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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.26 Rio de Janeiro jan./abr. 2020

 

ESPAÇO ABERTO

 

Adoção e circulação de crianças na atualidade

 

Adoption and the circulation of children in contemporary times

 

Adopción y circulación de niños en la actualidad

 

Entrevista de Agostina GentiliI com Claudia FonsecaII

I Universidad Nacional de Córdoba, Argentina.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.

 

 


RESUMO

Esta entrevista busca atualizar algumas questões tratadas pela antropóloga e pesquisadora Claudia Fonseca, autora de Caminhos da Adoção (1995), livro importante por lançar um olhar inovador sobre o cuidado e a circulação de crianças nas camadas populares brasileiras. Nesta entrevista, realizada pela professora Agostina Gentili, é possível entendermos o ponto de partida da pesquisadora e a forma como foi possível questionar e rever o olhar reificado sobre a infância pobre, que via na circulação de crianças um índice de abandono e desestruturação familiar. Podemos também ter notícias dos desdobramentos da pesquisa em termos de análise da estrutura jurídica das instituições e políticas públicas no campo da proteção da infância, bem como reflexões acerca da “adoção à brasileira” e sobre as hierarquias de gênero e classe presentes nas dinâmicas familiares.

Palavras-chave: adoção, circulação de crianças, proteção da infância, Antropologia do Direito.


ABSTRACT

This interview intends to update some questions discussed by the anthropologist and researcher Claudia Fonseca, author of Caminhos da Adoção (1995), an important book that shares an innovative perspective on the care and circulation of children in brazilian working class. In this interview, conducted by professor Agostina Gentili, it is possible to understand the starting point of the researcher, and the way in which it was possible to question and review a reified outlook on poor childhood that saw in the circulation of children an indication of abandonment and lack of family structure. We can also learn of the research’s results in terms of an analysis of legal structures of institutions and public policies in the field of child protection, as well as considerations on “brazilian style adoption” and hierarchies of gender and class present in family dynamics.

Keywords: adoption, circulation of children, child protection, Anthropology of Law.


RESUMEN

Esta entrevista busca actualizar algunas cuestiones tratadas por la antropóloga e investigadora Claudia Fonseca, autora de Caminhos da Adoção (1995), libro importante para lanzar una mirada innovadora sobre el cuidado y la circulación de niños y niñas en las clases populares brasileñas. En esta entrevista, realizada por la profesora Agostina Gentili, es posible entender el punto de partida de la investigadora y la forma como es posible cuestionar y rever la visión cosificadora sobre la infancia pobre, que veía en la circulación de niños y niñas un índice de abandono y desestructuración familiar. Podemos también anoticiarnos de los desdoblamientos de la investigación en términos de análisis de la estructura jurídica de las instituciones y políticas públicas en el campo de la protección de la infancia, así como reflexiones acerca de la “adopción a la brasileña” y sobre las jerarquías de género y clase presentes en las dinámicas familiares.

Palabras clave: adopción, circulación de niños, protección de la infancia, Antropología del Derecho.


 

 

Agostina Gentili – Já se passaram 25 anos desde a publicação do seu livro Caminhos da adoção1. Esse é um livro central para a compreensão da infância na América Latina. É uma leitura ainda vigente, não só pela sua temática, mas também pelo modo como nos ensina a olhar as relações entre adultos e crianças e, especialmente, entre as dinâmicas familiares populares e os anseios jurídicos em torno da família. Como foi que você chegou a esse tema central do seu livro sobre a circulação de crianças?

Claudia Fonseca – Bom, meu interesse foi despertado em 1978, logo que me mudei, com toda a família, da França para o Brasil. Morava numa casa num bairro classe média e fui visitada diariamente por meninos e meninas que vinham da favela do lado pedindo comida. Fui profundamente incomodada pela desigualdade escancarada entre essas crianças e as minhas, e pensei que precisava entender sua experiência, justamente para poder conviver com elas de forma minimamente sensata. A pesquisa etnográfica com as famílias daqueles meninos e meninas era, para mim, algo necessário. Eu, enquanto residente deste País, tinha quase a obrigação de conhecer melhor a vida desses jovens – oriundos de uma situação que parecia ser representativa de boa parte da população. E, quando comecei a conhecer melhor as famílias, a questão da “circulação” foi uma coisa impossível de ignorar, a ideia de que havia uma certa maneira –, eu não quero romantizar, mas a palavra que me vem à cabeça é “quase coletiva” – de cuidar das crianças. Essas crianças muitas vezes não viviam com as suas mães, eram crianças muito ativas e, de certa forma, também muito independentes e, a partir de certa idade, elas decidiam por onde se locomover. Por outro lado, parecia sempre ter um vizinho ou parente pronto para acolhê-las.

Naquele momento, a literatura (principalmente na Sociologia) que eu procurava para tentar colocar essas práticas em perspectiva era dominada por uma imagem absolutamente normalizada da família nuclear, conjugal e euro-americana. Era uma imagem tão hegemônica que parecia cegar as pessoas para a realidade que estava à sua frente. A única maneira que essa literatura normativa tinha para analisar as práticas que eu observava era como algo anômalo, para não dizer patológico. Era evidente que essa forma de análise acadêmica extremamente limitada só podia desembocar na construção do objeto enquanto “problema social”.

Foi nesse momento que fui para a Antropologia clássica e para a História. Inclusive, peguei o termo “circulação de crianças” de um antropólogo que também trabalha com história2. Insisto em ressaltar isso, pois ele estava escrevendo sobre as crianças da nobreza da Inglaterra tudoriana. Naquele contexto, a circulação nada tinha a ver com “sobrevivência”, era um mecanismo para garantir a educação – a socialização adequada – de novas gerações. Então, para que essa expressão “circulação das crianças” não seja reificada, pensada sempre como “estratégia de sobrevivência”, era para mim essencial enfatizar a variabilidade complexa dos processos históricos. Antes de tudo, queria usar a análise comparativa para escapar da camisa de força da ideia de uma família “natural” – uma ideia que apresentava praticamente qualquer desvio do padrão “ideal” como um problema.

De fato, as Ciências Sociais estavam evoluindo, e muito, nessa época. No decorrer dos anos 80 e 90, em todas as áreas, a hegemonia do modelo familiar nuclear e conjugal (típico e “normal” de um contexto particular) estava sendo seriamente revista. Tinha tanta novidade – novas tecnologias reprodutivas, o aumento da expectativa de vida, a revolução sexual, divórcio, famílias gay e lésbicas – que teria sido delirante tentar se agarrar a um modelo tão estreito quanto aquele consagrado pela Sociologia anglo-saxã da época pós-guerra. O problema é que aquele modelo parecia continuar a dominar o imaginário de muitos políticos e gestores e até de alguns pesquisadores. É por isso que, em anos subsequentes, tomei como tarefa ajudar a disseminar para a esfera das políticas estatais as excelentes análises acadêmicas sendo realizadas em todas as áreas disciplinares sobre dinâmicas familiares diversas.

Agostina Gentili – Em meio a essa pesquisa, quais foram as suas outras descobertas no seu campo de estudo? Quais foram os outros temas que você trabalhou?

Claudia Fonseca – Bom, uma pesquisa geralmente leva a outra. Minhas primeiras experiências me levaram para uma variedade de instituições estatais por onde as crianças perambulavam. Essas instituições também faziam parte da dinâmica das famílias. Assim, despertei para as questões de políticas públicas no campo da proteção da infância. Aliás, acabo de participar de uma banca com Maria Filomena Gregori, que tem um livro muito instigante dessa época, Viração: experiências de meninos de rua3.  O foco dela não era, como o meu, em jovens que circulavam entre famílias, mas os que giravam entre as instituições. Como no caso de Gregori, o próprio campo acabou me arrastando para o estudo da rede pública de acolhimento, as políticas públicas e, também, a questão das leis.

Foi assim que cheguei ao estudo da Antropologia do Direito. Na época, se falava muito do hiato que existe entre as leis e as práticas. Parece que os governantes que faziam as leis estavam completamente alheios a qualquer prática das pessoas “comuns”. Ao longo da história da América Latina, encontramos leis que seguiam esse formato: ver, por exemplo, os estudos sobre o México4, o Chile5, o Peru6... Será que você mesma, Agostina, na sua pesquisa sobre a adoção nos anos de 1960 na Argentina7, não constatou esse mesmo descompasso entre as perspectivas de quem faz as leis e os entendimentos das pessoas às quais essas leis são aplicadas? Então, isso é algo que eu enfatizava nas minhas primeiras análises: como as leis sobre adoção se ajustavam melhor aos valores e práticas (considerados pelos legisladores como “modernos” – isto é, da Europa e dos USA) do que aos valores e práticas do povo local.

Em tempos recentes, tenho observado muitas mudanças – o que é sempre um desafio para nós, pesquisadores. As estruturas mudam, as políticas mudam, os estilos de governança mudam. E temos novas entradas metodológicas que também nos permitem ver sutilezas maiores. Eu diria que, hoje no Brasil, quando olho para a área legal de adoção e proteção à infância, vejo um campo extremamente heterogêneo. Há uma influência internacional, mas não é uma influência monolítica. Também existe uma certa abertura incipiente e seletiva para práticas locais. Vou te dar apenas um exemplo, porque são muitos. Escrevi muito sobre a “adoção à brasileira” (que vocês na Argentina chamam de “inscripción falsa”, não é?), que ocorre quando um padrasto ou qualquer outro pai adotivo resolve tirar a certidão de nascimento da criança como se fosse ele o pai biológico. Durante muitos anos, eu lia artigos de juristas lamentando essa prática fraudulenta (que estimavam ser até dez vezes mais comum do que a adoção legal). Agora, a partir de 1º de janeiro de 2018, o Conselho Nacional de Justiça forneceu uma maneira de regularizar essa “adoção à brasileira”. No seu Provimento 63, o Conselho facilita o registro em cartório de paternidade de três tipos de pais que não precisam mais passar pelos tribunais – pais vivendo em casais homossexuais, pais de bebês nascidos das novas tecnologias reprodutivas e padrastos. Nessa terceira categoria, o alvo é aquele pai “socioafetivo” que já cria algum enteado há tempo. Nestes casos, não é necessário fazer uma adoção. É só ir ao cartório e declarar a paternidade socioafetiva. Esse processo cria direitos e obrigações irrevogáveis, iguais à adoção que passou pelo Juizado. Não sei se o Provimento vingou, pois houve uma reação... mas representa uma tentativa de regularizar práticas que já são amplamente difundidas na sociedade.

Portanto, sugiro que a própria dinâmica da lei brasileira está mudando. Podemos dizer que, cinquenta anos atrás, políticos da elite faziam uma lei, sabiam que ela não iria ser aplicada, mas a aplicação pouco importava. Tinham se mostrado progressistas, proclamando seus princípios iluministas e a história terminava ali. Hoje em dia, existe a tentativa de uma maior aproximação entre lei e prática. Não digo que a mudança seja sempre pelo melhor, mas é interessante notar como essas coisas mudam. Em suma, a circulação das crianças me levou a examinar as regras impostas pelo governo em termos de lei e esse interesse pela lei me levou a repensar o problema da “governança” da infância8.

Agostina Gentili – Como você vê o campo de estudos sobre a infância depois de 25 anos da publicação do seu livro?

Claudia Fonseca – Houve um florescimento fantástico. Hoje, temos especialistas nas mais diversas áreas, organizando grupos de discussão nos mais importantes eventos das Ciências Sociais (na Antropologia brasileira, penso em Antonella Tassinari, Clarice Cohn, Fernanda Ribeiro, Flavia Pires, Chantal Medaets...). Temos núcleos interdisciplinares de estudos, revistas especializadas (como Desidades...) e, claro, temos as diversas Jornadas da Infância, tal como aquela que organizamos no Rio Grande do Sul. Fomos inspirados, em grande medida, por aquelas magníficas jornadas da infância que vocês na Argentina organizam de dois em dois anos, com uma mescla interdisciplinar, incluindo historiadores, psicólogos, antropólogos, sociólogos, juristas, assistentes sociais, administradores... Esses espaços são caracterizados por uma abertura de perspectiva que desafia nossos lugares-comuns, que chacoalha nossas perspectivas sedimentadas. Esse lugar de interlocução inquietante é uma coisa fantástica.

No ano passado, aqui em Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil), junto com duas colegas de outros departamentos, a Fernanda Ribeiro e a Paula Machado, editamos uma disciplina sobre a infância na América Latina que acolheu estudantes da Psicologia, das Ciências Sociais e da Comunicação. Nela, tentamos fazer um tipo de resenha sobre estudos especificamente na e sobre a América Latina. É uma área extremamente rica e heterogênea, com abordagens ao tema muito distintas. Tivemos, na bibliografia, material sobre infância e raça, sobre infância e orientação sexual, travestis e transgêneros, sobre infância e classe. A relevância da noção de interseccionalidade se declarava a cada nova leitura.

Nosso esforço foi o de manter uma agilidade nos debates, combatendo os tantos reducionismos científicos que o senso comum emprega para congelar os conceitos, como se fossem verdades universais. Desconstruímos as interpretações do freudianismo primário, da antropologia vulgarizada, das neurociências simplistas9. Cada uma das ciências tem muito a contribuir, mas o estudante tem que saber fazer uma exegese das teorias clássicas, apreciar as críticas e se localizar dentro das análises contemporâneas de ponta. Não é questão de “explicar” a criança a partir disso ou daquilo. É de levar em consideração a complexidade desse fenômeno – que se insere dentro de um determinado lugar e tempo históricos. E, entre outros itens no programa, incluímos a criatividade, nem sempre previsível, das próprias crianças. Assim, questões sobre a “voz da criança” e o “protagonismo juvenil” vieram à tona.

Na verdade, nas minhas pesquisas, eu nunca visei diretamente “à infância”, mas aos espaços “domésticos” – da casa, do bairro. Para mim, as crianças sempre foram interlocutoras ao lado de seus pais e de seus vizinhos. Nunca tentei analisar a voz das crianças como algo a parte. Mas reconheço que existe um campo riquíssimo trazendo essa perspectiva. No livro que acabamos de publicar – Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo10 –, há diversos exemplos, por autores da França, da Argentina e do Brasil.

Agostina Gentili – Voltando ao tema da circulação das crianças, você tem percebido mudanças nas atitudes das famílias a respeito da circulação de crianças, depois de 25 anos do estudo deste fenômeno?

Claudia Fonseca – Agostina, você sabe que foi justamente para responder a essa pergunta que tentei fazer uma revisitação à circulação de crianças – não das mesmas famílias, mas no mesmo bairro – 30 anos depois das minhas primeiras pesquisas. Nunca vi a circulação das crianças como uma “estrutura” atemporal. Desenvolvi uma ideia em determinadas circunstâncias e em uma determinada época e hoje as coisas não são iguais. No entanto, tampouco acho aconselhável cair nas armadilhas de uma dicotomia evolucionista: como se os casos pudessem ser divididos entre o “tradicional” e o “moderno” ou o “hegemônico” e o “popular”. Creio, por exemplo, que – para além da circulação das crianças ou a família nuclear conjugal – há muitos outros arranjos domésticos possíveis. O importante é tentar entender a “economia moral”11 acionada na interação das pessoas, nas suas famílias e comunidades, e com as autoridades estatais.

Essa pesquisa mais recente que realizo com a antropóloga Lucia Scalca ainda está em andamento. E o que nós estamos vendo? Uma observação bastante óbvia, mas que deve ser lembrada: trinta anos atrás, a população brasileira ainda estava num processo de mobilidade entre a zona rural e a zona urbana. Marcia Serra – uma demógrafa da Unicamp – fez uma análise daquele momento histórico, mostrando uma correlação entre a mobilidade geográfica e o fato de as crianças ficarem espalhadas entre diferentes casas12.

Estamos vendo na pesquisa atual que, em praticamente todas as famílias, as mães nasceram no próprio bairro onde estamos conduzindo as entrevistas. Elas têm os pais, as mães, os filhos, os irmãos morando perto. A família extensa continua fundamental, mas o afastamento geográfico dos membros da família não acontece mais como acontecia há 30 ou 40 anos atrás. As avós, em particular, seguem criando os netos, e achando de certa forma isso normal. Mas, em geral, elas moram relativamente perto dos pais dos seus netos. Assim, se você pergunta para certa mulher ou certo casal se suas crianças estão sendo criadas por outra pessoa, a grande maioria vai dizer que não. Inclusive, podem se surpreender com a pergunta. Mas, se você procura ver quem leva e busca as crianças na creche... vai ver que, em muitos casos, é a avó, ou a tia, ou a vizinha. E essa pessoa explicará que está “só cuidando” da criança durante alguns dias, ou durante aquela semana...

Minha impressão por enquanto é que houve, de fato, uma relativa “normalização” da vida familiar através dos suportes institucionais. Vejamos, por exemplo, o Programa Bolsa Família, que atribui a responsabilidade pelos filhos à mãe. Claro que é possível transferir o benefício para a avó ou outra pessoa, mas o processo é complicado. Então, existe uma série de estruturas legais e políticas públicas que têm contribuído para certa estabilização da composição doméstica. Em todo caso, na América Latina, em todas as classes, a família extensa continua fundamental para a criação de novas gerações.

O que as crianças pensam disso tudo? É impossível generalizar, pois praticamente todos os sentimentos fazem parte do repertório. Dependendo de seu interlocutor, muitas dirão que elas decidiram “por vontade própria” seguir certo rumo; a partir de certa idade, assumem a responsabilidade de decidir do que gostam e do que não gostam. Mas também existem aquelas que vão deixar entender que não foram devidamente acolhidas (por seus próprios pais ou por alguma família substituta). E não devemos nos esquecer de que, hoje em dia, existe entre jovens da rede pública de acolhimento o fantasma da “devolução” por pais adotantes. Cabe mencionar um projeto muito interessante, organizado pela Corregedoria da Infância no Rio Grande do Sul: CPAAJ, Comitê de Participação de Adolescentes Acolhidos na Justiça. Recente estudo mostra como os jovens abrigados chamados a manifestar suas opiniões sobre sua própria “circulação” trazem perspectivas inesperadas13.

Agostina Gentili – Você tem percebido mudanças nas atitudes das autoridades públicas e dos agentes estatais frente ao fenômeno da circulação de crianças?

Claudia Fonseca – Essa questão das políticas públicas de proteção da infância é de suma importância. Sou da geração da “reabertura democrática”. Depois da promulgação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente, esse documento virou praticamente Bíblia entre profissionais do campo. Na época, eu tinha certo desconforto com tamanha sacralização, mas hoje estou com saudades daquela época. O Estatuto era sustentado em dois princípios fundamentais que deviam andar juntos: o do interesse prioritário da criança e o da justiça social. Isso significava que assegurar a proteção da criança devia envolver um trabalho de colaboração com os pais ou outros cuidadores do entorno. A intervenção era dirigida tanto para o fortalecimento de uma rede de serviços públicos e comunitários quanto para a fiscalização das famílias. Remover a criança da família e torná-la disponível para a adoção era uma medida que existia só como último recurso. De fato, desde 1989, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança deixava claro que – em qualquer lugar do mundo – a adoção devia ser acionada apenas em casos excepcionais.

Minha sensação é a de que, pelo menos no que diz respeito à adoção, o modelo de justiça social tem definhado ao longo da última década14. É algo que tenho visto não só no Brasil, mas no mundo inteiro, me dando uma sensação de impotência. A desigualdade econômica e social tem se exacerbado, trazendo junto uma visão moral que se arrasta desde o século XIX – uma visão que apresenta os “pais indignos” como principais responsáveis pela vulnerabilidade infantil. Parece que estamos em um processo cíclico. Voltamos a perspectivas que eram comuns nas políticas de governo uns quarenta anos atrás, quando a família pobre era tacitamente vista como tóxica para as crianças. Fazendo abstração de séculos da discriminação e dos estragos da violência estrutural contra determinados setores da população, a tendência era culpar os pais desamorosos pela situação precária de seus filhos15.

É verdade que algumas das crianças chegando aos serviços de proteção vêm de situações dramáticas – que podem incluir, além da pobreza, problemas de violência doméstica, de desemprego crônico, doença, alcoolismo etc. Sugiro que, no bojo do novo clima político, a garantia dos direitos da criança implica em tirá-la o mais rapidamente possível dessa situação. E já que qualquer forma de acolhimento institucional (quer seja família de acolhimento, casa-lar, abrigo residencial ou outro) é demonizada, a única saída é a colocação em família adotiva – o que, conforme a lei em vigor, representa uma ruptura total e irrevogável de laços travados durante a trajetória anterior do jovem.

Hoje em dia, vejo uma nova geração de profissionais – que tem as melhores intenções, que se identifica com causas progressistas – batendo nessa tecla da adoção. A adoção deve ser realizada o mais rápido possível, antes que a criança se torne indesejável para os pais adotantes (a grande maioria de emendas legais introduzidas na lei nesses últimos anos é no sentido de “encurtar prazos” – dos trâmites processuais, da estadia máxima no acolhimento institucional etc. – para facilitar a adoção16). O único problema é que esse “mais rápido possível” significa atropelar os processos usuais originalmente previstos no ECA – os estudos sociais, as avaliações técnicas, a procura por membros da família extensa ou na comunidade original prontos para acolher o jovem... E, apesar de reconhecer que a “reintegração familiar” exige muito trabalho dos profissionais da rede institucional, que é demorada e pode acabar não dando certo, a “celeridade” do processo de adoção, para mim, beira um desrespeito perigoso pelas famílias em grande vulnerabilidade.

Trata-se de filosofias políticas distintas: por um lado, a tentativa de reconciliar justiça social com os direitos da criança por profissionais que, tal como eu, apostam na possibilidade de construir um ambiente propício ao desenvolvimento integral da criança na sua família extensa ou bairro de origem; e, por outro, a opção pela facilitação da adoção de crianças em situação de grande vulnerabilidade em nome do “interesse da criança” acima de tudo. De qualquer forma, numa sociedade de tamanha desigualdade como a nossa, não tem solução mágica. Cada situação deve ser ponderada em toda sua complexidade. E, para tanto, é fundamental estender pontes de diálogo para todos os lados.

Agostina Gentili – As hierarquias de gênero e as violências a elas associadas estão ocupando um espaço singular na esfera pública atual e internacional. Nos seus trabalhos, você tem mostrado uma preocupação especial por outros tipos de hierarquias, as de classe. Como você pensa as relações entre as hierarquias de gênero e classe nesse marco das dinâmicas familiares?

Claudia Fonseca – Essa é uma pergunta fundamental. Em primeiro lugar, acho importante não reduzir as mulheres a “vitimas” passivas. No meu livro Família, fofoca e honra17, fiz questão de ressaltar a força feminina que eu encontrava nas famílias do bairro popular onde pesquisava. Às vezes, era uma matriarca, às vezes era uma mulher que se apresentava como “valente”, que sabia lutar pelas coisas que ela considerava certas. Acho que qualquer pessoa que tenha trabalhado nos bairros populares sai com uma admiração diante da liderança e do ativismo comunitário absolutamente impressionante das mulheres. É evidente que as crianças tampouco são passivas. Basta prestar atenção à voz delas para apreciar o quanto são capazes de fazer análises sutis de sua situação e de inventar, com apoio de suas redes, saídas para problemas difíceis.

Contudo, devemos reconhecer que a violência doméstica é uma constante inegável nas diferentes classes, em nossos diferentes países, e no mundo como um todo. Em qualquer unidade fechada, impermeável ao olhar comunitário, existe a ameaça da violência contra os membros mais fracos da família: mulheres; velhos; crianças; pessoas com deficiência. Por isso, fico perplexa diante de políticas públicas familistas que promovem, por exemplo, homeschooling e educação à distância, inclusive para as primeiras séries. Atrás dessa campanha, parece existir uma aposta na família nuclear, com a mulher inteiramente dedicada aos filhos e com um pai que permanece como autoridade final. Na minha opinião, esse tipo de família que vive num ambiente enclausurado, que não se abre para uma certa normalização pelo olhar público, é o que há de mais preocupante. Deixa a mulher, os velhos e as crianças expostos aos humores de quem detém a força bruta e financeira dentro desse núcleo.

Assim, é um grande orgulho, tanto na Argentina quanto no Brasil, que a luta das feministas contra a violência doméstica tenha penetrado em todos os setores. Hoje, existem delegacias especiais para todas essas categorias mais vulneráveis. E é difícil qualquer delegado recusar levar a sério uma denúncia de violência doméstica (ou violência em qualquer espaço) perpetrada contra essas categorias desfavorecidas. A duras custas, com esforços sustentados ao longo das últimas décadas, a luta contra o antigo poder patriarcal tem penetrado na vida institucional da sociedade. Temos que zelar para manter e fazer avançar esses efeitos.

Mas não podemos nos esquecer de que estamos geralmente lidando com situações que conjugam diversas formas de violência. Assim, me arrisco a dizer que a análise enfocando apenas uma forma de violência é insuficiente. Corre o risco de reforçar um tipo de preconceito para combater outro – por exemplo, de alimentar a discriminação de classe para combater a violência de gênero. Fernanda Ribeiro nos traz um exemplo desse risco no campo da infância ao relembrar o assassinato do “menino Bernardo” (no Rio Grande do Sul)18. Sua análise mostra como, já que o pai era médico da classe média alta, os serviços de proteção à infância puderam exercer uma espécie de cegueira seletiva, simplesmente ignorando os apelos de Bernardo por socorro. Ribeiro sugere que não só os profissionais nesse caso sucumbiram a preconceitos de classe, mas de fato a própria legislação sobre proteção infantil é sutilmente dirigida para o controle, antes de tudo, de famílias pobres.

Pergunto-me se nossas pesquisas acadêmicas não têm contribuído para os preconceitos de classe – a ideia de que a violência doméstica, por exemplo, se concentra nos setores pobres da população. Nós, pesquisadores, escolhemos locais de estudo que propiciam uma concentração do material que nos interessa. Assim, para entender a violência doméstica, adentramos as delegacias de polícia; para investigar o abuso sexual, passamos a frequentar alas especiais da cadeia, ou de hospitais públicos. Mas, gostaria de lembrar que, em muitos (talvez a maioria dos) casos, as famílias abastadas lidam com esses dramas sem jamais passar pelos serviços públicos. Pagam um aborto em clínica particular para abafar as evidências de abuso; contratam um advogado habilidoso para negociar uma suspensão da queixa ou inquérito policial. Ou seja, escapam com certa facilidade da mira indiscreta dos pesquisadores, ficam longe das estatísticas oficiais. Certamente, as práticas criminosas devem ser prevenidas e, quando ocorrem, castigadas. Porém, não devemos esquecer que quem fica definhando na cadeia, culpado e condenado por esses crimes é, em sua grande maioria, negro e pobre.

Creio que a maioria das minhas colegas hoje em dia – especialmente no movimento feminista em que existe um rico diálogo com os estudos pós-colonialistas – tem forte consciência desses paradoxos. O contexto contemporâneo é inegavelmente complicado. Mas é por isso que precisamos das pesquisas sendo realizadas sobre a vida de pessoas em carne e osso – nas suas famílias, nas suas comunidades e em interação com os agentes das diferentes instituições que nos circundam. A combinação de engajamento moral e rigor metodológico nos acompanha ao longo dessas pesquisas, tornando esse tipo de diálogo que estamos tendo aqui um convite estimulante à auto-reflexão crítica.

Agostina Gentili – Bom, encerramos a entrevista por aqui e te agradeço muitíssimo, Claudia.

 

 

Data de recebimento: 19/02/2020
Data de aceite: 29/03/2020

 

 

1 FONSECA, C. Caminhos da adoção. São Paulo, Editora Cortez, 1995.

2 MCKRACKEN, G. The Exchange of Children in Tudor England: an Anthropological Phenomenon in Historical Context. Journal of Family History, v. 8, n. 4, p. 303-313, 1983.

3 GREGORI, M. F. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

4 BLUM, A. Domestic economies: family, work, and welfare in Mexico City, 1884-1943. Lincoln: University of Nebraska Press, 2009.

5 MILANICH, N. Children of fate: childhood, class, and the state in Chile, 1850-1930. Durham: Duke University Press, 2009.

6 LEINAWEAVER, J. El desplazamiento infantil: las implicaciones sociales de la circulación infantil en los Andes. In: FONSECA,C.; MARRE, D.; UZIEL,A.; VIANNA, A. (Org.), El principio del 'interés superior' de la niñez: adopción, políticas de acogimiento y otras intervenciones. Perspectivas espaciales y disciplinares comparativas. Scripta Nova, v. XVI, n. 395, mar. 2012.

7 GENTILI, A. Maternidades públicas y adopción legal en Córdoba, 1957-1974. Anuario del Instituto de Historia Argentina, v. 17, n. 2, p. 1-22, dez. 2017.

8 Aproveito o gancho para lembrar que eu, junto com Fernanda Rifiotis e Diana Marre, estamos organizando um número da revista Horizontes Antropólogicos sobre a Governança Reprodutiva. A submissão de manuscritos será bem-vinda até 31/5/2020. A publicação está prevista para maio de 2021.

9 Sobre esse último, ver FONSECA, C. Crianças, seus cérebros... e além: reflexões em torno de uma ética feminista de pesquisa. Revista de Estudos Feministas, v. 27, n. 2, p. 1-14. 2019.

10 FONSECA, C.; MEDAETS, C.; RIBEIRO, F. B. (Org.). Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2018.

11 FASSIN, D. Toward a critical moral anthropology. In: FASSIN, D. (Org.), A Companion to Moral Anthropology. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012.

12 SERRA, M. O Brasil das muitas mães: aspectos demográficos da circulação de crianças. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2003.

13 PEIXOTO, B. Deixa o amor te surpreender: campanhas de adoção de difícil colocação nas atuais políticas brasileiras. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2020.

14 Para uma elaboração mais detalhada sobre essa hipótese, ver FONSECA, C. (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Runa: Archivo para la ciencias del hombre, v. 40, n. 2,p. 17-38. 2019.

15 Ver FONSECA, C. Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência  e política em programas ‘alternativos’ de educação para a primeira infância. In: FONSECA, C.; ROHDEN, F.; MACHADO, P. (Org.). Ciências na Vida: Antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012. p. 253-275.

16 Ver, entre outros, AZAMBUJA, M. R. F. de; RODRIGUES DA SILVA, D. L. Projeto de Lei do Senado nº 394/2017: avanço ou retrocesso? Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, v. 3, n. 19, p. 99-109. 2018.

17 FONSECA, C. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.

18 RIBEIRO, F. B. O nome da lei: violências, proteções e diferenciação social de crianças. In: FONSECA, C.; MEDAETS, C.; RIBEIRO, F. B. (Org.), Pesquisas sobre família e infância no mundo contemporâneo. Porto Alegre, Sulina, 2018. p. 41-65.

 

 

I Agostina Gentili: Historiadora e docente da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Integra o grupo de pesquisa Historia de las Familias y las Infancias en la Argentina Contemporánea do Instituto de Estudios de Género da Universidad de Buenos Aires, e a Red de Estudio de Historia de las Infancias en América Latina. E-mail: agosgentili@gmail.com

II Claudia Fonseca: Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e do Doutorado em Antropologia (IDAES) pela Universidad Nacional de San Martin, Argentina. Seus interesses de pesquisa incluem parentesco, gênero, ciência e direito, com ênfase particular nos temas de direitos humanos e tecnologias de governo. E-mail: claudialwfonseca@gmail.com

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