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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.5 no.8 São João del Rei jun. 2016

 

ARTIGOS

 

O desejo puro de Antígona: ética lacaniana e dimensão trágica

 

Desire pure Antigone: lacanian ethics and tragic dimension

 

Desire Antigone pure: éthique et dimension lacanienne tragique

 

El deseo de un puro Antígona: Ética Lacaniana y trágica dimensión

 

 

Flávia Gaze Bonfim

Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Supervisora do setor de Psicologia Geral da Associação Fluminense de Reabilitação. flaviabonfimpsi@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo busca retomar a discussão sobre a ética posta por Lacan no Seminário 7 articulada a partir da tragédia grega Antígona. Para Lacan, Antígona é uma figura ilustrativa para a psicanálise no sentido de manter uma postura radical de "não ceder a seu próprio desejo". Com isso, o ensino lacaniano nos aponta para uma ética do desejo que se situa para além do bem e que não se assemelha a um sistema de prescrições, sendo a psicanálise a única que configura plenamente o projeto de uma ética sem obrigação.

Palavras-chaves: Ética; psicanálise; desejo; tragédia; comédia.


ABSTRACT

This article seeks to resume discussion of ethics posed by Lacan in Seminar 7 articulated from the Greek tragedy Antigone. For Lacan, Antigone is an illustrative figure for psychoanalysis to maintain a radical stance of "not give in to his own desire". Thus, the Lacanian teaching points us to an ethic of desire that lies beyond good and that does not resemble a system of prescriptions, being the psychoanalysis the only that set up a project of an ethics without obligation.

Keywords: Ethics; psychoanalysis; desire; tragedy; comedy.


RÉSUMÉ

Cet article cherche à reprendre la discussion sur l'éthique posés par Lacan dans le Séminaire 7 articulé de la tragédie grecque Antigone. Pour Lacan, Antigone est une figure d'illustration pour la psychanalyse de maintenir une position radicale de «ne pas céder à son propre désir." Ainsi, l'enseignement lacanien nous montre une éthique du désir qui se trouve au delà du bien et qui ne ressemble pas à un système de prescriptions et de la psychanalyse le seul pleinement met en place le projet d'une éthique sans obligation.

Mots-clés: Éthique; la psychanalyse; désir; la tragédie; comédie.


RESUMEN

Este artículo trata de reanudar la discusión de la ética planteados por Lacan en el Seminario 7 articulado de la tragedia griega Antígona. Para Lacan, Antígona es una figura ilustrativa para el psicoanálisis para mantener una postura radical de " no ceder a su propio deseo. " Por lo tanto, la enseñanza lacaniana nos apunta a una ética del deseo que se encuentra más allá del bien y que no se parece un sistema de recetas y el psicoanálisis el único plenamente pone en marcha el proyecto de una ética sin obligación.

Palabras clave: Ética; el psicoanálisis; el deseo; tragedia; comedia.


 

 

Servir-se da peça Antígona para abordar o tema da ética não é uma novidade lacaniana. O próprio Lacan, no Seminário 7 - A ética da psicanálise (1997 [1959-60]), nos esclarece que os mais variados pensadores, entre eles Hegel e Goethe, já tomaram essa tragédia como ponto de partida para a discussão sobre ética - principalmente quando se coloca em jogo o tema do conflito de um sujeito com uma lei que é partilhada na comunidade como representante de uma lei justa. Lacan, entretanto, se distancia de tais construções e toma o drama trágico em toda a sua radicalidade e originalidade ao levantar seus efeitos de questionamento e transgressão. A partir disso, procura, de maneira precisa, delimitar a ética da psicanálise. Para melhor acompanhar a discussão travada no ensino lacaniano, retomo a seguir, de forma suscita, os enlaces trágicos que se passam nessa peça.

 

A tragédia

A peça grega Antígona compõe "A trilogia Tebana" de Sófocles, da qual fazem parte também as tragédias "Édipo Rei" e "Édipo em Colono". Antígona é filha de Édipo com Jocasta, carregando em seu nome uma forte etimologia, a saber: "a distinta por seu nascimento, a nobre" (Brandão, 1991, p. 82). Seus irmãos se chamam Etéocles, Polinices e Ismene. Édipo, após se cegar, ao descobrir ter mantido relações com sua mãe, continuou a viver em Tebas, mas não assumiu o reinado. Então, seus filhos Etéocles e Polinices passaram a disputar o trono da cidade. Absorvidos por suas ambições, os dois mostraram-se insensíveis em relação à desgraça do pai, sendo por esse motivo que Édipo os amaldiçoou.

Na disputa pelo trono, Etéocles e Polinices chegaram a um acordo segundo o qual se revezariam no reinado por período de um ano, a começar por Etéocles. Este, porém, não cumpriu o pacto após o período transcorrido. Policines, então, tentou tomar o trono de seu irmão e nessa disputa os dois se mataram. Antes, porém, de morrer, Policines pediu a Antígona que caso isso ocorresse, que ela lhe desse uma sepultura condigna no caso de sua morte.

Após a morte de ambos, Creonte, irmão de Jocasta e tio de Antígona, assumiu o poder e seu primeiro ato foi proibir o sepultamento de Polinices (invasor de Tebas e tomado a partir disso como inimigo), sob a pena de morte para quem tentasse fazê-lo. Derramar lágrimas por ele era igualmente proibido. Já, para Etéocles, ele concedeu funerais de herói como defensor da cidade. Antígona decide conceder honras fúnebres a Policines, apesar da proibição de Creonte, e toda a trama se passa, assim, em torno desse ato.

Negar um funeral a um morto era uma proibição radical, pois o sepultamento tinha um valor importante de assegurar ao defunto no além-túmulo a reverência da legião dos mortos. Era, portanto, negar uma honra ao morto, além de se constituir como transgressão das normas divinas.

Para sepultar seu irmão, Antígona pede ajuda a sua irmã Ismene, mas ela se nega a apoiá-la por medo e tenta convencê-la do contrário. Antígona diz que não sepultar Polinices seria "morrer envergonhada" e cumpre sua decisão, não ocultando sua ação e sabendo que seu destino era a morte. É nesse ponto que Lacan articula a posição de Antígona à postura ética da psicanálise, na medida em que ela não cedeu ao seu desejo.

Creonte deixou o corpo de Polinices exposto, insepulto de modo que os cães e aves carniceiras o devorassem. Antígona, então, colocou terra seca sobre o corpo do morto e praticou deveres de piedade. Ao encontrar o corpo assim, os guardas contaram a Creonte. Tiraram a terra que recobria o morto e o despiram. Antígona mais uma vez foi sepultá-lo e os guardas a descobriram, levando-a para Creonte. Ele a prendeu e decretou que sua punição era ser enterrada viva numa caverna pedregosa.

Ismene foi também levada a Creonte e assumiu a culpa com a irmã. Antígona, porém, desmentiu a irmã, dizendo-lhe que não recebeu dela ajuda ou aprovação do seu ato. Disse, então: "A tua escolha foi a vida; a minha a morte". "[...] Não te preocupes; estás vivas, mas minha alma há tempo já morreu, para que eu sirva aos mortos" (Sófocles, 2009, p. 225).

Antígona era noiva de Hêmon, filho de Creonte. Hêmon, a princípio, apoiou o pai, mas após ouvir os comentários dos cidadãos tebanos tentou fazer com que o pai refletisse sobre a decisão de matar Antígona. Creonte não deu ouvidos ao filho e, diante disso, Hêmon pronunciou: "Pois ela morrerá levando alguém na morte" (Ibid., p. 234).

Tirésias, adivinho, foi ao encontro de Creonte e profetizou que, por suas decisões, Tebas estava enferma e que homens e mulheres do lar de Creonte morreriam por conta de seu ato. Creonte, então, decidiu renunciar da decisão e ele mesmo foi soltar Antígona. Creonte, nas palavras de Lacan, cede ao seu desejo ao recuar de sua decisão.

Ao se aproximar do local onde Antígona estava, Creonte ouviu gritos de dor, que reconheceu ser de seu filho. Chegando ao interior do calabouço, encontrou Antígona estrangulada com seu próprio véu e Hêmon abraçado a ela. Quando viu o pai, Hêmon cuspiu em seu rosto e o atacou com uma espada de dois gumes, mas não conseguiu acertá-lo. Hêmon, com raiva de si mesmo, se matou com a espada.

Ao saber da notícia, Eurídice, mãe de Hêmon e esposa de Creonte, se matou também. Creonte perde, então, o filho e a esposa, encerrando com o que ele extraiu das consequências de seu ato. Eis suas palavras:

Ai! Ai de mim! O autor dessas desgraças sou eu e nunca as atribuirão a qualquer outro entre os mortais, pois eu, só eu as cometi, pobre de mim! Fui eu, e falo apenas a verdade! Levai-me imediatamente, escravos, para bem longe, pois não sou mais nada. (Ibid., p. 257)

 

A ética lacaniana e o desejo puro de Antígona

De acordo com Lacan (1997 [1959-60]), Hegel considera que existe na referida tragédia uma oposição de discurso entre Antígona e Creonte - discurso da família opondo-se ao discurso do Estado, que tenderia no seu final a uma reconciliação. A filosofia hegeliana baseia-se em um sistema de raciocínio dialético, uma vez que qualquer fenômeno dado (tese) possui dentro de si pontos contraditórios (antítese) que necessitam de um movimento em direção a uma síntese, uma solução (Stangroom, 2008). Parece, então, que baseado nesse modo particular de compreensão, Hegel fez sua leitura da tragédia de Antígona enfatizando um aspecto de "reconciliação", "síntese" ao seu final. Lacan se questiona qual seria essa reconciliação, pois Antígona é uma sequência trágica da maldição que é lançada por Édipo aos seus filhos na peça "Édipo em Colono". Interroga, assim, Lacan: "como falar de conciliação num tal registro?" (1997 [1959-60], p. 303).

Vale destacar que a perspectiva de Hegel sobre a tragédia vem em conformidade ao modo de leitura sobre a produção grega, no qual se busca demonstrar como o processo de individualização tende a esbarrar no limite imposto pela vida coletiva, sendo esse tipo de conflito criador e restaurador. É, nesse sentido, que para Hegel ao final da trama uma reconciliação se produziria. Vemos, assim, ser destacado sua noção central do progresso da consciência por meio do conflito. Contudo, o preço a ser pago por tal interpretação é privar o drama grego de sua virulência e originalidade, visto que não se enfatiza os efeitos da ação trágica propriamente dita - a noção de fatalidade em sua relação com o conflito e a divisão subjetiva (Rubião, 2003).

Goethe, por sua vez, diz Lacan (1997 [1959-60]), possui um pensamento semelhante ao de Hegel, na medida em que entende a existência de dois princípios de lei, dois discursos. Creonte, impelido por seu desejo, procura atingir seu inimigo, Polinices, para além do limite que é possível atingi-lo, ou seja, da primeira morte. Ele procura infligi-lo também uma segunda morte - algo sobre o qual ele não tem direito.

Segunda morte é um termo que Lacan extrai de Sade, porém dando-lhe um novo contorno. Segundo Rubião (2003), Sade elabora uma teoria do crime, justificando que o assassino tira da vítima apenas a sua primeira morte, restando o desafio de retirar a segunda vida. Assim, a primeira morte seria a morte biológica, decorrente do envelhecimento, doença ou acidente; e a segunda morte refere-se ao aniquilamento do ser. Lacan, porém, situa a segunda morte no que diz respeito ao caráter mortífero do automatismo de repetição, ao sujeito quando barrado pelo significante, numa relação com a linguagem que o obriga como falante a dar conta do que ele é e não é como sujeito; morte simbólica advinda da castração que constitui o sujeito na linguagem.

Antígona, para evitar a segunda morte, a morte do símbolo, busca com seu gesto humanizar e eternizar seu irmão na memória da família, rendendo-lhe honras fúnebres. Para tanto, ela também terá de consentir com sua própria morte (Rubião, 2003). Indo além desse ponto, Lacan argumenta:

Não se trata de um direito que se opõe a um direito, mas de uma iniqüidade que se opõe - a quê? A outra coisa que Antígona representa. Digo-lhes, não é simplesmente a defesa dos direitos sagrados do morto e de sua família, nem tampouco o que quiseram representar para nós de uma santidade de Antígona. Antígona é levada por uma paixão. (1997 [1959-60], p. 308)

A imagem de Antígona é de uma paixão. Rubião (2003) destaca que Antígona exprime um gesto único, um ato tributário de sua singularidade, sem referência e apelo ao campo de Outro e a rede discursiva. Sua ação remete à dimensão de desamparo posta por estrutura para todo sujeito. Antígona inscreve seu desejo num ponto no qual não se pode verificar uma ancoragem simbólica no Outro. Esse é, então, o valor dessa tragédia para pensar a ética da psicanálise e a questão do desejo nesse momento do ensino lacaniano.

Lacan destaca que "a tragédia se encontra na raiz de nossa experiência, como testemunha sua palavra-chave, a palavra pivô catarse" (1997 [1959-60] p. 296, grifo do autor). De outro modo, poderíamos dizer que a tragédia encontra-se presente no cerne de nossa experiência analítica, na medida em que a primeira "tem por meta a catarse, a purgação das 'pathematas', das paixões, do temor e da piedade" (Ibid., p. 300). A terminologia catarse tem suas origens na Antiguidade a partir do que Aristóteles considerava ser essencial para que uma obra fosse definida como tragédia. Tal obra deveria ser um "meio que efetua pela piedade e pelo temor a catarse das paixões semelhantes a esta" (Ibid., p. 297). Nesse contexto, catarse era entendida como purgação. Numa definição simplista de dicionário, purgação quer dizer "ato de purificar, limpar, remir (culpa), cumprir pena, expelir pus ou maus humores" (Ferreira, 2000). Assim como o termo purgação, catarse na Antiguidade comportava também essa duplicidade, tendo uma conotação médica vinculada a "eliminações, descarga, retorno ao normal" e também podendo ser entendida como "purificação", especialmente "purificação ritual" (Lacan, 1997 [1959-60], p. 297). Nas duas perspectivas, poderíamos dizer que catarse implica em livrar-se de algo, seja no corpo ou na alma. Aristóteles, porém, associou o termo catarse também a apaziguamento.

Lacan (Ibid.), então, nos coloca uma questão: como podemos conceber que a tragédia tem por objetivo uma catarse, a purgação das pathematas, das paixões, do temor e da piedade? Para respondê-la, Lacan toma como eixo o que ele vinha articulando a respeito do lugar do desejo na economia da Coisa freudiana. Ele segue, assim, dizendo-nos que Antígona nos permite ter acesso àquilo que define o desejo. Ou seja, sua figura é ilustrativa para a psicanálise no sentido de uma postura radical de "não ceder a seu próprio desejo". A respeito da imagem de Antígona, diz Lacan:

Essa imagem [misteriosa] está, no entanto, no centro da tragédia, visto que é a imagem fascinante da própria Antígona. Pois bem, sabemos que para além dos diálogos, para além da família e da pátria, para além dos desenvolvimentos moralizadores, é ela que nos fascina, em seu brilho insuportável naquilo que ela tem que nos retém e, ao mesmo tempo, nos interdita, no sentido em que isso nos intimida, no que ela tem de desnorteante - essa vítima tão terrivelmente voluntária. (Ibid., p. 300)

A imagem misteriosa de Antígona comporta paixões singulares, que são o temor e a piedade, sendo esse o verdadeiro alcance da tragédia, pois a partir desses sentimentos, como já foi assinalado, se é purgado, purificado, de tudo o que é dessa ordem. Aí, está a beleza de Antígona, seu brilho. Ela coloca "em questão a função do belo, em relação ao que abordamos, como sendo a visada do desejo" (1997 [1959-60]), p. 311). Lembremos, porém, o que Lacan nos revela a respeito do belo, ao longo do Seminário 7, a saber, que ele (o belo) vislumbra a questão do desejo, mas, ao mesmo tempo, pode intimidar-nos por gerar uma paralisia diante dele.

Avançando na discussão sobre Antígona, Lacan nos diz que o brilho dela é extraído de um lugar específico - "lugar que ela ocupa no entre-dois de dois campos simbolicamente diferenciados" (Ibid., p. 301). É esse lugar que Lacan procura definir, tendo apreendido pela primeira vez pela via da "segunda morte". A "própria morte física é, para Antígona, a segunda morte, uma vez que, assimilada independentemente de qualquer consideração do bem, ela já penetrara na vida" (Safouan, 2006, p. 118). O "entre-dois campos" são a vida e a morte, comportando desse modo uma zona-limite, que é expresso de forma central na peça por meio do "destino de uma vida que vai se confundir-se com a morte certa, morte vivida de maneira antecipada, morte invadindo o domínio da vida, vida invadindo a morte" (Lacan, 1997 [1959-60], p. 301).

Por sua vez, é da morte que ela aborda a vida. "É essa invasão da morte na vida que confere seu dinamismo a toda questão, quando ela tenta formula-se, sobre o tema da realização do desejo" (Lacan, 1997 [1959-60], p. 353). Assim, se Antígona serve a Lacan para discutir a dimensão desejante é porque no Seminário 7 o desejo está articulado a falta, a perda, a morte como castração.

Antígona está situada no ponto de falta do Outro, no ponto do nada de onde advém o significante. Mais precisamente, ela está no lugar de das Ding, entendido como "lugar vazio, núcleo traumático em torno do qual o simbólico se organiza. Ele é pensado como ponto de destruição do simbólico e, ao mesmo tempo, o ex-nihilo a partir do qual ele se cria" (Rinaldi, 1996, p. 105). Vieira (2000) escreve que das Ding não é bom ou mal em si, mas se constitui como o horizonte no qual os objetos vão se situar. Ainda sobre o conceito de das Ding, Vieira esclarece:

[...] Das que nos satisfaz na comédia, nos faz rir, nos faz apreciá-la em sua dimensão humana, não seus objetos. Ele é algo em relação ao qual o sujeito se estrutura, o real inacessível em relação ao qual o simbólico se organiza. Ele só pode ser representado como um vazio, pois não tem existência no mundo dos objetos, sendo antes uma dedução a partir da estrutura do desejo do que seu "objeto" primordial. (2000, p. 45)

Ainda sobre a questão da tragédia e a catarse das paixões, Lacan (1997 [1959-60]) sinaliza que, à primeira vista, Creonte e Antígona não parecem conhecer o temor e a piedade. Isso, porém, modifica-se ao final da peça, visto que Creonte deixa-se ser tocado pela piedade, já Antígona não - sendo justamente isso que a faz "o verdadeiro herói". Temos uma Antígona "fria", sem "piedade, nem temor", inflexível, indomável, decidida a agir. Sua imagem é singular e seu caráter é absolutamente radical, diz Lacan (Ibid.), porque insiste em não ceder de seu desejo, nem mesmo no momento em que enfrenta a maior adversidade.

Creonte, assim, tal como salienta Aristóteles, comete uma hamartia, que pode ser mal traduzido como "erro de julgamento". Esse erro pode ser situado quando ele se abate ao final da trama com os acontecimentos de seu destino. O mesmo não ocorre com Antígona. Lacan (Ibid.) mais uma vez reitera o fato de Creonte não ser herói, e sim Antígona, pois a hamartia não está no nível do "verdadeiro herói". O erro de julgamento de Creonte foi querer fazer o bem, no sentido do bem (Begriff) de Kant, pois pautado por esse princípio ele não poderia honrar ao mesmo tempo aquele que defendia a pátria e o que a atacava.

Segundo Dalbone e Bastos (2009), na visão kantiana a razão é o elemento determinante que conduz o homem em sua ação, enquanto consciência da lei moral; portanto, seu agir provém da natureza inteligível do humano e não de sua natureza empírica e sensível. Desse modo, Kant elimina do campo moral toda determinação de ordem passional e tudo que possa ser situado como a fonte das paixões. O campo das paixões orienta o humano num plano meramente particular, já a partir da razão pura o homem atingirá o absoluto, o universal válido para todos, logo, uma verdadeira ação moral. Nesse sentido, Kant elimina do campo ético qualquer expressão da subjetividade (Dalbone & Bastos, 2009). "É a linguagem da razão prática", observa Lacan (1997 [1959-60].). O bem que advém da razão, enquanto um valor universal. O axioma da lei moral na filosofia kantiana é pautado no pressuposto: "Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer como princípio de uma legislação universal" (Ibid., p. 98). Sobre isso, Miller pondera: "É tão exigente dizer que cada um deve atuar de maneira tal que todos possam fazer o mesmo! [...] Isso destrói toda particularidade". (1997, p. 349)

Segundo Rinaldi (1996), Creonte representa a lei da Cidade, que conduz a comunidade para o bem de todos, portanto, situa-se no âmbito do serviço dos bens, no qual o que é considerado justo, um bem, está fundamentado na ordem do poder. Antígona, por sua vez, para além do que seu irmão Polinices pôde fazer de certo ou errado, mantém-se numa posição inquebrantável de sepultá-lo, garantindo o valor de seu ser. É pelo que ele é que o ato dos funerais deve ser preservado. Rubião (2003) salienta que Antígona em sua ação encontra-se desprovida de qualquer orientação que possa se referir ao valor do bem e do mal, ao passo que Creonte, tomado de razão política e orientado na ordem da justiça, pensa sustentar uma decisão livre de contradição ou paradoxo - o que não se mantém ao final da tragédia. Nesse sentido, Lacan nos alerta que "O bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso, de cujas conseqüências fatais nos adverte a tragédia" (1997 [1959-60], p. 314).

Lacan (Ibid.) afirma que Antígona é aquela que fornece a via dos deuses. Ela obedece a leis não escritas - aos dikes dos deuses, o dizer dos deuses. Fabiãn Naparstec (2008) nos lembra que Polinices, na tragédia Édipo em Colono, antes de falecer, pede a Antígona que se ele morresse, que ela lhe desse uma sepultura condigna. Porém, o psicanalista nos chama a atenção para o fato de que em nenhum momento Antígona fornece uma resposta explícita ao pedido do irmão, ainda que a cena dê a entender que há um acordo entre ambos. É interessante apontar que Antígona não abona seu ato em função de uma resposta à demanda do outro, mas, nos escreve Naparstec (2009), que todas as justificativas estão sustentadas nas leis não escritas dos deuses e na diferença entre um marido, um filho e um irmão. Pois, como ela própria nos revela, se ela perdesse o marido, poderia casar-se com outro. Se perdesse um filho, poderia ter outro, mas irmão não - visto que seus pais já haviam morrido (Sófocles, 2009).

Por estar submetida a leis dos deuses, ela não conhece nem o temor, nem a piedade. Lacan refere-se aos dikes dos deuses como um campo. Esse campo tem um limite, que é o limite da segunda morte, fazendo aparecer o "fenômeno do belo". Ou seja, "É na travessia dessa zona [limite] que o raio do desejo se reflete e, ao mesmo tempo, se retrai, chegando a nos dar esse efeito tão singular, o mais profundo, que é o efeito do belo no desejo" (Lacan, 1997 [1959-60], p. 302).

Lacan segue se atendo com mais precisão na peça de Antígona. Ele, então, nos diz que existe um termo no qual se centra a tragédia Antígona que é o áte. Essa palavra "designa o limite que a vida humana não poderia transpor por muito tempo [...] Para além dessa Áte, só se pode passar por um tempo muito curto e é lá que Antígona quer ir" (Ibid., p. 318, grifo do autor), pois sua vida não vale mais a pena ser vivida; seu drama é insuportável: seus irmãos e seus pais morreram, além disso, ela reside na casa de Creonte submetida à lei dele, e isso ela já não pode mais tolerar.

Lacan descreve Antígona como um ser desumano, estando aí seu enigma. Creonte, por sua vez, possui uma estrutura, como a de todo carrasco e tirano, de ser um personagem humano. "Só os mártires são sem piedade e sem temor" (Ibid., p. 324). Creonte decreta o suplício de Antígona de ser enterrada viva. Antígona não teme, nem se arrepende do que faz. Mais ainda, ela é um ser desumano, pois seu desejo visa precisamente o para além do Áte. Lembremos que em conversa com sua irmã Ismene, ela diz: "A tua escolha foi a vida; a minha, a morte" (Sófocles, 2009, p. 225). Sua postura é inflexível diante do seu desejo. Creonte, pelo contrário, quando Tirésias diz que males afligirão sua família, ele teme e recua em sua decisão. Assim, podemos entender o que Lacan nos fala a respeito da tragédia quando nos diz que nela não há nenhuma espécie de verdadeiro acontecimento; há sim um "herói e o que está à sua volta situam-se em relação ao ponto de visada do desejo" (1997 [1959-60], p. 321). Ou seja, Lacan procura demarcar a posição diante do desejo de Antígona e Creonte.

Para falar da posição de Antígona e sua relação com o desejo, Lacan retém outro termo grego que aparece na tragédia, a saber: "imeros enarges". Imeros designa o que Lacan tenta apreender "como reflexo do desejo na medida em que ele cativa até mesmo os deuses. [...] Imeros enarges é literalmente o desejo tornado visível" (Lacan, (1997 [1959-60], p. 324). Tal termo indica o lugar do desejo, na medida em que aponta para o desejo de nada, para a relação do homem com sua falta-a-ser. É isso que Antígona representa. Seu ato de sepultá-lo acarretaria a sua morte, porém ela não se aflige com isso. Ela se enforca, pois, afinal, ela estava morta por dentro pela perda do irmão. Creonte, pelo contrário, arrepende-se e lamenta seu destino. Seu filho e sua esposa se matam. Isso, ele não suporta e pede aos guardas que o levem, que o arrastem pelos pés.

Diante disso, articulando o tema da ética e a peça Antígona, Lacan nos aponta que a dimensão trágica nos revela uma relação fundamental do desejo puro, desejo como radical estreitamento com a morte. É na paixão de Antígona, no fato de ela não ceder ao seu desejo, que podemos extrair o que é de capital para levarmos em conta na discussão sobre a ética. Paixão para além da morte, vale lembrar. Nas palavras de Lacan: "A ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, a arrumação, do que chamo de serviços dos bens. Ela implica, propriamente falando, a dimensão que se expressa no que se chama de experiência trágica da vida" (1997 [1959-60], p. 375-376).

 

O desejo, a tragédia e o cômico

Rinaldi (1996) considera que o interesse de Lacan pela tragédia se dá pelo fato de ela colocar em evidência o trágico embate do herói com os valores da Cidade, fazendo daí surgir a questão do desejo. Com Lacan, entendemos que é "na dimensão trágica que as ações se inscrevem, e que somos solicitados a nos orientar em relação aos valores", sendo que "a relação da ação com o desejo que habita na dimensão trágica se exerce no sentido de um triunfo da morte" (1997 [1959-60], p. 376). Rubião (2003) destaca que, na tragédia Antígona, vemos ser articulado um vínculo estreito entre desejo e morte, mas é importante salientar que não encontramos na leitura lacaniana uma associação entre preceito ético de não ceder sobre o desejo e o ato suicida da personagem, no qual se autorizaria o puro desejo de morte a uma procura de fato pela morte.

Se a tragédia nos serve para articular a dimensão desejante, por outro lado, observa Lacan (1997 [1959-60]), a dimensão cômica também trata da relação da ação com o desejo e sua impossibilidade estrutural em satisfazê-lo. De modo mais preciso, Lacan aponta que no centro da dimensão cômica está um significante escondido, a saber, o falo. E pouco importa que ele venha a ser escamoteado em seguida, ele está lá.

No Seminário 5 - As formações do inconsciente, ao fazer referência às comédias de Aristófanes, Lacan nos lembra que "a comédia era produzida diante da comunidade, na medida em que esta representava um grupo de homens, isto é, constituía acima dela a existência de um Homem como tal" (1999 [1957-58], p. 272). A comédia antiga, portanto, surge em um contexto de culto ao falo, de evidência da virilidade e de exclusão das mulheres. Entretanto, por outro lado, o que estava em cena na comédia era a crítica às instituições, à política e às concepções da época, isto é, a crítica a tudo aquilo que aparecia no lugar de falo imaginário. Sobre esse aspecto, Caldas aponta que a comédia "Era, portanto, a encenação da execução à regra universal da castração na apresentação exagerada da regra, na exacerbação da condição humana de falta e desejo" (2000, p. 157). Desse modo,

o que nos satisfaz na comédia, nos faz rir, nos faz apreciá-la em sua dimensão humana, não excetuando o inconsciente, não é tanto o triunfo da vida quanto sua escapada, o fato de a vida escorregar, furtar-se, fugir, escapar de tudo o que lhe é oposto como barreira, e precisamente as mais essenciais, as que são constituídas pela instância do significante. (Lacan, 1997 [1959-60], p. 376)

Com Lacan (1997 [1959-60]), podemos dizer que a dimensão cômica, ao contrário da trágica, não põe em evidência o triunfo da morte, o ser-para-morte. Há em certo sentido, uma afirmação da vida, contudo, isso não é o principal, sendo mais importante o que escapa a ela. É, nesse sentido, que o falo pode ser articulado a essa discussão, na medida em que é o significante da escapada. O falo é o significante do desejo, logo, possui uma relação intrínseca com a falta. Não será justamente a falta condição dessa escapada? Nesse sentido, podemos ponderar que a comédia vem escrever o falo como castração que está para todo sujeito, porém, podendo extrair disso algo risível. Nas palavras de Lacan: "A comédia assume, colhe, desfruta da relação com um efeito que está fundamentalmente relacionado com a ordem significante, qual seja, o aparecimento do significante chamado falo" (1999 [1957-1958], p. 273). Caldas (2000), por sua vez, ao propor uma distinção entre tragédia e comédia, nos escreve que a primeira traz a submissão do sujeito à vertente mortífera do efeito do significante, enquanto a segunda, permite atribuir ao falo um gozo possível e vivificante.

Do mesmo modo, Rubião destaca: "Se a tragédia situara-se como expressão da relação de fatalidade que o homem mantém com a fala, a comédia apontaria para um tipo diferente de relação em que algum proveito pode ser daí extraído. Uma relação de consumo com a palavra, diz-nos Lacan, em que se torna possível gozar da palavra" (2003, p. 69). A autora continua assinalando que: "Do lado da comédia, opera-se com maior liberdade em relação ao gozo, cujo conceito remete-nos tanto para a vertente da morte e da perda, quanto do aspecto da vida, da exigência pulsional propriamente dita" (Ibid., p. 73)

Ainda que uma distinção entre o trágico e o cômico possa ser estabelecida, para Lacan (1999 [1957-58]), a comédia não deixa de estar ligada à tragédia, na medida em que uma comédia sempre completava uma trilogia trágica. Anos depois (1997 [1959-60]), ele ratifica tal consideração ao propor que a dimensão trágica e cômica não são incompatíveis, visto que existe o tragicômico, sendo portanto nisso que consiste a experiência humana. Nesta, convive a tragédia e a comédia, a pulsão de vida e de morte articulada, já que no âmago dessa experiência é possível reconhecer a natureza do desejo. Entendo que se no âmago da experiência humana está o desejo, é a partir disso que Lacan pôde propor uma questão ética com valor de juízo final, a saber, "Agiste conforme o desejo que te habita?" (1997 [1959-60], p. 376).

 

Psicanálise: uma técnica ética

Ao longo do Seminário 7, assistimos Lacan precisar sua posição em relação à ética aristotélica - sendo esta uma das formas de reflexão que mais se destaca no campo ético. Para Aristóteles, a ética é uma disciplina da felicidade, uma ciência de valores, uma dinâmica dos hábitos na busca do Bem Supremo. Na perspectiva aristotélica:

Alguma coisa é virtuosa na medida em que preenche seu potencial latente. Assim, os seres humanos conseguem excelência quando agem de acordo com os ditames da razão. Os seres humanos se comportam bem se evitam tanto o excesso quanto a moderação inadequada em suas respostas às situações que enfrentam. (Stangroom, 2008, p. 15)

Influenciada pelos desdobramentos dessa perspectiva ao longo da história, a sociedade assumiu a tendência de tomar a ética a partir da norma, contudo, o que a psicanálise vem nos ensinar é discutir o tema da ética desarticulando-a de um sistema de prescrições. De acordo com Safouan, a psicanálise é a única que "realiza plenamente o projeto de uma ética sem obrigação. Bem mais, ela parte justamente do fato de que a obrigação não precisa de uma ética para impor a sua forma - aquela mesma na qual Lacan identifica 'a Coisa freudiana'" (2006, p. 119).

Desse modo, podemos delimitar que o campo da ética em psicanálise ultrapassa uma discussão a respeito de um conjunto de regras no plano ideal que determinasse uma "conduta profissional do analista". Ou seja, a ética da psicanálise não é uma moral, não promete um Bem soberano e universal, não promete conduzir o sujeito a ficar em harmonia com o mundo - o que seria impossível, tal como podemos recolher do texto freudiano "Mal estar na civilização". Freud, por meio do texto "Moral Sexual civilizada e o nervosismo moderno", de 1908, reconheceu inicialmente que as proibições e as restrições da civilização causavam a neurose, contudo, em 1930, pôde situar que o sofrimento e a neurose dizem respeito ao próprio funcionamento da vida pulsional. Sendo assim, Lacan (1997 [1959-60]) afirma que o analista sabe que o Bem Supremo não existe, e garantir ao sujeito que na análise ele encontrará sua felicidade, seu bem, é uma espécie de trapaça.

Disso, então, podemos extrair que a psicanálise jamais conseguirá desembaraçar a massa de seus conflitos e nem se dispõe a isso. A solução não está na recusa da lei. De acordo com Dalbone e Bastos (2009), apesar de Sade incitar o derrubamento de toda lei moral, no qual a liberdade teria seu auge, um imperativo permanece velado em sua obra, uma vez que uma máxima universal sobre a ação do homem condiciona a todos a agir do mesmo modo. Ou seja, todos devem gozar do outro, como instrumento de seu prazer. Trata-se assim de um imperativo no qual somente a lei perversa tem lugar, pois a ordem é gozar. Não há espaço para singularidade nessa visão, tendo em vista que estaria vedado ao sujeito não desejar, não usar o outro para o seu prazer. Diante disso, Dalbone e Bastos escreve que:

A psicanálise não pretende se desvincular de uma lei que regule o desejo, mas também não abre mão da expressão de singularidade que comporta o sintoma. Seus princípios surgem de uma tensão, aquela entre o sujeito e a alteridade, cuja expressão mais precisa é o desejo inconsciente. Unindo lei e desejo inconsciente, a lei promotora do desejo não se confunde com a lei, não corresponde ao desejo em seu estado puro, mas ao desejo por meio do qual o sujeito responde por seu gozo. (Ibid., p. 5-6)

Se a psicanálise opera como uma práxis que não mantém em seu horizonte um Bem universal, do mesmo modo o analista não intervém a partir de seus ideais, a partir de seu desejo - o que produziria somente mais alienação do sujeito diante do Outro. Assim, o psicanalista não se identifica ao lugar para o qual é convocado de "sujeito suporto saber", mas se coloca no lugar de objeto causa de desejo, lugar enigmático, com o intuito de conduzir o analisando a querer saber sobre seu próprio desejo. Mais ainda, do lado do analista, há uma direção ética de tratar sem, contudo, visar a normatização do sujeito - tarefa fadada ao fracasso, vale dizer, tendo em vista que o sujeito não pode ser curado do seu sinthoma. Posto sobre essa perspectiva, a psicanálise visa conceder um lugar ao sujeito e a sua particularidade, no qual inclui a "loucura de cada um", o seu o ponto de incurável, o seu sinthoma. Procurar fazer o bem a seu paciente, por meio de um desejo de curar, afasta o analista de sua posição. Isso, porém, não exclui que ao longo do tratamento os efeitos terapêuticos venham por acréscimo.

Assim, o que temos representado pelo do discurso do analista é que a psicanálise se opõe a toda tendência de dominação, no qual o analista teria de antemão um saber pronto indicando a verdade do sujeito (Lacan, 1992 [1969-70]). Pelo contrário, uma análise consiste em promover que o analisante construa seu próprio saber, descartando alguns significantes, identificações e ideais, ao qual estava capturado e produzindo outros significantes próprios. Ao interrogar o paciente sobre sua posição subjetiva, o sujeito é incitado a produzir um saber não sabido, o impossível de saber, mas estruturante - o inconsciente, que leva assim em consideração a causa de seu desejo. Sendo assim, a ética psicanalítica busca afirmar o desejo, de modo que o sujeito possa reconhecê-lo e ele deixe de insistir apenas como resíduo recalcado.

O próprio convite da regra fundamental de uma análise de associar livremente coloca em cheque também a dimensão ética, na medida em que convoca o sujeito a se interrogar, a responder e se responsabilizar sobre o que faz e o que diz. O paciente vem à análise queixando dos outros e na experiência analítica acaba por descobrir sua participação na desordem da qual se queixa, levando-o inevitavelmente a se responsabilizar pelo seu sofrimento, mais ainda pela sua vida. É, nesse sentido, que Lacan pôde dizer, como nos lembra Miller (1997), que da nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis. Em Televisão, Lacan situa a psicanálise como uma "ética do Bem-dizer" (2003 [1973], p. 539).

De modo preciso, a ética da psicanálise considera a singularidade do sujeito como ponto de partida. O sujeito, para a psicanálise, é o sujeito inconsciente, dividido, sujeito do desejo. Sendo assim, uma ética pautada em princípios morais a serviço dos bens conduziria inevitavelmente a uma renúncia pulsional, a uma renúncia do desejo. No nível do bem, considera Lacan (1997 [1959-60]), está o nascimento do poder, constituindo, portanto, uma muralha ao desejo. A ética psicanalítica, pelo contrário, se desvincula do "serviço dos bens", da moral do poder. Vale assinalar, contudo, que a busca pelo desejo não é equivalente à busca pelo prazer. Uma ética pautada no desejo como se propõe a psicanálise não visa tornar-se um imperativo que resultaria em cada um seguir seu desejo particular, visto que a definição de desejo no ensino lacaniano como "desejo do Outro" implica tanto a relação do sujeito com o Outro da cultura quanto uma singularidade (VIEIRA, 2000).

Insistimos, então, que a psicanálise propõe uma ética não pautada em valores, mas no desejo. Se ela não se assemelha com a ética kantiana, nem com a disciplina da felicidade proposta por Aristóteles, do mesmo modo ela não se identifica com o pensamento de Sade de destruição de toda lei moral, tendo em vista que nesses pressupostos o que diz respeito à particularidade do sujeito está excluída. Assim, quando falamos em ética da psicanálise não estamos falando em um sistema de prescrições e obrigações, mas apontando para o lugar do analista e de como ele pode sustentar e orientar sua prática. Nesse sentido, Miller destaca que "Não há um único ponto técnico em análise não vinculado a questão ética [....] as questões técnicas são éticas, por um motivo muito preciso: nela, nos dirigimos ao sujeito. A categoria do sujeito não é técnica, e sim, ética" (1997, p. 221). Dizendo de outro modo: "Toda clínica verdadeiramente do sujeito, ou seja, toda psicanálise autêntica, é uma clínica do ponto de vista ético. E, mais ainda, a ética é a dimensão constituinte da experiência analítica" (Ibid., p. 333).

 

Referências

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Recebido em 05/10/2015
Primeira revisão em 24/08/2016
Aprovado em 25/08/2016

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