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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.1 Fortaleza jan./abr. 2018

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i1.5368 

ESTUDO TEÓRICO

 

Panelaço e o estado de exceção: uma leitura psicanalítica da convulsão social brasileira dos anos 2015-2016

 

The beat pots and state of exception: a psychoanalytical reading about the brazilian social upheaval at the 2015-2016 years

 

'Panelazo' y el estado de excepción: una lectura psicoanalítica de la convulsión social brasileña de los años 2015-2016

 

Protestation et l'état d'exception: une lecture psychanalytique du bouleversement social brésilien pendant 2015-2016

 

 

Marcus Cesar R. Teshainer (OrcID)I; Nadir Lara Junior (Lattes)II; Christian Ingo Lenz Dunker (Lattes)III

IPós-doutorando do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Psicanalista, Mestre e Doutor em Sociologia pela PUC - SP, graduado em Psicologia e Direito
IIPsicólogo, Psicanalista, Pós Doutorando do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
IIIPsicanalista, Professor Livre docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nos anos 2015 e 2016, ocorreu, no Brasil, um evento político reconhecido pela mídia como Panelaço. Durante algumas transmissões televisivas da presidente Dilma, pessoas contrárias a seu governo batiam panelas nas janelas de suas casas. Esse comportamento teve algumas consequências na maneira de agir da governante que, em alguns momentos, abriu mão de se pronunciar. Este artigo, tendo como referencial teórico a psicanálise e o pensamento biopolítico do filósofo italiano Giorgio Agamben, pretende analisar o período descrito com o objetivo de tentar entender um modo brasileiro de fazer política e tomar esse evento como exemplo do Estado de exceção brasileiro.

Palavras-chave: psicanálise; panelaço; Dilma Rousseff; política; Brasil.


ABSTRACT

In the years 2015 and 2016, there was a political event in Brazil recognized by the media such as Panelaço. During some television broadcasts of President Dilma, people opposed to his government were pounding pots on the windows of their homes. This behavior had some consequences in the way of acting of the governor who, in some moments, gave up to pronounce itself. This article, having as theoretical reference the psychoanalysis and biopolitical thinking of the Italian philosopher Giorgio Agamben, intends to analyze the period described with the aim of trying to understand a Brazilian way of doing politics and taking this event as an example of the Brazilian State of exception.

Keywords: psychoanalysis; panelaço; Dilma Rousseff; politics; Brazil


RESUMEN

En los años 2015-2016 ocurrió en Brasil un movimiento político reconocido en los medios como 'panelazo'. Durante algunas transmisiones televisivas de la presidente Dilma, personas en contra su gobierno golpeaban ollas en las ventanas de sus casas. Este comportamiento trajo algunas consecuencias a la manera de actuar de la gobernante que, en algunos momentos prescindió de pronunciarse. Este artículo, teniendo como referencial teórico el psicoanálisis y el pensamiento bio-político del filósofo italiano Giorgio Agamben, pretende analizar el período descripto con el objetivo de intentar comprender un modo brasileño de hacer política y tomar ese evento como ejemplo del Estado de excepción brasileño.

Palabras clave: psicoanálisis, 'panelazo', Dilma Rousseff, política, Brasil.


RÉSUMÉ

Pendant les années 2015 et 2016, un événement politique, appelé Panelaço par les médias, s'est produit au Brésil. Lors de certaines émissions télévisées où la présidente Dilma parlait aux brésiliens, les opposants au gouvernement frappaient des casseroles unes dans les autres sur leurs fenêtres Ce comportement a eu des conséquences sur la manière d'agir de la présidente qui, à certains moments, a renoncé à se prononcer. Cet article, ayant comme base théorique de la psychanalyse et de la pensée bio-politique du philosophe italien Giorgio Agamben, a l'objectif d'analyser la période décrite et d'essayer de comprendre le moyen brésilien de faire de la politique. On prends cet événement, donc, comme un exemple de l'état d'exception brésilien.

Mots-clés: psychanalyse, protestations, Dilma Rousseff, politique, Brésil.


 

 

Este estudo tem por objetivo o entendimento da emergência do Estado de exceção no contexto social brasileiro, tomando como objeto de análise os eventos chamados pela mídia de "panelaço" contra o governo Dilma Rousseff, iniciados em março de 2015, que culminaram com as manifestações pró-impeachment, em março de 2016.

Para tanto, vamos recorrer, inicialmente, a autores psicanalistas que convergem seu pensamento para as questões políticas; tendo, desse modo, elementos para contextualizar o momento que estamos analisando. Em seguida, lançaremos mão do contexto da lógica do condomínio, que foi pensada por Dunker (2015) para entender o mal-estar presente nesse contexto. Posteriormente, abordaremos a questão a partir do pensamento de Giorgio Agamben para relacionar o momento de relevância política do Brasil contemporâneo com a sua maneira de entender o Estado de exceção e verificar a relação que este tem com o que Dunker nomeia como lógica do condomínio.

A primeira hipótese que levantamos é a de que o contexto político do Brasil, compreendido entre 2015 a 2016, apresenta um conflito gerado por uma maneira neoliberal de pensar o social, totalmente voltada para a produção de capital financeiro, contra uma política social que, mesmo estando dentro do contexto capitalista, visa a ascensão da classe trabalhadora às vias de consumo.

Segundo Glynos e Stavrakakis (2008, p.261) "a promessa do imaginário de recapturar nosso gozo perdido/impossível provê à fantasia um suporte para nossos projetos políticos, papéis sociais e escolhas como consumidores". Nessa perspectiva, não apenas a mídia, mas também os discursos políticos e sociais alimentam a fantasia de que, em um futuro próximo, as limitações atuais que impedem o gozo serão superadas e, então, será possível o acesso a um gozo pleno - seja por meio dos objetos de consumo ou da construção de uma sociedade supostamente ideal.

Por isso, quando a política social almeja diminuir as diferenças de classe, permitindo que a classe trabalhadora possa consumir produtos e serviços que antes eram inacessível a ela, acaba se tornando uma ameaça à classe média, que sempre pôde usufruir desses bens de consumo como uma forma de diferenciar-se dessa classe social. Sendo assim, isso gerou para a classe média sentimentos de repulsa contra as pessoas mais pobres que agora estão tendo acesso a aeroportos, internet, telefonia celular, etc.

O conflito parece surgir a partir do momento em que diminuem as diferenças que havia entre aqueles que podiam gozar livremente dos bens de consumo e aquela classe trabalhadora antes excluída desse meio. Nesse sentido, surgiram, no Brasil, situações em que certa "gente diferenciada" transformou os aeroportos em uma "rodoviária", ou seja, no momento em que os trabalhadores ascenderam aos bens de consumo, rapidamente o incômodo da classe média se fez notar.

Ainda de acordo com Glynos e Stavrakakis (2008), presenciamos, atualmente, na sociedade capitalista, uma "proposta política do gozo total", criando a sensação de se viver em um mundo em que impera uma identificação com o ideal de eu e dando margem a uma sociedade de massa que, fantasiosamente, opera no sentido de propiciar a esses sujeitos uma recusa (denegação), um "não querer saber" sobre sua condição de faltante (castrado). Por isso, os sujeitos passam a aderir facilmente à promessa dos discursos autoritários que, por sua vez, hegemonizam-se, e suas práticas excludentes contra qualquer diferença (gênero, raça, classe, religião, orientação sexual etc.) se naturalizam, porque passam a não ser mais questionados, como se a sua significação fosse absolutamente evidente (Lara & Ribeiro, 2011). Nessa lógica, Freud (2013) já nos alertava que foi esse tipo de identificação que permitiu certas manifestações autoritárias, como o nazismo, o fascismo, etc.

Marx (1968) já nos demonstrou a realidade opressiva do sistema capitalista, chamando atenção, principalmente, para as suas contradições sociais, políticas e econômicas; demonstrando que a relação entre patrões e empregados é desigual e injusta, porque tem como produto final a mais-valia. Além disso, ele apontou que essa relação desigual e injusta, instituída pelo capitalismo, tem pouca possibilidade de mudança, porque está estruturada de modo a privilegiar o grupo que possui os meios de produção.

Nessa lógica, Lacan (1992) também resgatou as ideias de Marx e Engels, assim como as de Freud, para demonstrar como esse processo opressivo de constituição das relações sociais se funda em termos inconscientes. Na perspectiva lacaniana, as relações de opressão existentes no capitalismo se ancoram na estrutura de dominação que pauta as relações sociais e a própria constituição subjetiva.

Essas relações se caracterizam, desde a sua origem, por uma relação entre dominador (mestre) e dominado (escravo) (termos que Lacan pega emprestado de Hegel), na qual ambos obtêm alguma forma de gozo. É nesse ponto, justamente, que reside a eficácia das formas de opressão capitalistas, haja vista que remontam a uma relação de dominação que se personificou para cada sujeito no momento da sua constituição, durante o período em que sua incapacidade física e motora o deixava completamente alienado ao Outro.

Dessa maneira, propomos que, analogamente, há na relação entre o sujeito e o Outro uma dialética estrutural na qual se fundamentam as relações de dominação existentes nas sociedades capitalistas. Contudo, principalmente no caso das relações sociais, não se pode negar que, em cada tempo e lugar, existem diferentes formas históricas de recobrir essa lógica estruturante dos modos de dominação de classe.

Os liberais insistentemente advertem que não há outro mundo civilizado possível fora do seu mundo (o que representa uma postura típica de todo o fenômeno ideológico, aqui entendido como a negação da admissão da finitude de uma crença ou fundamento). Eles podem até admitir que existam desníveis no capitalismo global; porém, propõem somente "correções a eles, tais como as chamadas medidas econômicas de 'austeridade' em relação aos Estados endividados, as quais claramente não têm sido capazes de produzir nada além do que mais desigualdade social no próprio centro do capitalismo global. (Vieira & Mendonça, 2014, pp. 111-112)

Nesse sentido, na proposta capitalista, difunde-se a ideologia de que não se pode ter um mundo "civilizado" fora dos traços delimitados por esse tipo de fantasia ideológica, criando-se, assim, um grande condomínio (Dunker, 2015) ou O Show de Truman (1998), de Peter Weir. Nesse filme, por exemplo, era o diretor que criava um mundo para Truman, uma redoma em que as relações sociais eram estabelecidas a partir do voto da opinião pública que, de dentro de suas casas, em frente à televisão, interferiam no mundo de Truman. Ninguém precisava sair de casa; havia uma torcida para que ele namorasse a garota X ou Y; para que usasse esta ou aquela roupa, e assim por diante.

Esse tipo de postura política, fantasiosamente recoberta de democracia, impele os sujeitos a ficar em seus condomínios, fazendo opinião pública, votando em marcas e personagens. Ela cria, desse modo, certa distância daquilo que seria a vontade coletiva de um povo, ocupando os espaços públicos e forjando antagonismos suficientes para se construir uma democracia radical (Laclau & Mouffe, 2004).

Na lógica condominial em que está inserida parte da opinião pública, o consumidor tem sempre razão: quando está descontente com um produto, pode devolvê-lo ao fornecedor; quando está descontente com a reunião do condomínio, fica-se em casa, permitindo-se, assim, que o síndico decida quem entrará no condomínio, quem dançará com Truman. Nessa lógica, parece que se constrói uma política de gozo, ficando-se preso na demanda do discurso da universidade. Lacan (1992), ao apresentar esse discurso, demonstra que o douto interpela o estudante como aquele que não sabe e, por isso, delega a ele o saber para decidir sobre sua vida. O douto recebe o poder daquele que sabe. Morar no condomínio, delegar ao síndico o poder daquele que sabe, evita as contradições do mundo, fazendo com que os conflitos da sociedade fiquem suspensos.

Nesse sentido, Glynos e Stavrakakis (2008) nos dizem que a suspensão do conflito se torna possível à medida que a fantasia ideológica constrói um cenário perfeito (como o mundo de Truman), em que, supostamente, eles são convocados a gozar incessantemente a partir do compartilhamento das experiências e da reprodução fantasmática, posta na relação, em busca da promessa do "gozo total". Portanto, para esses autores, os discursos nacionalistas de cunho fascista ou nazista remontam, no presente, à "era de ouro" do passado, no qual o povo supostamente acessava a um gozo irrestrito, o qual foi perdido por causa de alguns inimigos. Por conseguinte, aquele grupo ou sujeito que ameaça a reconstrução dessa "era de ouro" é tido como inimigo, constituindo-se como uma ameaça a ser destruída, porque desestabiliza o status quo operandi. No caso do nazismo, era composto por judeus, ciganos, homossexuais, etc.

Para tanto, há uma predominância do individualismo em detrimento do coletivo. Esgota-se a busca pela política democrática radical e se opta por uma democracia deliberativa esvaziada dos interesses populares, fazendo com que os interesses particulares ganhem maior notoriedade, a saber:

Curiosamente, parece que estamos testemunhando a defesa de indivíduos que não passam de pequenos tiranos platônicos, solitários, tristes e com medo da multidão que os cerca. O fundamental à democracia liberal é retirar da cena política todo e qualquer tipo de antagonismo. Para os liberais, tudo pode ser resolvido por meios não violentos como a razão, o consenso e, sobretudo a lei (Vieira & Mendonça, 2014, pp. 112-113).

Veremos, a seguir, como essa obliteração dos antagonismos na sociedade contemporânea permite a emergência de manifestações realizadas de dentro das casas e apartamentos da classe média brasileira, que remonta à lógica condominial em que o medo da multidão se torna evidente no contexto brasileiro. Para isso, destacaremos aqui o panelaço, um significante vazio no qual se percebe a estruturação de cadeias significantes que remontam a algo da fantasia ideológica.

 

O Contexto do "panelaço"

Depois da ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao Governo Federal (2003-2010), foram chamadas muitas lideranças dos movimentos sociais e sindicais para compor os cargos administrativos do Estado brasileiro. Isto criou, assim, uma situação inusitada: os antigos militantes que organizam greves e mobilizações contra o governo, nesse momento, tornam-se o próprio governo, negociando com os colegas que permaneceram nos movimentos, bem como com as elites as quais combatiam (Druck, 2006).

Acrescentamos o fato de que muitas demandas dos movimentos sociais se tornaram políticas públicas (Prouni; Bolsa Família, Fome Zero etc.), ou seja, a causa da luta de muitos movimentos agora se torna gerência do Estado. Aquele que era o adversário político, agora passa para a categoria de amigo/companheiro, destituindo as fronteiras políticas que serviam de antagonismo para os diversos atores sociais (Mouffe, 1999).

Nesse contexto, afirmamos a legitimidade de se disputar os espaços políticos dentro do Estado e a busca pela legalização das demandas dos movimentos sociais e de todas as classes sociais. Druck (2006) nos mostra que o ex-presidente Lula, apesar de apoiar de maneira contundente as políticas públicas citadas acima, não interfere na estrutura ideológica do Estado brasileiro, deixando-o alinhado com uma proposta neoliberal.

Já no governo Dilma Rousseff, iniciado em 2011, apresentado como uma continuidade do governo Lula, mantém-se as políticas públicas do governo anterior, e criam-se outras políticas, tais como: Minha casa, minha vida e Mais médicos. Interessante notar que, em 19 de março de 2013, o índice de aprovação do governo Dilma chegava a 79%, superando Lula e Fernando Henrique Cardoso.

Em junho de 2013, houve, em todo o país, manifestações públicas que marcaram uma série de protestos.Primeiramente, pelo "bloco de lutas contra o aumento das passagens"; depois, por um posicionamento contrário à Copa do Mundo de Futebol, realizada no Brasil, organizada pela FIFA. Uma série de demandas populares foram levantadas. Dilma, em 24 de junho 2013, propõe 5 pactos pela reforma política e delega a Michel Temer (vice-presidente), filiado ao PMDB, a responsabilidade de organizar uma Assembleia Constituinte e um plebiscito para ouvir a população sobre como fazer a reforma política, o que não foi feito pelo pemedebista. Depois dessas manifestações e do lançamento dos 5 pactos pela reforma política, em 29 de junho 2013, o índice de aprovação do governo Dilma caiu para 30%.

Em 2014, com as eleições presidenciais, houve um acirramento da disputa, especialmente no segundo turno, entre a candidata Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). Houve confrontos nos debates entre os candidatos e também entre os seus simpatizantes. Em 26 de outubro de 2014, Dilma vence as eleições com 51,64% dos votos válidos contra Aécio Neves, com 48,36%.

Esse descontentamento de parte da população em relação ao governo Dilma se estendeu depois das eleições. Primeiramente, liderada pelo candidato derrotado Aécio Neves e por outros políticos também derrotados nas eleições, iniciou-se um processo de oposição direta à presidente eleita. Desse modo, uma das formas encontradas por parte dessa população para demonstrar sua insatisfação foram os panelaços, ou seja, parte da população batia panelas nas janelas ou sacadas de suas residências, ou buzinavam seus carros quando eram transmitidos os pronunciamentos da presidente Dilma pela TV. Em março de 2015, os "panelaços" foram registrados, enquanto protesto: no dia 8, durante discurso da presidente Dilma Rousseff, em rede nacional; no dia 15, durante entrevista coletiva dos ministros José Eduardo Cardozo (Justiça) e Miguel Rossetto (Secretaria Geral); e no dia 16, no momento em que o Jornal Nacional, programa da Rede Globo, veiculava reportagens sobre a presidente Dilma".

O primeiro "panelaço", ocorrido em 8 de março de 2015, durante o pronunciamento de Dilma sobre o Dia da Mulher, foi percebido em bairros de classe média alta, em diversas capitais brasileiras. Essas pessoas, de suas janelas e portas, batiam panelas, usavam apitos e ressoavam vaias em sinal de protesto à presidenta Dilma Rousseff e ao Partido dos Trabalhadores (PT). Também foram registrados "buzinaços" e protestos em diversas ruas das capitais brasileiras, tais como: São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Vitória, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia, Belém, Recife, Maceió e Fortaleza.

Segundo dados da Esentia (empresa brasileira especializada em inteligência digital), levantados em uma pesquisa entre os dias 06 a 23/3/ de março de 2015 por meio de um mapeamento das redes sociais de quando os usuários usavam referências ao "panelaço", demonstram que as regiões que mais se manifestaram foram: sudeste Sudeste, com 53%; Sul, 21%; Centro Centro-Oeste, 13%; Nordeste, 10%; Norte, 3%, %; segundo os quadros abaixo:

 

 

 

 

Após os eventos do dia 8, 15 e 16 de março, aguardava-se o pronunciamento da presidente no dia do trabalhador. Porém, o dia 01 de maio de 2015 ficou marcado como a primeira data em que a presidente deixou de fazer esse pronunciamento, restringindo seu discurso à internet, ato lido como intimidação do governo movido pelo temor de novo "panelaço".1

No dia 5 de maio de 2015, durante o programa eleitoral gratuito do PT, feito em cadeia de rádio e TV, ocorreu outro "panelaço" em 18 Estados e Distrito Federal2. Depois, em 06 de agosto de 2015, durante um programa de rádio e TV com Dilma e Lula, a Revista Veja (notória oposição ao governo) criou mapas indicando que, no dia 06 de maio de 2015, de 0h as 21h30, foram 73.415 postagens com o termo "panelaço" no Twitter, Instagram e Youtube3. Nesse dia, essa revista diz que essa manifestação já se espalhava por várias cidades brasileiras.

Em 03 de fevereiro de 2016, durante um pronunciamento da presidente sobre os cuidados contra o vírus da zica, ocorre novo panelaço, com manifestações de menor envergadura4 em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Goiânia, Brasília, Recife e Salvador, entre outras localidades.

Os "panelaços" foram as manifestações que, de alguma forma, estimularam os opositores ao governo a se organizarem, e se desdobraram em diversas manifestações pelas ruas de várias cidades brasileiras até a maior delas, ocorrida em 13 de março de 2016, chegando a 3,3 milhões de pessoas em mais de 250 cidades5.

Consideramos que a prática de protestos é antiga e frequente. Levamos em conta a proposta de Laclau (2011) de que, no processo constitutivo de movimentos sociais, uma demanda se concentra e se representa em um significante vazio, capaz de expressar por meio de sua indeterminação, uma série heteróclita de identificações. Nesse sentido, torna-se relevante supor que o "panelaço" funciona como um significante com tais propriedades formais e com semelhante função. Ele externaliza o ódio ao governo, a indignação com a corrupção, o ressentimento contra a presidente, o repúdio ao seu partido político, o apoio às investigações sobre a corrupção, a crítica ao comunismo, a objeção contra a inépcia do Estado em conduzir sua política econômica.

O significante vazio passa a funcionar como um preenchimento da falta estrutural da sociedade, necessitando, assim, de uma fantasia ideológica que recubra essa falta. Esses significantes vazios oferecem um conteúdo concreto para aquilo que está faltando para o sujeito em sociedade, isso pode mobilizá-lo por lutas a fim de emancipação. Nesse caso, esse significante passa ser contingente e provisório. Por outro lado, pode funcionar com conteúdo de ressentimentos e descontentamentos que facilitam o estabelecimento de certa hegemonia discursiva (Glynos, 2001).

Para Laclau (2011), Laclau e Mouffe (2004) e Glynos (2001), o estabelecimento do discurso hegemônico favorece a estruturação de ideologias que não reconhecem o caráter precário de qualquer positividade e a impossibilidade de uma sutura totalizante, abrindo margens para uma lógica de repetição e construção de discursos que recubram a falta estrutural do sujeito e da sociedade. Nesses "panelaços", apoiar o retorno da ditadura militar6, o uso da violência policial como forma de restaurar a ordem e a intolerância, além da irreverência, expressa no boneco "pixuleco" (representando Lula como presidiário) e no "pato" (representando o contribuinte lesado pelos impostos sem retorno), promovem uma sutura com propostas hegemônicas conluias a um modelo de sociedade autoritária.

Desse modo, podemos perceber ainda nesse significante vazio (panelaço) há a busca por um sujeito que personifique o ideal de eu ou se torne o S1 nessa cadeia discursiva, remontando à lógica do discurso do mestre, proposto por Lacan (1992). Nesse discurso, o mestre interpela seus seguidores a estruturar um discurso hegemônico que irá se sobrepor a todos, como numa horda ou numa sociedade de massas, como bem alertou Freud. Para tanto, destacamos que um dos referentes identificatórios (mestre) dos praticantes do "panelaço" é o magistrado Sérgio Fernando Moro, conhecido como herói "revolucionário" da democracia7, apresentado como bom pai de família, professor dedicado, juiz exemplar e um grande cidadão brasileiro, herói que está "moralizando" o Brasil.

Em 17 de abril de 2016, foi aprovada pela Câmara dos Deputados, com 367 votos a favor e 137 contra, a instalação do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, estabelecendo, a partir dessa data, o julgamento da presidente da República por crime de responsabilidade fiscal.

Agora, o parecer que recomenda a investigação contra a presidente Dilma Rousseff segue para o Senado Federal. Lá, será constituída uma comissão especial para decidir se convalida, ou não, o pedido de abertura de investigação. Se for aprovado por 41 senadores, a presidente será afastada do cargo e julgada pelo Senado. Uma eventual condenação, que depende do aval de 2/3 da Casa (54 senadores), tira Dilma do cargo e a torna inelegível por oito anos.8

Esse processo de votação realizado pelos deputados federais deixou evidente a fragilidade do governo, que não conseguiu influenciar os parlamentares a favorecê-lo nesse processo. Essa votação no Senado deixa, ainda, aberta a situação, pois se discute se os supostos crimes fiscais cometidos pelo governo justificam um impeachment ou se está se instalando um estado de exceção.

 

Brasil, o"panelaço" e a Lógica do Condomínio

O panelaço é uma prática que, antes de tudo, se realiza desde a casa das pessoas. Ele não acontece na rua, não é uma marcha com cartazes ou palavras de ordem, mas uma voz que se ergue desde o espaço privado e doméstico da casa. Como no filme O Show de Truman, alguns se tornam fazedores de opinião pública, demandando gadgets de dentro de suas casas. Nesse sentido, Dunker (2015) nos relata que, desde os anos 1970, as classes médias se organizam em torno de um grande ideal de consumo: a vida em forma de condomínio. Nela, o problema da relação com os funcionários, assim como a precariedade dos serviços públicos, é substituída pela segurança dos muros e do cotidiano administrado.

Nesse sentido, o panelaço é também uma forma de manifestação política concorde com essa forma de vida. Composto por vozes sem rosto, que emergem de dentro das casas ou apartamentos, por barulhos dissonantes, caracteriza-se como uma novidade expressiva na política, pois permite que algo seja ouvido sem que o muro, que segrega a invisibilidade das classes entre si, seja suspenso. O uso de vuvuzelas, espécie de corneta usada originalmente pelas torcidas de futebol, articula metonimicamente o caráter nacionalista da manifestação, congruente com o uso massivo de bandeiras nacionais penduradas nas janelas e varandas:

É dessa perspectiva que se poderá entender a importância de não reduzir a lei à força, a justiça ao direito e de não recusar o apelo ético que está para além ou para aquém da lei instituída para criticar o estado de exceção permanente que a colusão entre lei e segurança propiciou em nossa época (Dunker, 2015, p. 224)

Estado de exceção é uma referência a Giorgio Agamben que, em sua pesquisa sobre a biopolítica contemporânea, retorna à figura latina do homo saccer, útil para pensar como a vida nua passou a se tornar um objeto político. Vida nua, aqui, é um conceito entendido como vida natural, em seu aspecto puramente biológico. Para os gregos, há uma distinção entre zoé e bios, ou seja, zoé é a vida que os sujeitos partilham com os animais, como seres viventes, e bios é a vida contemplativa, que liga os sujeitos à comunidade política, capaz de produzir uma obra humana.

Vida nua também se relaciona com a massa sem rosto, com a população que não se identifica de dentro de suas casas e que considera qualquer um fora dos muros do condomínio como um diferente sem personalidade. Portanto, uma forma de vida que não dá as caras e que identifica o outro lado como uma forma de vida sem face.

Uma forte implicação metodológica do projeto de Agamben é abandonar o modelo do direito, questionando como as formas de vida se desligam da política e da soberania para ingressar na vida nua, o que implica na análise da soberania, que determina sujeitos e individualizações, ao mesmo tempo, fora e dentro do ordenamento jurídico. O que redefine a soberania para Agamben é a exceção, o que significa dizer, na contemporaneidade, que a lei está, ao mesmo tempo, dentro e fora dela mesma.

O termo adequado para explicar essa situação é a suspensão, pois, ao se levar em conta que a lei é soberana, é no Estado de exceção que o ordenamento jurídico está suspenso. Isso significa dizer que uma norma interna ao ordenamento, pode, quando em vigor, suspender todo o ordenamento, mas manter-se em vigor na suspensão, criando um paradoxo que subverte a topologia esférica, ordenada pelas relações de interioridade e exterioridade ao ordenamento. Há apenas regra e exceção, e entre elas uma torção moebiana representada pela suspensão.

O Estado de exceção cria uma indistinção entre fato e direito, cuja indeterminação revelou-se no campo de concentração um fato histórico e estrutural, irredutível ao cárcere. O campo está inserido na ordem legal e penal do ordenamento e, ao mesmo tempo, é um espaço absoluto de exceção, ou seja, um espaço criado pela ordem jurídica, mas onde o ordenamento jurídico não vigora.

Os clamores expressos pelo "panelaço" dirigem-se a um pedido direto, extremo e excepcional: a deposição da presidente. Seria esta exceção (que, para seus opositores, é interpretada como golpe), uma suspensão da lei ou uma prática democrática que remonta aos tiranos e ao direito dos povos de se insubordinar contra seus governantes? Essa questão decisiva tornou-se o ponto-chave do processo institucional brasileiro envolvendo a partilha entre os três poderes, as instituições, os partidos e a opinião pública. Estaríamos diante da emergência do poder soberano do povo ou de uma insurreição antidemocrática que visa ampliar, ou restaurar, direitos adquiridos pela gramática da vida em forma de condomínio?

Para Agamben (1995), soberano é aquele que decide na exceção, e isso não significa decidir o que é lícito, ou ilícito, pois fazê-lo seria permanecer na vigência do direito. É decidir a implicação do vivente, ou seja, qual vida importa, ou não importa, para o campo do direito. Nesse sentido, vale dizer que o direito é norma não porque normatiza, mas sim porque normaliza. Um ponto a ser discutido em outra oportunidade é o fato de o Estado de exceção, ao revelar uma indistinção entre o dentro e o fora, entre o direito e o estado de natureza, ser também um fato linguístico, a saber: "A linguagem é o soberano que, em permanente estado de exceção, declara que não existe um fora da língua, que ela está sempre além de si mesma." (Agamben, 1995, p. 25).

Interessante notar que parece haver uma aproximação entre os grupos que "regeram" o "panelaço" e a lógica do condomínio proposta por Dunker (2015). Enquanto neste há o imperativo da segurança, o fato de colocar tudo o que está acontecendo no mundo em suspensão pelo muro do condomínio, naquele, as "panelas" não vão para a rua, se manifestam das suas janelas ou sacadas, não se misturam. Isto nos permite tentar fazer uma aproximação da lógica do condomínio com o Estado de exceção.

 

A Lógica do Condomínio e o Estado De Exceção

Para Dunker (2015), a relação do Estado de exceção com a lógica do condomínio extrapola os muros arquitetônicos e emerge como uma estrutura das relações sociais do Brasil, acontecendo também em lugares que não se configuram como um condomínio no sentido estrito, mas também em diversas outras situações, como em grupos humanos, associações psicanalíticas, a política, o clube, o que nos permite afirmar que um indivíduo de um condomínio pode pertencer a diversas outras estruturas de segregação. O intuito de Dunker (2015) é direcionar a clínica psicanalítica para um sintoma social tipicamente brasileiro, que decorre dessa estrutura com características antropológicas, sociais e políticas que esse autor chama de lógica do condomínio.

O "panelaço" é uma manifestação social e política literalmente surgida "intra- muros" dos condomínios de classe média, como trata Dunker (2015). Por meio dela, posso protestar sem sair de casa. Interessante notar que, até 8 de março de 2015, não se imaginaria que, de dentro do condomínio, se pudesse inibir um presidente da República de se pronunciar no dia dos trabalhadores ou que se mostrasse algum tipo de pressão política para gerar qualquer forma de retração do próprio governo. Um dos efeitos da vida em forma de condomínio é interpretar o espaço público - e, consequentemente, a política - como um lugar perigoso, misturado e desordenado. Não se pode negar que a repercussão social dos "panelaços" prepara ou denuncia uma inversão de expectativas políticas. Em 13 de março de 2016, o governo Dilma é alvo de manifestações com mais de 3,3 milhões de pessoas que saem de seus condomínios para pedir a queda do governo e o restabelecimento da "paz condominial".

Se a lógica do condomínio é um exemplo de um Estado de exceção à brasileira, devemos lembrar que o muro do condomínio tem suas semelhanças com o muro da cidade medieval, uma fortificação que visa controlar o acesso ao mundo externo e uma portaria que se torna permeável ao comércio e à entrada controlada dos habitantes de fora. Mas há também, no muro do condomínio, elementos do muro do campo de concentração, que, de forma invertida, pretende indeterminar o que vem de fora, excluí-lo; e, na tentativa de se proteger da nudez da vida, busca suspender o mundo além dos muros, a fim de criar regras próprias. O que nos leva a pensar que, quando entramos no condomínio, entramos num verdadeiro mundo kafkiano.

Uma diferença importante entre o portão medieval, a cerca do campo de concentração e a portaria do condomínio é a relação que este último mantém com a lei. Enquanto o portão, com seu brasão heráldico, respeita e simboliza as regras soberanas de território, de domínio e fronteira, importante para a manutenção da soberania da cidade, o condomínio coloca em suspenção as regras do direito para se manter fora delas por meio de procedimentos administrativos pelos quais vida e regra se confundem.

As manifestações iniciadas com o "panelaço" pedem com urgência a intervenção cínica do sindico, presentificada na figura dos militares, da polícia federal ou do juiz federal Sérgio Moro. Serão eles que irão punir aqueles que ameaçam a paz no condomínio, como elucida Dunker (2015) citando a música de Jorge Benjor: "Eu vou chamar o síndico: Tim Maia! Tim Maia!" No caso dos manifestantes do panelaço, poderíamos parafrasear: "Eu vou chamar o síndico: Militares! Militares!"

A reunião de condomínio, que foi exemplarmente retratada no filme "Som ao Redor" (2012), de Kleber Mendonça, é uma ocasião em que o cidadão comum se investe-se de força de lei, ocupando-se de produzir regras e deliberar punições, como se assim passasse da condição de mero cumpridor de ordens para artífice da lei. Brigas e divergências são preponderantes e a figura do síndico serve para imprimir a ordem e a força da lei interna ao condomínio, governando as coisas e as pessoas, aqueles que não se enquadram na artificialidade das regras e aquelas exceções que devem ser transformadas em novas regras.

O síndico, como gestor do condomínio, representa uma lei constante, que vigora sem ter forma, pois a lei que tem forma, a própria situação do condomínio já suspendeu. Podemos tomar como exemplo o caso do juiz Sérgio Moro que decide publicar as conversas entre a presidente Dilma e o ex-presidente Lula, obtidas através de grampo telefônico sob a justificativa de que o povo precisava saber o que seus governantes estavam dizendo9. O condomínio demonstra um desejo pela conservação do ordenamento vigente, ao colocar em suspensão o ordenamento, o habitante do condomínio não só está protegendo a ordem jurídica vigente, como também está recusando-se a escolher a revolução como forma de mudança. Nesse sentido, podemos verificar a demanda desses manifestantes nas sacadas do Brasil. Além disso, há o restabelecimento da ordem e do progresso, por isso, são usadas as cores, verde e amarelo, como as que representam esse grupo que clama para o restabelecimento da ordem jurídica: exército e polícia!

Mas a escolha por viver em condomínios tem suas consequências, como mostra Dunker (2015), ao analisar o sofrimento psíquico resultado da relação de determinação e indeterminação conformada pela lógica do condomínio. Um paradoxo interessante, pois considerando o que é dentro e fora do muro do condomínio o que se revela é um falso universal, a estrutura protetiva e asséptica resulta na desubjetivação do morador do condomínio que vai se reduzindo cada vez mais a um número, a uma identificação administrativa, projetando perigos e animosidades nos bárbaros que vivem fora de suas cercanias.

No condomínio, todos devem ser iguais e tutelados sob o regime do síndico, não cabe divergência, pois esses descontentes se acostumam ou se mudam para outro condomínio. É desse modo que Dunker (2015) resume o sofrimento gerado pela lógica do condomínio em quatro tempos: primeiro, o entendimento do condomínio como um espaço apartado do público, a promessa de uma nova forma de vida; no segundo tempo a segregação, cujo símbolo é o muro, se torna uma nova comunidade quando reconhece como anomia tudo o que está fora do muro, e assim alimenta o que Freud chama de narcisismo das pequenas diferenças que, segundo esse autor, nada mais é do que efeitos do sentimento de culpa; no terceiro tempo, o movimento volta-se para a própria comunidade do condomínio, enfim, percebe-se que a felicidade almejada não é alcançada, o síndico não consegue incorporar a lei, já que sempre será uma lei sem forma de lei, o vizinho parece gozar mais e mais, percebe-se, portanto, que o condomínio não é uma comunidade, pois lhe falta um líder que funcione como ideal. Finalmente, a formação do sintoma, que Dunker (2015, p. 57), dentre outros, elenca este: "o adolescente sem limite, a dona de casa desesperada, a criança cujo cuidado é subempreitado, o pai de família casado com seu trabalho, o funcionário impessoal".

No "panelaço", nas sacadas e janelas, também não se forma um grupo, não se reivindica por um projeto coletivo ou uma mudança social, é apenas a externalização de um descontentamento pessoal. Quando o movimento toma as ruas, clama pela presença de um pai poderoso, o exército, a polícia, o estado de exceção de fato. A fantasia ideológica parece ser que o sujeito compra a esperança de entrar na sua cidade medieval, deixando para fora toda exceção, mas acaba entrando num campo de concentração sem se dar conta, sofrendo, assim, as consequências dessa escolha em forma de sintoma. Por isso, o perigo de demandar o exército e a polícia como uma forma desesperada de retomar o ideal perdido no condomínio. Assim, o preço dessa demanda para a história do Brasil é a morte de diversas pessoas como tivemos durante a ditadura militar, fato "esquecido" nessas manifestações onde a selfie com policiais e militares torna-se artigo de ostentação e gozo.

Esse flerte com discursos autoritários personificados pelos militares brasileiros nos colocam certas indagações, como: essa fantasia ideológica de reciclar uma lógica condominial poderá ser capaz de suplantar as conquistas democráticas do Estado brasileiro? E como essas poderiam ser capazes de sustentar um Estado de exceção?

 

O Paradigma Biopolítico Brasileiro

Podemos pensar, portanto, a lógica do condomínio como o paradigma da biopolítica brasileira. Assim, o evento do panelaço assume o caráter de exemplo, nos termos apresentado por Agamben (2008) em seu livro Signatura Rerum, que busca discutir o método de pesquisa que utiliza em sua pesquisa em filosofia política e biopolítica. Nesse livro, o filósofo desvela três conceitos importantes para suas obras: o primeiro deles é de paradigma, seguido pelo de assinatura e o de arqueologia.

Vamos nos atentar ao conceito de paradigma, em que o filósofo italiano demonstra seu fundamento em dois outros filósofos, Thomas Kuhn e Michel Foucault, a começar por Kuhn, para quem o conceito de paradigma tem duas concepções: uma referente àquilo que os membros de uma comunidade científica têm em comum, e outra no sentido daquilo que substitui as regras de pesquisa em ciências humanas e permite definir uma particularidade nas pesquisas. É dessa segunda concepção queAgamben (2008) relata que o paradigma funciona como um exemplo, um caso singular que se repete e que pode modelar as práticas de pesquisa dos cientistas.

Partindo, então, para Foucault, Agamben (2008) vem demonstrar o aspecto discursivo do paradigma; analisando, sobretudo, a obra do filósofo francês a partir de sua Arqueologia do Saber. Assim, como analisa Agamben (2008), para Foucault é importante, tratando-se de paradigma, observar os deslocamentos no plano político dos enunciados e dos regimes discursivos. O regime interno de poder que determina o modo como os enunciados se governam uns aos outros. Nesse sentido, para Agamben (2008) "[...] paradigma é um objeto singular que, valendo-se de todos os outros da mesma classe, define a inteligibilidade do conjunto do qual faz parte e, ao mesmo tempo, constitui" (p. 19).

Agamben (2008) elucida que, para Foucault, no paradigma, não se trata de uma metáfora, de transporte de significados, mas de uma analogia, como está presente nos exemplos. Fazer um exemplo é desativar o termo de seu uso normal para mostrar regra de uso. Por exemplo, a gramática anuncia suas regras por meio de uma prática paradigmática de exemplos linguísticos. Assim, um exemplo gramatical é retirado de seu uso normal, como o caso de se explicar a conjugação do verbo jurar (Agamben, 2008, p.20). Ao usar como exemplo a primeira conjugação, eu juro, não significa, obviamente, que se está a jurar alguma coisa. Assim, o significante juro, nesse caso, está suspenso da sua função normal, mas somente através dessa suspenção é possível mostrar como o sintagma funciona e, então, formular a regra.

Interessante demonstrar que o funcionamento da regra está suspenso de sua função normal, portanto, ele está excluso da regra, enquanto demonstra seu pertencimento a ela. É nesse sentido que Agamben (2008) revela que "o exemplo é o inverso simétrico da exceção" (p. 21), ou seja, o exemplo é excluído através da exibição da sua inclusão. Então, quando Agamben (2008) está dizendo que homo sacer é o paradigma da política contemporânea, não significa que ele seja uma hipótese que busca explicar a modernidade, reconhecendo uma causa ou origem histórica. Significa tornar inteligível uma série de fenômenos cuja relação foge da compreensão do historiador. Para Agamben (2008), "não se trata da origem pressuposta no tempo, mas, situá-la no encontro entre diacronia e sincronia, tornar inteligível nada menos que o presente do pesquisador e o passado do objeto" (p.33).

Portanto, dizer que o homo sacer é paradigma da política contemporânea não significa dizer que uma figura do direito romano ainda vigora em nosso tempo, mas significa tomá-lo como um exemplo de regras discursivas que ainda vigoram na política contemporânea. Portanto, significa que certa racionalidade presente na sociedade antiga romana ainda é presente e produz efeitos no modo como a vida é entendida pela política contemporânea.

É importante ter em vista que Agamben (1995), por meio do Estado de exceção, faz uma crítica ao direito e às instituições jurídicas, e propõe uma nova maneira de entender a lei, tanto em relação a sua eficácia quanto a sua aplicabilidade. Considera, primeiramente, que o Estado de exceção é um advento do direito moderno que tem por objetivo proteger a ordem jurídica através da suspensão do ordenamento em casos de perigo social, revelando-se como um limite entre o político e o direito.

É por meio do Estado de exceção que a vida é incluída no direto, pois é uma forma legal daquilo que não pode ter forma legal, ou seja, a vida, o que é imprevisível, aquilo que é vazio de direito. Ao incluir a vida, colocamos em questão o político. Em outras palavras, o Estado de exceção é a situação na qual se coloca em jogo a diferença entre o político e o jurídico, entre o direito e o vivente.

Podemos afirmar, portanto, que o condomínio, nos moldes apresentados por Dunker (2015), sendo um exemplo do paradigma do Estado de exceção da biopolítica brasileira, significa dizer que há certa racionalidade que permeia todas as relações políticas no Brasil, gerando situações em que formas de vida são postas em questão com referências de pertencimento, ou não pertencimento.

Não se trata de pensar que há um muro e uma portaria em todas as habitações do Brasil, ou em suas instituições, tampouco que se elegem síndicos ao invés de governantes, mas trata-se de levar em conta uma discursividade que permite a existência da lógica condominial, revelada como uma racionalidade pela qual se permite inferir sobre o valor da vida na política brasileira.

Assim, o evento panelaço, um exemplo do Estado de exceção brasileiro, relacionado com o próprio condomínio. Ele torna inteligível uma série de fenômenos presentes no paradigma da biopolítica brasileira, seja a vida dentro e fora do condomínio, seja a determinação e indeterminação dessas vidas nas dinâmicas discursivas do que revela ser a vida nua na política nacional.

Desse modo, cada vida torna-se um elemento político por excelência. Além disso, um fato - um pouco anterior aos "panelaços", mas ligado historicamente a eles - ocorreu: as manifestações de 2013 do Movimento Passe Livre. Formou-se, diante da violência abusiva da polícia, um aparato midiático para filmar e fotografar os manifestantes, transformando-os em monstros e os black blocks como a personificação do mal.

Essa mesma polícia começa a grampear celulares de algumas lideranças de movimentos sociais, líderes estudantis e chegam a invadir algumas dessas organizações sem mandatos judiciais para fazer averiguações, remontando à velha estratégia da ditadura militar. O governo, por sua vez, lança leis que tratam as manifestações como formação de quadrilha, terrorismo, e proíbe que se usem máscaras em manifestações, etc., criminalizando o exercício da cidadania. Portanto, os estatutos constitucionais de livre associação e livre expressão passam a ser leis que têm forma, mas não têm força. Cada vida passa a ser uma vida nua, desprovida de direitos.

Essa racionalidade, vista em 2013, está presente em 2015 e 2016, quando vários atos de legalidade duvidosa colocam o direito em suspenção para que interesses políticos sejam revelados - como ocorreu em 2016, quando o juiz federal Sérgio Moro liberou para a imprensa as gravações, obtidas por meio de grampo telefônico, de diálogos do ex-presidente Lula com a presidente Dilma e outros membros do governo. Este ato, em poucos meses, gerou uma série de situações políticas e que poderiam ser questionadas quanto à legalidade. Nota-se, também, uma seletividade por parte da polícia em reprimir certas manifestações em detrimentos de outras. Situações que retiram o direito das vidas envolvidas, revelando o caráter exclusivamente político da vida nua.

 

Considerações Finais

Como pudemos analisar através da discussão apresentada por Dunker (2015), a lógica do condomínio revela o que podemos chamar de Estado de exceção brasileiro, uma situação em que se suspendem as leis soberanas do Estado para passar a vigorar uma lei administrativa, condominial; uma lei flexível que muda de acordo com a circunstância e o caso concreto, fazendo com que a legislação em vigor seja relativizada.

Dessa forma, Agamben (2003) irá tentar demonstrar a atualidade da sua teorização sobre o Estado de exceção, passando por algumas situações contemporâneas nas quais o dispositivo de segurança jurídica tornou-se regra, citando fatos como Guantánamo e o 11 de setembro. Ademais, apresenta dispositivos em diversos ordenamentos jurídicos que o Estado de exceção se faz presente. Para nós, interessa a exposição do autor sobre o direito italiano, que parece ter bastante semelhança com o nosso direito.

Ele relata que, na Itália, um dos dispositivos que revela a presença do Estado de exceção como técnica permanente de governo é caracterizada pelos decretos de urgência, nomeado de decreto-lei, situação em que o executivo exerce uma função atípica de legislar. Semelhante situação é vista no Brasil através do recurso da medida provisória, que veio substituir o decreto-lei na Constituição de 1988, mas que permite, de maneira geral, que o executivo exerça uma função atípica, legislar.

A emergência do Executivo no campo do Legislativo é apenas uma demonstração do que, para Agamben, é um problema maior, pois é possível pensar o Estado de exceção em um contexto mais amplo: na aplicabilidade do direito como uma zona de indiferença, em que não há nem dentro, nem fora do ordenamento jurídico, apenas um limiar no qual o dentro e o fora se excluem.

No caso do "panelaço" e das emergências políticas das manifestações de junho de 2013, vemos a violência seletiva da polícia, que reprime com mãos de ferro alguns manifestantes (junho 2013) e protege outros ("panelaço"), selecionando as vidas que merecem, ou não, ser vividas. Vemos também um juiz de direito atuando como um mestre (remontando à lógica do discurso do mestre de Lacan), conduzindo o processo de forma célere em alguns casos e de forma lenta em outros, colocando em questão a legalidade de seus atos. Além disso, vemos manifestantes pedindo a intervenção militar, saudosos de um Brasil que não viveram, considerando que muitos que reivindicam a volta dos militares nasceram depois de 1986; demonstrando, assim, o desejo de um soberano (mestre) que tome o lugar da lei e afirme sua força e poder. O desejo de um soberano que fundamente todas as leis.

Finalmente, o processo de impeachment da presidente, por parte daqueles que perderam a última eleição, com provas questionáveis, além de seu acolhimento por parte da Câmara e do Judiciário, sugerindo o caráter político do pedido, mostra-se compatível com a anterior suspensão do direito, anunciada pelos eventos aqui examinados em torno da formação de um novo Estado de exceção no Brasil. A ineficiência, ou improdutividade institucional, pode se tornar ocasião para a destituição do mal-governante, tal como na vigência da lógica do condomínio, em que se substitui o gestor que não goza das leis de acordo com o muro que ele mesmo criou.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Marcus Cesar R. Teshainer
Email: mteshainer@usp.br

Nadir Lara Junior
Email: nadirlj@hotmail.com

Christian Ingo Lenz Dunker
Email: chrisdunker@usp.br

Recebido em: 29/06/2016
Revisado em: 05/12/2017
Aceito em: 10/12/2017

 

 

1 Recuperado de http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1624914-presidente-do-psdb-de-minas-convoca-panelaco-contra-presidente-dilma.shtml
Ver ainda: Recuperado de http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2015/04/27/internas_polbraeco,481051/por-temor-de-novo-panelaco-dilma-cancela-pronunciamento-de-1-de-maio.shtml
2 Recuperado de http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/05/dilma-diz-que-panelaco-e-normal-no-brasil.html
3 Recuperado de http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/panelaco-contra-o-governo-dilma-682015/
4 Recuperado de http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/02/03/pronunciamento-da-dilma-contra-o-zika.htm
5 Recuperado de http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/03/manifestacoes-de-13-de-marco-em-todo-o-brasil-acompanhe.html
6 Recuperado de http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/03/manifestacoes-de-13-de-marco-em-todo-o-brasil-acompanhe.html
7 Recuperado de http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/12/sergio-moro-perdeu-corrupcao.html
8 Recuperado de http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/507325-CAMARA-AUTORIZA-INSTAURACAO-DE-PROCESSO-DE-IMPEACHMENT-DE-DILMA-COM-367-VOTOS-A-FAVOR-E-137-CONTRA.html
9 Recuperado de http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/03/16/gravacao-entre-dilma-e-lula-foi-feita-depois-de-moro-decidir-pela-interrupcao-do-sigilo.htm

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