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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2019

 

DOSSIÊ - TEMAS EM DEBATE: RISCOS DA CRIAÇÃO

 

MOTIVAÇÕES para escrita a partir de notas em torno de si e dos outros

 

MOTIVATIONS for writing from notes around you and others

 

MOTIVACIONES para escribir a partir de notas en torno de sí y de los demás

 

 

Paola Zordan

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Impressões a partir da obrigação de ler a escrita de muitos alunos, viver a postergação de muitos e ter compilado alguns dizeres ferozes de renomados escritores, todos muito argutos em relação ao escrever. O texto combina fragmentos de autores com aforismos em torno da experiência que é escrever.

Palavras-chave: escrita, estudo, uma professora universitária, desesperos, poética


ABSTRACT

These text composed authors fragments with aphorims of a professor about the art of writing. Take off arguments by obligation to read the writing of many students, living their desperates and postpones around the experience that is to write. For that, compiled some fierce sayings from renowned writers, all very keen on writing.

Key-words: writing, study, a woman professor, despair, poetic


RESUMEN

Impresiones desde la obligación de leer los escritos de muchos alumnos, vivir la postergación de muchos y haber compilado algunos dichos feroces de renombrados escritores, todos muy astutos en relación al escribir. El texto combina fragmentos de autores con aforismos en torno a la experiéncia que es escribir.

Palabras clave: escrita, estudio, una profesora em la universidad, desesperos, poética.


 

 

"Quando escrevo, visito-me solenemente."

(Pessoa, 1999, p.315)

"Socorro", ela pede. "Cruz credo", escreve a orientanda cujo texto nem começou. Palavras de jovens alunos universitários, quando precisam escrever. Escrever, além de dar o maior trabalho, é arriscado. Então, por que escrevemos? Somente por que a vida acadêmica assim exige? Para ajudar quem precisa escrever, José Nunes publica na internet o arquivo Como eu escrevo, projeto que se constitui em entrevistas estruturadas com professores, escritores e acadêmicos: material para muitas pesquisas. Ainda sem esgotar esse arquivo, o que se pode dizer percorrendo o material é que não há um modo de escrever que caiba a todos. A escrita é singular, pessoal, intransferível.

Isto de nada me serve, pois nada serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado (Pessoa, 1999, p.315).

Tornar-se o outro, muitos eus e pessoas para cada estilo e texto. Só escreve sem penar aquel que sente a força das palavras, pois é com elas que "obtemos uma vitória sobre o nada" (CIORAM, 2011, p.31). É melhor sofrer o domínio das palavras aceitando o risco de que transformar cada palavra a favor do que se pensa do que ficar penando pela força que tanta palavra exerce. Palavra se exercita. Arriscar uma escrita exige sair de si e viver outras experiências. Não há outro motivo. As leituras proporcionam isso. Ler pode até advir da obrigação, a leitura recomendada nem sempre pode ser exigida, a obrigatória ignorada, mas fato é que para escrever é preciso ler. Ninguém consegue passar por uma Universidade sem ler. A leitura exige confiança nas palavras. Destas, melhor "sofrer o seu domínio" no exercício da escrita do que ser dominado por ter ignorado a força que cada palavra exerce.

Quero escrever por ter um ímpeto de me destacar num meio de traduzir e expressar a vida. Não consigo me satisfazer com a tarefa colossal de simplesmente viver (Plath, 2017, p.217)

Quem se contenta com a vida e consegue viver sem necessitar da escrita, pensa que das palavras não sucumbe. As palavras são o modo mais amplo de se retomar a todas as experiências. Diferente das imagens, quando reproduzimos uma palavra seu limite, jamais será circunscrito a uma borda. Repetir a experiência com palavras é a maneira menos desenquadrada de mostrar daquilo que se trata. Porém, não são duas ou três frases que trarão a ampla dimensão do experimentado, e sim tudo o que se estrutura em texto. Gostamos de textos cuja experiência que nos dão criam algo com o qual precisamos lidar. Um herói, um monstro, uma terra, uma questão. Mesmo quando nos desesperam, quando tiram o chão daquilo que já está sabido, trazem emoções. Vitais, necessárias, bombeadoras de sangue no cérebro. Tudo por ser registrado sem compromisso, sem necessidade de uma forma, de uma legibilidade.

A ordem das anotações é livre. (Benjamin, 2013, p.150).

De tudo o que se anotou, registrou, copilou, algo há de ser estruturado. As palavras e sua amplitude de possíveis nos trazem estofo, mas é o trabalho disciplinar, eminentemente acadêmico, que erguerá um texto ordenado de modo legível. Todos sabem que a academia barroca que forma o que a Universidade é hoje, se estruturou via discursos e diálogos da Antiguidade e em cima dos livros desde suas compilações e cópias monasteriais. Talvez isso peso menos quando tomarmos tratados, artigos, ensaios, cartas, contos, como simplesmente experiências guardadas nas palavras. A formação, o preparo para o que se é e o que se será no mundo, implica a realização daquilo que se pensa. E o que se pensa, já aprendemos com Michel Foucault (2010) e sua pesquisa em torno da escrita de si, se constitui em práticas e discursos. Palavra que não morre, a escrita é um compromisso assumido por quem estuda. Há discursos esperados, porém, o avanço, a transformação dos saberes em ciência, em produções que tornam a vida outra coisa, outra vida em novos pensamentos, acontece quando aquele que pensa, realiza um texto, produz conteúdo, usa o conhecimento adquirido na expressão escrita, que ficará.

O bom escritor não diz mais do que aquilo que pensa. E muita coisa depende disso. É que o dizer não é apenas a expressão, mas também a realização do pensamento (Benjamin, 2013, p.129).

Só posso falar por mim. Talvez se escrever em blocos certeiros, sem muitas delongas, como buzz feed , é capaz que os jovens consigam ler. Penso, então, em tudo o que já se escreveu e o que mais se leu desde que a população lê. Se uma vez as Universidades eram feitas por livros lidos e escritos, hoje é feita por pessoas. Muitas delas não conseguem escutar um professor por mais de vinte minutos, ler mais do que uma lauda. Em torno de que textos podemos trabalhar?

O santuário da regra não significa nada para o criador puro (Bukowski, 2017, p.53).

Aceitar ou não a gramática ignorada? Permitir outras línguas, outras expressões, manifestações. Não esquecer a escrita sacramentada pelo classicismo laico, que a emparedou como essencial, mas não lhe dar tanta importância, não tornar tudo obrigatório, maçante, imperioso. Melhor ficar com as grandes citações, deixando espaço para o livre pensar, para todo tipo de percalço dado pelo espírito, para tudo o que vaga leve, para coisas que nem sempre cabem no que os limites do texto permitem. As palavras são experimentadas dentro dos textos. Não há como escrever aquilo que mal se experimentou. Experimentar os textos é viver a outra vida que nas palavras escritas eternizou aquilo que pensava.

Ninguém senta numa mesa e diz; 'Agora eu vou fazer uma coisa'... entende? Isso vem naturalmente, mas, se você pudesse, se cada um de nós pudesse contatar mais com esse outro lado das coisas que não são vistas...o que me interessa muito são as relações do homem com esse outro mundo que não vejo... (Hilst, 2013, p.76).

Escrever além, para permitir que o problema aqui, essa coisa que todos precisam ver e só eu sei que pulsa, vá até você. E essa segunda pessoa, você, si mesmo, leitor e quem escreve, é a razão da escrita. Uma razão coisa nenhuma, pois o que se escreve é aquilo que se precisa, por exigência, urgência, desespero. A própria ciência advém de paixões e graves acometimentos, que mesmo que regulados com seus métodos impessoais, movem forças ditadas por relações demasiados complexas e estruturas muito menos estáveis do que se pressupunha. Por isso é louco o exercício de se escrever a dois, uma loucura o exercício da escrita à três, a total insanidade uma escrita multifacetada grupal. Nas áreas duras, todos estão juntos escrevendo uma experiência, a qual chegou a resultados quantificáveis cujo processo para obtenção todos participam. O uso das palavras, cujos caprichos somem no processo, é operar com elas de modo estritamente descritivo, tornando-as meio e nunca o fim. A escrita coletiva some na descrição objetiva e análise de uma pesquisa concreta. Numa escrita outra, a palavra em si já é um texto, passível de múltiplas interpretações, carregado de imagens, gordo de significações, enunciados, desdobramentos. Sua tradição é muito mais velha, tem base no diálogo e no discurso, muitas vezes se abstendo tanto da empiria como da demonstração. No texto ensaístico, filosófico, o uso literário da palavra torna a experiência, mesmo a mais empírica, a apresentação de um estilo. Uma maneira de pensar, de realizar o texto trazendo para determinadas palavras o curso do pensamento. Para conseguir isso é preciso dominar o texto, sem se deixar ser dominado por ele. A escrita requer tempo. Não há mais o que fazer senão escrever.

Será preciso escrever e jogar fora ou botar fogo num monte de material até que você se sinta confortável nesse meio. Você também deve começar agora e terminar o trabalho necessário, porque eu acredito que a quantidade promove a qualidade (Bradbury, 2011, p.140).

Dedicação é o que mais garante. Mas não apenas. Há sortes e há também o azar de nunca se ter entrado em relação de amor com um texto. Sem essa paixão, sempre um pouco sórdida, de amar textos, melhor ficar na escrita estruturada da experiência meramente científica. O resto é essa relação cheia de volúpias loucas, entre muitas vozes, onde se ouvem os berros dos que querem trazer as palavras para mundos onde elas constam apenas no mínimo comunicacional dos que somente as usam como suporte para suas ações. Trata-se de encontrar palavras que façam o pensamento voar ao invés de apenas fazerem perdurar o óbvio que uma fotografia ou esquema não diga. Escrever é trazer o que não é facilmente visto para o outro, mas como o vejo, com amor consigo fazê-lo. Sem amar, desisto. Se amo esse outro, mais fácil fica. Se estou ressentido, de alguma forma amei, e preciso mostrar o quanto. Então, escrevo. Sem contar páginas, sem saber por quanto dura o tempo de um parágrafo.

Precisava ler algo que me ajudasse a atravessar o dia, a rua, algo em que pudesse me agarrar. Precisava me embebedar das palavras, em vez disso me via obrigado a apelar à garrafa. Eu sentia, suponho, como todos os escritores fracassados sentem, que eu realmente podia escrever e que as circunstâncias e os que governam e a política estavam contra mim. Às vezes, estão; outras vezes você apenas acha que pode escrever e não pode (Bukowski, 2013, p.274-275).

Só não pode escrever quem tem que usar as mãos para outras muitas coisas que requerem o uso das mãos. Com um teclado portátil até no banheiro, fazendo as necessidades, se escreve. Impedido de escrever está quem precisa colocar as coisas nas devidas máquinas. O texto nasce pelo uso que o pensamento faz das mãos. Mesmo com as mãos ocupadas, os textos estão passando no pensamento de quem escreve. O tempo inteiro. Porém, a mão áspera pelo tempo em que as palmas esfregaram roupas, adentra o texto com todos os conflitos sociais que o pensar na borda de um tanque cheio de sabão provoca. Nas cartas e cadernos de Katherine Mansfield, desfavorecida pelo destino, encontro a luta daquela que precisa arcar com a casa e divide o trabalho doméstico com a vontade de criar com as palavras. Tenho que abandonar o trabalho da casa, pagar para quem o faça, tolerar a imperfeição, para poder escrever. Escrever, mais do que um convite, é uma escolha. Uma escolha que exige muitos abandonos.

Não há nada a fazer, a não ser TRABALHAR. Mas como posso trabalhar, quando essa terrível fraqueza faz a caneta parecer tão pesada quanto uma bengala? (Mansfield, 1996, p.163)

Quando não se tem escolha e escrever se torna imperioso, pelo menos tente que a escrita não nos envenene. Ou não queira fazer com que eu me mate por ter escolhido a vida de professora, tendo que ler você deixando Ulysses, Em busca do tempo perdido e outros romances para os quais não sobra tempo, de lado. Virei professora sem saber que teria que adiar horas de escrita e uma vastidão de livros que de bom grado leria, especialmente aqueles grossos e vastos que mexeram com universos e que pedem dias livres. Dias que não tenho enquanto houverem listas de chamadas, listas de tarefas pífias, pilhas de roupas e panos sujos e textos de alunos, pilhas que se abaixam e logo crescem, que nunca ficam zeradas, que não permitem descanso. Textos obrigados em frente. Como qualquer mortal, em trabalho de Sísifo, pago para servir. Porém aprendam, grandes autores nos servem mais. Mas como gostar dos grandes sem tirar o melhor em tudo o que há de pequeno e nosso? Então, escreva sem peso e nenhuma falta de si que acabe por acabar com o que faz valer a vida de quem terá que ler. Faça o que pensa, procure palavras, leia os professores, os colegas cujos textos os professores recomendam. Observe onde podem ser apontadas qualidades, os problemas que todo processo de escrita traz. Eu quero gostar de ser professora e ser uma professora feliz é receber de meus alunos textos que valham a pena serem lidos. Se achas que o que escreves está intragável, não escreva. Defenda seu conhecimento com outras ferramentas, de outra maneira, com meios que não aqueles que podem se tornar mortais e matar de infelicidade seus professores, pois mesmo que pareçam inofensivos podem estar acabando com todas essas pessoas que vivem, por profissão, lendo textos imprestáveis.

O fracasso é desistir. Você está em meio a um processo dinâmico. Nada fracassa, então, tudo continua. O trabalho foi feito. Se bom, você aprendeu com ele; se ruim, você aprendeu ainda mais. Trabalho feito e terminado é uma lição estudada. Não há fracasso, a menos que se pare. Não trabalhar é cessar, empacar, tornar-se nervoso e, portanto, destruidor do processo criativo (Bradbury, 2011, p.142).

Continue trabalhando. Sem parar. Não tem outro jeito. Quem não precisa submeter corre apenas o risco de ser avaliado. Preste atenção no que está fazendo. Eu sei que você escreve com um olho num seriado, outro olho nas conversas dos aplicativos de mensagens, o ouvido lotado de canções, outro escutando um cachorro que late pedindo para sair e ainda tendo que corrigir as pisadas do gato por cima do teclado. Leia o que está escrevendo, se concentre. Não queira ser o responsável indireto pelo suicídio de algum professor. Não chore. Se for preciso, realmente, chore, faz bem espantar o desespero com as lágrimas que correm. Eu tenho chorado muito, choro e quero morrer quase toda a semana lendo textos terríveis, mas tenho que aceitar essa provação, pois há pensamentos e pessoas e toda uma nova cultura dentro da Universidade que não é afeita aos clássicos e às normas gramaticais que tão belamente por séculos nos fiamos. Não nos cabe julgar por aquilo que, por infortúnio, somos. Não escolhi, mas sou branca, tenho sangue azul, escribas hebreus vibram em meus genes. Não me culpe por ser professora, doutora e ter sido criada com erudição. Não posso me pautar pelo conforto milenar entre meu corpo e os signos gráficos concatenados que perduram pensamentos em palavra. Os textos são desaprovados especialmente por quem não os entende. Muitas línguas são possíveis. Há fórmulas esperadas. Falhar depende do ponto de vista. Nem sempre cabe construir um personagem, nem sempre é preciso mostrar as roupas. Às vezes, nem a insígnia precisa ser apresentada. Apenas o que é real e como afeta.

As rejeições ajudam porque fazem você escrever melhor; as aceitações ajudam porque fazem você continuar escrevendo (Bukowski, 2017, p.84).

E num texto obrigatório, tudo o que vai acontecer, dentro desse sistema, é A, B ou C. Somente um professor muito ortodoxo vai considerar um texto entregue insatisfatório a ponto de ser um texto D. Palavras não possuem hierarquias, a ordem alfabética existe apenas para facilitar a indexação. A rigor, o importante é o aprendizado e não o conceito. Muito melhor um texto criticado do que um texto totalmente ignorado. O não é mil vezes melhor do que resposta nenhuma. Refazer é sempre a melhor chance.

Quando "o texto volta, olho para ele e não me importo muito: tenho uma chance de melhorar" (Bukowski, 2017, p. 188).

American writer academical female. Ela, Sylvia Plath, em 1951 universitária, escreve sobre o quanto o cérebro humano é um "sistema de registro medíocre", quer aproximar-se dos outros para que a sensação do outro possa ampliar aquilo que constitui a escrita dela mesma. Seu diário. The journal. Registros que nos constituem. Palavras que nos fazem.

Escreva sobre sua própria experiência (Plath, 2017, p.64).

Só posso escrever a partir do que ensino, pois décadas se passaram e tudo o que vivi pode ser subsumido em dias e dias dentro de salas de aulas. Se, com Walter Benjamin, aprendi que a escrita presta quando o escritor diz aquilo que pensa, sem delongas, sem excessos (Benjamin, 2013, p.129), vivo um escritor para que ele também seja minha escrita. O que vivi e penso se estende aos textos dos outros. Outros que me deram vidas as quais sem os seus textos eu jamais poderia ter vivido. O que tinha a dizer dos livros e do quanto os vivemos, nas íntimas relações que dentro deles nos são dadas, escrevi em Os livros e a vida (2015), publicado estranho ao escopo do veículo, a convite. Porque no ponto da demanda, só lemos e escrevemos convidados, a partir de encontros, agendando as horas para o texto de cada um. E o tempo do romance vai se tornando inexistente. Na minha vida, toda livresca, cuja biblioteca se amontoa sem uma estante adequada por falta de bibliofilia do contexto, por ter que atender outras necessidades das demais pessoas com quem divido o que ganho, os livros precisam ser adiados por valores que o mundo hoje toma como mais importantes: comida, casa, carro, roupas. A melhor maneira de respirar na aglomeração sufocadora das teses, dissertações e livros empilhados é percorrer autores de costas oceânicas que não conheço. Sylvia, housewife, Leste. Hank, mother fuck, West Coast. E há muitos outros. Muitas vidas que somo a minha pouco vivida vida ainda sem as estantes necessárias para multiplicar satisfatoriamente minha reles experiência de professora que vive de palavras. Todas as vidas que não vivi. E tudo o que, uma vez vivido depois dos cinquenta, certamente será único.

Leia muito a respeito das experiências alheias em pensamentos e atos - aproxime dos outros, mesmo que isso canse e seja mais confortável se recolher ao aconchego algodoado da bendita ignorância! Salte para metas acima de sua cabeça e suporte as escoriações que sofre quando escorrega e faz papel de boba. Tente sempre, enquanto tiver alento no corpo, seguir pelo caminho mais difícil, a moda espartana - e trabalhe, trabalhe, trabalhe para fazer de si uma entidade fértil, em continua evolução! (Plath, 2017, p.64).

Sylvia sublinhava. O cansaço, esse monstro, o único que precisa ser enfrentado. Trabalhar incansavelmente acaba num derrame ou infarto. Dependendo do tipo, cria câncer. Em algumas, produz performances histéricas, perturbadoras, convincentes. Textos que os professores, nos finais de semana atolados de trabalho, ignorando o quanto os alunos estão aproveitando as festas, digam "nem tudo está perdido, meu trabalho, mesmo que me tome os domingos, até que não é tão ruim". Observem, que nenhum desses grandes e dessas obras e tais versos que nos fazem os amar, vem de um professor. Isto permite dizer que quem se dedica efetivamente aos outros meio que oblitera a possibilidade da mais intensa literatura. Talvez a negligência seja a única maneira de ultrapassar a imensa quantidade de nomes. Brigamos contra a padronização. A diferença de cada um não pode ficar na cena acusatória, onde uns evoluem e outros ficam.

Escrever nunca foi trabalho para mim, e, mesmo quando sai mal, gosto da ação, do som da máquina de escrever, de um caminho para seguir (Bukowski, 2017, p. 188).

Mais que trabalho, escrever é se fazer melhor. Somos o bicho mais feio do universo. Só a arte salva o humano do grotesco que lhe é próprio. Na escrita atingimos uma espécie de relaxamento, um estado de espírito superior, algo preconizado por todos os filósofos, algo partilhado entre todos os amigos do saber. E tornar esse saber perene, por meio da escrita, que o fixará. Porém, esse processo envolve isso que Ray Bradbury, o americano criador típico, pressupõe um trabalho sem ruídos mentais, um "relaxamento". Trata-se do que o autor de Fahrenheit 451 chama de o ZEN da escrita, estado que envolve um "não pensar" junto ao trabalho concentrado e o relaxamento prazeroso da execução, que traz para a escrita "emoções libertas da hipocrisia literária e da preocupação comercial"(Bradbury, 2011, p.147). Sylvia Plath, já casada e graduada, com contos publicados, escreve em seu diário de 1957 como "as frases chegam" a ela: "em vez de arranhar a superfície plástica que resiste a minhas unhas, estou posicionada no centro de tudo, a extrair tudo, pôr tudo para fora, abruptamente, sei disso, mas está saindo, a organização e o formato virão depois" (Plath, 2017, p.334). Certo que a preocupação com o que virá sempre atrapalha o fluxo do pensamento que precisa ser expresso livremente para fazer jus a quem o registra, mesmo que, inicialmente, sem nenhuma coerência. Então, assuma as anotações sem nexo e faça de tudo isso matéria para seu texto. Mas, por favor, para manter seu professor saudável, não mostre o caos antes de fazer aparentar alguma ordem. Um mínimo de legibilidade ou precisão. Às vezes, um verso chave, verdade sua, pode dizer mais.

A grande questão é escrever para quem? (Cesar, 2011, p.415)

Em anotações dispersas, Ana Cristina Cesar escreve que, a partir de João Cabral, que também se corresponde com Clarice Lispector, passa a perceber "grande obsessão com a carta", pois só a carta resolve o problema do "leitor ninguém", tendo o diário como variação, tendo em vista ser um interlocutor íntimo, que eu arriscaria dizer um leitor de si. Na correspondência e na escrita de diários, "manda a prosa", que evita os sobressaltos da fala nunca localizada, sem discurso, da poesia que "desliza, embala, aplaina, seduz" (Cesar, 2011, p.415). Há quem defenda que poesia é poesia e teoria é teoria e que a escrita acadêmica não pode abusar de aberrações e falta de rigor (Villela, 2013). A poesia nos redime do tédio e das obrigações mortificadoras, porém uma plurivocidade de lutas, conceitos, experiências nos clama ao texto clarificado de uma objetividade comunicacional. Uma disciplina da boa escrita exige corte de "movimentos supérfluos, gesticulantes, deambulantes" (Benjamin, 2013, p.129), isso sem que a ginástica pressuposta em toda escrita leve a movimentos indolentes, a respostas automáticas, a membros cansados. O mau escritor se perde no esgotamento das ideias e na falta de uma poética do próprio pensamento. Sem poesia os instantes perdem o sabor e a escrita termina constrangendo a quem dela deveria se valer.

(...) o que fala em nome dos outros é um impostor. Políticos, reformadores e todos que reivindicam um pretexto coletivo são trapaceiros. Só a mentira do artista não é total, pois reinventa a si mesmo (Cioran, 2011, p. 31).

Sim, é arriscado. Primeiro porque para ser artista é preciso aceitar uma certa danação, uma intranquilidade constante, o peso do juízo alheio, o muito provável esquecimento, tendo em vista que o artista célebre será um entre cem mil. Ninguém sai ileso em relação ao que conhece e todos respondem pelos textos que por ventura escrevam, com ou sem arte. Não podemos acreditar que os textos que produzimos mudem o mundo, especialmente porque não é possível controlar até onde irá, no tempo e no espaço, a repercussão de um texto. Qualquer alun aparentemente abobad pode vir a ser a palavra do futuro. Fato é que somente aquel que escreve o que pensa, sendo aquilo que pensa todo seu corpo e coração, escreve algo que valha a pena ser lido. Numa carta para Adolfo de Casais Monteiro, datada de 1930, cinco anos antes de sua morte, Fernando Pessoa diz: "Não confie no que sente ou pensa, senão quando houver deixado de o sentir ou pensar" (Pessoa, 2007, p.313). Há um distanciamento, mas também um endereçamento, a esse outro, esse mundo que não me pertence, a quem escrevo. Como quase tudo o que é feito pelo homem, escrever, na maior parte dos casos, se dá pela motivação em relação ao outro, esse outro que escuta mesmo que a si mesmo. Nem toda escrita é arte, mas a arte da escrita só nos ensina algo quando no texto pulsa a vida burilada inteligentemente pelas palavras. Ainda na mesma carta de 1930, Fernando observa que "só quando o individuo se converte, pela inteligência, em um pequeno universo, tem matéria, na impressão, em que assim se convertem para fazer o que chamamos arte" (Pessoa, 2007, p.313). Aproveitar a sensibilidade e a transformar a experiência em texto, seguindo conselhos de escritores que nunca escreveram uma tese, um poeta com muitos nomes e todo um grande desassossego.

Na minha alma ignóbil e profunda registo, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da minha consciência em mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de imagens, por aléas de conceitos, por azinhagas de confusões. (Pessoa, 1999, p.315).

Viemos até aqui com esperanças e meu texto acabe preconizando uma perdição. Talvez você diga que não valho nada porque minhas escolhas não são acadêmicas. Que eu trouxe aqui autores nada comportados, estranhos, suicidas, beberrões, com muitas caras, assombrados, x, z. Não me importo, como professora de artes, acabei me acostumando a ser desmerecida. Para alguém que percorre muitas áreas, que não tem tempo para publicidades e relações estratégicas, que vive a romper com limites ser ignorado é rotina. Passo horas dando respostas porque minha coleção de não retornos e silêncios não permite que o outro que a mim se dirige viva a nulidade que o mundo nos quer dar. Por isso escrevo. Por isso vocês devem escrever. Mesmo que só entre nós seremos lidos. Sem senso de dever, apenas por insistência, apenas para dizer que se vive e que a coisa não deveria ser tão cheia

de deveres. O que faz um professor continuar vivendo é saber que faz alguma coisas para as pessoas e no caso da escrita, fazer com que suportem e tenham prazer com tudo o que a Universidade as obriga. Trago infames, nem todos, alguns autores anglófonos, talvez porque somente o inglês permita pensarmos economicamente, mas trago alguma coisa para que experimentar uma escrita não seja algo que nos leve a cortar os pulsos. Trago autores que eu amo e ajudam os tomados pelo fracasso a conseguirem viver por mais um dia. Não me condene, afinal, se chegou até aqui, alguma coisa tirou das minhas palavras e mesmo que me odeie por expor alguns dos meus problemas, pelo tom confessional, por ser grossa, posar nua e ter antepassados culposos, alguma coisa há de ter aprendido. Porém, como quase tudo que se produz, muito provável que este texto seja bastante ignorado. O que vale, na raridade de um leitor que por ventura acompanha o que uma mulher escreve atentamente, não é desmotivar alguém ser professor e dedicar sua vida aos outros, afinal, esse ir e vir de textos tem suas compensações. Minha motivação aqui é te dar motivos para parar de se preocupar com a escrita e, efetivamente, escrever algo que dê gosto a quem te ensina.

Se não houvesse escrita, eu me sentiria muito triste, e teria coração pesado. Se algo nos inquieta e queremos compartilhá-lo com alguém, como é reconfortante confiar tudo ao papel! (Shônagon, 2008, p.354).

 

Referências

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Enviado em: 15/05/18
Aceito em: 06/07/18

 

 

Paola Zordan é doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: paola.zordan@gmail.com

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