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Clínica & Cultura
versão On-line ISSN 2317-2509
Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão jan./jun. 2019
DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA
Miriam Debieux Rosa
Psicanalista. Professora Titular e Coordenadora do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Dimensões subjetivas e condições sociopolíticas: o que pode a psicanálise?
Como resultado das iniciativas de cooperação inter-universitárias mantidas por mais de 10 anos entre equipes de pesquisadores brasileiros e chilenos, a Rede Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política (RedIPPol) foi fundada na cidade de São Paulo em 13 de setembro de 2018, por Assembléia Geral, entre pesquisadores da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Uruguai.
O dossiê RedIPPol se apresenta diante de um crescente número de trabalhos de pesquisas nas últimas três décadas, de perspectivas psicanalíticas, sobre diferentes questões relacionadas ao exercício do poder. Produções de laboratórios, coletivos ou grupos, universitários e não universitários, com contribuições de intelectuais, psicanalistas de diferentes gerações, em diversas áreas do conhecimento e em múltiplos territórios de cultura, sociedade e subjetividades.
Os artigos aqui reunidos estão inseridos dentro dos temas que foram apresentados no Encontro Preparatório do Congresso de fundação da RedIPPol, em 2018. As mesas, com intensos debates, diálogos e proposições foram convidadas a enviarem seus textos, como registro de um necessário tempo de construção de espaços de resistências e articulações políticas interamericanas, numa aposta de que esses olhares podem contribuir com as investigações no campo da psicanálise e política.
Os textos apresentados colocam-nos atentos à questões do campo político contemporâneo. Quanto ao avanço da extrema direita como triunfo do mal estar da democracia burguesa. O desorganizador 11 de setembro, em 2001, a crise econômica e política disparada em 2008 deram novos contornos aos movimentos sociais em todo mundo, com olhares atentos às Américas, sobretudo na última década. No Chile e Equador protestos tomam as ruas contra a crise neoliberal e o desemprego. No Brasil, desde 2013, certa disposição de revisionismo histórico e aumento da intolerância política favorecem movimentos militaristas, antidemocráticos e que proclamam discursos de ódio.
Enquanto assistimos ao aumento da desigualdade social, a precarização das relações de trabalho, a desregulamentação dos mercados, a privatização dos bens públicos e a redução dos investimentos em áreas sociais, como educação, saúde, habitação, benefícios sociais, etc.; acompanhamos também do descaso com a saúde pública, os assassinatos dos negros nas periferias, a falta de empregos e o consequente aumento da miséria do povo. O sofrimento material e psíquico chega a níveis nunca vistos.
Dentro da prática psicanalítica e seu campo epistemológico teórico clínico, em articulação entre psicanálise, política e cultura, são muitas as investigação de modalidades de intervenção junto a sujeitos submetidos a violências em suas diversas formas, como exclusão social, pobreza, racismo, indiferença, humilhação, imigração forçada, exílio, militarismos.
Miriam Debieux Rosa (2015), presidente da RedIPPol, nos alerta em como os discursos sociais de um tempo histórico indicam "os modos de pertencimento possíveis para cada sujeito, atribuindo a cada um valores, lugares e posições no laço" (p.05)1.
O discurso hegemônico busca equivaler e naturalizar os sofrimentos, invisibilizando e obturando possibilidades de reconhecimento dos conflitos sociais, encaminhando para respostas individuais, patológicas e criminalizadas. Observa-se na prática psicanalítica e seu campo epistemológico teórico clínico a necessidade de investigações junto aos sujeitos submetidos a essas tiranias. O interesse em discutir as dimensões subjetivas envolvidas nas condições sociopolíticas contemporâneas leva ao reconhecimento da teoria e prática psicanalítica como fonte de pensamento crítico que contribui para problematizar as democracias atuais e as formas de resistência. Dessa forma é fundamental pensarmos em temas como intolerância, repressão, violência de estado, fruto do mal-estar presente nos diversos territórios, nas Américas e em todo mundo, esbarrando em diferentes nuances políticas.
É importante destacar que nos encontramos diante de uma importante crise humanitária, e a medida que a disseminação da pandemia causada pela Covid-19 avança, as consequências das desigualdades sociais são avassaladoras na sociedade. O discurso da quarentena de "fique em casa", revelou os privilégios de uma minoria, pois centenas de milhares de pessoas em diversos países que não puderam manter-se isoladas mostrou o tamanho do abismo da desigualdade, sem nenhuma condição de estrutura física e mental para fazer o isolamento social. A crise socioeconômica é ainda mais agravada pela ausência efetiva de políticas para manutenção de emprego e criação de novos postos de trabalho. O que se observa é, milionários ficam mais ricos no meio da crise sanitária e econômica e a população em geral cada vez mais pauperizada.
Nesse contexto, lançamos esse dossiê com o intuito de fomentar o debate e ocupar espaços de transmissão de posições críticas, novas práticas e a convocação para possíveis parcerias. O desejo obviamente é não esgotar as possibilidades, tarefa inalcançável, e mais de inspirar pesquisadores a incorporarem em seus estudos psicanalíticos a dimensão sociopolítica.
Como se faz notar, o dossiê é composto por textos em forma ensaios, pesquisas, tendo as discussões sobre arte e política, articulando estes temas aos sonhos como aliados nas pesquisas psicanalíticas com juventudes. Também contamos com o desenvolvimento de textos relacionados ao movimento feminista e sua política que promoveu importantes deslocamentos no pensamento psicanalítico. Passamos por textos relacionados à infância e seus efeitos políticos com a inclusão conceitual nas políticas públicas. A impossibilidade de autonomia a partir da subjetivação política das crianças e adolescentes, pela dimensão dos direitos e o questionamento do lugar da discursividade hegemônica, trazendo a importância em escutá-las. Ainda no campo da infância, trazemos um texto sobre pesquisas com crianças institucionalizadas no chile e os efeitos nocivos de períodos prolongados de acolhimento.
Tema constante de debates na RedIPPol, a violência de estado e o direito à memória, encontramos artigos que relacionam esses tópicos à ética psicanalítica na escuta dos crimes da ditadura militar chilena e contribuições sobre a importância na diferença entre narcisismo das pequenas diferenças e uma lógica da segregação que dificulta o luto.
Com destaque para questões raciais e psicanálise, textos que destacam o racismo como determinante social de sofrimento psíquico na constituição da subjetividade e um ensaio que apresenta o processo de tornar-se negra no brasil, através da escuta e de possibilidades de transmissão do desejo, por meio de recortes clínicos. Dentro de propostas de construção de uma práxis psicanalítica contemporânea, um importante artigo que, a partir dos fundamentos da psicanálise e da etnopsicanálise, nos aponta para os desafios ético-políticos e a posição do analista.
Ainda encontramos textos que localizam as relações entre sujeito e poder na transmissão da psicanálise, pensando efeitos discursivos autoritários nomeados como autoritarismo do clínico. Discussões sobre a psicanálise e a localização da experiência do analista enquanto corpo que fala de uma posição no discurso social, tanto na construção de teoria quanto na escuta clínica. E a importante relação entre universal, particular e singular na interface entre psicanálise e política, com a proposta de engajamento singular do sujeito na composição de universais não predicativos como lógica que pode orientar uma política não segregacionista.
Por fim, encontramos um corajoso ensaio de articulação entre psicanálise e comunismo, concebendo o primeiro como um meio e o segundo como um fim.
Encontramos aqui uma pequena mostra do fértil vigor da inter-relação entre psicanálise e política e da perícia de autores que sobre essa intersecção se debruçam. A esses autores somos imensamente agradecidos por cederem-nos suas contribuições rigorosas e partilharem seus percursos.
Diante das dificuldades encontradas para realizar o I Congresso da RedIPPol em novembro 2019 e março de 2020, realizamos atualmente seminários onlines - Espaços interpelantes: psicanálise, política e pandemia, com palestrantes membros da rede, na expectativa de permanecer em diálogo e construção.
Após seguir o percurso que esses textos oferecem, esperamos que o leitor encontre diferentes modos de compreender e articular psicanálise e política, em sua atualidade, eles nos permitem reconhecer o que há de novo e de permanente no pensamento e na práxis psicanalítica.
1 Rosa, Miriam Debieux (2015). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-política do sofrimento. Tese de Livre-Docência - Departamento de Psicologia Clínica - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo.