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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.7 no.12 São João del Rei jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Eunice Paiva: uma Antígona brasileira na defesa dos direitos humanos para além da finda-linha1

 

A brazilian Antigone: the construction of memory of Eunice Paiva and your acting in defense of human dignity beyond the law

 

Une Antigone brésilienne: un bâtiment de mémoire d'Eunice Paiva et sa base de travail pour la défense de la dignité humaine au-delà de la loi

 

Una Antígona brasileña: la construcción de la memoria de Eunice Paiva y de su actuación en defensa de la dignidad humana más allá de la ley

 

 

Mariana Rodrigues Festucci Ferreira

Doutoranda em Psicologia Clínica (bolsista Cnpq) pela USP; especializanda em Gestão da Educação Pública pela UNIFESP; Mestre em Psicologia Social (bolsista Capes) pela PUC-SP, onde realizou estágio em docência nas disciplinas de Análise Institucional e Psicanálise; especialização em Psicanálise e Linguagem pela PUC-SP - (formação de especialista em Psicologia Clínica); formação complementar em Atendimento Psicológico Domiciliar pela PUC - SP. Título de especialista em Psicologia clínica fornecido pelo Conselho Federal de Psicologia. Atua nas áreas de Psicologia clínica e social com abordagem psicanalítica. Promove grupo de estudos em Freud e Lacan, palestras e supervisão clínica

 

 


RESUMO

Este texto visa à construção da memória de Eunice Paiva, dando-se ênfase a sua militância em favor da dignidade humana para além da lei. A ênfase da pesquisa é inspirada no mito de Antígona (Sófocles), no qual a heroína é impedida de enterrar o irmão Polinices por determinação do rei Creonte. Eunice teve o marido extraído de seu convívio por agentes da ditadura civil militar no ano de 1971; tendo tido indicações de que ele havia sido assassinado, reivindicou o reconhecimento de sua morte e a revelação de onde o corpo estaria enterrado para que lhe pudesse prestar as honrarias fúnebres. Indo para além da dimensão pessoal da tragédia, Eunice passou a militar pelos direitos civis dos desaparecidos e familiares de todo o Brasil, e como advogada atuou contra a violência e expropriação indevidas de terras sofridas pela população indígena.

Palavras-chave: Eunice Paiva. Antígona. Ética. Lacan. Ditadura.


ABSTRACT

This text aims at building the memory of Eunice Paiva giving emphasis to your activism in favour of human dignity beyond the law. The emphasis of the research is inspired by the myth of Antigone (Sophocles) where the heroine is prevented to bury her brother Polynices by determination of King Creon. Eunice had the husband extracted from your gathering by agents of the civil military dictatorship in the year 1971; having had indications that he had been killed, claimed the recognition of your death and the revelation of where the body would be buried so that I could pay the funeral honours. Going beyond the personal dimension of the tragedy, Eunice spent the civil rights of the missing military and relatives of all Brazil, and as a lawyer acted against violence and improper expropriation of land suffered by the indigenous population.

Keywords: Eunice Paiva. Antigone. Ethics. Lacan. Dictatorship.


RÉSUMÉ

Ce texte vise la construction de la mémoire d'Eunice Paiva mettant l'accent sur son militantisme en faveur de la dignité humaine au-delà de la loi. L'accent mis sur la recherche s'inspire du mythe d'Antigone (Sophocle) où l'héroïne est empêchée d'enterrer son frère Polinice par la détermination du roi Creon. Eunice avait son mari extrait de sa convivialité par des agents de la dictature civile militaire en 1971; ayant eu des indications qu'il avait été assassiné, a exigé la reconnaissance de sa mort et la révélation d'où le corps serait enterré afin qu'il puisse exécuter des honneurs funèbres. Au-delà de la dimension personnelle de la tragédie, Eunice est devenue un officier militaire pour les droits civils des membres disparus et familiaux de tout le Brésil et, en tant qu'avocat, elle a agi contre la violence et l'expropriation abusive des terres subies par la population indigène.

Mots clés: Eunice Paiva. Antigone. Ethics. Lacan. Dictature.


RESUMEN

Este texto apunta a la construcción de la memoria de Eunice Paiva dando énfasis a su militancia en favor de la dignidad humana más allá de la ley. El énfasis de la investigación se inspira en el mito de Antígona (Sófocles) donde la heroína es impedida de enterrar al hermano Polinices por determinación del rey Creonte. Eunice tuvo el marido extraído de su convivencia por agentes de la dictadura civil militar en el año 1971; que había tenido indicaciones de que había sido asesinado, reivindicó el reconocimiento de su muerte y la revelación de donde el cuerpo estaba enterrado para que le pudiera rendir honores fúnebres. Eunice pasó a militar por los derechos civiles de los desaparecidos y familiares de todo Brasil, y como abogada actuó contra la violencia y expropiación indebidas de tierras sufridas por la población indígena.

Palabras clave: Eunice Paiva. Antígona. Ética. Lacan. Dictadura.


 

 

De fogo é o teu coração em atos que me gelam [...]. Amas o impossível. (Sófocles. Antígona. 2013, 442 a.C.).

 

Ela ergueu o atestado de óbito para a imprensa, como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali estava a verdadeira heroína da família; sobre ela que nós, escritores, deveríamos escrever.

(Marcelo Rubens Paiva. Ainda estou aqui. 2015).

 

Apresentação

Este texto apresenta os resultados parciais de uma pesquisa em andamento no programa de pós-graduação em Psicologia Clínica, núcleo de Psicanálise e Sociedade, da USP, e visa à construção da memória de Eunice Paiva, dando-se ênfase a sua militância em favor da dignidade humana para além do que fora determinado pelas leis constitucionais do Estado nacional brasileiro no período histórico que compreende da ditadura civil militar à redemocratização (de 1964 aos dias atuais).

A ênfase da pesquisa é inspirada no mito de Antígona, cuja versão mais conhecida foi escrita por Sófocles, cuja heroína é impedida de enterrar o irmão Polinices por determinação do rei Creonte. Mesmo sabendo que sobre ela incidiria a pena capital, Antígona levou a cabo o desejo de prestar as honras fúnebres ao irmão e com isso acabou sendo trancada viva em uma caverna. Para Antígona não restara alternativa diante da determinação da lei, uma vez que deixar o corpo do irmão a céu aberto seria negar-lhe a irmandade que estava para além dos laços sanguíneos - determinada pela dignidade humana. Não enterrar o irmão era negar a humanidade dele e, por conseguinte, a sua própria; por isso é que com o seu ato para além da lei Antígona sustentou o que a lei deixara descoberto.

Eunice Paiva teve o marido (o deputado Rubens Paiva) extraído de seu convívio por agentes da ditadura civil militar no ano de 1971; na mesma ocasião ela foi presa e interrogada, tendo permanecido por 12 dias com uma de suas filhas menores (Eliana, de 15 anos) nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro. Após a libertação, Eunice passou a exigir a verdade sobre o paradeiro do marido e, tendo tido indicações de que ele havia sido assassinado, reivindicou o reconhecimento de sua morte (a declaração oficial do óbito só foi emitida 25 anos depois) e a revelação de onde o corpo estaria enterrado (o que jamais descobriu) para que lhe pudesse prestar as honrarias fúnebres. Eunice, entretanto, foi para além da dimensão pessoal da tragédia e passou a militar pela verdade e direitos civis dos desaparecidos e de seus familiares de todo o Brasil, tomando parte em comissões civis. Formou-se advogada e atuou profissionalmente contra a violência e expropriação indevidas de terras sofridas pela população indígena, participando, com antropólogos e outros especialistas, das organizações Mata Virgem, Fundação Pró-Índio e Iamá. Eunice Paiva com sua militância e crítica ao regime ditatorial arriscou a própria vida, pois conforme mostrou documentos do SNI (Serviço Nacional de Inteligência), atualmente sob a guarda do Ministério da Justiça e que vieram a público em 2013, tanto ela quanto seus filhos foram vigiados por agentes militares de 1971 até 1984.2 Ocorre que para Eunice, mesmo sob risco capital, não restara outra alternativa senão desafiar a lei vigente, justamente porque, no rastro de Antígona, ela desejou honrar o que a lei deixara descoberto - a dignidade humana.

Invocamos nesta pesquisa o mito de Antígona justamente para dar a dimensão da postura ética sustentada por Eunice Paiva. Para a sociedade civil, a lei institui uma fronteira última, um limite que não deve ser transposto. Antígona, por meio de seu ato, foi, de acordo com a crítica tecida pelo psicanalista Jacques Lacan (2008), para além da finda-linha. Da mesma forma foi Eunice Paiva.

O ato de trazer a dimensão do mito para a pesquisa foi inspirado na estratégia de "re-imaginação" do conhecimento proposta por Donna Wilshire, teórica feminista. Wilshire (1997, p. 101) pontua que a teoria do conhecimento ocidental utiliza-se de uma epistemologia excessivamente objetivista, cartesiana e factual, o que acaba por negligenciar importantes elementos, tais como "a cognição desinteressada, intuição, inspiração, percepção sensual ou qualquer outro" que poderiam compor uma teoria mais completa e sensível a todas as formas da cognição humana. Para Wilshire (1997), uma teoria que não leva em conta a maior variedade possível de elementos na sua composição é uma teoria excludente. Dentre os elementos de maior destaque para a re-imaginação do conhecimento, Wilshire (1997) coloca a dimensão do mito como aquilo que une, em vez de segregar, pois inclui coisas e/ou situações que todos os seres humanos comungam, em vez de enfatizar aquilo que os individualizam.

Uma parte do conhecimento que se revela quando um Mito é corretamente interpretado, é que, para os seus narradores, o significado da vida era constituído por integridade, interconexão e por experiência cíclica no tempo -não por dualismos e linearidade. Dos Mitos do passado distante nos chegam exemplos de atitudes humanas em relação à terra, à natureza, ao tempo, às mulheres e seus corpos (todos interligados), que correspondem às atitudes que muitas feministas e ecologistas, como eu mesma, lutam por criar agora para o presente e para o futuro. (Wilshire, 1997, p. 108)

Trazemos, portanto, a dimensão do mito de Antígona para ampliar o alcance da nossa construção da memória de Eunice Paiva para além da figura de viúva da ditadura. É marcante que nos círculos acadêmicos Eunice frequentemente não seja lembrada pelo nome próprio, mas somente em referência ao marido assassinado. Queremos situar a relevância dessa personagem histórica que lutou pela dignidade humana e que se posicionou para além da tragédia pessoal. Tal construção de memória ganha ainda mais enleva em função do estado de saúde em que Eunice, atualmente com oitenta e seis anos, se encontra acometida pelo estágio III do Alzheimer. Segundo o relato do seu filho Marcelo Rubens Paiva em seu mais recente livro - Ainda estou aqui, 2015 - Eunice, mesmo com a vida restringida, não se permite ser identificada ou ignorada em função da doença.

Jamais sentiria pena de si mesma. Nem queria que sentíssemos pena dela. Jamais pediu ajuda. Recentemente, uma nova fala cheia de significados entrou no seu repertório, especialmente quando um turbilhão de emoções a ataca, como rever uma filha que mora na Europa ou segurar no colo o meu filho, o que mostra uma felicidade e um alerta, caso alguém não tenha reparado: Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui. (Paiva, 2015, p. 262)

Sabemos que Eunice Paiva ainda está aqui. E desejamos trabalhar na construção de sua memória o mais breve possível para que ela tenha condições mínimas de desfrutar o seu lugar de reconhecimento, sem nos esquecermos, é claro, da necessidade de se realizar uma justiça histórica.

Tendo colocado tais pontos, esclarecemos ainda que esta pesquisa se utiliza primordialmente da metodologia qualitativa denominada como história oral, "que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de aproximar o objeto de estudo" (Alberti, 2004, p. 18). Serão apresentados aqui trechos de depoimentos fornecidos pelas antropólogas Carmen Junqueira e Betty Mindlin, que atuaram com Eunice na causa indígena, e do cineasta Joatan Vilela Berbel, que filmou o curta "Eunice, Clarice e Thereza", sobre a luta das mulheres de desaparecidos, em 1979. Além disso, serão consultados livros e também fontes documentais, tais como jornais, revistas e documentos oficiais. Organizaremos nossa "memória em construção" em três eixos.

- Para além da tragédia - em que discorreremos sobre a vida de Eunice Paiva antes e depois do acontecimento traumático de 1971 (prisão e assassinato do marido e a própria prisão).

- Em defesa da dignidade humana para além da lei - em que trataremos sobre a luta de Eunice pela verdade e dignidade dos desaparecidos da ditadura e sobre a sua atuação na causa indígena, com a participação nas organizações Mata Virgem, Fundação Pró-Índio e Iamá, além da escritura do livro O Estado contra o índio em conjunto com a antropóloga Carmen Junqueira.

- Fragmentos de depoimentos - em que citaremos fragmentos de entrevistas e depoimentos sobre Eunice Paiva.

 

Para além da tragédia

Antígona não foi submissa. Sua ousadia já tinha sido posta à prova mesmo antes da tragédia envolvendo o irmão Polinices. Quando Édipo foi proscrito de Tebas por ter assassinado o pai e desposado a própria a mãe sem saber, foi Antígona que, contrariando as recomendações dos irmãos, acompanhou o pai ao exílio (Édipo, dilacerado pela decepção, arrancara os próprios olhos e não teria sobrevivido sozinho). Antígona se pôs ao lado do pai mesmo sabendo que ele seria considerado indesejado e maldito onde quer que passasse, o que significava que eles não teriam pouso em nenhuma terra, ficando condenados a uma jornada sem fim. No retorno a Tebas após a morte do pai, Antígona se deparou com a briga entre os seus irmãos Etéocles e Polinices pelo trono. Com a morte de Polinices e diante da proibição ditada por Creonte de enterrá-lo, Antígona desobedece e é condenada a ser murada viva em uma caverna. Depois de tê-la trancado viva, o rei Creonte se arrepende da decisão e ordena que Antígona seja retirada da caverna, mas os soldados encontram-na morta. Antígona, que não acolhera a determinação arbitrária, havia se enforcado antes de sucumbir.

Eunice não foi submissa. Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, nascida em 1929, que desde a época do colégio era chamada de "italianinha", apelido que lhe deixava furiosa, passou a assinar somente "Eunice Paiva" assim que foi atingida pela tragédia ocorrida em 1971, numa tentativa de escapar tanto do apelido quanto da alcunha de "mulher de desaparecido" ofertada pelos jornais. Quando criança Eunice levava reguadas dos educadores como uma tentativa forçada de fazê-la escrever com a mão direita. Canhota determinada, Eunice não recuou. Estudou exaustivamente e se tornou a melhor aluna de sua turma no tradicional Colégio Sion de São Paulo. Por conta de seus conhecimentos, a amiga Maria Lúcia Paiva pediu que Eunice lhe desse algumas explicações antes de uma prova, e foi na casa dessa amiga que Eunice conheceu Rubens, o futuro marido. Os dois começaram a namorar em 1947. Ambos, contando com dezessete anos, prestaram o vestibular. Eunice foi aprovada em primeiro lugar na Universidade Mackenzie para o curso de Letras, mesmo tendo sido proibida pelo pai de prosseguir com os estudos após o colégio. Rubens foi reprovado e passou dois anos em viagens pelo mundo antes de ingressar no curso de engenharia civil. Enquanto isso, Eunice concluiu a graduação e, embora não tenha exercido a profissão, era reconhecida por falar fluentemente inglês e francês, pelo domínio da norma culta da língua portuguesa (tanto que atuou, anos depois, na revisão dos primeiros artigos e livros do filho Marcelo Rubens Paiva) e por seu vasto repertório literário. Assim conta o seu filho Marcelo:

Quando eu nasci [1959], ela já tinha lido de tudo. Os russos Dostoiévski e Tolstói, os franceses Balzac, Flaubert, Victor Hugo e Proust no original e, do inglês, de Hemingway a Fitzgerald, passando por Henry Miller, além de toda a literatura brasileira. Era amiga de escritores como Lygia Fagundes Telles, Antônio Callado, Millôr, Haroldo de Campos - colega de classe de meu pai -, além de editores e livreiros. Era fã de Érico Veríssimo. Dizia que, a cada lançamento dele, ficava nas filas das livrarias, como os fãs de Harry Potter ou de iPhone. Nas salas das casas em que morei, não tinha tv, mas livros, do chão ao teto. (Paiva, 2015, p. 47)

Eunice se casa com Rubens Paiva em 30 de maio de 1952 e quando o marido lhe propõe, dez anos depois, que todas as economias da família sejam empenhadas na sua campanha para deputado federal, Eunice já era mãe de cinco filhos: Vera, Ana Lúcia, Eliana, Marcelo e Beatriz. Eunice se preocupava com o fato do casal ainda não possuir casa própria, mas não se interpôs ao sonho do marido, que se concretizou com a sua eleição em outubro de 1962.

Em 1964, dois dias após a deflagração do golpe militar, Rubens Paiva, que se encontrava em Brasília, gravou um discurso transmitido pela Rádio Nacional no qual criticava os acontecimentos recentes. Em São Paulo Eunice, ouvindo boatos sobre prisões e preocupada com o destino do marido, chama a sua mãe Olga para cuidar dos filhos e vai para o aeroporto ao encontro de um destino do qual todos queriam fugir.

Lá, uma confusão. Voos eram cancelados. O aeroporto estava cercado. Gente querendo embarcar às pressas. Ela conseguiu uma passagem para o dia seguinte. Dormiu com centenas de passageiros amedrontados numa ala sem luz. Dormiu vendo as sombras de militares nas paredes. Embarcou sem comer num dos poucos voos comerciais que partiram para Brasília. (Paiva, 2015, p. 98)

Em 10 de abril de 1964, Rubens Paiva tem os direitos políticos cassados; ele tenta sair de Brasília, mas o avião em que está é interceptado, então Rubens foge a pé do aeroporto e se exila na Embaixada da Iugoslávia, onde permanece recluso por três meses. Nesse período Eunice retorna a São Paulo e embarca com todos os filhos para Brasília, se instalando no "apartamento funcional de deputado" do seu marido deposto. Eunice visita a embaixada diariamente levando suprimentos e os filhos para conviver com o pai. Em junho de 1964, Rubens Paiva parte para o exílio, onde permanece por cinco meses, retornando clandestinamente ao Brasil em novembro.

Entre o fim de 1964 e início de 1971, a família Paiva vive um constante clima de instabilidade. Amigos recomendam que o casal deixe o país, mas Rubens se recusa a fazê-lo. Ele decide se mudar com a família para o Rio de Janeiro e lá trabalha como diretor de uma empresa de engenharia. Embora tivesse comprado um terreno, ainda não havia construído a casa própria, o que significa que, tendo sido capturado em 20 de janeiro de 1971 por agentes da ditadura, Rubens deixou a família sem moradia. Isso porque com os bens financeiros congelados pelo "desaparecimento" do marido Eunice não pôde realizar movimentações financeiras, ficando sem dinheiro algum.

Por anos, ela [Eunice] não o perdoou [Rubens] por colocar a família em risco, numa luta desigual, desorganizada, praticamente perdida. Para muitos meu pai foi um herói que não fugiu à luta. Para ela, deveria, sim, ter seguido para o exílio, quando soube que a família poderia passar pelo que passou. Mas lutou por ele a vida toda. Lutou para descobrir a verdade, para denunciar a tortura, os torturadores. (Paiva, 2015, p. 259)

Esclarecemos que o ex-deputado Rubens Paiva foi preso por agentes do DOI-Codi em sua casa em 20 de janeiro de 1971. No dia 16 de janeiro do mesmo ano, o embaixador suíço Giovanni Bucher havia sido libertado de um sequestro em troca de setenta presos políticos que se encontravam exilados em Santiago do Chile, na época sob o governo de caráter socialista de Salvador Allende. Ao desembarcarem no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, os ex-exilados foram ostensivamente revistados e interrogados. Em posse de Cecília Viveiros de Castro foi encontrado um monte de cartas endereçadas a combatentes do regime militar no Brasil - nele havia o número de telefone de Rubens Paiva anotado como referência. A partir daí deu-se a prisão de Rubens. No dia que em que fora levado, sua casa e família ficaram sob a vigilância de agentes da ditadura. No dia seguinte Eunice foi informada de que a casa seria liberada da vigilância, mas que ela e a filha Eliana seriam levadas para interrogatório.

No DOI-Codi, Eunice e Eliana foram conduzidas para uma sala, revistadas detalhadamente e despojadas de seus pertences. Em seguida fotografadas e identificadas. Encapuzadas novamente, foram sentadas em um banco, próximas uma da outra, mas sem saber que estavam juntas, pois não viam nada e não podiam falar. Ouviam burburinho de vozes masculinas e gritos. Assim permaneceram até o fim do dia, em silêncio, respirando com dificuldade sob o capuz no calor de quase 40°, sem beber nem comer nada. (Tércio, 2013, p. 200)

Eliana foi liberada na manhã do dia seguinte. Já Eunice permaneceu nas dependências do DOI-Codi por doze dias sem nenhuma visita e sem contato com o marido, do qual apenas foi mostrada uma foto durante os interrogatórios.

Na sala havia pau de arara, fios desencapados ligados em uma tomada, sangue no chão. Queriam saber se ela era comunista, se Rubens era comunista, quem eram os amigos dele. Mas queriam saber principalmente sobre as cartas do Chile, com quem Rubens se correspondia [...]. Eunice não sabia nada sobre as cartas. Eles não acreditavam. (Tércio, 2013, p. 212)

Quando Eunice foi liberada havia perdido vinte quilos. Os filhos observavam que ela estava triste, mas Eunice não chorava na frente deles.

Eunice disse, em rápida entrevista, que quer apenas ter seu marido de volta. E explicou que tem cinco filhos, que frequentemente perguntam pelo pai. [...]. Eunice explicou: "Fui solta mas, evidentemente, falta uma peça na família. Há uma angústia profunda em Marcelo e Beatriz, os filhos mais novos". (O Estado de São Paulo, 4 nov. 1971)

Eunice tentou prosseguir com a rotina de forma tão normal quanto possível. Ao mesmo tempo em que cobrava das autoridades o paradeiro do marido (chegando mesmo a encaminhar uma carta para o presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, em 22/3/1971), tentava cuidar da casa e criar os filhos, ainda que sem recursos. Por fim decide retornar para São Paulo e se iniciar em uma profissão.

Aos quarenta e dois anos, prestou outro vestibular. Estudou sozinha, viúva, triste. Em Santos, para onde nos mudamos. Estudou e entrou em primeiro lugar na faculdade de direito e se transferiu para a Mackenzie. Uma prima conta que minha mãe estudava o tempo todo, que nós corríamos pela casa, e ela estudava, estudava. (Paiva, 2015, p. 47)

Quando se mudou para São Paulo em 1974, Eunice Paiva não tinha dinheiro algum, mas possuía obras de arte de valor, entretanto se recusou a vendê-las. Mesmo diante de inúmeras dificuldades, não abriu mão de seus quadros, mobília de alto padrão e tapeçarias. Em compensação, costurava os próprios vestidos e fabricava em casa o destilado que serviria para as visitas. Tendo se bacharelado em Direito, passou a atuar nos processos de divórcio e inventários de amigos, o que fez com que as dificuldades financeiras fossem parcialmente superadas. Mesmo diante de inúmeras dificuldades, Eunice nunca quis passar para a sociedade a impressão de que a ditadura militar havia vencido sobre a sua família. Recusava a nomenclatura de "família vítima da ditadura", tanto que posando para a primeira imagem da família após o evento trágico de 1971, capturada por um fotógrafo para a capa de uma revista semanal, Eunice orientou que os filhos sorrissem.

 

 

Em defesa da dignidade humana para além da lei

A "lei dos homens" (Diké, em grego) determinada pelo rei Creonte era clara: quem honrasse um traidor de Tebas seria considerado tão traidor quanto, e estaria, portanto, suscetível à punição com a morte. Antígona desobedece a Diké ao enterrar seu irmão Polinices porque fora fiel à Thémis (lei divina), que definia que os mortos precisavam ser honrados; se Antígona não se submeteu à Diké foi porque essa última ferira Thémis.

O mito de Antígona traz à tona um dilema factual presente em diversos momentos da História da humanidade, em que um poder arbitrário e desmedido, ainda que revestido de legalidade, atacou aquilo que era anterior e estava para além dele - a humanidade. Basta que nos lembremos de um só exemplo: o genocídio judeu foi "legal", mas se Eichmann tivesse sido insurgente como Antígona, ele não teria sido julgado no tribunal de Jerusalém. A banalidade do mal está em praticá-lo não pela maldade em si, mas por excesso de obediência e sem crítica, assim o dizia Hannah Arendt.

A Diké do século XX ditou muitas coisas a Eunice Paiva: que o seu marido não havia sido preso (mesmo que Rubens tenha conduzido o próprio carro até o pátio do DOI-Codi e que houvesse um recibo em posse da família Paiva de retirada do veículo); que Rubens havia sido retido para interrogatório e não se poderia ter contato com ele, mas que seria liberado em dez dias; por fim, que Rubens havia fugido graças a um assalto forjado por comunas durante uma diligência, ou seja, que Rubens não seria mais responsabilidade do Estado brasileiro, uma vez que tinha fugido da lei e provavelmente se encontrava exilado em outro país.

Os meses foram passando desde a prisão de Rubens Paiva em 20 de janeiro de 1971; Eunice lutou contra cada determinação que lhe era imposta, apelou ao Ministério Público, à Comissão dos Direitos Humanos, ao Exército e ao presidente da República. A princípio Eunice tinha esperanças de encontrar o marido vivo, depois foi se apropriando do seu estado "ilegal" de viuvez. E novas batalhas se sucederam: pela reabertura do caso que fora arquivado, pela emissão do atestado de óbito, pela investigação e responsabilização dos mandantes do assassinato, e por encontrar os restos mortais. Eunice acabou tomando parte em grupos civis que cobravam os direitos dos desaparecidos e de seus familiares. Eunice transformou a luta por Rubens na luta por todos os brasileiros.

 

 

Eunice Paiva foi aos jornais, revistas, televisão, reuniões em escolas etc. Não recuou mesmo sabendo que o país estava sob a censura militar e que ela corria risco de vida. O risco não era apenas "hipótese", pois como comprovam documentos que vieram a público em 2013, Eunice foi constantemente monitorada desde 1971 até o período das Diretas-já (1984).

 

 

Durante o período da ditadura civil militar, Eunice Paiva não teve sucesso em suas lutas pelos direitos humanos dos desaparecidos. Eunice sabia que o país passava por uma crise estrutural, portanto julgou pertinente atuar na organização do movimento "Diretas-Já", pela redemocratização do país, a partir de 1984. Também foi Eunice Paiva uma das primeiras a criticar a "Lei da Anistia", que ao mesmo tempo em que permitiu o retorno de exilados políticos no país perdoou os agentes de tortura.

 

 

Mesmo depois da realização das primeiras eleições diretas para presidente após 21 anos de ditadura, Eunice ainda encontrou entraves. Fernando Henrique Cardoso, presidente que tomou posse em 1994, desconversou quando a Anistia Internacional lhe cobrou uma postura sobre os desaparecidos políticos. Eunice, indignada com a inconsistência do presidente, que havia sido amigo pessoal de seu marido, e que durante a década de 1980 havia participado com ela nos movimentos em prol dos direitos humanos, vasculhou em seus arquivos e encontrou um texto escrito por ele na Folha de São Paulo que cobrava do governo Sarney uma providência quanto aos desaparecidos políticos. Eunice encaminhou cópia desse texto ao filho Marcelo Rubens Paiva, que já era reconhecido como escritor de renome, e ele conseguiu o espaço de duas páginas na revista Veja para escrever sobre o assunto, que ganhou intensa repercussão.

A repercussão, imensa. Mas a resposta foi digna. Com José Gregori, outro amigo do meu pai, ministro da Justiça, redigiram a Lei 9.140. Quando ela foi promulgada, chamaram minha mãe para a cerimônia no Palácio do Planalto. Ela ficou sentada ao lado do presidente, diante de ministros militares. Ao final, todos se levantaram, abraçaram-se. Fotos. No dia seguinte, vejo na capa dos jornais minha mãe abraçada ao chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso, do Exército brasileiro. É uma das fotos mais importantes do longo e infindável processo de redemocratização brasileira. Tempos de reconhecimento. Um lado sai da trincheira e cumprimenta o outro. (Paiva, 2015, pp. 40-41)

Em 1996 Fernando Henrique Cardoso convidou Eunice Paiva para compor a Comissão de Mortos e Desaparecidos, que analisaria os casos das vítimas da ditadura e concederia indenizações aos seus familiares. Eunice recusou a indenização que lhe fora concedida, no valor de cem mil reais, por entender que não equivaleria ao patrimônio que o marido lhe teria proporcionado se estivesse vivo, e por afirmar que a vida de Rubens não tinha preço. Eunice atuou na Comissão por alguns meses, mas acabou pedindo afastamento, sob a alegação de que tal situação a mobilizava muito emocionalmente. Curiosamente, foi também no ano de 1996 que finalmente foi expedido o atestado de óbito de Rubens Paiva e que Eunice pode, enfim, executar o seu inventário. Mas os restos mortais do marido ainda não foram encontrados.

Em sua atuação como advogada, Eunice Paiva foi ganhando cada vez mais notoriedade por conta da sua seriedade e comprometimento; ao mesmo tempo em que atuava em pequenas causas era consultada pelo governo federal, pelo Banco Mundial e pela Organização das Nações Unidas (ONU). Acabou se tornando a advogada no Brasil do cantor Sting, que se envolveu com a causa indígena durante os anos 1980 e doava o cachê de seus shows para a preservação da comunidade caiapó. Por meio de Sting, Eunice começou a se dedicar mais à causa indígena, que já vinha lhe chamando a atenção há algum tempo.

Segundo a investigação que a Comissão Nacional da Verdade realizou entre 2013 e 2014, cerca de 8.350 indígenas foram mortos em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão durante os anos da ditadura civil militar. Considera-se que o número real de indígenas mortos seja exponencialmente maior que o oficial em função de uma parcela muito restrita das populações indígenas ter sido estudada, e de populações terem sido extintas antes que pudessem ser documentadas (Memorial da resistência de São Paulo, 2015).

Ocorre que o indígena tem a sua existência vinculada à terra, pois esta constitui o bem mais precioso para o índio. Mas grande parte das reservas indígenas se tornaram preciosas para o Estado durante a ditadura por outro motivo: serem ricas em minérios valiosos. Os militares precisavam cobrir os gastos dispendiosos na manutenção da estrutura de poder e o rombo causado pela adoção das estratégias econômicas irresponsáveis (milagre brasileiro) de alguma forma, e viram nos minérios das reservas indígenas uma fonte. Por determinação legal, tais minérios não podiam ser explorados, mas como o povo brasileiro de um modo geral não conhecia a lei, o Estado as foi manipulando a seu favor, praticando incontáveis ações violentas contra a população indígena.

Eunice Paiva se apaixonou pela causa indígena. Passou a se envolver e representar populações indígenas que tinham suas terras indevidamente demarcadas ou expropriadas, mesmo não tendo retorno financeiro por sua atuação profissional. Dialogava com o governo para que ganhasse espaço para a causa, ao mesmo tempo em que criticava as políticas indigenistas quando era necessário. Participou das organizações civis Mata Virgem, Fundação Pró-índio, Fundação Gilberto Gil e Iamá (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente).

Em outubro de 1983, assinou com Manuela Carneiro da Cunha, na seção "Tendências e Debates" da Folha, o artigo "Defendam os pataxós". Ambas trabalhavam na Comissão Pró-Índio de São Paulo, ONG fundada em 1978. O artigo foi um marco na luta indígena brasileira e serviu de modelo para outros povos indígenas, inclusive africanos, americanos e esquimós. (Paiva, 2015, p. 203)

Indo além da sua atuação como advogada, Eunice Paiva participava de congressos acadêmicos, debates públicos, sessões de documentários, palestras, reportagens culturais, etc., sustentando a dignidade indígena para além da personalidade jurídica, conforme podemos observar na reportagem a seguir.

 

 

Eunice Paiva representou o Brasil no Congresso Mundial das Populações Nativas em Estrasburgo no ano de 1984. Combateu a política indigenista até o fim da ditadura e, anos depois, já no período democrático, atuou para que a Companhia Vale do Rio Doce indenizasse os índios que tiveram suas terras expropriadas em função da construção de linhas de transporte e barragens.

As linhas de transmissão da Eletronorte passavam em terras indígenas. Lá ia ela intervir. O banco Mundial investia em projetos na Amazônia e exigia o respeito às terras indígenas. No Projeto Carajás, ela exigiu que três milhões de dólares fossem para treze comunidades indígenas afetadas. Em Rondônia, a mesma coisa, o Banco Mundial financiou a rodovia Cuiabá-Porto-Velho, que passava por terras indígenas, condicionando a proteção de aldeias. Minha mãe advogou por eles. (Paiva, 2015, p. 209)

Segundo o relato do filho Marcelo Rubens Paiva, Eunice viu semelhanças entre a estratégia do Estado que "desaparecia" com os seus inimigos políticos ao mesmo tempo em que "desaparecia", com estratégias violentas paulatinamente aplicadas, com os donos das terras preciosas, os índios. Uma análise superficial poderia concluir que Eunice tentava superar o desaparecimento não resolvido de seu marido pelo combate às desapropriações indevidas de terras indígenas, tentando vencer o Estado a qualquer custo. Na visão de Carmen Junqueira, antropóloga que atuou na organização Mata Virgem, não se trata disso. Segundo Junqueira (2015), Eunice se incomodava com a injustiça e impropriedade da lei onde quer que ocorresse. Em casos em que a lei era mal aplicada, levando a discriminações e injustiças sociais, lá estava Eunice para garantir que a lei fosse cumprida com rigor. E nos casos em que a lei precisava ser mudada porque em seu princípio agia arbitrariamente sobre a dignidade humana, lá estava Eunice para propor transformações.

Ainda de acordo com Junqueira (2015), foi Eunice quem primeiro teve a ideia para a escritura em conjunto do livro O Estado contra o índio, publicado em 1985. Nele Eunice e Carmen realizaram uma revisão sistemática da legislação indigenista brasileira desde a fundação da República, trataram sobre o índio brasileiro como pessoa titular e de direitos, criticaram a política indigenista e as violações dos direitos humanos, e também propuseram perspectivas de solução da questão indígena por meio da revisão da lei indigenista, da crítica à tutela exercida pela Funai, da promoção de entidades de apoio que conscientizasse a população do Brasil como um todo da situação crítica do índio, além de fornecerem recursos para as populações indígenas sobreviverem e para se organizarem efetivamente contra as expropriações de terras.

O livro O Estado contra o índio foi outro marco para a causa indigenista ao apresentar de forma didática as implicações legais da expropriação de terras, permitindo que as pessoas pudessem tecer críticas a respeito das informações legais que eram difundidas pelo Estado segundo os seus interesses. Junqueira (2015) acentua que o livro foi escrito a quatro mãos, mas que todo o trabalho de leitura de documentos estatais que abarcaram um período de mais de sessenta anos foi feito por Eunice.

 

Fragmentos de depoimentos

Antônio Callado (escritor, amigo da família Paiva, sobre encontro com Eunice em 1971 na praia de Búzios):

Outra recordação que me ficou nítida liga-se a Búzios. Ali fui, num fim de semana de 1971 [...]. Quando paramos, ao voltar, a uns cem metros da praia, vimos alguém, uma moça, que nadava firme em nossa direção. Minutos depois subia a bordo, cara alegre, molhada de mar, Eunice Paiva, mulher do deputado Rubens Paiva [...]. Eunice andara preocupada. Rubens fora detido pela Aeronáutica dias antes e nenhuma notícia tinha chegado à família. Mas agora Eunice, que também fora presa mas em seguida libertada, podia respirar, podia nadar em Búzios, tomar um drinque com os amigos, pois acabara de estar com o ministro da Justiça, ou da Aeronáutica, que lhe havia garantido que Rubens já tinha sido interrogado, passava bem e dentro de uns dois dias estaria de volta a sua casa [...]. A família Paiva nunca mais teve notícias oficiais de Rubens. Nunca se encontrou a cova onde o terão atirado após o assassinato. A cara de Eunice continuou molhada e salgada durante muito tempo, tal como aquela manhã de Búzios. A água é que já não era mais do mar. (Folha de São Paulo, 12 ago. 1995)

Alberto Cardoso (General do Exército, sobre a solenidade de promulgação da Lei n° 9.140 - sobre desaparecidos - em depoimento para o jornalista Emanuel Neri):

Eu a conheci ali, pouco antes da cerimônia. Me impressionou o equilíbrio e a simpatia daquela senhora [Eunice Paiva], que, logicamente muito machucada, não exibiu o menor rancor. No abraço, eu senti que ela estava emocionada. O meu abraço foi espontâneo, nada programado. Quando vi, me assustei, mas depois vi que naquela foto o mais importante não era eu estar ali, mas sim o simbolismo. (In Paiva, 2015, p. 41)

Marcelo Rubens Paiva (escritor, filho de Eunice Paiva):

Minha mãe me ensinou algo que não se ensinava nas escolas, em parte alguma: como tratar (bem) uma garota. [...]. Ensinamentos sobre como tratar bem uma mulher nos anos 50 e 60: ter sempre um isqueiro à mão para acender os cigarros, oferecer bebida, andar na calçada do lado mais perto da rua, abrir portas, dar passagem, levantar-se da mesa para cumprimentar [...]. Algumas regras são polêmicas. Num bar ou restaurante, você deve deixar a mulher entrar primeiro? Já li de profissionais de etiqueta que o homem deve entrar antes, para checar se o ambiente é suficientemente respeitoso. Ele entra, observa e, a seu critério, deixa a mulher entrar. Minha mãe me ensinou o contrário. Pensa bem, ela tem razão. Primeiro, deixe a mulher avaliar se o ambiente é "respeitoso". O que é respeitoso para um homem vale para uma mulher? Ela deve ser protegida pelas convicções dele, para prosseguir o regime tutelar? Acabei seguindo a regra da minha mãe. (Paiva, 2015, pp. 75-76)

Joatan Vilela Berbel (cineasta que produziu o curta Eunice, Clarice e Thereza em 1979):

Minhas lembranças de Eunice Paiva: 1. Mulher gentil, discreta, inteligente. 2. Caráter firme, persistente. 3. Emoção contida, nunca oculta. 4. Mulher! Um tipo humano em falta no ambiente sociocultural brasileiro. (Em depoimento escrito concedido em setembro de 2015)

Betty Mindlin (antropóloga que atuou com Eunice Paiva na Mata Virgem e Iamá):

Minha família ligou-se a Eunice Paiva há muitas décadas. Creio que ela e Rubens eram inicialmente amigos de meu tio Henrique e minha tia Vera - todos moravam no Rio. Em 1971, quando Rubens desapareceu e nada se sabia sobre ele, tio Henrique ficou hospitalizado por cinco meses e acabou falecendo, com apenas 60 anos. Lembro muito de ver Eunice no hospital, todos compartilhávamos dores imensas [...]. Em 1987, Mauro Leonel, Carmen Junqueira, Tarcísio Lage, Eunice, alguns antropólogos e eu fundamos o IAMÁ - Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, organização não governamental que atuou até 2001 e foi muito importante para a defesa dos direitos indígenas e para a criação de projetos de educação, saúde, autonomia econômica e política de muitos povos. Carmen, Eunice e eu deixamos o IAMÁ em 2001. Eunice, antes da criação do IAMÁ, fez parte dos consultores que fizeram a avaliação da situação indígena dos povos afetados pelo Programa Polonoroeste (1983-1987), avaliação coordenada por mim. Éramos contratados pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Foi no quadro dessa avaliação que ela fez pareceres muito importantes para os índios, como o que analisa a exploração madeireira nas terras indígenas e sua condição ilegal, ou o parecer que foi fundamental para a demarcação da Terra Indígena Zoró em 1987. Antes disso ela e Carmen escreveram um livrinho precioso, O Estado contra o índio, São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1985. (Em espanhol, JUNQUEIRA, Carmen Sylvia de Alvarenga; PAIVA, Eunice. La legislación brasileña y las poblaciones indígenas en Brasil. In: STAVENHAGEN, Rodolfo. Derecho indígena y derechos humanos en América Latina. México: Instituto Interamericano de Derechos Humanos/El Colégio de México, 1988.). Eunice foi fundamental para a defesa dos índios. Fez parte também do Conselho Deliberativo da Fundação Mata Virgem, ONG brasileira que recebia fundos da Rainforest Foundation, fundada e financiada por Sting com a renda de seus concertos - doou nos anos em que participei cerca de 1 milhão de dólares por ano. Eu fui do Conselho Consultivo da FMV de 1989 a 1992, e representante desta nas reuniões da Rainforest Foundation. Junto com os Presidentes da FMV, Olympio Serra e depois Roberto Baruzzi, eu defendia as prioridades estabelecidas pela fundação brasileira, como o financiamento de demarcações, em especial os 11 milhões da terra Kayapó. Não foi uma tarefa fácil. Eunice, na FMV, era uma presença serena conduzindo ao diálogo entre militantes acalorados, com projetos e objetivos distintos, embora irmanados pela mesma causa. Eunice, Carmen, Mauro e eu, por vezes com meus pais e com meu compadre Adão Pinheiro, passamos inumeráveis fins-de-semana juntos em longas conversas, uma convivência deliciosa. Adão nunca chegou a dizer a ela, mas, como muitos outros que a conheceram, sempre a descrevia como mulher sedutora, com uma feminilidade atraente e original, mesmo em anos recentes. (Em depoimento escrito concedido em setembro de 2015)

 

Considerações finais

Conforme alertamos na apresentação deste texto, trata-se de um projeto de memória em construção, ou seja, ainda falta nos aprofundarmos em acontecimentos históricos, precisar datas, apurar fatos, colher mais depoimentos de quem de alguma forma esteve envolvido e/ou conheceu Eunice Paiva.

Neste texto trata-se, portanto, apenas de uma amostra da relevância de Eunice Paiva como personagem histórica, da sua coragem em enfrentar a lei quando feria a dignidade humana, e de todos os desafios que enfrentou para reconstruir uma vida que não fosse definida exclusivamente em função da tragédia de ter perdido o marido de maneira tão brutal.

Esperamos, por meio do mito de Antígona, ter dado o tom do alcance da ousadia de Eunice, essa mulher que diante de situações aparentemente sem solução soube ir além da finda-linha.

Quando a lei é violenta ser insurgente se torna uma necessidade. O poder do Estado não é mais soberano que a dignidade humana. E a história recente do Brasil provou o quanto pode ir além uma mulher com o senso de justiça de Antígona.

Disse Lacan (1995, p. 276): "O jogo já está jogado, os dados já foram lançados. Já foram lançados, com a seguinte ressalva, podemos retomá-los em mão, e lançá-los mais, ainda".

 

Referências

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1 Conforme esclarece a nota de rodapé 53 do Seminário, livro V- A ética da Psicanálise, a expressão finda-linha refere-se à "La-bout-de-course - substantivação de à bout de course, que significa um movimento, declínio, e no sentido figurado, fatigado, extenuado. Utilizando Esta expressão de forma substantiva para designar a posição dos heróis sofoclianos no final da linha de seus destinos, é mais no sentido imajado que o figurado a que Lacan visa (...) daí a solução na finda-linha conjugando o fim da linha (...). O eretismo e a exaltação em que esses heróis se encontram, como, por exemplo, Antígona e Édipo; no momento derradeiro da efetivação de suas Até - e mesmo de ultrapassa-mento de suas Até, para além da qual, diz Lacan, (... ) não nos permite supô-los diminuindo o passo como a opção simplificada de no fim da linha poderia supor" (Lacan,2008, p. 386).
2 Viúva do ex-deputado Rubens Paiva, foi monitorada pela ditadura. Jornal Folha de São Paulo, seção Poder, de 29 outubro de 2013.

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