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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2017

 

SEÇÃO ESPECIAL - TEMAS EM DEBATE 2016

 

Crise, Crítica e Clínica

 

Crisis, Critique and Clinical

Crisis, Crítica y Clínica

   

 

Bruno Eduardo Procopiuk WalterI e Gerson Smiech PinhoII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

Partindo da problematização do conceito de “crise”, o artigo tem por intuito apresentar uma discussão a respeito da “crítica” e da “clínica”, dois operadores conceituais de especial importância para as perspectivas teóricas contemporâneas em Psicologia Social. Com Artaud, propõe-se pensar um modo de se relacionar com a crise a partir de caminhos diferentes daqueles que se sustentam em modelos transcendentes que buscam controlar a produção da novidade e da inventividade. Dessa forma, as reflexões apostam na produção da diferença enquanto modo ético-político de se habitar a crise. Ao assumir que os conhecimentos têm efeitos na produção de subjetividades, busca-se colocar em questão o que está naturalizado, produzindo desvios criativos e composições capazes de aumentar as potências de vida.

Palavras-chave: Crise; Crítica; Clínica; Psicologia Social.


ABSTRACT

Starting from the problematization of the concept of "crisis", the article intends to present a discussion about "critique" and "clinical", two conceptual operators of particular importance for the contemporary theoretical perspectives in Social Psychology. With Artaud, it is proposed to think of a way of relating to the crisis from different paths from those that are based on transcendent models that seek to control the production of novelty and inventiveness. Thus, the reflections bet on the production of difference as an ethical-political way of inhabit the crisis. By assuming that knowledge has effects on the production of subjectivities, it seeks to question what is naturalized, producing creative deviations and compositions capable of increase the potencies of life.

Keywords: Crisis; Critique; Clinical; Social Psychology.


RESUMEN

Desde el cuestionamientodel concepto de "crisis", el artículo tiene como objetivo presentar una discusión de "crítica" y "clínica", dos operadores conceptuales de especial importancia para las perspectivas teóricas contemporâneas enPsicología Social. ConArtaud, se propone pensar una manera de relacionarse con la crisis de diferentes rutas de aquellos que estánapoyados por modelos trascendentes que buscan controlar la producción de novedad y actividad inventiva. De este modo, las reflexiones apuestan en la producción de la diferencia como forma ético-política de habitar la crisis. Al asumir que el conocimientotieneefectos sobre la producción de subjetividades, trata de poner en cuestiónlo que se naturaliza, produciendodesviaciones y composicionescreativascapaces de aumentar la potencia de la vida.

Palabras-clave: Crisis; Crítica; Clínica; Psicología Social.


 

 

Numa das mais belas passagens escritas por Nietzsche (2014), encontramos a declaração de que o conhecimento foi inventado: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento” (p. 62). Diferentemente do que se encontra no platonismo, o filósofo do martelo não afirma a preexistência de uma verdade da qual os conhecimentos aos quais teríamos acesso seriam apenas imagens ou cópias mais ou menos fidedignas. O que se coloca em questão, e que merece ser considerado, é que os conhecimentos são fabricados, emergem e se sustentam apenas em determinadas condições de existência. Indo além, podemos afirmar que os conhecimentos não só são produzidos no mundo, mas também são produtores do mundo – são criações que transformam a realidade na qual foram inventados. Assim, na ciência a produção de conhecimentos e de conceitos não é neutra, mas tem efeitos, produz formas de ser, pensar e agir.

Considerando que os conhecimentos têm efeitos na produção de subjetividades, cabe à Psicologia Social pensar a contemporaneidade de forma crítica, assumindo, assim, uma postura ético-política. Política no sentido de problematizar os conhecimentos existentes e o modo de produzi-los, reconhecendo que esses são sempre engendrados em relações de poder. Ética no sentido de uma forma de habitar o mundo por meio de uma atitude que coloca em questão permanentemente o nosso ser histórico e as condições por meio das quais nossas ações são conduzidas.

Neste artigo, apresentamos uma discussão a respeito da “crítica” e da “clínica”, dois operadores conceituais de especial importância para as perspectivas teóricas contemporâneas em Psicologia Social. Por vezes tomados como evidentes, tais conceitos correm o risco de serem utilizados como se fossem unidades fechadas e autônomas, dadas de antemão. Entretanto, pensando com Deleuze e Guattari (1992), não é possível entender os conceitos enquanto totalidades, mas sim como multiplicidades de componentes articulados que respondem a problemas específicos. Assim, como o mundo não é estático, também não devem ser as ferramentas conceituais para nele operar. Neste sentido, concordamos com Hardt e Negri quando estes afirmam: “precisamos de um novo vocabulário e de enquadramentos conceituais novos para entender o mundo contemporâneo e as possibilidades que ele nos proporciona”(Brown &Szeman, 2006, p. 96).

Entendendo que pensar e pesquisar não se fazem por meio da “aplicação” dos conceitos, ou seja, de sua transposição de um campo a outro – ignorando, assim, a especificidade do território em que foram criados e também daquele para o qual são levados –, buscamos realizar um deslocamento em ambos os conceitos – “crítica” e “clínica”. Para isso, trazemos a ideia de “crise” no intento de que no encontro entre eles uma composição outra se constitua, fazendo-nos pensá-los de forma diferente e abrindo, assim, novas possibilidades para a pesquisa e a ação em Psicologia Social.

A crise-peste

O que é crise? A que se refere essa palavra utilizada em campos e objetos tão heterogêneos? Fala-se de crise econômica, crise financeira, crise industrial, crise agrícola, crise política, crise moral, crise de nervos, crise cardíaca, crise emocional, dentre tantas outras. O termo grego do qual advém a palavra crise é krisis, que significa decisão, julgamento, condenação ou mesmo tribunal (cf. Beekes, 2010; Chantraine, 1968; Strong, 1890). A crise pode referir-se a uma decisão acerca de um negócio, o desfecho de uma batalha ou doença (Quênon, 1807).

No Novo Testamento, o termo grego krisis aparece, sobretudo, enquanto julgamento, juízo e condenação que tem por operador o divino (cf. Green, 1976). No Apocalipse, último livro da Bíblia e também conhecido como livro da Revelação, o julgamento é descrito com imagens que instauraram o pavor em muitos de seus leitores durante séculos até os dias de hoje: um imensurável terremoto; o sol tornando-se negro e a lua como sangue; as estrelas do céu caindo sobre a terra; e enfim, a morte por meio da espada, da fome, das feras e, também, da peste. A descrição prossegue ganhando contornos cada vez mais assustadores. O Deus-juiz opera, assim, um último julgamento, separando o Bem e o Mal.

No Antigo Testamento também encontramos no Deus dos hebreus um juiz que condena e castiga os egípcios com várias pragas, inclusive com a peste. É uma crise-peste que só se efetua porque há um juiz pressuposto e que tem por objetivo (re)introduzir a ordem no mundo. Mais do que isso, a crise é o modo pelo qual se elimina a multiplicidade, purifica-se o “povo escolhido”, excluem-se os desviantes. Aqui, trata-se, sobretudo, de uma crise-punição.

A ideia de uma crise-peste, cujo caráter é a punição, também aparece na tragédia grega, como bem ilustra a cena inicial de Édipo-rei, de Sófocles (1988). O ponto de partida da peça é a súplica da população de Tebas dirigida aos deuses e ao rei pelo fim da peste que devastava a região. A resposta para o fim dos males, trazida pela consulta ao oráculo, é de que a terra fosse purificada da mancha que mantinha, expulsando da cidade ou punindo com a morte o assassino do rei Laio.

Nas três situações anteriores, a crise-peste está ancorada num modelo jurídico-moral. Ela é, ao mesmo tempo, o efeito de transgressões e o meio de passagem para o restabelecimento da ordem. No primeiro caso, a crise aparece como a condenação que decorre de algum ato que se realiza em desacordo com a Lei, com a vontade de Deus ou com o supremo Bem; ela é resultado de um julgamento que se pauta em valores considerados dados e imutáveis. No segundo caso, ela é entendida enquanto uma passagem, um período necessário para que os rumos perdidos possam ser retomados; é a punição capaz de fazer desaparecer os desvios, as falhas, as faltas, as anomalias, enfim, a diferença. Em ambos os casos, porém, a pressuposição de valores transcendentes ou de um mundo ideal está presente. É por isso que essa forma de perceber a crise, de compreendê-la, está vinculada ao “deve ser”, seja porque este foi rompido, seja porque se visa fazê-lo novamente governar as ações humanas.

Há, entretanto, outras formas de se compreender uma crise. Antonin Artaud1(2006), no ensaio O teatro e a peste, discorre acerca de uma crise-peste entendida enquanto potência capaz de instaurar a diferença. O poeta afirma que ela nada mais é do que a revelação, a exteriorização de um fundo de crueldade “através do qual se localizam num indivíduo ou num povo todas as possibilidades perversas do espírito” (p. 27)2. Longe de visualizar na crise um pretexto para (re)estabelecer a ordem, ele acentua justamente seu caráter produtivo. A crise apresenta-se, assim, como experiência com o impessoal, ou seja, sem remeter ao transcendente sua significação, resta aos próprios sujeitos dar-lhe significados, tecendo composições na e com a crise. São nos encontros ao acaso experienciados na crise que novas criações podem vir a existência.

Sob a ação do flagelo, a sociedade se transforma: a ordem desmorona, aparecem e multiplicam-se os desvios morais, enfim, o corpo social se desfaz. É na crise-peste que ocorre a abertura para a emergência da diferença, daquilo que não se efetuava na ordem corrente:

Os últimos vivos se exasperam: o filho, até então submisso e virtuoso, mata o pai; o casto sodomiza seus parentes. O libertino torna-se puro. O avarento joga seu ouro aos punhados pela janela. O herói guerreiro incendeia a cidade por cuja salvação outrora se sacrificou. O elegante se enfeita e vai passear nos ossários (Artaud, 2006, p. 20).

A crise-peste de Artaud (2006) é aquela capaz de tomar o virtual, o que está em potência, e efetuá-lo. Trata-se, para ele, no teatro, assim como na peste, de tomar os gestos e esgotá-los, refazendo o “elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada” (2006, p. 24). O que ele propõe não é um teatro da representação, da mimese do real, mas sim do ato, do acontecimento, da atualização que “desenreda conflitos, libera forças, desencadeia possibilidades, e se essas possibilidades e essas forças são negras a culpa não é da peste ou do teatro, mas da vida” (2006, p. 28).

A crise, neste caso, não é entendida como um mal a ser extinto, mas enquanto um deslocar de forças que produz movimentos capazes de trazer à existência não só o que não estava presente, mas, também, o que era imprevisto. Portanto, é justamente por fazer com que as forças entrem em relação, deslocando o que estava cristalizado, que a crise tem por efeito algo da ordem da diferença.

Mais importante do que esclarecer o que é a crise, é problematizar os modos pelos quais podemos nos relacionar com ela – essa é a grande lição de Artaud (2006). Trata-se de na própria imanência da crise inventar/produzir caminhos que potencializem a vida. Ou seja, de não ter uma postura que busca compreender a crise a partir de modelos transcendentes, os quais apresentam soluções prontas e que procuram não só evitar a abertura à diferença, mas também capturar qualquer linha de fuga que apareça.

Estas diferentes maneiras de se relacionar com a crise são produtoras de distintas formas de subjetividade. Como estas nos possibilitam interrogar o campo da Psicologia Social na contemporaneidade? Com base no primeiro caso, o da crise atravessada pelo modelo jurídico-moral, a prática e a produção de conhecimento em Psicologia Social teriam por preocupação extinguir a crise, procurando restabelecer uma ordem prévia, esforçando-se por adaptar os sujeitos ao instituído e orientando-se por valores já dados.

O capitalismo faz uso da crise para intensificar a ação de seus dispositivos de controle. De acordo com Silva (2005), ele atualiza uma armadilha semiótica através da ideia de crise permanente, própria a esse sistema. Esta armadilha opera com base na regra segundo a qual quanto mais as coisas se desarranjam, melhor funcionam, pois o poder capitalístico torna-se mais eficaz na medida em que precisa reordenar aquilo que está desarranjado. Dessa forma, são produzidos discursos pautados no imperativo de que é sempre necessário reinstaurar a ordem, com efeitos de controle sobre os sujeitos. As contradições inerentes ao próprio sistema capitalista proliferam por toda parte e, com isso, produzem uma crise generalizada, que é permanentemente absorvida e reordenada pelos dispositivos de poder.

Há, porém, outra forma de fazer e pensar Psicologia Social, na qual nos engajamos, e que encontra na crise a efetuação de potências e a condição de existência da diferença, da criação e da inventividade. Trata-se de uma atitude de abertura que, por meio da crise, possibilita novos devires e formas de subjetivação. É, sobretudo, ao habitar, atravessar e se deixar ser atravessado pela crise, efetuando potências que acreditamos ser possível à psicologia constituir-se enquanto um campo de experiências outras.

O que propomos quanto à crise passa por uma aposta na transformação das relações micropolíticas, nas interações concretas e cotidianas, no mais elementar das relações do sujeito para consigo mesmo e para com aqueles que estão ao seu redor. Enfim, tratar-se-ia de, na crise, inventar caminhos por meio dos quais o sujeito pudesse sair diferente, fazendo do percurso da crise, uma experiência de transformação. O transcorrer da crise não seria apenas a passagem e a superação de um momento difícil, mas a condição necessária (e não suficiente) para que novos engendramentos possam vir à existência.

Isso não significa que tudo o que está em potência seja conveniente. Há de se tomar o cuidado de ressaltar que existem bons e maus encontros, boas e más composições, efetuações que fortalecem a vida e outras que não o fazem (Deleuze, 2002). Se a crise, por um lado, permite a abertura ao diferente, ao novo, por outro, importa que as efetuações afetem a vida de forma a fortalecê-la.

Que questões se colocam a partir dessas diferentes formas de se posicionar em relação à crise com as noções de crítica e clínica, no campo da Psicologia Social?


A crítica: abertura para a produção da diferença

Etimologicamente, crise e crítica possuem o mesmo radical no grego: o verbo krinô. Este tem por significado mais amplo decidir (mentalmente ou judicialmente). Pode ainda ser traduzido por experimentar, julgar, discernir, sentenciar, pensar, entre outros termos (cf. Beekes, 2010; Chantraine, 1968; Quênon, 1807; Strong, 1890). Por vezes, a crítica (literária, artística, jornalística, política, dentre outras) se faz a partir da referência a determinados critérios e padrões, sem questioná-los, e que servem de guia ou métrica para dizer se algo é valoroso ou não, belo ou feio, adequado ou inadequado, digno de mérito ou de reprovação.

Longe de conceber a crítica como tendo o objetivo de avaliar se algo é bom ou ruim, verdadeiro ou falso, estabelecendo valores, Foucault propõe, num primeiro momento, pensá-la enquanto a problematização das estruturas de avaliação, das condições que nos permitem e nos levam a fazer determinado juízo. Trata-se não apenas de “reconhecer os limites do conhecimento” (1990, p. 7), mas de analisar e refletir a respeito desses limites para poder ultrapassá-los. É pela crítica que se problematizam não só as conclusões, mas, sobretudo, a própria racionalidade que as sustenta, desestabilizando o que estava acomodado para poder “pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê” (Foucault, 1984, p. 41, tradução nossa).

Para Foucault (1990), a crítica é um apelo à coragem, mas coragem para quê? Com que finalidade? Seria a coragem de colocar em xeque as relações entre saber e verdade, apontando os limites do conhecimento. A crítica, para ele, não é da ordem do aniquilamento das autoridades; o que aponta é a crítica enquanto desassujeitamento nas relações de poder nas quais se dão efeitos de verdade. Falando de desassujeitamento, fala-se, por conseguinte, em romper com um modo de produção de sujeitos que lhes designa e fixa uma identidade, uma única forma de ser.

O foco da crítica, de acordo com Foucault (1990), é o feixe de relações que amarra saber, verdade e sujeito. Se a governamentalização é uma prática social de sujeição dos indivíduos por mecanismos de poder que reclamam de uma verdade, a crítica é o movimento que torna possível ao sujeito interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade. A crítica seria, assim, de acordo com o filósofo, a arte da indocilidade refletida ou, ainda, da inservidão voluntária – termos que nos remetem ao texto de Etienne de La Boétie, no século XVI.

Em seu Discurso da servidão voluntária, La Boétie (1999) problematiza a submissão que ocorre sem questionamento. Seu escrito é uma espécie de convite à crítica, pois ele ressalta que o primeiro motivo da servidão voluntária é o costume por meio do qual os homens passam a tratar como naturais as coisas com as quais se acostumam e se habituam pelo uso. Para romper a condição de servidão seria necessário, portanto, questionar o que está dado como natural.

Se tudo ocorre conforme o previsto, tal como programado, a ordem se mantém. Com a crise, tensionam-se as relações de força cristalizadas, as situações de dominação são colocadas em xeque. Pode-se entender então a atitude crítica como uma forma ética de habitar a crise, de sustentar que aquilo que está em potência possa vir a efetuar-se, engendrando, desse modo, a diferença. A atitude crítica, portanto, opera na crise o desvio capaz de desestabilizar as relações de dominação, fazendo com que formas de subjetivação menos assujeitadas possam ser elaboradas. Não é sem razão que, em seus últimos escritos, após ter estudado com profundidade as relações de saber-poder, Foucault tenha dado tanta ênfase ao cuidado de si, noção retomada dos antigos gregos. Para ele, é sempre na relação consigo e com os outros, no dobrar das linhas forças (atitude crítica), que se torna possível constituir-se enquanto sujeito de si.

Assim como a crise, o pensamento só pode dar-se no encontro de forças, no vergar de uma exterioridade. Cabe lembrar que, de acordo com Deleuze (2000), pensar não é o exercício natural de uma faculdade – contrapondo-se, assim, a Descartes –, pois “os homens raramente pensam e fazem-no mais sob um choque do que no impulso de um gosto” (p. 230). Ou seja, é necessário que algo intervenha fazendo pensar, forçando o pensamento.

E o que é pensar? Pensar é “experimentar, é problematizar” (Deleuze, 2005, p. 124). A crítica, na modalidade do pensamento, só pode dar-se, deste modo, numa espécie de crise na qual o pensamento-criação é efeito do encontro de forças. Se, como já falamos acima, o tempo de uma crise permite o desvelamento e a ruptura, em que algo pouco evidente pode vir à luz, a atitude crítica opera nessa mesma direção, desconstruindo e abrindo frestas naquilo que se coloca como um ordenamento já estabelecido, concebido como eterno. Deleuze (2000), assim afirma:

Não contemos com o pensamento para fundar a necessidade relativa do que ele pensa; contemos, ao contrário, com a contingência de um encontro com aquilo que força a pensar, a fim de elevar e instalar a necessidade absoluta de um ato de pensar, de uma paixão de pensar. As condições de uma verdadeira crítica e de uma verdadeira criação são as mesmas: destruição da imagem de um pensamento que pressupõe a si própria, gênese do ato de pensar no próprio pensamento (p. 240).

Pensamento e crítica, portanto, nunca vêm à existência por um ato deliberado de um sujeito fundado em si mesmo, mas somente podem emergir enquanto uma relação de forças.

Se num primeiro momento, discorremos sucintamente acerca de um modo de crítica que tem por efeito definir aquilo que ela avalia, fixando-lhe uma identidade valorativa, na sequência, buscamos apresentar, ao recorrer a Foucault e a Deleuze, outra forma de se pensar a crítica, segundo a qual a abertura, a multiplicação das possibilidades, o romper com os limites é fundamental. A crítica, assim, não teria por finalidade definir algo, mas analisar aquilo que está posto e permitir que a diferença venha a se instaurar. A crítica é feita na crise, pela crise ou, em outras palavras, a crítica vem à existência quando engendrada na crise que produz a diferença.

Quando uma crise ocorre produzem-se afecções que podem seguir diferentes rumos. Se os dispositivos de poder-saber instituídos buscam colonizar as rupturas que aparecem, incorporando-as no funcionamento do sistema, a atitude crítica constitui-se enquanto um modo de operar que abre novos sentidos.

Tal atitude crítica muda, portanto, a forma de se fazer pesquisa em Psicologia Social. Não se trata, neste caso, de fazer a crítica – analisando materiais e julgando os dados – para encontrar a resposta certa e tornar, assim, o problema resolvido. Importa, antes, não só manter, mas também multiplicar o problema, fazendo-o ainda mais produtivo.

Butler (2003), acerca dos infindáveis debates feministas a respeito do conceito de gênero, visualiza não um fracasso, mas a potência que a indeterminação carrega. Ela afirma: “[...] concluí que problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los” (p.7). Efetuar a crítica é produzir um desvio no pensamento, é atravessar a crise sem apagá-la, é fazer com que os problemas encontrem sempre novas soluções, mais adequadas às condições em que são colocados.


A clínica: desvio e produção 

A palavra clínica tem sua raiz no termo grego klinê,sofá ou cama, sobre o qual se dormia, alimentava-se e, também, repousava-se quando doente(Strong, 1890). Se klinê faz referência ao objeto imóvel, ou seja, ao lugar ao qual se dirigia aquele que necessitava revigorar-se, o verbo do qual klinêderiva,klinô, indica movimento, a ação de inclinar-se, de debruçar-se (Chantraine, 1968). É esse verbo que é utilizado, nos textos gregos antigos, para se reportar aos cuidados do médico junto ao leito de um doente. Sua significação está ligada à prática da medicina, ao cuidado com aquele acometido pelo excesso de pathos que o faz passivo. Trata-se, no caso da experiência grega, de por fim à crise no corpo ou na alma, ou seja, à desordem instaurada pela doença. A prática do terapeuta tem por meta agir sobre a desmesura, introduzindo a justa ou boa medida – (re)instaurando um estado de equilíbrio.

Os antigos gregos inauguraram a clínica ao introduzirem certa racionalidade em um campo que até então se aproximava muito mais da magia (Oliveira, Romagnoli& Neves, 2007). Se o aparecimento do método clínico remonta à Antiguidade, os últimos séculos trazem modificações no olhar lançado sobre o sofrimento dos homens, reorganizando o saber em torno do mesmo em um novo espaço de discursividade.

Ao percorrer os caminhos traçados historicamente pela clínica, Foucault (2014) aponta que, num curto espaço de tempo, no final do século XVIII e início do XIX, a descrição do patológico passa de uma linguagem fantasiosa e sem suporte perceptivo, para outra, guiada pela observação e pela constante visibilidade. Essa mutação configura uma reorganização do olhar milenar que se detém no sofrimento dos homens. No início do século XIX, os médicos passam a descrever o que durante séculos ficara abaixo do limiar do visível e do enunciável. Inaugura-se a clínica do visível e da transparência, cujo elemento de idealidade é a luz, reveladora da verdade. O olhar passa a ser o elemento fundador do indivíduo, possibilitando organizar em torno dele uma linguagem racional, cujo objeto do discurso é o próprio sujeito. Torna-se possível, finalmente, pronunciar acerca deste último um discurso científico.

Para Foucault (2014), a experiência clínica é a primeira abertura na história ocidental do indivíduo concreto à linguagem da racionalidade, e que reduz o sujeito à condição de objeto. Este é observado do mesmo modo como se observam os astros ou uma experiência de laboratório. Se a clínica foi se configurando em uma perspectiva de crescente visibilidade e objetificação do sujeito, seu propósito seguiu sendo silenciar a crise que se instalava no corpo ou no espírito do doente.

Quais elementos e torções o encontro com o pensamento crítico pode produzir nesse campo? Ainda segundo Foucault (2014), a possibilidade e a necessidade da crítica estão ligadas ao fato de que existe linguagem e de que nas inúmeras palavras pronunciadas pelos homens – racionais ou insensatas, demonstrativas ou poéticas – um sentido domina e toma corpo, mas também está à espera daquilo que pode se produzir como outras vias de significação. Assim, mais do que o retorno a um estado de equilíbrio anterior, abre-se espaço para que a diferença possa emergir.

Nessa perspectiva, acolhemos a proposta de Roos, Maraschin e Costa (2015), segundo a qual é possível fazer uso de uma concepção de clínica agenciada pelo conceito de clinamen3, termo latino utilizado por Epicuro, e depois retomado por Lucrécio, que designa a “razão do encontro ou da relação de um átomo com outro” (Deleuze, 1974, p. 276).

Para Epicuro o mundo é, desde sempre, movimento aberto, turbilhonar. É por isso que Deleuze (1974) afirma que o clinamen “está presente todo o tempo” (p. 276), pois ele “é a determinação original da direção do movimento do átomo” (p. 276). É na declinação, no mínimo desvio, que um átomo encontra-se com outro, podendo o choque ser repulsivo ou combinatório. Há, portanto, diferentes átomos encontrando-se e produzindo infinitas combinações. Epicuro atribui ao clinamen, aos pequenos desvios, a potência de geração no mundo por meio da produção da diversidade.

É através do movimento e da combinatória do que já existe que a criação acontece e torna-se possível. Epicuro afirmava que “nada provém do nada” (1980, p. 15). A novidade se engendra do já existente. O céu, a Terra, os seres vivos e o homem são produtos do jogo eterno dos átomos, partículas móveis capazes de formar diferentes seres e configurar uma enormidade de formas. É o espaço vazio entre esses minúsculos elementos que lhes confere sua condição de mobilidade e de associação. Há os corpos infinitamente pequenos e há o vazio que lhes permite moverem-se. Estas moléculas primordiais, indestrutíveis e sem forma, têm a potência de se transformar em todas as coisas. Tudo o que acontece a cada dia, na natureza e na vida dos indivíduos e dos povos, é o resultado de combinações incessantes e imperceptíveis de parcelas infinitamente pequenas que se encontram no espaço. Trata-se de um movimento constante, com detenções e paradas, sem início ou fim, que produz as diversas formas que a vida nos oferece.

Ao discorrer acerca da clínica, Farina e Fonseca (2010) falam de um “espaço do clinamen” que privilegia a produção do desvio, buscando a “potencialidade das variações existenciais através de um plano que se constrói a partir de encontros e acontecimentos em incessante mutação” (p. 322). Deixando de se preocupar com as linhas causais, que contribuem mais para a produção de subjetividades fixadas em identidades do que para a experiência criativa, busca-se, na clínica clinâmica, produzir desvios por meio dos quais “as linhas causais se esvanecem na própria ilusão de continuidade, fixidez, permanência” (p. 322).

No âmbito da Psicologia Social, tomar a clínica pelo viés do retorno a um estado de equilíbrio, implicaria no apagamento do conflito e na obturação da crise. Qual seria uma proposta possível de clínica no campo social que acolhesse o viés perturbador e conflitivo que se abre na crise? Uma clínica que não passe pela tentativa de resolução e apaziguamento, mas que, ao contrário, sustente e acolha a abertura para a novidade e para a diferença. É nessa direção que podemos pensar no encontro, no campo social, dessas duas dimensões – a crítica e a clínica.

Dessa forma é que a pesquisa e a ação em Psicologia Social podem apreender a definição de Agamben (2009) acerca de quem pode ser denominado como sendo verdadeiramente contemporâneo. Segundo esse autor, trata-se daquele que pertence de forma genuína ao seu tempo e que não coincide de modo perfeito ou exato com ele. E por experimentar essa não coincidência, torna-se capaz de perceber e apreender as particularidades de sua época.

Para Agamben (2009), essa condição implica uma relação singular com o momento em que se vive, em que se adere a ele, enquanto dele se toma distância através de uma dissociação. Tanto uma clínica que dê lugar ao desvio e à potência quanto a atitude crítica são operadores metodológicos que possibilitam, por intermédio da crise, introduzir o distanciamento que leva ao ponto crítico necessário para que algo novo tenha condições de emergir.

Aqueles que se ajustam em demasia com sua época, conformando-se a todos os seus aspectos, não conseguem vê-la. “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (Agamben, 2009, p. 62). É no desvio que conduz a esse ponto de escuridão e invisibilidade que se situa o ponto limite, de passagem, que as noções de crítica e clínica, tal como as apresentamos aqui, permitem introduzir.


Referências

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Data de submissão: 21/10/2016
Data de aceite: 27/04/2016

1 A própria vida de Artaud é atravessada pela experiência da crise. Poeta, pintor, escritor, dramaturgo e ator, foi considerado louco e teve diversas internações psiquiátricas ao longo de sua vida, algumas de longa duração. Seus escritos e seu trabalho foram marcados pela experiência da reclusão psiquiátrica, revelando a dor da existência experimentada na própria carne e expressada através da encenação teatral (Teixeira, 1999).

2 Muitas vezes Artaud (2006) é mal interpretado quando utiliza o termo “crueldade”. Esta, para ele, não deve ser entendida nem enquanto algo da ordem do físico nem enquanto algo da ordem da moralidade. A crueldade é, antes de tudo, vital, da potência de vida: “Tudo que age é uma crueldade [...] eu disse ‘crueldade’ como poderia ter dito ‘vida’” [...] Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável (pp. 96, 134, 119).

3 Lucrécio descreve um modelo atômico que se pauta não na mecânica dos sólidos, mas na dos fluídos. Supondo-se o escoamento denominado laminar de uma infinidade de átomos, estes realizariam o deslocamento de cima para baixo, com igual velocidade, numa espécie de catarata em que o movimento de cada átomo é rigorosamente paralelo ao movimento do outro. Nesse fluxo, os átomos não se tocam, pois a trajetória realizada por eles pode ser descrita como um feixe de paralelas no vazio. Tem-se, então, o clinamen, há um desvio na trajetória dos átomos, e o escoamento torna-se turbilhonar. O que ocorre para que os turbilhões se formem em um escoamento laminar? A razão é clinamen, ou seja, o “ângulo mínimo de formação de um turbilhão” (Serres, 2003, p. 17), ou, nas palavras de Deleuze (2012), “o ângulo mínimo pelo qual o átomo se afasta da reta” (p. 26). Como ressalta Serres (2003), o modelo acima é ideal, teórico, pois não existe um tempo originário em que haveria apenas escoamento laminar.

I Bruno Eduardo Procopiuk Walter: Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Bacharel em Teologia pela Faculdade Batista do Paraná (FABAPAR), Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestre em Administração pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Psicólogo Organizacional na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). E-mail:brunowalter@utfpr.edu.br

II Gerson Smiech Pinho: Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre e Doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:gersonsmiech@gmail.com

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