve no mundo ainda é a missão do escritor reivindicado por Blanchot, embora seja agora um silêncio de outra ordem, produto de uma metamorfose essencial. Essa metamorfose se manifesta inicialmente pela sucumbência do escritor ao chamado da obra, transformação a que Ulisses/Homero resiste fazendo-se amarrar, e a que Ahab/Melville e Orfeu se entregam sem restrições. A transmutação inicial se alastra de nossa realidade em direção ao imaginário, o outro tempo, tempo por vir, quando se faz ouvir o canto enigmático, canto também por vir. Esse tempo é povoado pelos seres imaginários, imagens errantes, sempre presentes e sempre ausentes.
Tal entrega é a que se verifica em Boa tarde às coisas aqui em baixo (Antunes, 1974/2003) de António Lobo Antunes, desvelando uma outra potência silenciosa da palavra que não mais organiza a linguagem produzida pelos homens, mas que apresenta o mundo como se não houvesse mundo, sem valor e sem conselho, sem um autor soberano que mostre como as coisas funcionam, mas um escritor desvirtuado que resiste ao apelo de “fazer obra”, ou seja, de produzir textos exemplares, e naufraga na exigência do texto. No cenário absurdo de uma guerra sem legitimação, sem verdade, em que tudo é exorbitante, os seres erram sem vislumbrar horizontes nem possibilidades.
Nesse sentido, a escrita literária (Improrrogável), na concepção blanchotiana, assemelha-se à palavra sagrada em seu silêncio majestoso, que carrega a estranheza, a desmesura, o risco e a força que escapa a todo cálculo e recusa qualquer garantia. Essa semelhança, para Blanchot, reside no fato de que tanto o sagrado quanto o literário são desprovidos de um sentido e de uma origem. Sem autor e sem começo, essa palavra vazia dá voz à ausência, assim como a palavra sagrada fala na ausência dos deuses, pelo oráculo.
Há, entretanto, uma diferença fundamental: no sagrado a linguagem é subtraída para deixar falar o divino, enquanto a palavra literária torna-se o silêncio sem verdade e sem divino, impossibilitado de falar, como a palavra do sagrado a que se retira o sagrado, fazendo-se linguagem.20
A epígrafe, que contém a frase Boa tarde às coisas aqui em baixo, é do livro Bartleby y compañía, do escritor espanhol Enrique Vila-Matas, que trata de escritores que se calam, como Artur Rimbaud e Valéry Larbaud, enunciador da sentença. O título do livro é inspirado naquele famoso personagem de Herman Melville, que repete incessantemente a fórmula “I would prefer not to”. Ele é a recusa da escrita da pompa, do ritual, que também é a recusa de Blanchot ao reivindicar a escrita-silêncio.
O copista de Melville relaciona- se ao Boa tarde às coisas aqui em baixo de Lobo Antunes e à noção de literatura de Blanchot por sua característica de não negar nem afirmar, provocando o silêncio da massa falante sem construir nada de exemplar no lugar. Não se trata de negar o mundo, mas de preferir a não-preferência, ou seja, ao copista não interessa intervir no mundo, mas afastar-se dele. Se Bartleby se negasse simplesmente a cumprir as ordens, ele seria apenas um rebelde, um contestador, um produto lógico da democracia, e estaria preservando uma importante função da linguagem.
Se ele as cumprisse humildemente, como Turkey, instigante personagem de Melviile, que envelhece obedecendo “with submission, sir”, seria um homem adaptado e medíocre. Não obstante, Bartleby não nega nem afirma: seu “I would prefer not to” acompanhado da virada de costas conduz à indiscernibilidade, à indeterminação. Aqui, o normal inteligível é suspenso para dar lugar a um longo silêncio sem solução, sem referências e sem pressupostos. Essa lógica de preferência elimina a lógica da linguagem, conduzindo-a a um estado de suspensão, nas palavras de Deleuze:
Pura passividade paciente, como diria Blanchot. Ser enquanto ser, e nada mais. Pressionamo-lo para dizer sim ou não. Mas se dissesse não (cotejar, fazer recados...), se dissesse sim (copiar), depressa seria vencido, considerado inútil, e não sobreviveria. Ele só pode sobreviver rodopiando numa suspensão que mantém toda a gente a distância. O seu meio de sobrevivência é preferir não cotejar, mas por isso mesmo também não preferir copiar. (Deleuze, 1993/2000, p. 100.).
O silêncio de Bartleby é, portanto, a força que cala o “murmúrio incessante”, sem se lhe opor nem pretendendo organizá-lo. Ele parte da suspensão da ordem vigente do sentido pela absolutização do imaginário e da prática literária; não há recusa deliberada, não há reorganização do espaço ocupado: há apenas uma entrega irresistível a um chamado. Esse abandono conduz à noção blanchotiana de neutralidade da palavra literária que, independentemente de seu conteúdo, não pode parar de falar, mantendo um silencioso vazio de sentido.
A frase-título do romance igualmente aponta para o Improrrogável, para o indecidível. O escritor Valéry Larbaud passou os últimos vinte anos de sua vida em uma cadeira de rodas, e ria-se da vaidade do mundo. O enunciador do texto considera intraduzível a frase Bonsoir les choses d’ici bas, mas a traduz e a interpreta. “As coisas aqui em baixo”, segundo ele, representam o mundo e suas futilidades, e o “Boa tarde” sugere o crepúsculo, o dia que finda, isto é, o término da ação sob a luz diurna. A frase seria, assim, uma saudação cínica e ao mesmo tempo uma despedida da tolice do mundo.
Fugindo às facilidades que essa versão proporciona, pode-se explorar mais amiúde o fato de que Larbaud “sabía que la frase no significaba nada”21, e abordá-la numa perspectiva blanchotiana. O mundo de cima para Blanchot é o que corresponde à verdade do dia, isto é, um mundo belo, seguro e justo, portador de uma feliz linguagem de uma elite que pretende falar honrosamente para todos e combate quem se opõe à necessidade de paz, de simplicidade e de sono. O mundo de baixo revela-se então como espaço literário por excelência, onde impera a desordem e a insegurança, sem referências nem pressupostos: “Edifica- se à maneira do dia, mas existe sob a terra, e o que se eleva se afunda, o que se ergue soçobra”.22 (Blanchot, 1955/1999A, p. 221.). Esse é o mundo de Bartleby, do silêncio literário, assim como é também o espaço de Valéry Larbaud, um universo Improrrogável.
Ele é também esse mundo de baixo, que não é o mundo das vaidades e sim do inferno de Orfeu, que Blanchot identifica com “um centro de ilegibilidade onde vela e espera a força entrincheirada dessa palavra que não é palavra, suave hálito do eterno repisar”23 (Blanchot, 1959/1998, p. 299). Esse é o espaço onde transita e se lamenta, e ainda é o território por onde se transitam para que se possa ouvir essas vozes improrrogáveis, sons, que nesses dias individualizados são apagados pela política golpista que estamos vivenciado em nossa atualidade. No qual estamos voltando para a era das trevas, das perdas de nossas conquistas e direitos, com o avanço de uma extrema direita racista.
Ultrapassar os limites do decoro e da ordem é entregar-se à outra noite, onde habitam o segredo, o obscuro, a paixão, a união impossível, a repetição sem fim, o que é sem fundamento e sem medida. O que promete ser o âmago da noite, a noite essencial, é, entretanto, o momento da entrega ao não-essencial, da perda de toda possibilidade. Esse é o momento que deve ser evitado em nome da ordem, como se recomenda ao viajante do deserto evitar a sedução das miragens, como se aplaude em Ulisses sua resistência ao canto das sereias.
Há, por fim, os que terminam por entregar-se mediante uma exigência sem lei, sem método, sem dia, sacrificando a verdade e a serenidade sem conseguir, entretanto, se desvincular delas. Essa entrega, segundo Blanchot, só é possível pela negligência, que faz com que o escritor improrrogável supere o domínio da ordem e busque neste ponto a incerteza, como Orfeu a lançar seu olhar transgressor a Eurídice. É nesse sentido que convocamos a ideia de negligência relacionada a essa escrita atormentada.
Nesse momento há uma violência que se abre e se fecha, que atormenta e dilacera, entre a medida da obra que se faz poder e a exorbitância da obra que deseja a impossibilidade. Na obra como começo não há jamais obra (ação, interferência no mundo); ali reina a inação, a ociosidade, o silêncio. Segundo Blanchot afirma em La bête de Lascaux,
a obra é então a intimidade em luta de momentos inconciliáveis e inseparáveis, comunicação dilacerada entre a medida da obra que se faz poder e a desmesura da obra que quer a impossibilidade, entre a forma onde ela se enquadra e o ilimitado a que ela se recusa, entre a obra como começo e a origem a partir de que não há mais obra, onde reina a inação eterna.24 (Blanchot, 1958/1982, p. 21).
Essa des-obragem, ou inação, ligadas ao silêncio da obra, relacionam- se, no pensamento blanchotiano, ao sono e à morte. É evidente que sono e morte não se referem aqui àquilo que conduz ao silêncio repousante, o sono reparador e a morte verdadeira. Temos então uma outra noite e uma outra morte, cuja audição equivale a caminhar para o silêncio. A palavra que se ouve nesta outra noite, e que está sempre a morrer na outra morte, “não é mais que um sussurro imperceptível, um ruído que mal se distingue do silêncio, o escoamento de areia do silêncio”.(Blanchot, 1955/1999ª. P 221). Esse silencioso é um escoar de areia de que fala Blanchot e pode ser ouvido no “barulho das fontes sob as pedras” e no “bulício das samambaias do horto” que aparecem no poema de Henriqueta Lisboa, (Lisboa, 1971/2004. p.23) “noite com uma nova estrela”, que é o espaço da poesia, e do silêncio da madrugada, que prenuncia “sem dúvida”, um evento “que já não é o grito da aurora / ao macular de sangue a túnica”, isto é, algo que não faz parte da ordem natural das coisas, que não é um processo de atividade/repouso pertencente à obra do mundo, e sim a um augúrio incessante que dimana com “grave mistério de reposteiros”. Isso é ouvir a outra noite:
ouve a outra noite, ouve-se a si mesmo, ouve o eco eternamente repercutindo em sua própria caminhada, caminhada em direção ao silêncio, mas o eco lhe é reenviado como a imensidão murmurante, em direção ao vazio, e o vazio é agora uma presença que vem ao seu encontro.25 (Blanchot, 1955/1999A, p. 222).
Essa noite da obra sem obra se identifica com o espaço da outra morte, BLANCHOT, 1999A. p. 227. “não mais morte dessa tranquila morte do mundo que é repouso, silêncio e fim, mas dessa outra morte que é morte sem fim, prova da ausência de fim”. (Blanchot, 1955/1999A, p. 227)26. Essa repetição incessante e sem direito à morte, nos leva a perguntar com Blanchot se a literatura aí não pode ser acusada de ser uma fala tagarela ao invés de veicular o silêncio que ela prometia atingir.
Um dos questionamentos que fazemos neste texto funda-se na figura do escritor, ou do autor, considerando que Maurice Blanchot não estabelece diferença entre os dois termos. Ele desaparece, em seu sentido convencional. Em suas obras ficcionais Maurice Blanchot tende à figurar o autor como aquele que se deixa levar e se perder pela escrita, o que Blanchot considera um anátema do escritor, exemplificado no mito de Orfeu, que desce aos infernos em busca de Eurídice. Aqueles que resistem, e conseguem não soçobrar, Blanchot os relaciona a Ulisses, que ouviu o canto das sereias amarrado ao mastro para não se deixar seduzir pelo que Blanchot chama a exigência profunda da obra.
Este é um componente fundamental da ideia de escrita da literatura reivindicada por Blanchot: paixão. É sofrimento, fanatismo, atração irresistível, exigência a que o escritor não pode furtar-se, por mais que tente a via da ordenação e do enquadramento. Afundar é imperioso, e o que faz o homem soçobrar é a arte.
O tema da impossibilidade da morte, às vezes pouco compreendido, é uma questão fundamental do pensamento blanchotiano, Não é apenas um elemento circunstancial interno a este ou àquela obra, não se relaciona ao fato de este ou aquele personagem morrer ou deixar de morrer. Esse tema resume toda a noção da escrita improrrogável, como algo fora do poder, da possibilidade. A morte é que dá sentido à vida, que torna o mundo possível, porque ela pertence ao reino do humano, ela é o fim. Fim é objetivo, é busca dentro do finito, do que pode morrer. Ao proclamar a impossibilidade da morte na literatura, Blanchot quer enfatizar o caráter inumano do texto literário, por mais que se considere o dominó de semelhanças que a literatura estabelece em relação ao mundo, a semelhança da semelhança da semelhança... até assemelhar-se a nada. Surge aí o neutro, o désoeuvrement.
A própria recusa da morte, a construção do espaço de permanência na terra, pertence ao mundo da possibilidade, e constrói-se pela linguagem. A recusa da morte, como a própria morte, confere sentido à existência. Entretanto, o tom de impossibilidade é dado pelos destinos atribuídos às personagens e às concepções de escrita dos escritores do livro dentro do livro.
Para Blanchot, ou a ideologia sacrifica o romance, que deixa o espaço literário, ou o romance sacrifica a ideologia ao soçobrar, tornando-se literatura. No capítulo “Les romans de Sartre”, de La part du feu, o filósofo afirma que a condição mesma da obra literária, de ser ambígua e equivocada, ao construir sua própria realidade, estabelece a estatuto de mentira da tese na escrita literária: o triunfo da ideologia no texto lhe solapa a verdade. O inverso é verdadeiro.
Quanto à utilização do signo linguístico, em meio ao mundo vulgar dos acontecimentos encenados despontam o inusitado das imagens, a ironia, o contraste, a repetição. A ação não obedece a uma sequência linear, os planos espaciais e temporais se superpõem e se imbricam, os seres se metamorfoseiam em personificações, animalizações e reificações. A escrita é fragmentada, errante, dispersa.
ConclusãoPara concluirmos nos cabe falar um pouco dessa voz improrrogável que é o pensamento de Maurice Blanchot que merece não obstante um estudo à parte. Maurice Blanchot também possui uma escrita muitas vezes fragmentária, dispersiva, como a própria literatura que ele reivindica, mas é surpreendentemente bem fundamentada, inequívoca, que vai ao cerne dos problemas que a literatura apresenta, sem se deixar levar por soluções aparentemente lógicas e, portanto, fáceis. Às vezes, três ou quatro décadas que separam um texto do outro não conseguem abalar a solidez do pensamento do autor, por mais que seu próprio estilo de escrita sofra mudanças, partindo, por exemplo, de textos mais convencionalmente ensaísticos, como em L’espace littéraire, para uma maior fragmentação e ausência de conclusões explícitas, como em L’écriture du désastre. Percebe-se que nas obras do pensador, ele nos arremessa em um jogo de ideias e novas abordagens, perceptível no avançar de suas obras e o fundamental no pensamento blanchotiano subjaz a todos os escritos como uma poderosa laje de rocha firme, inabalável.
Um outro obstáculo que o texto blanchotiano apresenta ao leitor é a não- explicitação conceitual dos termos utilizados. Assim, palavras como “verdade”, “realidade”, “beleza”, “obra”, podem assumir significados às vezes opostos em um mesmo trecho, tornando-o confuso para o leitor inadvertido, uma vez que o autor não se preocupa em definir didaticamente os termos nos locais em que eles aparecem. O mesmo se pode dizer das oposições, que normalmente nem se excluem nem se resolvem dialeticamente, como dia/noite, morte/vida, verdadeiro/falso. Cumpre mencionar ainda uma outra “armadilha” do texto blanchotiano: sua profunda ironia em certos momentos, que pode passar despercebida e mudar perigosamente a direção de uma determinada ideia ou conceito, provocando confusões que levam a leitura a tomar rumos insolúveis.
Tomando-se algumas precauções, e perseguindo-se atentamente as ideias do autor, sua leitura torna-se uma experiência profundamente prazerosa e emocionante, que nos surpreende a todo momento, assumindo figurações incrivelmente multifacetadas conforme o ponto-de-vista que se adota na leitura. É impressionante como Maurice Blanchot consegue realizar em seus próprios textos suas concepções de escrita, e estamo-nos referindo aos textos ensaísticos. É óbvio que a observação vigora com mais intensidade ainda para os textos ensaístico- ficcionais ou apenas ficcionais.
Referências
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Data de submissão: 20/09/2016
Data de aceite: 01/11/2016
1 Todas as traduções e citações do Francês foram feitas pelo autor Alberto Amaral.
2 - “l’homme, chaque fois qu’il est, à partir de la possibilité, est l’être sans être”.
3 - Il semble que tous deux ne réussissent à faire quelque chose qu’en se trompant sur ce qu’ils font, ils regardent au plus près: celui-ci prend une mort pour l’autre, celui-là prend un livre pour l’oeuvre, malentendu auquel ils se confiant en aveugle, mais dont la sourde conscience fait de leur tâche un pari orgueilleux comme s’ils ébauchaient une sorte d’action qui ne pourrait qu’à l’infini atteindre le terme.
4 - “qui ne demande que la docilité et promet le grand repos de la surdité interieure”.
5 - Si nous appelons cette puissance la négation ou l’irréalité ou la mort, tantôt la mort, la négation, l’irrealité, travaillant au fond du langage, y signifient l’avénement de la vérité dans le monde, l’être intelligible qui se construit, le sens qui se forme. Mais, tout aussitôt, le signe change: le sens ne représente plus la merveille de comprendre, mais nous renvoie au néant de la mort, et l’être intelligible ne signifie que le refus de l’existence, et le souci absolu de la vérité se traduit par l’impuissance à agir vraiment. Ou bien la mort se montre comme la puissance civilisatrice qui aboutit à la compréhension de l’être. Mais em même temps, la mort qui aboutit à l’être représente la folie absurde, la malédiction de l’existence qui reunit en soi mort et être et n’est ni être ni mort. La mort aboutit à l’être: tel est l’espoir et telle est la tache de l’homme, car le néant même aide à faire le monde, le néant est créateur du monde en l’homme qui travaille et comprend. La mort aboutit à l’être: telle est la déchirure de l’homme, l’origine de son sort malheureux, car par l’homme la mort vient à l’être et par l’homme le sens repose sur le néant; nous ne comprenons qu’en nous privant d’exister, en rendant la mort possible, en infectant ce qui nous comprenons du néant de la mort, de sorte que, si nous sortons de l’être, nous tombons hors de la possibilité de la mort, et l’issue devient la disparition de toute issue.
6 - La littérature se passe maintenant de l’écrivain: elle n’est plus l’inspiration qui travaille, cette négation qui s’affirme, cet ideal qui s’inscrit dans le monde comme la perspective absolue de la totalité du monde. (...) Elle nést pas la nuit; elle en est la hantise; non pas la nuit, mais la conscience de la nuit qui sans relâche veille pour se surprendre et à cause de cela sans répit se dissipe. Elle n’est pas le jour, elle est le côté du jour que celui-ci a rejeté pour devenir lumière. Et elle n’est pas non plus la mort, car en elle se montre l’existence sans l’être, l’existence qui demeure sous l’existence comme une affirmation inexorable, sans commencement et sans terme la mort comme impossibilité de mourir.
7 - “c’est-àdire qui’l les anéantit dans leur existence (en tant qu’existants)”.
8 A referência de Blanchot ao gato alude ao artigo de Jean-Paul Sartre, publicado em 1945, “What is Literature?”, em que ele defende a littérature engagée. Segundo Sartre, “The function of a writer is to call a cat a cat. If words are sick, it is up to us to cure them. (...) There is nothing more deplorable than the literary practice which, I believe, is called poetic prose and which consists of using words for the obscure harmonics which resound about them and which are made up of vague meanings which are in contradiction with the clear meaning”. (SARTRE, 1932/1998. p. 228). Trad.: “A função de um escritor é chamar um gato de gato. Se as palavras estão doentes, cabe-nos curá-las. (...) Não há nada mais deplorável do que a prática literária que, acredito, é chamada prosa poética e que consiste em usar palavras para a harmonia obscura que ressoa em torno delas e que é feita de significados vagos, em contradição com a clareza de significado”.
9 - “un fantôme, une brillante hantise”.
10 - “L’écriture automatique est une machine de guerre contre la réflexion et le langage”.
11 - S U R R É A L I S M E: Automatisme psychique pur par lequel on se propose d’exprimer, soit verbalement, soit par écrit, soit de toute autre manière, le fonctionement réel de la pensée. Dictée de la pensée, en l’absence de tout contrôle exercé par la raison, en dehors de toute préoccupation esthétique ou morale. E N C Y C L. Philos. Le surréalisme repose sur la croyance a la réalité supérieure de certaines formes d’associations négligées jusqu’a lui, à la toute- puissance du rêve, au jeu désintéressé de la pensée. Il tend à ruiner définitivement tous les autres mécanismes psychiques et à se substituer à eux dans la résolution des principaux problèmes de la vie. Ont fait acte de S U R R É A L I S M E A B S O L U MM. Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Éluard, Gérard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.
12 - un point extrême où l’inspiration, ce mouvement hors de tâche, des formes acquises et des paroles verifiées, prend le nom d’aridité, devient cette absence de pouvoir, cette impossibilité que l’artiste interrogue em vain, qui est un état nocturne, à la fois merveileeux et désesperé, où demeure, à la recherche d’une parole errante, celui qui n’a pas su résister à la force trop pure de l’inspiration.
13 - Esses termos são comentados sucintamente a seguir: Désoeuvrement: já aludimos à dificuldade de tradução desta palavra, considerando o pensamento blanchotiano. Citando Michel Foucault, Blanchot atribui a ela o motivo para a ideologia corrente taxar de “loucura” tudo aquilo que ela rejeita, ou seja, tudo aquilo que ameaça a ordem reinante na sociedade. Assim como a ociosidade é confinada no asilo, a ociosidade da obra permanece escondida dentro dela. Entretanto, a ausência de obra sempre cita a obra fora dela mesma, conclamando-a em vão a se tornar ociosa. L’absence de l’oeuvre, o aleatório entre a razão e a desrazão, não é a “loucura”, mas pode-se dizer que a loucura está para a sociedade assim como o désoeuvrement está para a literatura. Désarroi, désarrangement (desordem, confusão, desarranjo): o surrealismo não é nem uma filosofia nem uma ação política nem uma nova forma de moral nem uma proposta de renovação literária, ao mesmo tempo em que é tudo isso. Mais do que estabelecer um objetivo, ele é uma experiência que expõe o saber, que não preexiste à escrita, à força neutra da desordem. Como experiência daquilo que não obedece mais à ordem reinante da experiência, o désarroi é o perigo por meio do qual se introduz no espaço da obra o jogo de l’absence del’oeuvre. Jeu: o jogo é o processo que permite a entrada no desconhecido, e está ligado à vertigem do espaçamento. Aléa: o acaso é o que não cessa de chegar e entretanto só chega excepcionalmente, de maneira incerta e sem promessa nem aviso, a todo momento mas em um tempo impossível de determinar, o tempo da surpresa, do improvável. A escrita automática é a infalibilidade do improvável. Rencontre: juntamente com o jogo e o acaso, o encontro remete ao novo espaço, a vertigem do espaçamento. O encontro é produto do acaso. Vertige de l’espacement: reino do fascínio, da paixão, espaço da impossibilidade. A paixão, o fascínio afastam da linguagem o poder de atribuir sentidos. Quem está fascinado não vê o mundo, tudo o que vê pertence à paixão do exterior. Inconnu: o jogo, o désoeuvrement permitem a aproximação do desconhecido, que se instala nos confins da arte e da vida, lugar de tensão e fascínio. O desconhecido não faz parte do saber social, da doxa. Parole plurielle: a palavra plural é o discurso neutro, infinito, sem poder, em que cada palavra é seu próprio eco indefinido. É o discurso literário por excelência, o discurso da desigualdade e da diferença.
14 - “Tu n’es qu’un mortel; aussi ton esprit doit-il nourrir deux pensées à la fois”.
15 - “qu’est la parole des oeuvres accompagnée de la rumeur de leur réputation”.
16 - “n’a pas été dit et ne le sera jamais”.
17 - “um murmure léger, insistant, indifférent”, que nos atrai “au-dessous du monde commun des paroles quotidiennes”.
18 - “s’élève et s’organise comme une puissance silencieuse qui donne forme et fermeté au silence et par le silence”.
19 “sous la terre, vieille taupe, de-ci de- là, erre sans pouvoir et sans destin”.
20 Para Blanchot, a literatura do sagrado, que fala dos deuses, tende a encobrir a linguagem como arte e a considerá-la veículo do sagrado. Quando o sagrado deixa de ser o mais importante do texto, a linguagem literária passa a falar como arte.
21 VILA-MATAS, 2000/2002. p. 33. Trad.: “sabia que a frase não significava nada”.
22 “On édifie à la manière du jour, mais c’est sous terre, et ce qui s’élève s’enfonce, ce qui se dresse s’abîme”
23 un centre d’illisibilité où veille et attend la force retranchée de cette parole qui n’en est pas une, douce haleine du ressassement éternel”
24 -.l’oeuvre est alors l’intimité en lutte de moments irréconciliables et inséparables, communication déchiré entre la mesure de l’oeuvre qui se fait pouvoir et la démesure de l’oeuvre qui veut la impossibilité, entre la forme où elle se saisit et l’illimité où elle se refuse, entre l’oeuvre comme commencement et l’origine à partir de quoi il n’y a jamais oeuvre, où règne le désoeuvrement éternel
25 - entend l’autre nuit, s’entend lui-même, entend l’écho éternellement répercuté de sa propre démarche, démarche vers le silence, mais l’écho le lui renvoie comme l’immensité chuchotante, vers le vide, et le vide est maintenant une présence qui vient à sa rencontre.
26 “non pas mort de cette tranquille mort du monde qui est repos, silence et fin, mais de cette autre mort qui est mort sans fin, épreuve de l’absence de fin”
I Alberto Amaral: Professor do Centro Universitário do Pará (CESUPA), Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, pesquisador dos grupos de pesquisas Arte, Corpo e Conhecimento (UFPA/CNPq) e Pensamento Blanchotianos e de Pensamento do Fora (UNB/CNPq). Curador e Crítico de arte independente, dedica seus estudos no campo da Filosofia da diferença francesa e sua relação com a Psicanálise. Tendo como seu principal objeto de pesquisa a escrita/escritura da arte improrrogável na historiografia da arte paraense dos anos 70,80 e 90. Tendo como seu principal referencial teórico (Jacques Rancière, Jacques Lacan, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Georges Bataille, Maurice Blanchot, Georges Didi-Huberman e Jacques Derrida). Tendo publicações no âmbito nacional e internacional. E-mail: albertoamaral@gmail.com
II Debora Souza: Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Pará, pesquisadora do grupo de pesquisa Arte, Corpo e Conhecimento (UFPA/CNPQ), desenvolve suas pesquisas em torno da questão da Escrita e da Imagem do trauma na Arte e na Literatura Brasileira. E-mail: deborasuely@yahoo.com.br