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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.1 Fortaleza jan./abr. 2021

https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i1.e10926 

RELATOS DE PESQUISA

 

A homossexualidade feminina na teoria freudiana: correlações com a feminilidade

 

Female Homosexuality in Freudian Theory: Correlations with Femininity

 

La Homosexualidad Femenina en la Teoría Freudiana: Correlaciones con la Feminidad

 

Homosexualité Féminine dans la Théorie Freudienne : Corrélations avec la Féminité

 

 

Caroline Philipp PastanaI; Marcos Leandro KlipanII

IMestrado em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Exerce a clínica psicanalítica em consultório particular e CAPS
IIDoutor em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Assis/SP. Professor adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa histórico-epistemológica se propõe a compreender as transformações teóricas acerca do tema homossexualidade feminina na obra freudiana, a fim de apreender a racionalidade de sua elaboração e as modificações teóricas sobre a importância do pai e da mãe no processo de constituição da sexualidade, especialmente no que diz respeito à homossexualidade feminina e em correlação com a feminilidade. Para isso, examinamos os principais textos em que Freud trabalha a homossexualidade feminina, correlacionando-a com o que ele pensava sobre a saída pela via feminina, apontando suas principais características, assim como as dificuldades e impasses teóricos enfrentados pelo autor.

Palavras-chave: homossexualidade feminina; psicanálise; sexualidade; feminilidade; complexo de Édipo.


ABSTRACT

This historical-epistemological research proposes to understand the theoretical transformations on the subject of female homosexuality in Freud's work in order to apprehend the rationality of its elaboration and the theoretic changes on the importance of father and mother in the process of constituting sexuality, especially concerning female homosexuality and in correlation with femininity. For this, we examine the relevant texts in which Freud works on female homosexuality, correlating it with what he thought about leaving through the female route, pointing out its main characteristics, as well as the theoretical difficulties and impasses faced by the author.

Keywords: female homosexuality; psychoanalysis; sexuality; femininity; Oedipus complex.


RESUMEN

Esta investigación histórico-epistemológica propone comprender las transformaciones teóricas acerca del tema homosexualidad femenina en la obra freudiana, con el objetivo de aprender la racionalidad de su creación y las modificaciones teóricas sobre la importancia del padre y de la madre en el proceso de constitución de la sexualidad, especialmente a lo que se refiere a la homosexualidad femenina y en correlación con la feminidad. Para eso, examinamos los principales textos en que Freud trabaja la homosexualidad femenina, correlacionándola con lo que él pensaba sobre la salida por la vía femenina, indicando sus principales características, así como las dificultades e impases teóricos enfrentados por el autor.

Palabras clave: homosexualidad femenina; psicoanálisis; sexualidad; feminidad; complexo de Edipo.


RÉSUMÉ

Cette recherche historique-épistémologique vise à comprendre les transformations théoriques sur le thème de l'homosexualité féminine dans les travaux freudiens, afin d'appréhender la rationalité de son élaboration et les modifications théoriques sur l'importance du père et de la mère dans le processus de constitution de la sexualité, en particulier en ce qui concerne l'homosexualité féminine et en corrélation avec la féminité. Pour cela, nous examinons les principaux textes dans lesquels Freud travaille l'homosexualité féminine, en faisant le lien avec ce qu'il pensait de la sortie par la voie féminine, en soulignant ses principales caractéristiques, ainsi que les difficultés et les impasses théoriques auxquelles l'auteur est confronté.

Mots-clés: homosexualité féminine ; psychanalyse ; sexualité ; féminité ; complexe d'Edipe.


 

 

Este artigo se deriva de uma dissertação de mestrado que pesquisou a temática da homossexualidade feminina na obra freudiana. Tendo como proposta realizar uma síntese desse trabalho, e longe de intencionar abarcar a totalidade dessa temática ou toda a amplitude da obra freudiana, propomo-nos a articular os conceitos-chave relativos à sexualidade feminina na constituição da homossexualidade feminina.

Dessa forma, pretendemos compreender a homossexualidade feminina a partir da modificação - na teoria, com relação ao complexo de Édipo na menina - de uma primeira formulação, em que levava em conta apenas a relação entre a filha e seu pai, até a última formulação, em que passa a considerar a fase pré-edípica, de intensa relação com a mãe.

Para seguirmos por essa trilha freudiana, buscamos nos fundamentar nos conceitos de inveja do pênis, complexo de masculinidade e de castração, e equivalência simbólica pênisbebê na construção da homossexualidade feminina.

Traçando um breve percurso histórico, podemos pensar que a homossexualidade é vivida de maneira muito diversa nos diferentes momentos históricos. Na Antiguidade grega, era considerada uma instituição, um modo de viver exclusivamente masculino, onde se educavam e transmitiam as virtudes. A homossexualidade feminina, apesar de existente, não tinha a mesma relevância social, visto que as mulheres não eram consideradas cidadãs.

É a partir do cristianismo que a homossexualidade passa a ser considerada um pecado, portanto, torna-se condenável (Paoliello, 2013). Segundo Ceccarelli (2008), na sociedade ocidental, de tradição judaico-cristã, a sexualidade deve ficar circunscrita à reprodução, sendo as outras condutas, mais francamente relacionadas ao prazer, entendidas como depravação.

No contexto histórico-científico em que o jovem e recém-formado médico Sigmund Freud iniciou sua prática clínica, a homossexualidade era entendida como uma degenerescência, uma perversão, ou seja, algo inscrito no campo da anormalidade. Já no início do século XX, Freud dava provas de que não compactuava com essa visão patologizante, não apenas da homossexualidade, mas de qualquer forma de expressão da sexualidade. Seu clássico Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1996b) é considerado um texto fundamental quando se trata do estudo da sexualidade no campo psicanalítico. É nele que argumenta contrariamente à ideia de que os homens e mulheres que desejam pessoas do mesmo sexo seriam acometidos de uma perversão sexual.

Freud (1905/1996b), nesse momento, já reconhece a possibilidade de uma constituição precoce da identidade sexual e da escolha objetal, e, sendo assim, afirma que não apenas o interesse sexual dos "invertidos" exigiria uma explicação, mas também o desejo heterossexual. Em ambos os casos, o desenvolvimento sexual de um sujeito somente estaria acabado após a puberdade, sendo sempre efeito de uma série de fatores, tanto constitucionais quanto acidentais, ou seja, um sujeito tornar-se-á homossexual ou heterossexual a partir da qualidade de suas experiências de satisfação, experimentadas ao longo de sua vida e, também, a partir das identificações que fará ao longo de sua constituição psíquica.

No que diz respeito à especificidade da homossexualidade feminina, Freud dedicou apenas um de seus textos a essa temática e, ao longo de sua produção teórica, há referências esparsas a ela que, quando aparecem no texto freudiano, estão sempre correlacionadas a conceitos como bissexualidade, complexo de masculinidade, entre outros. Ao final de sua obra, esse tema aparece em oposição a uma das saídas edípicas possíveis para a menina: a feminilidade.

O fato de a homossexualidade feminina ser um tema pouco explorado foi comentado por Freud (1920/1996e, p. 159): "O homossexualismo nas mulheres, que certamente não é menos comum que nos homens, embora muito menos manifesto, não só tem sido ignorado pela lei, mas também negligenciado pela pesquisa psicanalítica" (1920/1996e, p. 159).

Sendo assim, para compreender a racionalidade da construção teórica freudiana acerca do tema homossexualidade feminina, consideramos mais adequado dirigir essa pesquisa dentro do campo da historiografia psicanalítica e a partir da metodologia históricoepistemológica (Abrão, 2007; Klipan, 2015; Roudinesco, 2000).

Para isso, escolhemos fazer uma leitura criteriosa dos seguintes textos em que Freud dedica sua escrita ao tema da sexualidade em geral e, mais especificamente, à feminina: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996b), Fragmentos da análise de um caso de histeria (1905/1996a), A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920/1996e), Organização genital infantil (1923/1996g), A Dissolução do Complexo de Édipo (1924/1996h), Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925/1996i), Sexualidade Feminina (1931/1996j) e a Conferência XXXIII - Feminilidade (1933[1932]/1996k). Outros textos freudianos e de comentadores de perspectiva lacaniana também fazem parte do trabalho, contudo o eixo de discussão se centra nos textos anteriormente destacados.

 

O Componente Homossexual na Histeria de Dora

Não faz parte dos objetivos deste artigo trabalhar o célebre caso Dora, bastante conhecido pelos interessados em psicanálise. O que pretendemos é extrair dele a questão levantada por Freud no que diz respeito à suposta relação homossexual tecida entre Dora e a Sr.ª K.

Freud (1905/1996a) havia notado em Dora um forte impulso de ciúme dirigido à Sr.ª K. Em seu entendimento, a presença desse tipo de corrente homossexual é muito comum nas moças, durante a adolescência, e tende a desaparecer por completo com o passar do tempo. Contudo adverte que, quando uma mulher não está amorosamente satisfeita na relação com um homem, essa tendência pode ser despertada novamente.

Em suas palavras: "Nas mulheres e moças histéricas cuja libido sexual voltada para o homem é energicamente suprimida, constata-se com regularidade que a libido dirigida para as mulheres é vicariamente reforçada e até parcialmente consciente" (Freud, 1905/1996a, p. 64). Assim, a homossexualidade feminina, enquanto um componente da histeria, surge como uma segunda escolha possível diante do fracasso amoroso com os homens.

Sobre a relação entre Dora e a Sr.ª K, ressalta a importância da relação tecida entre as duas mulheres. Eram muito íntimas, confidentes. Dora falava a Freud da admiração pelo corpo da Sr.ª K e não utilizava palavras ásperas para se referir a ela, nem mesmo quando se deu conta de que era ela a sua grande traidora. A conclusão a que Freud chega é a de que Dora encobriu, durante tanto tempo, a relação amorosa existente entre seu pai e a Sr.ª K não apenas para esconder e dar lugar ao seu amor pelo Sr. K, mas também para encobrir seu amor, inconsciente, pela Sr.ª K.

Freud assume seu erro técnico na condução do caso e atribui a si mesmo e a sua inabilidade em escutar o que se passava na transferência como o responsável pelo final precoce da análise. Reconhece também que cometeu outro grande equívoco, o de deixar de apontar o amor homossexual de Dora pela Sr.ª K.

Mesmo tendo percebido o caráter homossexual daa relação entre elas, não possuía recursos teóricos para trabalhá-la. Nesse texto, afirma que há em todas as neuroses relações com esse caráter, mas não especifica como e nem mesmo o porquê. O que Freud (1905/1996a) deixa claro é que a relação de Dora com o Sr. K seria uma reedição do amor infantil por seu pai. A mãe de Dora quase não aparece no relato do caso, a não ser para que seja ressaltado o quanto seu relacionamento com o marido era insatisfatório.

O cerne do erro freudiano está na sua teoria acerca do Édipo feminino. Freud, nesse momento de sua obra, ainda não conseguia dimensionar a importância da mãe e das figuras substitutivas femininas na constituição psíquica da menina. Entendia que o primeiro objeto de amor para a menina era o pai, por isso, não pôde escutar o que se passava entre Dora e a Sra. K, e insistia, com suas interpretações, no amor de Dora pelo Sr. K e do quanto ela recuava, pela via histérica, dele, mantendo seu desejo insatisfeito.

No entendimento de Zalcberg (2007), Freud propunha uma solução moderna para o conflito instalado, bem no sentido do que se esperava culturalmente na época: casando Dora com o Sr. K e o pai de Dora com a Sra. K. Em sua opinião, este foi seu grande erro, pois, com isso, quebrou todo o equilíbrio que os unia - os desejos, de insatisfeitos, passariam a satisfeitos, e disso, Dora não queria saber - e, por isso, interrompeu sua análise.

A dificuldade de Freud era a de dar um lugar para o interesse da jovem pela Sr.ª K. Não que ele não tenha o notado, pelo contrário, ficava intrigado e até o nomeou como uma tendência homossexual. Contudo suas intervenções iam no sentido de elidir esse interesse de Dora. "Freud confessa que sempre tivera uma espécie de preconceito para reconhecer a questão do laço homossexual nas histéricas. Só depois do fracasso do tratamento, ele pôde pensar a questão de Dora em termos de uma tendência homossexual" (Zalcberg, 2007, p. 17). Essa tendência fora interpretada como podia, na época, em termos de uma inversão de objeto sexual, visto que era sobre esse aspecto, a escolha objetal, que havia teorizado nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1996b).

Assim, Zalcberg (2007) afirma que essa tendência homossexual em Dora é lida como sendo uma tendência de buscar, por meio de outra mulher, as respostas para o enigma da feminilidade. Em suas palavras, "a tendência homossexual na histeria não é o mesmo que homossexualidade" (p. 17).

Por isso, para essa autora, Freud não pôde escutar qual era, realmente, a questão de Dora e insistiu na sua relação com o Sr. K. Dora somente rompeu esse equilíbrio que sustentava a relação entre o quinteto, formado por ela própria, seu pai, sua mãe e o Sr. e a Sr.ª K, pois o Sr. K, na conhecida cena do lago, lhe disse que sua mulher não representava nada para ele. Foi por isso que ele levou a bofetada e ela, em seguida, ficou doente. A pergunta de Dora tornou-se: "Se ela não é nada para você, que sou eu então?" (Zalcberg, 2007, p. 18).

Essa "tendência homossexual" diagnosticada por Freud não diz respeito a um desejo ou a uma escolha objetal homossexual, mas sim a uma forma de tentar responder ao enigma da sexualidade feminina e, ao mesmo tempo, manter seu desejo insatisfeito. Era através da Sr.ª K que Dora conseguia saber o que é ser uma mulher para um homem (seu pai e o Sr. K), visto que a mãe de Dora era ausente e não representava para seu pai um objeto de desejo. Diferente de uma mulher homossexual, o desejo de Dora era dirigido a um homem, a mulher era apenas um desvio que, de qualquer forma, a levava ao mesmo caminho.

Assim, Dora nutria um amor e uma admiração pela Sr.ª K; identificava-se com ela, mas não a desejava sexualmente, como cogitou Freud. Era essa mulher que ocupava o lugar que sua mãe poderia ter ocupado, caso fosse ela a destinatária do amor e do desejo por parte de seu pai.

 

O Caso da Jovem Homossexual

A série de artigos publicada por Freud na década de 1920, composta por Organização genital infantil (1923/1996g), A Dissolução do Complexo de Édipo (1924/1996h) e Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925/1996i), é aquela em que ele se dedica a fazer uma diferenciação entre a constituição sexual das meninas e dos meninos. Até 1919, ele vinha tratando da constituição psíquica do menino sem adentrar a questão nas meninas. Sem recursos para demonstrar as diferenças, apresentava-as sempre como equivalentes. O caso da jovem homossexual promove uma virada em seu entendimento e sua consequência direta é a modificação teórica exposta nessa série.

No tocante à homossexualidade, da mesma forma, Freud havia se dedicado ao estudo da versão masculina. A publicação de A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher, em 1920, fez parte dessa importante revisão teórica acerca da sexualidade feminina.

Outro ponto salientado por James Strachey, editor das Obras completas de Sigmund Freud, é que, a partir da publicação de A psicogênese de um caso de homossexualismo..., Freud (1920/1996e) passou a considerar de maneira mais ampla a sexualidade nas mulheres. Até então, havia se dedicado mais ao estudo da histeria. Essa modificação na teoria e esse novo olhar para a sexualidade feminina são contemporâneos em sua obra e têm íntima ligação.

Assim como fizemos no ponto anterior, não apresentaremos esse caso clínico em todos os seus pormenores. Apresentaremos os pontos de maior relevância teórica no que se refere à homossexualidade feminina.

Sidonie é trazida por seus pais para análise com Freud seis meses após uma tentativa de suicídio, quando tinha 18 anos (Rieder & Voigt, 2008). Freud (1920/1996e) refere que a homossexualidade da jovem despertava em seu pai profunda amargura e, por isso, ele havia decidido fazer o que fosse necessário para retirá-la dessa condição. Já a mãe da jovem não tomava a homossexualidade da filha de maneira tão trágica; parecia se incomodar muito mais com a maneira com que a moça demonstrava, em público, seus sentimentos pela baronesa que amava. Tratava a filha com bastante frieza, muito diferente do tratamento que dava aos outros filhos.

Para Freud (1920/1996e), o fato de ter sido trazida para análise por demanda do pai era um complicador. Seu pai ansiava que uma análise poderia retirá-la dessa condição, o que a conduziria para a heterossexualidade. Sobre tal pedido, que nomeou como uma remoção da inversão genital, Freud deixou claro que não poderia ser tomado como um objetivo para uma análise. Compreendia ainda que qualquer escolha sexual é uma restrição na escolha de objeto e, nesse sentido, independentemente de ser homo ou heterossexual, a conversão no seu contrário seria impossível, porque tanto sujeitos homossexuais quanto heterossexuais não são capazes de abandonar os objetos através dos quais alcançam satisfação e prazer. E, mesmo que isto fosse possível, teria sérias consequências para a economia psíquica, o que já seria razão suficiente para desaconselhar o tratamento da homossexualidade por meio da psicanálise. Justamente por essas razões apresentadas, se absteve e não ofereceu aos pais da jovem qualquer esperança de que seu desejo pudesse ser realizado. Aceitou-a, contudo, em um tratamento de ensaio, em que lhe foi possível compreender as raízes de sua escolha homossexual, mas a análise não progrediu.

Para Freud (1920/1996e), a jovem tinha, perante sua amada, uma atitude masculina caracterizada por humildade e supervalorização do objeto sexual, renúncia de toda satisfação narcisista e preferência em ser amante e não amada. Essas características do amor masculino já haviam sido trabalhadas por ele em Sobre um tipo especial de eleição de objeto no homem (1910/1996c). Isto o fez concluir que,, além de ter escolhido um objeto amoroso feminino, a jovem tinha também desenvolvido uma atitude masculina perante ele.

Outra característica bastante masculina apontada por Freud (1920/1996e) era a sua devotada compaixão para com a amada. A ausência de uma boa reputação da dama a quem dirigia sua admiração era uma condição necessária ao seu amor; sua atitude para com ela era heroica, visto que intencionava salvá-la dessa condição.

Em sua infância, a jovem havia passado pela atitude "normal" característica do complexo de Édipo feminino. Quando tinha 13-14 anos, apresentava forte carinho por um menino de três anos, interpretada por Freud (1920/1996e) como um forte desejo de ser mãe e de ter um filho.

Aos dezesseis anos, em plena revivescência de seu complexo de Édipo infantil, enquanto desejava ter um filho de seu pai, foi desapontada quando ele engravidou sua mãe, inconscientemente odiada. Nas palavras de Freud (1920/1996e, p. 169): "Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens. Passado esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminidade e procurou outro objetivo para sua libido".

No que tange esse aspecto do caso, Zalcberg (2007) comenta que uma menina pode reagir muito mal diante da promessa de receber um filho simbólico do pai (como substituto do pênis - imaginário, e do falo - simbólico). O pai, ao dar uma criança à mãe, na realidade, se desloca do lugar de doador simbólico em potencial. A jovem entende esse deslocamento do pai como um não reconhecimento de seu desejo de mulher e acaba fazendo uma regressão. Ao invés de seguir seu caminho no sentido da passagem do pai (doador simbólico) a outro homem (de quem poderia receber um bebê na realidade), insiste no amor ao pai (Zalcberg, 2007).

Sua escolha objetal é interpretada pela autora como uma forma de mostrar ao pai como se deve amar uma mulher - pelo que ela não tem. No caso específico da dama, uma boa reputação. Dito de outra forma, é uma maneira de mostrar como ele deveria tê-la amado.

A jovem abandonou, assim, seu desejo de ter um filho, o objeto masculino e a posição feminina, identificando-se com o pai e assumindo uma posição masculina diante de um objeto feminino, presentificada na forte atração por mulheres mais velhas. Para Freud (1920/1996e), a dama pela qual a jovem estava apaixonada representava um substituto de sua mãe.

Já afirmamos que um dos aspectos mais importantes trazidos por Freud nesse texto é o reconhecimento da participação da mãe na constituição da homossexualidade da filha. Bastante diferente da apresentação do caso Dora, em que a mãe quase não aparece no relato do caso (apesar de estar presente nos sonhos trazidos pela paciente), pois Freud ainda não se dava conta da sua importância para a constituição sexual da menina, nesse caso, a relação com a mãe é trazida como um aspecto fundamental.

Podemos ler essa ampliação na teoria a partir de Pommier (1992) quando afirma que o desejo feminino é inicialmente orientado pelo Outro materno1 e, apesar de se deslocar para o pai, mantém uma marca do endividamento para com o primeiro objeto de amor: a mãe. Dessa forma, em toda mulher há sempre um componente homossexual, latente ou manifesto, que em nada questiona sua feminilidade.

O autor, seguindo a trilha freudiana, propõe que, no caso das mulheres, a homossexualidade é posterior à heterossexualidade, como se deu no caso da jovem homossexual que, primeiramente, dirigiu seu amor ao pai. Somente por ter se desapontado com ele, quando este engravida sua mãe, é que declarou sua homossexualidade. Sendo assim, na opinião de Pommier (1992), a ordem dos acontecimentos é de suma importância na constituição da homossexualidade feminina.

Outro ponto levantado por Pommier (1992) é que as mães são amadas por suas filhas não na sua condição maternal, e sim por serem mulheres e amarem e desejarem o homem (pai). Assim, esse autor propõe um avanço em relação a Freud - para ele, trata-se de um amor pela feminilidade, e não um amor pela maternidade. Na posição homossexual, a mulher se identifica com o pai e ama sua mãe como mulher. No caso específico da jovem homossexual, essa modificação de objeto de amor, esse abandono de sua feminilidade, permitiu a ela sair da rivalidade com a mãe, ao mesmo tempo em que se vingava do pai, rivalizando com ele.

Outro ponto importante do caso diz respeito ao histórico de seus enamoramentos. As primeiras paixões da jovem haviam sido por mulheres, mas, em nenhum dos casos, havia se interessado por mulheres também homossexuais. Seu interesse amoroso se dirigia a mulheres que desejavam ser admiradas e que demonstravam prazer em seduzir. Freud (1920/1996e), inclusive, ressalta que a jovem havia, uma vez, negado as investidas de uma amiga francamente homossexual de mesma idade.

Azevedo (2013) dá destaque a esse aspecto do caso quando ressalta a repulsa ao sexo trazida pela jovem homossexual, tanto no relato de Freud (1920/1996e) quanto em sua biografia autorizada (Rieder & Voigt, 2008). Mesmo que tivesse considerado Freud como um "velho imbecil" (Azevedo, 2013, p. 306), confirmava a interpretação freudiana de que a dama cortejada era um substituto de sua mãe.

Freud (1920/1996e) ainda destaca que a sexualidade daquela jovem fluía, desde muito cedo, em duas correntes: homo e heterossexual, sendo que a primeira seria a "continuação direta e imodificada de uma fixação infantil na mãe" (p. 180), para qual a corrente heterossexual desviou-se.

O complexo de masculinidade era fortemente acentuado na moça. Após a percepção da presença do pênis do irmão mais velho, desenvolvera forte inveja, manifestada através de um, também forte, sentimento de injustiça frente às diferenças sociais entre meninos e meninas; gravidez e parto lhe pareciam indesejáveis devido à desfiguração que produziam no corpo.

Não podemos deixar de comentar que, durante sua argumentação, Freud (1920/1996e) recorre, mais uma vez, como o faz ao longo de sua obra, a uma dupla etiologia para a identificação sexual, tanto inata quanto adquirida. Freud nunca havia deixado de lado por completo seu raciocínio médico e sempre demonstrou seu apego às ciências naturais, contudo seu desenvolvimento teórico vai numa direção oposta, como veremos a seguir, tornando impossível sustentar uma etiologia inata.

Feito esse comentário, o ponto que ressaltamos neste texto é a diferenciação apresentada por Freud (1920/1996e) entre identificação e a escolha de objeto sexual. Sobre a homossexualidade em geral, afirma que nem sempre a escolha objetal corresponde às atitudes e características sexuais do sujeito, no sentido de que uma mulher não necessariamente precisa apresentar-se mais masculinizada em suas atitudes (identificação masculina) para realizar uma escolha de objeto homossexual.

Para Freud (1920/1996e), há três conjuntos de características sexuais do ponto de vista do sujeito: físicas, mentais e a escolha objetal. No que diz respeito às características físicas, menciona que todos os sujeitos apresentam, em maior ou menor grau, aquilo que nomeia como um hermafroditismo físico, em que o sujeito apresenta as características sexuais de seu sexo e também as do sexo oposto, sem que isso implique necessariamente numa relação preestabelecida de escolha de objeto, quer seja ela homossexual, quer heterossexual. Quanto às características mentais, refere-se a um hermafroditismo mental, em que também um sujeito pode apresentar toda uma série de características mais propriamente atribuídas (socialmente e imaginariamente) ao seu próprio sexo e às do sexo oposto. Essas características são encontradas em um sujeito em maior ou menor grau, sem que isso implique numa relação preestabelecida de escolha objetal, homossexual ou não. Considera que um homem pode apresentar características predominantemente masculinas, mas fazer uma escolha de objeto homossexual e, ao contrário, um homem em que predominam características femininas pode fazer uma escolha de objeto heterossexual. Da mesma forma, uma mulher cujas características sejam mais acentuadamente masculinas e sua escolha objetal ser do tipo heterossexual. No caso da jovem homossexual, afirma que ela apresentava atributos intelectuais e objetividade mais masculinizados, mas, fundamentalmente, sua forma de amar era do tipo masculino e coincidia com uma escolha de objeto homossexual. Por fim, quanto à escolha objetal, Freud menciona que, em qualquer sujeito, ao longo de sua vida, a libido oscila normalmente entre objetos masculinos e femininos. Se predomina um tipo de escolha, esse fato se relaciona ao modo como a satisfação pulsional se fixou no inconsciente, ou seja, ao modo de ligação privilegiada aos objetos (Chemama, 1995; Freud, 1920/1996e).

Todas essas características citadas podem variar independentemente umas das outras e se combinarem de maneira múltipla. E, por isso, Freud (1920/1996e) faz questão de reiterar que à psicanálise não cabe solucionar os casos de homossexualidade, visto que ela seria apenas um dos modos de variação e combinação entre essas características, tão legítimas quanto todas as outras. Quanto à psicanálise, ela seria apenas um instrumento capaz de revelar os mecanismos psíquicos que levaram a uma determinada formatação.

Quanto a esse aspecto da distinção que Freud (1920/1996e) faz entre identificação e escolha de objeto sexual, já mencionamos que, nos Três ensaios..., Freud (1905/1996b) trabalhou muito mais a questão da escolha objetal. Ele ainda não tinha recursos teóricos para se aprofundar na questão das identificações. Segundo Allouch (2005), o caso da jovem homossexual foi a oportunidade que Freud teve para teorizar sobre essa diferença e a independência entre esses dois aspectos da sexualidade.

O conceito de identificação é trabalhado mais a fundo por Freud um ano após, no capítulo VII de Psicologia de grupo e análise do ego (Freud, 1921/1996f), no qual ele a define como a mais remota expressão de laço emocional com o outro, e afirma que desempenha papel fundamental no complexo de Édipo. Segundo Freud (1921/1996f), a identificação diz respeito a quem queremos ser e a escolha objetal, a quem queremos ter. A primeira é mais precoce que a segunda, pois pode acontecer sem que se tenha eleito um objeto sexual. Assim, no caso que estamos trabalhando, a identificação com a mãe é transformada em escolha objetal, e a jovem identifica-se com o pai, cultuando e se devotando à sua amada segundo os moldes do amor cortês, numa posição masculina em relação a um objeto feminino. Não podemos deixar de mencionar novamente que, muito mais do que uma ligação erótica, a jovem homossexual mantinha com a dama uma relação amorosa. O ato sexual era o que menos importava.

Nesse sentido, Mariano (2008) afirma que a homossexualidade feminina aponta em direção à feminilidade e não à masculinidade, visto que a homossexual quer ser amada pelo que não tem, o pênis. Retomando Freud, a autora menciona que, para ele, no caso da jovem homossexual, a mãe era objeto de amor por parte da jovem, mas não de identificação, na qualidade de um amor cortês, desviado do sexual.

Laznik (2003), da mesma maneira, afirma que se trata de um amor platônico, assexual, que teria como objetivo apenas servir a dama. Um amor fora do sexo, portanto. A autora ainda afirma que o fato de uma mulher amar outra mulher não garante sua pertença no grupo das homossexuais femininas, visto que o termo homossexualidade diria respeito a uma sexualidade "agida" (p. 191) entre sujeitos do mesmo sexo.

Sendo assim, parece que podemos concluir que, também nesse caso, não se trata de uma relação homossexual baseada no erotismo, e sim no amor homossexual, numa espécie de continuidade, regressiva e fixada, do amor à mãe.

 

Feminilidade e Homossexualidade Feminina

Foi difícil para Freud reconhecer, num primeiro momento, a importância da mãe na constituição sexual da menina. Os dois textos, publicados na década de 1930, Sexualidade feminina, de 1931, e a Conferência XXXIII - Feminilidade, de 1933, são aqueles em que ele apresenta suas ideias reformuladas a fim de reparar o erro teórico que havia sustentado ao longo dos anos anteriores.

Como já afirmamos, a partir de 1920, Freud (1925/1996i) começa a reconhecer diferenças na constituição dos meninos e das meninas, entendendo que, no caso das últimas, há uma complexidade extra que havia lhe escapado até então. O complexo de Édipo, no caso delas, é secundário e sua resolução depende da maneira como a menina atravessa a fase préedipiana e faz sua entrada na fase fálica (André, 1987).

Assim, ao contrário do que Freud pensava, a tarefa da menina seria muito mais complicada, pois, ao contrário dos meninos, não é o complexo de castração que coloca fim à sua relação objetal primária com a mãe.

Retomando brevemente a constituição da menina, ao se dar conta da diferença anatômica entre os sexos, ela é tomada pela inveja, que se traduz como um desejo de também ser menino e possuir um pênis. A inveja da menina se relaciona à sua interpretação sobre o que significa para ela possuir um pênis.

Zalcberg (2007) afirma que em suas primeiras formulações, Freud (1905/1996a) está, realmente, se referindo ao órgão masculino. Após 1920, com sua formulação da fase fálica, não é possível manter essa mesma leitura. A grande sacada de Freud, quando inclui a importância da fase préedipiana na constituição da menina, é justamente o deslocamento e o distanciamento entre falo e pênis. Assim, podemos ler a inveja do pênis como inveja fálica, de modo que a menina supõe que o menino, por possuir um pênis, teria um lugar privilegiado diante da mãe. Segundo Zalcberg (2007), Freud chega à conclusão de que a menina interpreta que sua vinda ao mundo sem o pênis poderia ser a causa de não ter sido suficientemente amada por sua mãe. No imaginário da menina, caso ela possuísse um pênis, não seria castrada e, portanto, seria o falo materno. Nas suas palavras:

O que ficará cada vez mais caro na evolução do pensamento psicanalítico é que na subjetividade feminina a falta de pênis é vivida como possibilidade de falta de amor. A associação entre a falta de pênis e a falta de amor aponta para uma questão que se revela crucial para toda filha: saber qual o lugar que ocupa no desejo da mãe (Zalcberg, 2007, p. 32).

É nessa mesma linha de raciocínio que Prates (2001) afirma que, com o deslocamento do pênis para o significante fálico, se mantém a estrutura da teoria, amplia-se sua significação e se resolve o impasse freudiano no que diz respeito à inveja do pênis. Para chegar a tal compreensão, a autora se refere à diferença entre a primeira formulação freudiana, de 1905, acerca da diferença sexual anatômica, em que ambos, menino e menina, desconhecem a vagina e dão alto valor ao pênis devido sua importância na masturbação, e a de 1923, em que Freud retomará essa problemática, indicando que não se trata de uma primazia dos órgãos genitais, e sim uma primazia do falo. A castração somente poderá ser generalizada a partir do reconhecimento da falta de pênis na mãe, ou seja, a partir da confrontação com a castração materna.

Prates (2001) ressalta um comentário de Freud (1923/1996g) no qual ele afirma que somente pode-se falar em castração quando "uma perda une-se ao falo" (p. 36). Dessa forma, os demais danos narcísicos sofridos pela criança, como o desmame e as fezes, serão ressignificados a partir dessa associação. É a partir dela que a criança começa a dar sentido de falo às demais insatisfações. Assim, Freud começa a se distanciar da ideia presente em seus primeiros escritos, em que compreendia que o complexo de castração estava atrelado diretamente ao pênis enquanto órgão e a ameaça sofrida pela criança como vinda, na realidade, por parte de um adulto e inverte a lógica: é a visão do corpo da mãe desprovido de pênis que ressignifica as ameaças e as insatisfações. Nas palavras da autora, "o conceito psicanalítico de falo começa a se descolar, assim, do órgão peniano, ganhando o estatuto de representante psíquico da falta (perdas narcísicas ou insatisfação)" (Prates, 2001, p. 36).

Lacan (1958/1998) afirma que o falo é um significante que se destina a designar os efeitos de significado. Não é uma fantasia, nem um objeto, nem o órgão (pênis) que ele simboliza. O falo é um significante primordial que dá razão ao desejo. Em seu ensino, propõe que se o desejo da mãe é o falo, e a criança, de qualquer sexo, quer ser o falo para satisfazê-la. Assim, inaugura-se o desejo como o desejo do Outro, e o falo é o significante do desejo do Outro.

Por essa razão que se Freud (1923/1996g, 1924/1996h, 1925/1996i) propõe a constituição psíquica a partir da diferença sexual, isso não quer dizer que a sexualidade seja garantida a partir dessa diferença. Kehl (2016) afirma que, no decurso da subjetivação do sexo, a anatomia tem o seu peso, mesmo que ela não tenha um caráter de definição da sexuação de um sujeito. Zalcberg (2007), na mesma direção, afirma que, enquanto o menino possui o órgão e também a angústia de castração, a menina estaria livre da angústia de castração, mas, em contrapartida, não tem o órgão. A autora ressalta que, em termos simbólicos, como não se trata do órgão em si, mas do falo, na verdade, nenhum dos dois (menino ou menina) o possui.

Entretanto o órgão viril é subjetivado pelo menino como um eu tenho e pela menina como um não tenho. Essa subjetivação terá consequências para a forma com que se vivenciará a feminilidade ou a masculinidade. Enquanto os homens estão sempre sobre a ameaça de sua perda, as mulheres reivindicarão sua presença (Zalcberg, 2007).

Nesse processo de subjetivação do sexo, como o falo tem o pênis como suporte imaginário, ele tem uma consistência para o homem. Já à mulher falta um símbolo da especificidade feminina. A vagina não tem o mesmo valor enquanto suporte imaginário para representar o sexo feminino no inconsciente. É por isto que Zalcberg (2003) conclui que não é a anatomia que importa à menina, mas sim a forma com que ela é subjetivada.

Retomando o conceito de inveja do pênis em Freud, ele nota que a mágoa da menina em relação à mãe por tê-la colocado no mundo desprovida de pênis não seria suficiente para operar a separação entre ambas e, assim, proporcionar a virada de objeto da mãe para o pai. Segundo Zalcberg (2003), Freud, a partir de sua tentativa de responder a essa questão, pôde formular seus últimos textos na década de 1930. A conclusão a que ele chega é que o único fato capaz de operar essa separação é a descoberta da castração materna, que põe fim na intenção da menina de obter um pênis (falo). Assim, só restaria e ela virar-se para o pai.

Cada menina trilhará esse caminho de uma maneira singular, e esse trajeto deixará consequências tanto na forma como a menina considerará seu primeiro objeto de amor (a mãe) como também seu próprio corpo (André, 1987).

O que Freud (1931/1996j, 1933[1932]/1996k) nos faz notar é que na problemática feminina a virada ao pai não deixa de ser, sempre, uma forma de retorno à relação primária com a mãe. Da mesma maneira, nessa passagem, a menina não renuncia completamente ao pênis. Ao se virar em direção ao pai, o que busca é um equivalente fálico, visto que na passagem do pênis ao filho não há uma alteração de significado, não há surgimento de uma nova significação (André, 1987).

Assim, na impossibilidade de ser o falo materno, a menina passa a querer tê-lo, por isso deseja receber um filho, simbólico, do pai. Para Zalcberg (2007), a menina só começa a amar o pai por causa do falo, ou seja, para a mulher, a busca do falo se enlaça na busca do amor - da mãe para o pai, do pai para o homem -, e, nessa busca, acaba por se voltar à mãe. É dela que a filha pode colher sua identificação feminina, por isso o medo de perder o amor é, para a menina, tão importante quanto a angústia da castração para os meninos.

A partir dessas considerações pode-se relativizar a proposição de Freud (1914/1996d) acerca da escolha amorosa nas mulheres. Para ele, as mulheres seriam mais dadas a serem amadas do que a amar, privilegiando sempre o tipo de escolha narcísica. Levando em consideração o deslocamento realizado do pênis ao significante fálico, e toda a dimensão fálica descrita por Zalcberg (2007), a teoria acerca do tipo de escolha amorosa da mulher ganha fundamentação teórica e se despe do possível caráter pejorativo que poderia ter na obra freudiana. O amor torna-se, dessa forma, uma forma da mulher garantir uma identidade.

Tendo em vista todo o resgate teórico que fizemos até aqui, apresenta-se muito pertinente o comentário de Zalcberg (2007) quando afirma que a mulher feminina é, para Freud, uma mulher fálica, que ama e goza a partir da lógica fálica.

A autora ressalta que a identificação ao pai, ou seja, a identificação viril, tem como função separar o filho (tanto menino quanto menina) da mãe. É essa identificação com as insígnias paternas que permite à criança deixar o lugar de objeto do desejo da mãe para construir seu próprio desejo, adentrando ao campo da neurose (Zalckberg, 2007).

Se essa passagem é definitiva para o menino, a menina fica sujeita a restos dessa primeira ligação com a mãe, que continuam tendo efeito sobre sua subjetividade. Se o menino sai do Édipo com uma identificação viril, a menina pode se manter nessa identificação ou ir em busca de uma identificação feminina.

Essa afirmação vai ao encontro do reconhecimento, por parte de Freud (1931/1996j), de uma dificuldade extra que a menina possui na constituição de sua feminilidade. Para ele, esta se deve a um conflito, pois o momento em que a menina precisaria se identificar à mãe é o mesmo em que ela mais a hostiliza. Para Freud (1931/1996j, 1933[1932]/1996k), como sua relação com a mãe é ambivalente, permeada de muito amor, mas também por muito ódio, pode impedir a menina de assumir uma posição feminina e, portanto, passiva diante do pai.

Sendo assim, para Freud (1933[1932]/1996k), a partir da entrada na problemática edípica, a menina poderá sair por uma das três vias possíveis: a feminina, a masculina ou a inibição. Dedicaremo-nos às duas primeiras.

Estamos, ao longo desta seção de nosso artigo, apresentando a saída pela via da feminilidade, na qual a menina, magoada e ressentida com a mãe, dirige-se amorosamente ao pai, de maneira a conseguir dele o falo que a mãe lhe recusara. Por equivalência simbólica, a menina substituirá, caso elabore minimamente seu complexo de masculinidade e a inveja do pênis, o desejo de ter um pênis pelo desejo de ter um bebê. Esse deslocamento é, para Freud (1933[1932]/1996k), um avanço: de um desejo masculino para um desejo feminino.

Justamente nesse ponto que André (1987) afirma residir uma fragilidade do raciocínio freudiano, no atrelamento entre feminilidade com a maternidade. Na opinião do autor, para Freud, o filho seria o significante da identidade feminina e a clínica psicanalítica não sustenta esse raciocínio. Uma das situações clínicas que ele salienta são os casos em que a maternidade é experimentada como uma expectativa de encontrar um signo da identidade feminina, sendo acompanhada por uma depressão ou por um "contentamento de fachada" (p. 179).

Zalcberg (2007), no mesmo sentido, toma esse ponto como uma característica do pensamento freudiano. Para ela, a mulher é, na teoria freudiana, , mesmo aquela que escolhe a via feminina, uma mulher fálica, isto ocorre porque, no deslizamento simbólico pênis-bebê-homem, ela se satisfaz, deseja e ama a partir e em função do falo.

Segundo a autora, apesar de ser uma característica marcante do momento sociocultural no qual Freud estava inscrito, e que, portanto, essa teoria seria fruto de um preconceito, é por não conseguir se desatrelar da mulher fálica que Freud não via outra possibilidade para a feminilidade que não a maternidade. Nesse sentido, há nesse ponto uma limitação teórica.

Para Zalcberg (2007), se a saída pelo ter realmente solucionasse a questão feminina, as mulheres na atualidade estariam muito mais próximas de uma resolução, pelo menos aquelas que alcançam sucesso profissional, influência, dinheiro e todos esses substitutos imbuídos de valor fálico na nossa sociedade. Na opinião da autora, a grande questão feminina não reside no ter, e sim no ser. Nesse sentido, o caminho a percorrer nessa busca é singular.

Retomando Freud (1933[1932]/1996k), a partir dessa saída seria possível à menina fazer três mudanças: a mudança de zona erógena, da exclusividade do clitóris para a vagina; a mudança de objeto amoroso da mãe ao pai e, futuramente, após findar o drama edípico, o pai, dessexualidado, seria substituído por outro homem; e, também, uma mudança na modalidade de satisfação pulsional, da atividade, entendida por Freud (1933[1932]/1996k) como masculina, recorrendo majoritariamente a fins passivos.

No que diz respeito à troca de sexo na saída pela via da feminilidade, André (1987) salienta que ela não significa uma mudança da identificação sexuada, como aconteceu com a jovem homossexual, mas sim o abandono da exclusividade do gozo clitoridiano, privilegiando o gozo vaginal. O autor afirma que em Freud (1933[1932]/1996k) tanto a mãe quanto o clitóris se mantêm na constituição psíquica da menina. Assim como o pai não substitui completamente a mãe, a vagina e o gozo vaginal não substituem o gozo clitoridiano, mas acrescenta-se a ele.

Nesse processo, todas essas modificações não têm nada de natural. Pelo Édipo da menina não ser resolvido, como no caso do menino, pelo complexo de castração, sua saída do complexo de Édipo é gradual e demanda um árduo trabalho. André (1987), seguindo Freud na Conferência, de 1933, afirma que a menina, no início, é um menino, e por essa razão que, para Freud, a feminilidade é um vir-a-ser. Uma mulher seria fabricada após um longo trabalho psíquico; porém, para Freud, muitas mulheres permaneceriam, no plano psíquico, como homens.

André (1987) salienta que, para a menina, a mãe se apresenta como um objeto de amor e, portanto, Outro, e também como um polo de identificação, ou seja, um outro (semelhante). Ele explica que se, para o menino, essa dupla da natureza da mãe se cinde pela entrada do pai, quando a identificação passa para o lado paterno e a mãe se mantém apenas como objeto amoroso, no caso da menina, a identificação com a mãe seria a condição pela qual seria possível não mais tomá-la como objeto amoroso.

Todavia incide entre a mãe e a filha a dialética da atividade/passividade. Desde o primeiro momento da vida de um pequeno ser, em sua relação com a mãe, a criança experimenta satisfação pulsional passivamente. André (1987) nomeia como reação à passividade, a busca ativa da criança, ou seja, por si própria, do que experimentou anteriormente de forma passiva. Assim, essa revolta contra a passividade representa um desejo de separação. No contexto em que Freud propõe no texto de 1933, essa oscilação entre atividade e passividade equivaleria, para o autor, a uma oscilação entre ser objeto da mãe e tomar a mãe enquanto objeto, ou seja, entre ser objeto do desejo e sujeito de seu desejo.

Assim, segundo André (1987), saindo da posição de objeto da mãe, tornando-se sujeito, a menina se afastaria de sua feminilidade, visto que, para Freud, atividade e masculinidade se equivalem. Dessa forma, para se tornar um sujeito, a menina precisa tornar-se masculina.

Aqui aparece um novo impasse. Como acabamos de mencionar, para sair da condição de objeto da mãe a menina precisa tornar-se ativa e, portanto, masculina. Entretanto, para ser feminina, precisa conservar uma boa dose de passividade em direção ao pai. É por isso que "os caracteres da relação pré-edipiana jamais são verdadeiramente eliminados, e estão sempre prontos a voltar à tona" (André, 1987, p. 187).

Nessa retomada do par de opostos atividade-passividade, Freud não consegue esclarecer, apesar de a libido ser única, tanto a serviço da masculinidade quanto da feminilidade, o porquê de haver uma prevalência na satisfação por meios passivos na posição feminina (André, 1987).

É neste sentido que André (1987) propõe que a grande pergunta de Freud não deveria ser como a menina se torna feminina, e sim como ela poderia deixar de se tornar homossexual, visto que a marca deixada pelo Édipo, pela separação entre corpos operada pela castração, conduz a uma posição masculina e lhe aponta a via homossexual, que é oposta à feminilidade.

Se a saída pela via da feminilidade é aquela que abdica de uma busca direta do falo, a saída homossexual é permanecer ligada, pelo complexo de masculinidade, à essa busca direta. A saída homossexual é aquela em que a menina se agarra à atividade masturbatória e se refugia numa identificação com a mãe fálica ou com o pai (Freud, 1931/1996j, 1933[1932]/1996k).

Essa saída consistiria numa manutenção da esperança de que ela poderia sim receber um "pênis" ou um falo. Dessa forma, a menina mantém sua masculinidade e a fantasia de que poderia ser um homem. Esta é a escolha que pode levar uma mulher a uma escolha de objeto homossexual (Freud, 1931/1996j; Zalcberg, 2003).

Freud (1931/1996j, 1933[1932]/1996k) não resolve o impasse acerca da feminilidade no final de sua obra. Como atrela a feminilidade à maternidade, diz muito pouco sobre o desejo e o gozo nas mulheres. Da mesma forma, podemos entender que, por não conseguir resolver esse impasse, também não responde ao que faz de uma mulher homossexual.

 

Considerações Finais

Por termos seguido de perto e mergulhado no pensamento freudiano, pensamos que correlacionar a homossexualidade feminina com a feminilidade era fundamental para compreender suas formulações, e assim fizemos.

O fato de a homossexualidade feminina ter sido deixada de fora da teorização psicanalítica por tanto tempo não seria uma exclusividade, algo restrito a uma impossibilidade, ou uma resistência própria de Freud. Dunker e Barbero (2010) nos informam que essa característica, de certa invisibilidade, é muito própria da homossexualidade feminina. Maurano (2013) sustenta que tal característica se deve à sua gênese, por se derivar diretamente da relação mãe-filha, e guardar em si um aspecto de maior naturalidade.

Com a publicação do caso da jovem homossexual em 1920, a homossexualidade feminina passar a ser não apenas uma possibilidade inscrita no Édipo da menina, mas também um elemento que faz parte do próprio complexo - uma posição masculina diante da mãe. Essa constatação faz André (1987) afirmar que a homossexualidade feminina é uma questão estrutural nas mulheres, um elemento presente na sua constituição que impede qualquer possibilidade de pensá-la como uma perversão.

Em 1905, Freud já havia se dado conta do amor homossexual que Dora nutria pela Sr.ª K, mas ele não tinha elementos teóricos para pensá-lo fora do campo de uma inversão (termo utilizado por ele na época) do objeto sexual. Por essa razão, acreditou que Dora fosse uma moça homossexual (Freud, 1905/1996a; Zalcberg, 2007).

O caso da jovem homossexual, apresentado 15 anos depois de Dora, propiciou os elementos necessários para que ele repensasse toda sua teoria acerca da constituição sexual na menina, dando toda importância à fase pré-edipiana de intensa relação com a mãe, e assim esclarecesse muito sobre esse aspecto homossexual que pode estar presente em qualquer mulher, homossexual ou não.

Outro aspecto teórico fundamental apresentado por Freud (1920/1996e) no caso da jovem homossexual foi a relação com o pai. A identificação viril, que tanto o menino quanto a menina recebem do pai, nomeada por Freud como complexo de masculinidade, teve forte influência na jovem, porque ela fez um retorno em seu Édipo, na direção contrária à feminilidade.

Entretanto Freud (1920/1996e) afirma que a homossexualidade não é simplesmente derivada do complexo de masculinidade, mas ela se apoia fundamentalmente numa fixação na mãe, que é primária e cujo amor ao pai é uma derivação. André (1987) afirma que é desse ponto que deriva a separação elaborada por Freud entre a identificação sexual do sujeito, masculina ou feminina, e a escolha de objeto.

A menina pode se identificar ao pai sem que com isto ela eleja um objeto amoroso homossexual e que, portanto, torne-se uma mulher homossexual. Nesse ponto, pensamos que confluem tanto Dora quanto Sidonie na identificação viril com o pai, entretanto elas fazem escolhas objetais diferentes (André, 1987).

Para André (1987), Freud não consegue explicar o que poderia retirar a menina do seu complexo de masculinidade e, por isso, afirma que a feminilidade fica sempre exposta a uma possível retomada da masculinidade primitiva da menina.

Como discutimos anteriormente, para Prates (2001), a teoria freudiana acerca da sexualidade feminina esbarra e fica impedida de avançar justamente porque Freud não conseguiu abrir mão, totalmente, do aspecto natural da sexualidade - a anatomia. Para essa autora, o conceito de inveja do pênis em Freud não está totalmente desvencilhado da anatomia.

Assim, dessa problemática, do recorte que fizemos na nossa pesquisa, que já sabemos ser permeado de lacunas e pontos em aberto dentro da produção freudiana, se abrem muitas outras possibilidades de continuidade deste estudo.

Há uma infinidade de desdobramentos possíveis a partir deste ponto, muitas leituras são possíveis a partir do legado freudiano. A psicanálise não é um campo de saber fechado e acabado, ela está em constante produção e transformação. Por isso, conhecer as bases conceituais de uma teoria é tão importante para compreender as elaborações e transformações que ocorrem ao longo dos anos ou dos séculos.

 

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Endereço para correspondência:
Caroline Philipp Pastana
E-mail: caphilipp78@hotmail.com

Marcos Leandro Klipan
E-mail: mlklipan@uem.br

Recebido em: 12/05/2020
Revisado em: 09/11/2020
Aceito em: 29/12/2020
Publicado online: 29/04/2021

 

 

1 Podemos entender por Outro materno aquele que representa o tesouro dos significantes, a função materna que pode ser exercida por qualquer sujeito que assuma os cuidados de um bebê, e que faça sua inserção no mundo simbólico (Chemama, 1995).

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