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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.31 Rio de Janeiro set./dez. 2021
INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS INFORMACIONES BIBLIOGRÁFICAS
Infância, adolescência e mal-estar na escolarização: estudos de casos em psicanálise e educação, organizado por Cristiana Carneiro e Luciana Gageiro Coutinho
Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil. Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (2016). Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Especialista em Problemas do Desenvolvimento na Infância e Adolescência em uma abordagem interdisciplinar, pelo Centro de Estudos Lydia Coriat de Porto Alegre, Brasil. Psicóloga pela Universidade Católica de Brasília, Brasil. Psicóloga Clínica e Escolar, com ênfase no atendimento de crianças e adolescentes. Docente no Ensino Superior. E-mail: elenpsi@gmail.com
Palavras-chave: adolescência, educação, escola, infância, psicanálise.
Pesquisa-intervenção com crianças e adolescentes: mal-estar na educação
O livro Infância, adolescência e mal-estar na escolarização: estudos de casos em psicanálise e educação, organizado por Luciana Gageiro Coutinho e Cristiana Carneiro, apresenta um mal-estar contemporâneo existente na Educação. Desde a apresentação do livro, realizada pela professora Lucia Rabello de Castro, encontramos um convite para as reflexões necessárias e fundamentadas em Psicanálise que se seguem ao longo da leitura da obra. O livro é resultado de uma pesquisa-intervenção realizada ao longo de dois anos com crianças e adolescentes, pais, coordenadores e profissionais de saúde (psicólogos e psiquiatras) sobre o mal-estar na escolarização.
O termo mal-estar, bastante utilizado entre psicanalistas, faz alusão ao texto de Sigmund Freud intitulado O mal-estar na civilização, de 1930, o qual explica que existe um impasse entre a constituição subjetiva, desejos e fantasias dos sujeitos, que estão em desencontro com o laço social. Esse mal-estar é um tensionamento subjetivo com o qual todos precisam lidar, abdicando de desejos em prol de segurança, de aceitação, entre outros.
Segundo as autoras, o mal-estar se presentifica de diferentes formas nas organizações sociais e na Educação, manifestando-se no crescimento de casos de crianças e adolescentes que são medicalizados e patologizados por apresentarem comportamento ditos inadequados, nas dificuldades no campo da aprendizagem, bem como no sofrimento psíquico de professores e na comunicação difusa entre família e escola. No livro, esse mal-estar é visto não apenas por uma apresentação conceitual, mas pela voz dos atores escolares (crianças, adolescentes, professores e familiares), conforme metodologia adotada pelas autoras da pesquisa.
O livro é organizado em quatro capítulos, os quais são construídos por meio dos eixos da pesquisa. No capítulo 1 é apresentada a voz das crianças e dos adolescentes acerca do que não vai bem na escola; no capítulo 2 discute-se sobre o mal-estar na família: questões sobre parentalidade e escolarização dos filhos; no capítulo 3, sobre o mal-estar de educadores na pesquisa: conflitos a partir de idéias na educação; por fim, no capítulo 4, discorre-se sobre a produção de diagnósticos e sobre o ato de educar: os especialistas frente ao mal-estar das crianças e dos adolescentes.
No primeiro capítulo, vemos a importância de dar voz às crianças e aos adolescentes em uma proposta de reconhecer as questões que compõem o mal-estar desse público. As autoras apontam um nome fictício para as três crianças e para os dois adolescentes participantes da pesquisa e apresentam as diferenças no mal-estar de crianças e de adolescentes. Para as primeiras, a escola é um mundo cheio de novidades e desafios, uma apresentação do não-saber, que não se trata do conhecimento formal, mas das relações humanas; para os adolescentes existe um reconhecimento da escola como um lugar de contradições, de ambiguidades, de modo que a escola não precisa ser legal, como expressaram os adolescentes.
No segundo capítulo, as autoras buscaram, mediante a pesquisa, entender como os pais se situavam no encaminhamento de seus filhos do espaço escolar para o campo da saúde mental. O capítulo foi construído a partir de gravações de reuniões com os pais entre 2013 e 2014 e de entrevistas individuais também realizadas com pais, em um total de 10 reuniões de grupos e 8 entrevistas individuais. Como trata-se de uma pesquisa-intervenção, as autoras também permitiram incluir as impressões das pesquisadoras, os telefonemas que ocorreram ao longo dos anos, os atendimentos realizados no corredor. Trazem como informações importantes, o local de fala dos pais, condição socioeco-nômica, nível de escolaridade. Essa informação tornou a construção do capítulo muito rica, pois foi possível entender como a não escolarização dos pais gera um ideal que os filhos aprendam o que não puderam aprender. Além disso, evidencia também um ressentimento dos pais por não saberem como ajudar seus filhos e por aceitarem de forma acrítica os questionamentos da escola sobre eles.
As pesquisadoras puderam reconhecer na fala dos pais como a lógica de consumo, imediatismo e das soluções explicativas breves tão presentes na sociedade contemporânea atravessa o exercício da parentalidade a ponto de apontarem que não há uma bula que os oriente na educação dos filhos. Entende-se que existem mudanças significativas no exercício parental de tempos em tempos, havendo, na atualidade, um declínio da autoridade, um receio de ser autoridade e de assim perder o afeto dos filhos. Há uma relação bastante horizontal entre pais e filhos, pois o desejo de ser amado dos pais coincide com os de seus filhos.
Os pais demonstraram dificuldades de compartilhar a educação de seus filhos com a escola. A pesquisa mostra como é difícil a parceria entre pais e escola devido a aspectos históricos e subjetivos. O ato de delegar à escola e aos especialistas é apresentado historicamente pelas autoras como um processo de deslegitimação das famílias, iniciado com o discurso médico e de especialistas no campo da Educação. O mal-estar dos pais foi apontado, primeiramente, nos desafios de ser pai e mãe na contemporaneidade. Diante desse desafio está o quanto os pais se sentem confrontados quando a educação escolar de seus filhos é questionada e criticada pela escola. Esse confronto está muito relacionado ao ideal que os pais têm tanto da educação escolar quanto de seus próprios filhos.
O fato de os pais serem chamados para reuniões na escola coloca em xeque o exercício da parentalidade e, dessa forma, existe um mal-estar nas famílias que respinga na escolarização dos filhos de forma recíproca. A escolarização atravessa a relação dos pais com seus filhos, sobretudo pelo ideal que os pais atribuem aos seus filhos devido ao fato de não terem podido realizar seu percurso nos estudos. São famílias em sua maioria de classe socioeconômica baixa, que, por vezes, desconhecem o processo escolar e têm dificuldades de dialogar com a escola. Nos grupos com os pais, a pesquisa possibilitou um momento de fala, de tensionamento, de aspectos transferenciais. Os pais relataram a sensação de se sentirem cobrados pelas pesquisadoras, ao mesmo tempo em que iam transformando a forma de enxergar e lidar com seus filhos, a ponto de conseguirem lidar com suas angústias no exercício da parentalidade.
Na pesquisa, as autoras retomam conceitos freudianos, como narcisismo, complexo de Édipo, Eu Ideal e Ideal do Eu, para explicar que o mal-estar na parentalidade e escolarização dos filhos perpassa também pelo distanciamento entre o filho ideal e o filho real, que se apresenta com suas peculiaridades. Para os pais é difícil lidar com o ideal, que também é atravessado pela cultura e por uma época social.
Os pais projetam seu narcisismo em seus filhos e almejam que eles se realizem segundo seus desejos e expectativas. As pesquisadoras evidenciaram também que a escola lida com um ideal de aluno. Nesse sentido, família e escola lidam com o ideal de criança e adolescente, logo, quanto maior a distância, maior o afastamento de lidar com o próprio sujeito - filho e aluno.
Os pais demonstraram muito receio do futuro que os filhos terão, haja vista que no sistema neoliberal não há garantias de empregabilidade pela formação alcançada. O futuro é visto como algo duvidoso, que mobiliza fortemente os pais, alguns mais confiantes na capacidade de seus filhos, outros nem tanto.
No capítulo 3, as autoras pontuam sobre como a formação dos professores e a realidade brasileira trazem angústia no trabalho dos professores. Nos relatos de professores participantes na pesquisa, o mal-estar revela-se por dois eixos, o ideal de educação e o ideal de aluno. Um dos impasses vistos na pesquisa é a incongruência entre a formação acadêmica, a realidade das escolas e a burocracia do sistema educacional como aspectos distintos e estressantes para o professor. Os professores apoiam-se em um ato educativo ideal, um trabalho conteudista, em que o conteúdo, a frequência e as notas são fundamentais. Todavia, esses aspectos impedem que os alunos sejam vistos como sujeitos em seu processo. Ou seja, não admite que a educação é feita de incertezas e deslizes, onde é preciso falhas, pois lidamos com sujeitos e não máquinas.
As autoras fundamentam teoricamente a crítica à técnica como fundamental ao processo de aprendizagem, mostrando que a técnica, por ela mesma, fragiliza os laços sociais e reduz o sujeito aluno a um objeto.
Os ideais não podem ser realizáveis, logo, quanto maior é o ideal, maior é a angústia pela impossibilidade de tornar-se real. Em um dos casos apresentados na pesquisa, para minimizar o mal-estar, a medicação aparece como uma resposta à angústia de vários educadores e de várias escolas. Sustentar um ideal de aluno abre possibilidades para o fracasso escolar ao excluir da constituição do aluno sua história, os aspectos culturais de sua vivência. O aluno real é visto como problemático, a-histórico, dessa forma, esperam lidar com uma criança objeto, ou seja, como aquela que não apresenta surpresas, que corresponde ao imaginário de aluno ideal do professor.
Nessa relação em que o professor projeta no aluno seu ideal e não é correspondido, o jogo consiste em dizer que o aluno não tem desejo pela aprendizagem. Os aspectos inconscientes do professor não são admitidos. Nesse capítulo é evidenciado como o psicanalista pode contribuir com a escola ao ofertar um espaço de escuta em que o sujeito possa emergir.
No último capítulo, as autoras analisaram as fichas de triagem e prontuários dos alunos participantes da pesquisa e entrevista com os especialistas. Nesse eixo analisou-se o discurso dos especialistas sobre o sujeito e como o especialista se implica no mal-estar do sujeito.
As pesquisadoras nos convidam a pensar em como o discurso advindo dos manuais diagnósticos atravessa diversas relações que estão bastante enraizadas no cenário social, cultural e político. Desde o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais III, a ênfase é dada aos aspectos cognitivos/comportamentais, com forte parceria com as indústrias farmacêuticas, recorrendo a uma leitura que não considera os aspectos intrapsíquicos e relacionais em sua constituição, e sim os aspectos biológicos. Esse histórico é reforçado pela Neurociência, que reconhece os transtornos como de origem puramente orgânica, consequentemente, a medicação surge como resposta ao mal-estar contemporâneo, social, político, próprio do laço social, uma resposta rápida, que oferta a ilusão de bem-estar.
O discurso de especialistas tem entrado na escola como uma espécie de solução para problemas de aprendizagem, sobretudo aqueles que envolvem comportamento, reduzindo consideravelmente o saber pedagógico, vistos nos inúmeros encaminhamentos que são feitos aos centros de saúde mental. Uma das reflexões desse capítulo é que quanto mais o profissional/especialista aceita que o mal-estar é inerente à condição humana, maiores serão as possibilidades de auxiliar a criança/adolescente, família e escola, pois entende-se que há sintomas que dizem da própria constituição subjetiva e dos entraves nas relações com o outro, que precisa ser escutado, e não silenciado, sobretudo pela via da medicação.
Ao final dos capítulos, entende-se como a Psicanálise trabalha no avesso do que se apresenta nas escolas. É na escuta dos diversos autores que compõem a escola que é possível o diálogo de como lidar com o mal-estar na Educação; sem prescrições mágicas ou médicas, mas no passo que é inerente ao ser humano, das incertezas, contradições, ajustes e desafios, no reconhecimento do aspecto inconsciente.
Dois destaques importantes da leitura do livro. O primeiro refere-se à metodologia utilizada, pesquisa-intervenção, que oportunizou ouvir todos os autores envolvidos no campo educativo e construir aspectos teórico-práticos no fazer entre Educação e Psicanálise. O segundo trata-se de uma exposição que não tece culpabilização dos processos educativos, subjetivos e relacionais; ao contrário, evidencia que o mal-estar está para todos, de modo que a escuta é o melhor caminho para dirimir a angústia própria do processo.
O livro apresenta em seus quatros capítulos a importância da escola como um lugar não apenas de transmissão dos saberes constituídos historicamente, mas da real possibilidade de encontro com o mal-estar e da aprendizagem que é reconhecer os sujeitos em sua singularidade.
Referências Bibliográficas
CARNEIRO, C.; COUTINHO, L. G. Infância, adolescência e mal-estar na escolarização: estudo de casos em psicanálise e educação. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2020. [ Links ]
Data de recebimento: 15/07/2021
Data de aprovação: 01/11/2021